domingo, 11 de janeiro de 2015

Na linha da frente contra o terrorismo

8.1.2015, 10 horas

Dormi 2,5 horas para apanhar um avião para Viena e dali outro para Erbil, no Curdistão iraquiano. Impossível dormir mais, impossível adormecer com a TV e o Twitter a passarem os filmes das manifs espontâneas nas praças de milhares de "Je.suis.Charlie" e da caça aos assassinos da chacina. 
Emoção e preocupação obrigam-me a escrever, em busca de exorcismo...Escrevo, vou mesmo escrever tudo o que puder nesta viagem, e num tom pessoal, como me recomendou a Leonor Xavier em almoço post-Natal, quando lhe disse que vinha. 

Não sabia, então, que viria no caldo deste horror - não é rescaldo ainda, nem sequer apanharam os monstros, à hora a que escrevo. A CNN no aeroporto de Viena dava noticia de tiroteios nuns subúrbios de Paris e em Reims estava montado um cerco armado num bairro.

Não é rescaldo também, porque o pior está ainda para vir: as manifestações xenófobas de gente empobrecida pela crise e pelo austerismo, que culpa os árabes, os islâmicos, os emigrantes, os refugiados, em suma, os estrangeiros, pelo medo de perder o emprego e benefícios sociais que julga usurpados...e agora por estes três dias de terror. 

Não, não é rescaldo: é caldo de incultura e de medo, fervilhante, a direita extremista e populista já começou a cavalgar a vaga. Onde li uma comparação com a Kristallnacht?!...

E, no entanto, comovo-me com a admirável reacção  dos franceses - desde o Hollande, que se redimiu ao precipitar-se para o local do crime ainda sem se saber se por lá ainda havia criminosos, aos líderes muçulmanos rejeitando que a matança pudesse invocar e servir o Islão, passando pelos  jornalistas e cartoonistas que não se intimidaram e escreveram, reportaram, desenharam, tuitaram - o mais premonitório e pedagógico tweet é aquele que mostra o criminoso caído, tropeçante na fuga, e o polícia que acabava de assassinar cruelmente, identificando um como o terrorista e outro como"Je suis Ahmed". 

Mas o que mais admiro são esses homens e mulheres, de todas as idades, cores e credos, que estão a encher as praças de França e do mundo recusando ceder à chantagem do terrorismo, ocupando o espaço público para o desafiar e derrotar ideológicamente, em defesa das liberdades e da democracia. Liberté, Egalité, Fraternité - ontem, unida pela desgraça, a França voltou a ser a França, a República mostrou o que é ser República.

Lembro-me de Jacarta em 2000, 2001, 2002. Antes da bomba de Bali, que fez parangonas globais porque morreram 200 estrangeiros, incluindo o soldado Diogo Ribeirinho (que não conheci em vida, mas não vou poder nunca esquecer pelo que me fez conhecer do macabro e do cheiro de corpos chacinados). Antes só morriam indonésios, na maioria muçulmanos, às mãos das bombas da Jemaah Islamyia, filial da Al Qaeda. Morriam que nem tordos, mas não valiam três linhas na imprensa ocidental... Ficou-me daí este reflexo de entrar num aeroporto, numa estação, num shopping, e rolar os olhos pelos cantos, a localizar mochilas ou sacos abandonados.


11.1.2015, 17 horas 

Reflexo que serviu agora mesmo, para avisar um dos jornalistas austríacos que nos acompanhou nesta viagem pelo Norte do Iraque de que se tinha esquecido de um saco, na sala de embarque...

Acabamos de entrar no avião que nos vai trazer de volta a Viena. 
Impossível chegar a tempo da manifestação de hoje em Paris, em que todos queríamos estar - só há um voo por dia a ligar Erbil com a Europa.
Ao longo da viagem de carro de dois dias até Dohuk, junto a fronteiras com a Síria e a Turquia, fomos ocasionalmente conseguindo net para acompanhar o desenrolar da tragédia. O horror prolongado e agravado com o odioso ataque ao supermercado "kosher" e a matança dos reféns, antes da eliminação dos criminosos.

Escrever estas linhas será a minha forma de prestar homenagem às vítimas e solidariedade às suas famílias, aos sobreviventes e ao povo francês. E de partilhar os gritos "NOUS SOMMES TOUS CHARLIE!", "NOUS SOMMES TOUS AHMED!" e "NOUS SOMMES TOUS JUIFS!".


