1. Não falta quem, à esquerda, tendo até agora tecido os maiores encómios à cooperação de Marcelo Rebelo de Sousa com o Governo e fechado os olhos à sua ingerência direta em assuntos governativos - como fui anotando na minha série "O que o PR não deve fazer" -, apareça agora a protestar contra a intervenção do PR na terça-feira passada, acusando-o de "ataque ao Governo" e, até, de ter uma "agenda escondida" de derrube do Governo!
Penso que sem razão.
Sendo eu insuspeito de qualquer simpatia pelo ativismo presidencial, devo dizer que não me surpreendeu (salvo talvez na dramatização da linguagem) a admoestação política ao Governo quanto à reação à tragédia aos fogos florestais, que revelou várias fragilidades, nem o desafio sobre a clarificação do apoio parlamentar ao Governo, dada a ambiguidade do compromisso político revelado em especial pelo PCP (incluindo na reforma florestal e na política de prevenção e combate aos incêndios). Como "supervisor" independente do sistema político e "árbitro" do seu funcionamento, o Presidente não governa nem cogoverna (nem, muito menos, "contragoverna"), mas tem um poder de conselho, de alerta e, mesmo, de advertência política em casos justificados.
2. É claro que pela primeira vez, o PR se demarcou politicamente do Governo e de forma ostensivamente pública, o que pode alterar o propício e benévolo ambiente político de que o executivo tem beneficiado e fragilizar a sua posição.
Mas também é certo que no nosso sistema constitucional os governos não precisam de apoio presidencial e que, se tiverem um sólido apoio parlamentar, podem mesmo conviver com a inamistosidade presidencial, como sucedeu no passado com vários governos.
Para saber se estamos perante um "novo ciclo" na vida do Governo de António Costa, como muitos observadores entendem, há que verificar se ele consegue reforçar o grau de compromisso político dos parceiros da protomaioria parlamentar (no que a moção de censura do CDS pode ajudar...), e a que preço, e se a desafeição de Belém é pontual ou se veio para ficar.