A Itália pode estar apodrecida pela corrupção e ter um Primeiro-ministro indigno de chefiar uma Junta de Freguesia, quanto mais um governo da República italiana.
Mas o sistema de justiça italiano, apesar das pressões a que tem sido sujeito, vai dando provas de isenção e competência: assim ficou demonstrado no processo Mãos Limpas nos anos 90. E e assim fica demonstrado pela condenação de 23 agentes americanos (e dois italianos) por envolvimento no rapto em território italiano e "extraordinary rendition" de Abu Omar para o Egipto.
Já no nosso país, a PGR decidiu arquivar a investigação que devia esclarecer o papel de Portugal no programa de "extraordinary renditions" - sem ter verdadeiramente investigado e pondo de lado pistas relevantes.
Como, por exemplo, o facto de uma das agentes da CIA que tinha sido alvo de mandato de captura no processo italiano aparecer repetidas vezes em Portugal em voos fazendo "navette" de e para Guantánamo. Trata-se de MARIA BAETZ, cujo verdadeiro nome é Monica Courtney Adler.
Em 8 de julho de 2009 apresentei à PGR um requerimento, de 66 páginas, em que detalhei muitas incongruências e falhas graves da investigação da PGR e em que apelei a que, ao menos, se desse continuação à investigação.
Em Outubro o DCIAP da PGR reagiu, em superficial resposta condensada em quatro páginas: decidindo engavetar a investigação.
Discordo totalmente da conclusão do DCIAP pela "manutenção do despacho de arquivamento [da investigação] por irrelevância penal das diligências complementares solicitadas pela Assistente."
Como pode o DCIAP chegar a esta conclusão ?
1. Se a própria investigação revelou que o Ministério dos Negócios Estrangeiros reconhece que concedeu, “a título absolutamente excepcional” aos EUA “autorizações genéricas de sobrevoo do espaço aéreo nacional e utilização da Base das Lajes”, autorizações essas que “permitem o transporte de material contencioso e de pessoas”.
Ora sucede que a PGR nunca questionou o MNE e o MDN sobre o significado da expressão “MATERIAL CONTENCIOSO”, nem sobre a necessidade de concessão de uma autorização “ABSOLUTAMENTE EXCEPCIONAL” para transportar... “PESSOAS”.
2. Se 8 dos 148 nomes identificados na mesma investigação coincidem com os nomes de agentes da CIA alvo de mandato de captura alemães ou italianos, por envolvimento em rapto e “extraordinary renditions”.
Mas a PGR concluiu: “não se exclui, nem se pode excluir, que estas... pessoas possam estar ligadas, directa, ou indirectamente, às autoridades norte-americanas e, em concreto, às actividades da CIA. Mas, não se logrou demonstrar tal relação.”
3. Se nove das operadoras aéreas referidas nesta investigação como tendo actuado em território nacional foram identificadas nas investigaçãoes judiciais alemã, italiana e espanhola, como estando envolvidas no programa das “extraordinary renditions”.
Mas a PGR conclui: “nenhum elemento dos autos permite estabelecer qualquer ligação entre estas empresas e entidades públicas norte-americanas, nomeadamente a CIA”.
4. Se aterrou duas vezes em Lisboa (além de dezenas de vezes no Porto) o avião com a matrícula N379P, o “Guantánamo Express”, operado pela empresa-fantasma da CIA STEVENS EXPRESS, classificado de “voo de Estado”, e que, por consequência, devia estar munido de autorização diplomática portuguesa.
Mas a PGR basta-se em que: “O MNE informou que não foi concedida qualquer autorização diplomática...”. E no Despacho de Arquivamento conclui que "algumas das aeronaves civis descritas são classificadas, pelos próprios operadores, como "Voos de Estado". E que «os operadores das aeronaves terão, de forma abusiva utilizado este expediente», sem mais diligências da PGR para apurar a ilicitude de tais comportamentos, nem determinar eventuais implicações gravosas para a segurança nacional e para a segurança dos Estados Schengen.