11.1.2015,  23 horas

Cheguei do Iraque com o coração e a cabeça ainda mais pesados de apreensão.
Não apenas por causa dos ataques de ódio que já proliferam contra muçulmanos por essa Europa fora (até a mesquita apareceu conspurcada, oiço de Lisboa) e outros primarismos perigosos. Derivas "bushistas" fazem as democracias degradar-se, descendo ao nível dos terroristas e fazendo o jogo do terrorismo: pois não são as liberdades e os direitos humanos, que são fundamento das sociedades democráticas, justamente o que o terrorismo quer destruir?!
Pesam-me ainda mais coração e cabeça porque oiço declarações sobre Schengen, PNRs, "guerra contra o terrorismo" e o mais. E temo o pior. 

Ao longo destes anos não vi a UE fazer o que a luta contra o terrorismo implicava. E implica.
Vi tremenda falta de Europa: o cada um por si, polícias consumidas em rivalidades internas, serviços de informação a fazer caixinha com os congéneres e sem meios para investir em "inteligência humana" (a francesa falhou e não foi por falta de "tuyaux" dos americanos...); magistraturas lentas, alheadas, sem meios e pouco cooperantes entre si; governos a competirem estupidamente a apaparicar - na mira de negócios de armas, outros contratos e investimento - os financiadores sauditas, qataris e turcos do dito "Estado Islâmico", ou da Al Nusra, ou de outras declinações da hidra Al Qaeda. 
Não vi investimento em programas de prevenção da radicalização de jovens e, ainda menos, de desradicalização:  pelo contrário, vejo o materialismo desenfreado, a sociedade sem valores a não ser o dinheiro (denunciada pelo Papa a quem os fanáticos da austeridade, embora se digam crentes, fazem orelhas moucas), vejo o desemprego, o desinvestimento na escolarização, no modelo social europeu, nas responsabilidades sociais dos Estados. Tudo factores que fomentam a desintegração das famílias, a marginalização e a alienação individual, que transforma demasiados jovens europeus - como os franceses perpetradores destas chacinas - em ardorosos jihado-nihilistas.

A ninguém escapa no Iraque a relação entre a tragédia de Paris e aquela que cruamente golpeia a sua martirizada população e a da vizinha Síria, mesmo antes de se saber que um dos terroristas franceses reclamou agir pelo EI ("Estado Islâmico"). 
No Curdistão iraquiano está hoje a linha da frente do combate a esta banda de cruéis e desvairados criminosos. 5000 jihadistas entraram num só dia, vindos da Turquia... e hoje controlam a região de Mossul, antes com 3 milhões de habitantes.

Passamos a 10 km do que lá chamam "Daesh" (o "Estado Islâmico") em Mahkmoud, depois a 40 km de Mossul,  na estrada para Dohuk. A caminho de visitar as comunidades yazidis e cristãs que tiveram de fugir das montanhas do Sinjar e das planícies de Ninewa, alvos de massacres e violências indescritíveis (todos choramos ao ouvir os relatos daquelas miúdas de 15 e 17 capturadas pelos jihadistas para os servir como escravas sexuais...). 

200.000 refugiados sírios e um milhão e meio de IDPs (deslocados internos) que o  Governo Regional e a população do Curdistão acolhem como podem. Enquanto nós, europeus egoístas e insensatos, fechamos fronteiras a desgraçados forçados a atirar-se ao mar, os curdos recebem refugiados e deslocados internos que representam um acréscimo de 35% da sua população (5 milhões). 
Claro que as condições são más, muito más, e só podem convencer aldeias inteiras de vítimas de perseguição e  massacres que não têm mais futuro no Iraque: todos  anseiam por emigrar para... a Europa!
A mesma Europa que não faz o suficiente, nem o que é preciso, para os ajudar a ter condições para ficar. Incluindo e antes de mais, condições de segurança - derrotar e eliminar militarmente o "Daesh" ( EI) é possível, indispensável e urgente. 
Mas, mais uma vez, falta-nos Europa - nem sequer os fornecimentos de armas aos peshmerga, que lutam no terreno, governos europeus coordenam entre si... nem sequer a ajuda humanitária que a UE presta se coordena com a que prestam alguns Estados Membros; para não falar  da coordenação da acção humanitária com ajuda de desenvolvimento (não há escolas nos campos de refugiados, que regurgitam de crianças e jovens). Nem há o imperativo  mas trabalhoso apoio político à tão necessária reconciliação intercomunitária... Quando Mossul cair, tudo se agravará com nova crise humanitária, desta vez afectando sobretudo populações sunitas.

Como nos disseram os abades de Al Qosh: "Estamos a procurar fazer sobreviver: as pessoas  e ancestrais culturas pré-islâmicas, que a Humanidade está à beira de ver eliminadas na terra onde nasceram, no próprio berço da civilização".

Ou os governos europeus acordam e fazem finalmente o que é preciso fazer, o que exige mais solidariedade e políticas internas e externas mais coordenadas, mais inteligentes e mais estratégicas   - ou seja, precisamos mesmo de mais Europa! 
Ou preparemo-nos para o pior: esta barbárie pode ainda só ter começado.