1. É evidente que não basta a eleição de um autocrata para liquidar uma democracia, desde que a Constituição não seja espezinhada, a oposição política não seja reprimida e a liberdade de imprensa não seja asfixiada. Mas dificilmente um assumido autocrata desiste de levar a cabo os seus projetos autoritários por causa desses obstáculos. A própria legitimidade eleitoral serve de pretexto para contornar ou derrubar essas barreiras.
A democracia liberal não consiste somente na eleição dos titulares do poder político, exigindo também o respeito das liberdades e do Estado de direito. Sem esses limites ao poder político absoluto - que os autocratas pouco apreciam, prevalecendo-se da sua legitimidade eleitoral -, as eleições podem redundar em democracia iliberal ou autoritária.
As autocracias que nascem de eleições são as mais difíceis de contrariar e combater.
2. Nas vésperas da eleição do Presidente do Brasil - um regime presidencialista, em que o Presidente acumula a chefia do Estado com a chefia do Governo e não é responsável politicamente perante o Congresso -, parece óbvio que a maior parte dos brasileiros, fustigados e desesperados pela insegurança, a corrupção política e a crise económica e social, vão levar ao Palácio do Planalto, um Presidente que não esconde o seu projeto de extrema-direita autoritária. O Brasil aposta assim, deliberadamente, numa "roleta russa" política, em que a vítima pode ser a democracia constitucional brasileira, com a agravante de, tudo o indica, o tambor do revólver ter mais do que um cartucho.
Trinta anos depois da consumação constitucional da transição democrática brasileira, a celebração da Constituição de 1988 ameaça terminar num horizonte carregado de nuvens sobre o seu próximo futuro. Quo vadis, Terra brasilis?