quinta-feira, 30 de abril de 2020

Concordo (13): Pegada contagiosa

1. No seu  artigo de hoje no Público, J. Miguel Tavares pronuncia-se a favor de usar a geolocalização através dos smartphones para efeitos de identificar as pessoas que possam ter estado em contacto com novos infetados, para efeitos de teste e despistagem de focos de contágio.
Sei bem que isso constitui uma provocação ao fundamentalismo dominante entre nós quanto à reserva de dados pessoais. Mas na situação de risco coletivo perante o contágio da Covid, não me parece ser de excluir à partida o recurso a metodologías de traceability eletrónica, como eu próprio aqui defendi já há duas semanas.
É a saúde de terceiros que está em causa e que o Estado tem a obrigação de proteger, incluindo o recurso a soluções técnicas apropriadas, desde que a eventual restrição de direitos pessoais caiba nos parâmetros constitucionais.

2. Pode parecer contraditório o facto de dois liberais (no sentido de defensores da liberdade pessoal), um de direita e outro de esquerda, convergirem numa solução que infringe a reserva privada dos dados pessoais, como os lugares por onde um infetado andou e as pessoas com quem se encontrou nos dias que precederam a deteção da sua infeção.
Mas a verdade é que, ao contrário das autocracias, os países que observam os princípios do Estado de direito estão obrigados a cumprir não somente os pressupostos da necessidade e da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais, mas também os vários requisitos constitucionais para acesso da Administração a dados pessoais: (i) sigilo na recolha e na utilização dos dados; (ii) uso exclusivo para a finalidade proposta; (iii) destruição dos dados recolhidos após cumprimento dessa finalidade; (iv) vigilância por autoridade independente; (v) controlo judicial independente e reparação de danos em caso de violação desses pressupostos. Além do escrutínio político democrático, como é óbvio.
É isso que distingue Portugal da China. Não ver essas diferenças é não nos darmos conta da vantagem inestimável de viver num Estado de direito democrático. 

3. Eu vou mais longe do que JMFJ quanto a esta questão: se porventura vier a ser infetado, requeiro que investiguem imediatamente no meu smartphone os locais em que estive nos dias anteriores e as pessoas que possa ter contaminado.
Eu não quero ser culpado de infetar involuntariamente alguém, sem proporcionar aos serviços de saúde um rastreio imediato das possíveis vítimas. Além do mais, penso que sem investigar a "pegada contagiosa" dos infetados - por via de geolocalização ou outra - não se trava a pandemia sem medidas restritivas duradouras da atividade económica e social.

Adenda
O plano de alívio francês, anunciado há dois dias pelo Primeiro-Ministro, prevê o levantamento sistemático dos contactos recentes de cada novo infetado, na base das informações destes, sendo efetuado a nível de departamento por brigadas ad hoc e sendo os potenciais contagiados, no círculo familiar e fora dele, contactados para fazer testes. Eis uma alternativa menos tecnológica, e seguramente mais onerosa, para despistar a "pegada contagiosa", igualmente baseada na identificação dos contactos pessoais recentes de cada infetado.  O que não creio é que o Estado se possa desresponsabilizar dessa tarefa crucial.

Adenda 2
Há obviamente a solução de aplicações para smartphone, em negociação ao nível da União Europeia, que permitem informar os interessados, caso tenham estado perto de algum infetado, desde que este também use uma aplicação compatível. Tendo embora a vantagem de não identificar os infetados, a natureza voluntária da instalação dessas  aplicações, mesmo se interoperáveis, pode tornar esta solução imprestável, se não houver adesão da grande maioria da população, deixando muita gente sem cobertura