sábado, 22 de janeiro de 2022

Não concordo (28): Contra a "democracia paralela"

1. Não vejo como é que se pode apoiar esta abstrusa ideia de instituição uma "assembleia de cidadãos" de Lisboa, composta por sorteio dos cidadãos eleitores, por iniciativa do Presidente da Câmara Municipal, paralela e à margem da Assembleia Municipal recém-eleita, com caráter permanente e destinada a debater e a fazer recomendações sobre assuntos da gestão municipal não identificados.

É certo que nos últimos anos, em alguns países, como, por e exemplo, na Irlanda (na imagem) e na França, têm sido instituídas, a nível nacional, assembleias de cidadãos escolhidos aleatoriamente, de acordo com certos critérios de representação sociológica, para debater e fazer recomendações (ao parlamento e /ou ao governo) sobre certos temas específicos (por exemplo, revisão constitucional e igualdade de género na Irlanda, questão climática na França). Mas trata-se de iniciativas ad hoc, sem caráter permanente e destinadas a abordar temas pré-selecionados, e não de assembleias permanentes paralelas aos parlamentos nacionais, para se ocuparem de qualquer assunto. São diferenças essenciais em relação ao referido projeto de Lisboa.

2. As "assembleias de cidadãos" são instrumentos que visam alargar a participação cívica na vida política aos cidadãos comuns de todo o país, que normalmente não são mobilizados pelo ativismo das minorias urbanas que, em geral, protagonizam a chamada "democracia participativa". 

Mas continuam a ser mecanismos sem poderes decisórios, destinados a ajudar a formação da opinião pública acerca dos temas que lhes são confiados para estudar, organizar consultas e debates com especialistas e, no final, apresentar recomendações, sobre as quais os órgaos do poder político mantêm plena liberdade de decisão, como titulares exclusivos da representação política eletiva, única reconhecida como legítima pela Constituição.

Há quem defenda a representação política por sorteio contra a representação eleitoral e a democracia das assembleias de cidadãos contra a democracia de partidos. Mas as "assembleias de cidadãos" só podem ser admitidas como um instrumento adicional da democracia participativa, e não como arma de combate contra a democracia-representativa-de-partidos.

3. Como tem sucedido noutros países, nada impede que estas experiências de participação política alargada sejam estendidas ao poder local entre nós, enquanto forma de "aprofundamento da democracia participativa" (nos termos do art. 2º da CRP).  

Contudo, num Estado de direito constitucional, como o nosso, as entidades administrativas só dispõem dos poderes conferidos por lei, não havendo, porém, nenhuma lei a prever a instituição de tais assembleias por iniciativa oficial das câmaras municipais. Além disso, parece óbvio que o regulamento de instituição e funcionamento dessas assembleias só pode ser aprovado pela Assembleia Municipal, até porque precisa de orçamento.

Em segundo lugar, uma eventual "assembleia de cidadãos" de Lisboa não pode ser instituída como «[entidade] permanente e representativa da população lisboeta», nem com funções em aberto, como representação alternativa dos cidadãos da capital, o que é verdadeiramente descabido e um contrassenso democrático.

Num município como Lisboa, onde o executivo não goza de maioria na Assembleia Municipal, pode ser tentador intrumentalizar a "assembleia de cidadãos" como instituição permanente de contraposição entre uma pseudomaioria sociológica e a maioria política da Assembleia Municipal. Mas é uma tentação que afronta o modelo de democracia representativa constitucionalmente instituído e subverte a noção de partipação democrática e que, por isso, deve ser atalhada à partida, se necessário, em última instância, no Tribunal Constitucional.

[revisto]