Tenho estado a receber mensagens de pessoas - que certamente não contribuiram para me eleger - apelando a que vote a favor da Comissão Europeia indigitada e realçando as qualidades do Sr. Buttiglione, que mais não teria feito que afirmar convicções pessoais e por elas não deveria ser censurado.
Não estão em causa as qualidades técnico-jurídicas do Sr. Buttiglione, nem as suas convicções pessoais ou religiosas. Não reprimo a liberdade de opinião seja de quem for, liberdade que muito prezo e exerço: por ela também me insurgi contra a posição do Governo português no caso do "Borndiep" e pelas pressões que levaram à saída da TVI do comentador Marcelo Rebelo de Sousa. Nem me interessam realmente as convicções pessoais do Sr. Buttliglione, ou de qualquer outro Comissário/a indigitado/a, se vão à missa aos domingos ou ao astrólogo de vez em quando.
Mas, atenção: foi o Sr. Buttiglione quem trouxe para a esfera política a referência à homossexualidade como "pecado", ao casamento como instituição para as mulheres procriarem protegidas pelos homens e a sua crítica ofensiva das mães sozinhas e do equilíbrio pessoal dos respectivos filhos ou filhas. Como uma dessas mães, só tenho razões para me orgulhar do produto e mandar bugiar reaccionários insultuosos como o Sr. Buttiglione... Mas não são também os meus sentimentos pessoais que estão em causa, antes a avaliação política que faço, como deputada eleita, das qualidades e capacidades políticas do comissários indigitados, e portanto também Sr. Buttiglione, para co-governar a UE na Comissão Europeia.
Ora, se o Sr. Buttiglione trouxe estas questões para a esfera política das audições no PE é porque quer que tenham consequências políticas. E eu não duvido, antes pelo contrário, da sua inteligência e do seu conhecimento do Parlamento Europeu, para o qual até foi eleito na legislatura anterior. E por isso não posso desvalorizar como escorregadelas ou ingenuidades infelizes as sucessivas declarações do Sr. Buttiglione, mas antes considerá-las como uma deliberada escalada de afrontamento ao PE (e de constrangimento de Durão Barroso), na linha do pensamento filosófico integrista que o Sr. Buttiglione e alguns outros católicos fundamentalistas, que consideram o Vaticano II demasiado "liberal", procuram transformar em prática política. Pensamento que ofende a moral pública europeia - e por isso tantos, de direita e de esquerda, católicos e não católicos, o repudiam no PE e fora dele.
Mas esta não é a única razão, nem talvez a mais importante, que determina a inadequação, no meu entender, do Sr. Buttiglione "político" para exercer o cargo de Comissário da Justiça e Liberdades.
Basta ver o curriculum de Buttiglione, em defesa da posição de Berlusconi, contra o mandado de detenção europeu.
Basta ver a posição que o seu Governo defende contra a investigação científica em células embrionárias, de que foi expoente a acção determinada e corajosa do actor Christopher Reeves, recentemente falecido. (Posição retrógrada, a que aliás, curiosamente, o Governo português tem dado apoio, de forma inédita, colocando Portugal na primeira linha de defesa de um projecto de resolução na ONU com vista a proibir qualquer investigação científica desta natureza; ao lado dos Governos dos Estados Unidos, da Costa Rica e naturalmente da Itália).
Basta, por fim, ver a proposta do Sr. Buttiglione de criação de campos de acolhimento de imigrantes e refugiados na Líbia, para perceber que Direitos Humanos e liberdades pessoais não são preocupação do Sr. Buttiglione. A proposta, em discussão no Conselho da UE, visa impedir os imigrantes e refugiados de entrar no território europeu, negando-lhes os direitos reconhecidos às pessoas que estão no espaço da UE e colocando-os à mercê da jurisdição de regimes ditatoriais opressivos, como o que ainda vigora na Líbia, sob a batuta de Khadaffi (que, por mais apertos de mão que vergonhosamente receba do Srs. Blair, Berlusconi, Chirac ou quaisquer outros dirigentes europeus, não deixa de ser o que é - um terrorista, um violador dos direitos humanos).
E é por todas estas razões que, no meu entender, o Sr. Buttiglione "político" não serve para exercer as funções políticas que serão exigidas a um Comissário Europeu. Qualquer que seja a pasta.
Ana Gomes