quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Est modus in rebus (1): O caso do Presidente do Tribunal de Contas

1. Confesso que me irrita cada vez mais, como cidadão, o excesso verbal, o sectarismo ideológico, os ataques pessoais e a leviandade de juízos no debate político entre nós, de que é caso exemplar o debate sobre a nomeação do novo presidente do Tribunal de Contas, onde valeu tudo e onde não faltaram as acusações de "despotismo governamental", de "conspiração" entre o PM e o PR contra o regime, sem falar na tentativa de enlameamento pessoal do novo Presidente. Um comentador mais incontido foi ao ponto de ver neste episódio a prova da "podridão" do regime! 

Mas nada disto tem qualquer fundamento.

2. É certo que a Constituição não estabelece explicitamente nenhuma limitação dos mandatos do presidente do TdC - mas devia fazê-lo. O princípio essencial do Estado de Direito é o da independência dos juízes face ao poder político (ou qualquer poder externo), o que exige que um juiz não possa sentir-se pressionado na sua atuação para obter a recondução no cargo por parte dos órgãos políticos competentes.

Tal é de resto a regra constitucional em relação aos demais juízes, que ou são de nomeação vitalícia, como sucede com os dos tribunais judiciais e administrativos, ou têm um único mandato, como sucede com os do Tribunal Constitucional.

Por consequência, a solução do mandato único é a mais conforme aos princípios constitucionais.

3. Não havendo nenhuma norma explícita a proibir a recondução, nada impede, porém, o Primeiro-Ministro - a quem cabe a indigitação ao Presidente da República - de adotar esse critério, desde que o anuncie publicamente e se comprometa a respeitá-lo. 

Foi, aliás, o que sucedeu. O facto de até agora não ter sido assim é irrelevante. Nunca é tarde para mudar para melhor. Só há que elogiar o PM pela decisão a favor de um mandato único, esperando que ela inaugure uma prática política mais consentânea com os princípios constitucionais.

A alternativa ao mandato único é a indefinição quanto ao número de mandatos, que convida ao cambalacho político ou pessoal ou à inércia e à manutenção em funções de quem lá esteja, indefinidamente, até o titular se decidir a sair, como já sucedeu. Mesmo que não houvesse o referido princípio da independência dos juízes, há sempre o princípio republicano que afasta a ocupação de cargos públicos por tempo indeterminado.

4. Todavia, uma vez adotado, e bem, o princípio do mandato único, torna-se conveniente alargar a sua duração, atualmente limitada a quatro anos, talvez por equiparação ao mandato-regra dos governos. A referência pode ser a da duração do mandato do PR (cinco anos), do das autoridades reguladoras independentes (6 anos) ou do dos juízes do TC (nove anos).

Por isso, justifica-se incluir esse tema na próxima revisão constitucional, no sentido de : (i) estabelecer explicitamente o mandato único; (ii) ampliar a duração do mandato; (iii) acabar com a atual possibilidade de exoneração do cargo por proposta do PM e decisão do PR (hipótese nunca verificada), que contraria o essencial princípio constitucional da irremovibilidade dos juízes.

Adenda

Um leitor irritado com a expressão latina pergunta porque não utilizo um equivalente em Português. A expressão latina significa literalmente "haja moderação nas coisas!" e o melhor equivalente poderia ser algo como "um pouco de moderação, por favor!". Mas não é a mesma coisa!

Adenda 2

Outro leitor defende que o anterior Presidente do TdC só não deveria ter sido reconduzido se tivesse desempenhado mal o cargo, o que não é manifestamente o caso. Mas isso só seria assim, se se entendesse, erradamente, que quem ocupa um cargo público tem direito à recondução após terminar o mandato (o que poderia levar à sua permanência vitalícia no cargo...). Quando muito pode ter essa expectativa pessoal, mas não há nenhuma obrigação de recondução. Se a Constituição não proíbe a recondução (apesar de ser inconsistente com o princípio da independência judicial), muito menos a impõe.