1. Chega a ser chocante é a extrema ligeireza com que, nesta entrevista à Antena 1, o líder do PSD e candidato a primeiro-ministro explica a inesperada proposta de abandonar a gratuitidade constitucional do SNS e tenta desvalorizar o seu alcance, como se fosse pequena coisa passar a exigir a quem tenha meios um pagamento maior ou menor pelos cuidados de saúde de que necessite, de valor deixado à discricionariedade da maioria de cada momento.
É evidente que o pagamento dos cuidados afastaria muita gente do SNS, pondo em causa a sua universalidade, e afrontaria a valor primacial da igualdade dos portugueses perante a saúde, independentemente dos meios. Tal como no caso da escola pública, também no caso do SNS a gratuitidade é penhor da universalidade e da igualdade no acesso a um bem essencial numa sociedade decente.
2. É verdade que o PSD nunca se deu muito bem com o SNS tal como previsto na Constituição, ou seja, universal e (tendencialmente) gratuito para todos, quanto aos cuidados recebidos. Votou contra na Assembleia Constituinte; revogou-o mal chegou ao poder, num Governo da AD, e só Tribunal Constitucional o resgatou desse "assasssinato" político a frio; muito mais tarde, Passos Coelho propôs numa revisão constitucional abolir a gratuitidade, salvo para quem não tivesse meios, sujeitando as pessoas a "teste de recursos".
O que não deixa de supreender é que tal proposta - que vai bem com a lógica da direita liberal, de que "quem quer saúde paga-a", da "liberdade de escolha" e da redução de impostos - tenha sido levianamente recuperada por alguém que protesta "não ser de direita". Pelos vistos, entre a proclamação e a convicção vai uma longa distância.
A questão crucial suscitada por esta comprometedora proposta, que subverte um dos pilares do "Estado social" configurado na Constituição, é a de saber que confiança é que PSD pode inspirar quanto à manutenção dos outros pilares, como o ensino público e a segurança social pública.