1. Só se pode comparar o que é comparável – o que não é o caso dos rendimentos pagos pelo Estado e dos rendimentos privados. Os primeiros são em geral fixados unilateralmente pelo próprio Estado, por via de lei ou por ato ou contrato administrativo com base na lei; os segundos decorrem de relações jurídico-privadas (propriedade, heranças, contratos, etc.). Os primeiros geram despesa pública e pesam directamente no orçamento; os segundos, não.
Julgo que ninguém negará que o Estado tem o direito soberano de, pelo menos em situações excepcionais e a título transitório, reduzir os rendimentos que dele dependem – por se tratar de relações administrativas --, especialmente por razões imperativas de disciplina orçamental, desde que de forma equitativa dentro do universo do sector público. A Constituição não garante a intocabilidade do nível de remunerações públicas nem das pensões. Trata-se de um ónus de quem está ao serviço do Estado e de quem beneficia das respectivas vantagens, em comparação com o sector privado (e não são poucas, ponto essencial que o Tribunal Constitucional convenientemente descartou).
Mas defender que o Estado só o pode fazer se não causar uma “desigualdade excessiva” em relação aos rendimentos do sector privado não se limita a reduzir a nada aquele poder do Estado, é também uma petição de princípio –, é comparar coisas insusceptíveis de comparação. Parafraseando um conceito do direito da concorrência, são diferentes “mercados relevantes”. Por um lado, o Estado só pode atingir os rendimentos privados por via da receita (impostos), não por via da corte na despesa (como o Orçamento estabelecia para o setor público); por outro lado, o Estado não pode tributar separadamente o sector privado (pois, isso sim, seria violar o princípio da igualdade).
É por isto que, na minha opinião, a decisão do Tribunal Constitucional sobre o orçamento assenta num equívoco de base. Tal como a do ano passado.
2. Além disso, mesmo que se aceitasse a injustificada equiparabilidade por que o Tribunal optou, então deveria entrar em conta com todos os factores relevantes. Ora, quem é mais afectado no seu rendimento pela crise não são os funcionários e pensionistas (mesmo com os cortes de que o Tribunal resolveu generosamente isentá-los) mas sim os trabalhadores do sector privado, que pagam a pesada factura do desemprego maciço, combinado com a redução do valor e da duração do subsídio de desemprego) e com a baixa generalizada de remunerações que o mercado de trabalho impõe.
Não são só os funcionários e pensionistas que sofrem cortes no seu rendimento. Contudo, o Tribunal não deu o devido relevo a estas situações, tornando a comparação uma ficção.
Um segundo equívoco.