A evocação de Henrique de Barros (ver post abaixo) trouxe-me à memória o episódio das eleições de 1969 para a Assembleia Nacional do "Estado Novo" (decorreram 35 anos em Outubro passado), que a oposição democrática resolveu disputar, aproveitando a frustre "abertura marcelista" de então para agitar a opinião pública contra o regime. As dificuldades eram enormes. Apesar do alargamento do sufrágio então decretado, eram uma minoria os recenseados, com presença esmagadora dos funcionários públicos, dos militares e agentes das forças de segurança, dos religiosos e dos apaniguados do regime, todos oficiosamente inscritos, por força da lei ou do zelo da Legião Portuguesa. Muitos oposicionistas não constavam dos cadernos, por terem direitos políticos suspensos, ou por simples corte arbitrário das autoridades, que manipulavam livremente o recenseamento eleitoral. A massa do povo estava fora da vida política.
Como a lei não previa que as listas concorrentes constassem de um boletim único, a oposição tinha de imprimir os seus próprios boletins de voto e distribui-los pelos eleitores, o que era uma tarefa trabalhosa e dispendiosa, e só cobriu parte dos eleitores inscritos. Para que os boletins de voto fossem iguais aos da Acção Nacional Popular (novo nome da antiga União Nacional, o partido oficial), conseguimos saber pelos tipógrafos comunistas clandestinos como seriam os dela, tendo depois feito imprimir os nossos com o mesmo tipo de papel e de impressão. Qual não foi a nossa surpresa quando nas vésperas da eleição recebemos os boletins de voto da ANP, impressos num papel de textura e de tonalidade ostensivamente diferentes e com uma impressão facilmente reconhecível pelo tacto. Tinham alterado à última da hora os boletins de voto, para os diferenciarem propositadamente dos nossos, de modo a inibir quem tivesse receio de ser identificado como votante da oposição...
Fui designado delegado da CDE numa das assembleias de voto, que teve lugar num amplo salão da então União de Grémios dos Lojistas de Coimbra, um organismo corporativo oficial. Mas a mesa era composta exclusivamente por agentes do regime e presidida por um conhecido legionário sem escrúpulos. A minha cadeira de delegado estava a mais de 5 metros da mesa, pelo que era impossível fiscalizar o que quer que fosse. Os meus veementes protestos só me valeram uma ameaça de expulsão. No final impugnei por escrito todos os votos da ANP, por serem manifestamente reconhecíveis pelo tacto e pela transparência do papel, violando por isso o segredo do voto, pois permitiam distinguir também os votos da oposição, por comparação. Os meus protestos nem sequer foram decididos. A mesa encerrou os trabalhos com a proclamação dos resultados, naturalmente com a vitória fácil do partido oficial. Assim foram as penúltimas eleições no Estado Novo!
Foi um erro a ida da oposição até às urnas (o que acontecia pela primeira vez em eleições para a AN na história do "Estado Novo"), dando um arremedo de legitimidade ao "marcelismo". Era evidente que o regime não se transformaria voluntariamente pela via eleitoral. Em 1973, aprendida a lição, a oposição fez novamente campanha mas retirou-se nas vésperas do sufrágio. Era a última fantochada "eleitoral" solitária do Estado Novo. O regime entrara em contagem decrescente para o seu fim.