1. Sim, o poder de compra das pessoas está a subir, mercê da "devolução de rendimentos" por via orçamental e da recuperação do emprego, iniciada logo em 2014. E a gente está a aproveitar para consumir mais (automóveis, electrodomésticos, viagens, restaurantes, etc.) e a regressar lentamente ao nível de vida de antes da crise. O benigno clima social e político reflete essa evolução.
Tudo isso é bom e é bem-vindo.
2. Mas a recuperação do nível de vida anterior à crise vem acompanhada do regresso de alguns dos antigos vícios que favoreceram a mesma crise, a que se somam outros trazidos por ela.
Por isso, o estado de felicidade geral não devia fazer ignorar os fatores menos positivos, que podem trazer uma "aterragem" desagradável lá mais para a frente, a saber:
- a contínua quebra do investimento (a começar pelo investimento público), que compromete o futuro do (já modesto) crescimento económico;
- o aumento do endividamento das famílias (crédito à habitação e ao consumo), alimentado pelos juros baixos e pela expetativa de que assim continuem;
- o reduzido nível de poupança interna e de equity doméstico, que favorece o endividamento externo da economia e a venda de ativos empresariais ao estrangeiro (incluindo bancos e infraestruturas);
- a retoma do aumento da despesa pública, reforçando os gastos mais rígidos (despesa com pessoal e pensões), que retira flexibilidade à política orçamental e pressiona a política fiscal;
- o excessivo rácio de dívida pública e do spread em relação aos títulos alemães e espanhóis, que sobrecarrega as contas públicas e adia a mudança de notação desfavorável das agências de rating.
3. Além do risco que representam em si mesmos para a sustentabilidade da retoma económica e da consolidação orçamental, estes fatores tornam o país especialmente vulnerável a algum "evento" externo que afete o atual ciclo económico positivo (que muito deve ao petróleo barato) ou a era dos juros baixos em que vivemos (cortesia do BCE).
Nesta época de enorme incerteza e de volatilidade política (Brexit, Trump, triunfo da demagogia populista) convém apostar mais na prudência e confiar menos na fortuna.