Há um argumento que eu não acompanho na justificação do Governo para a recusa de despenalizar o aborto sem referendo: a ideia de que «por princípio» uma questão decidida por referendo só deve ser alterada por essa mesma via.
Para começar, no primeiro referendo não houve decisão nenhuma, visto que o referendo não foi vinculativo, por falta de quórum. Independentemente disso, não se pode sustentar que, uma vez feito um referendo sobre certa matéria, a Assembleia da República fica privada de voltar a legislar sobre ela. Isso não é assim, nem sob o ponto de vista constitucional, nem sob o ponto de vista dos princípios da democracia representativa. Recorrer ao referendo não implica expropriar a AR, daí em diante, da sua competência legislativa nessa matéria.
As razões para sustentar a decisão que foi adoptada pelo PS (e que acho correcta) são ambas políticas: primeiro, o compromisso eleitoral assumido pelo PS no sentido do referendo, que só deve ser abandonado se o referndo não puder realizar-se em tempo útil; segundo, a ideia de que numa matéria destas, o referendo poder conferir à despenalização (suposto que desta vez esta solução sai vencedora...) não só uma maior legitimidade política, mas também uma maior estabilidade normativa.