quinta-feira, 11 de abril de 2024

Às avessas (7): Um proposta descabida

1. Uma das medidas mais estranhas previstas no programa do novo Governo, na área da justiça, consiste em questionar a atual separação entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, promovendo «um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens» da sua unificação (ponto 6.2.1.).

Ora, salvo uma ou outra contestação isolada, não existe nenhum movimento nesse sentido entre os operadores judiciários desde o início do atual regime democrático. O dualismo jurisdicional é tradicional em Portugal e nos demais países de influência francesa. Está consagrado na Constituição, pelo que não poderia ser afastado sem revisão desta.

Pior do que não dar solução a problemas reais, é inventar soluções para problemas que não existem.

2. Em vez de pôr em causa a separação de jurisdições, o que se impõe é fazê-la valer onde ela tem sido indevidamente derrogada, retirando aos tribunais administrativos a competência para matérias que lhes deviam caber, como sucede, por exemplo, com os litígios relativos à defesa da concorrência e à regulação pública da economia, questões de natureza caracterizadamente jurídico-administrativa, que, segundo a Constituição, deviam ser da competência dos tribunais administrativos, mas cujo julgamento foi confiado a um tribunal especializado de âmbito nacional integrado na jurisdição comum, o Tribunal da Concorrência, da Regulação e da Supervisão.  

Aqui, sim, justifica-se um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens desta (e outras) inconsistência judicial.

Adenda
Em contrapartida, sobre uma questão da justiça que tem estado em debate público, que tem a ver com o Ministério Público (nomeadamente, quanto à implementação do princípio da hierarquia interna e da prestação de contas externa), o programa de governo é totalmente omisso. Moita, carrasco!

Adenda 2
O que evidentemente ficou pelo caminho no programa da justiça foi a incompatibilidade entre a magistratura judicial (e do MP) com cargos públicos, que constava do programa eleitoral da AD, mas que o Governo violou flagrantemente ao incluir duas juízas, um delas como Secretária de Estado da Justiça, como denunciei AQUI. O que se não percebe é porque o Governo abandona, sem qualquer justificação, o programa com que venceu as eleições.