5. Se o inquérito revelou a existência de pelo menos dois “voos fantasma” sobre os quais não há quaisquer registos junto das autoridades nacionais:
a. um passa pelas LAJES a caminho de GUANTÁNAMO
b. o outro, um “voo ambulância”, com destino desconhecido, levou ao avistamento, também nas LAJES de um “indivíduo [que] vestia um fato-de-macaco cor de laranja”, “algemado nas mãos e nos pés” e era considerado “altamente perigoso”.
Mas a PGR sobre isto nada diz, não quis saber, nem sobretudo investigar mais...
6. Se a investigação demonstrou que, em relação a vários voos com origens ou destinos suspeitos, as autoridades portuguesas são incapazes de demonstrar quantos passageiros havia, quem eram, quem desembarcou e permaneceu em Portugal durante vários dias, e onde.
Alguns exemplos:
a) - “5 passageiros” encomendam 9 refeições, “6 passageiros” encomendam 14 refeições, “5 passageiros” encomendam 15 refeições; b)- Os formulários de handling do aeroporto de Santa Maria, fundamentais para estabelecer as identidades das pessoas que vêm nos aviões foram aparentemente destruídos em “consequência das intempéries... os processos [de handling] de 2002 e 2003 foram destruídos, não sendo, igualmente, exequível a busca e entrega de documentação respeitante a 2004 e 2005”; c) - Os PASSENGER MANIFEST, fundamentais para estabelecer as identidades das pessoas que vêm nos aviões, e obrigatórios por lei, estão disponíveis para apenas 1 dos 91 voos civis identificados como suspeitos... d) - O SEF é incapaz de apresentar um documento que demonstre que foram feitos controlos de fronteira em qualquer um dos aeroportos onde aterraram estes 91 voos...
Mas, diante de todas estas incongruências, a PGR conclui descansadamente: “das diligências realizadas junto das diversas entidades responsáveis pela actividade de aviação civil”, incluindo SEF e as empresas de handling “se apurou que foram observados e cumpridos todos os procedimentos legalmentes estabelecidos”.
7. Se a investigação revelou que em vários dos voos civis privados mais suspeitos, os passageiros e tripulação declarados encomendavam quantidades absurdas de gelo, que davam para aviões com centenas de passageiros: 12kg de gelo para 5 passageiros, ou 6 passageiros encomendaram 90kg(!) de gelo em três dias e mais 5 passageiros encomendaram 10kg de gelo – para preservar que matéria orgânica, não sabemos...
E a PGR, apesar de por mim instada, também não cuidou de apurar ...
Tudo isto não prova inequivocamente que a CIA usou Portugal ilegalmente nos circuitos da tortura e das prisões secretas e de Guantanamo que operou durante a Administração Bush, nem se o fez com conhecimento ou à revelia das autoridades portuguesas. Mas demonstra que vale a pena continuar a investigação, se se quiser apurar a verdade. Tanto mais que vários dos presos que transitaram por Portugal estão identificados e podem sempre vir um dia pedir resssarcimento pela cooperação portuguesa com os seus torturadores e sequestradores.
Ao arquivar a investigação nesta fase, face aos indicios e contradições já detectados, a PGR demonstra não ter interesse na descoberta da verdade e não atribuir importância à observância da legalidade num domínio em que não estão apenas em causa direitos humanos fundamentais, mas o funcionamento do Estado de direito em Portugal.
Tal como a maioria PS/PSD e CDS na AR, a PGR opta por enterrar este tema politicamente incomódo para muitos. De uma mesma penada, enterra a Justiça.
Mas o assunto é grave demais e não vai ficar enterrado. A sentença do Tribunal de Milão aí está para o demonstrar. E outras decisões judiciais se seguirão, incluindo nos EUA, revelando mais tarde ou mais cedo o que muitos em Portugal preferiam deixar soterrado.