terça-feira, 9 de julho de 2024

Campos Elísios (16): O enigma governativo de Paris

1. No rescaldo da 2a volta das eleições parlamentares francesas, o líder do La France Insoumise (LFI), Mélenchon, veio defender que "o partido com mais deputados deve ter o primeiro-ministro". Mas trata-se de um manifesto equívoco político do líder da esquerda radical. 

Primeiro, mesmo em regime parlamentar comum tal regra só se impõe se o partido vencedor tiver maioria absoluta, o que não é o caso, pois, numa situacão de maioria relativa, pode haver uma coligação maioritária alternativa, como sucede por exemplo neste momento em Espanha. 

Segundo, quem ganhou as eleições foi a Nova Frente Popular (NFP), que é uma frente eleitoral de vários partidos, incluindo, além da LFI, o PS, os verdes, o PCF e outros, pelo que, em caso de coligação governamental entre eles, nada obrigaria que o chefe do governo fosse do maior partido dentro dela, que aliás tem bem menos de metade dos deputados da Frente (dada a recuperação do PS), muito menos Mélenchon.

Terceiro, no campo democrático, o maior partido parlamentar continua a ser o Renaissance do Presidente Macron, pelo que, segundo o critério de Mélenchon, deveria ser esse partido a indicar o chefe do governo, e não a LFI... 

Por último, mas não menos importante, a derrota da extrema-direita e a vitória dos partidos democráticos na 2a volta deveu-se ao acordo de desistência recíproca dos candidatos do campo "republicano", pelo que a vitória da NFP e, dentro desta da LFI, não se deve somente aos votos da esquerda, mas também aos do centro e, mesmo, da direita democrática, sendo por isso abusivo reivindicá-la em exclusivo por uma das forças politicas contra as outras. 

O que foi ganho em conjunto não pode ser apropriado por uma parte. O seu a seu dono! 

 2. Do meu ponto de vista, o PR, a quem cabe nomear o governo, deveria tentar uma solução governativa capaz de congregar tendencialmente o apoio, ou pelo menos a não oposição, de toda a frente republicana, com as correspondentes cedências políticas de cada parte, numa de duas versões: 

     - um primeiro-ministro independente, "à italiana", e um governo composto por personalidades de segunda linha dos partidos apoiantes da solução; 

     - um primeiro-ministro saído do centro político do arco democrático - por exemplo, oriundo da ala social-domocrata do PS ou de um dos pequenos partidos centristas, aliados de Macron -, e um governo composto por personalidades representativas dos demais partidos da grande coligação (excluindo Mélenchon, que não goza da simpatia de nenhum outro partido, pelo contrário). 

Parece-me evidente que, depois de décadas de governos maioritários, a maior parte das vezes conjugando a maioria parlamentar e a maioria presidencial, a França precisa agora de aprender a arte da negociação e do compromisso pluripartidário própra dos regimes parlamentares sem maioria monopartidária. 

Bem-vinda ao clube! 

Adenda
Um argumento adicional contra um governo minoritário de uma coligação de esquerda está em que no sistema semipresidencial francês - em que, ao contrário do que sucede em Portugal, o PR é eleito em nome de um partido ou coligação eleitoral e na base de um programa de governo e é cotitular do poder executivo ("executivo dualista") -, o Presidente só se sente constrangido a nomear um primeiro-ministro politicamente adverso, em "coabitação" executiva, no caso de haver uma maioria absoluta, em que não há outra solução de governo, como sucedeu com os governos de direita de Chirac (1986) e de Balladur (1993), sob a presidência do socialista Miterrand, e com o governo socialista de Jospin (1997), na presidência de Chirac, da direita. De resto, mesmo que tal governo viesse a ser nomeado, correria o risco de ser imediatamente demitido por moção de censura e, em qualquer caso, não teria nenhuma possibilidade de levar a cabo o programa com que se apresentou a estas eleições, aliás financeiramente desastroso. Por conseguinte, uma solução governativa inviável, efémera ou inconsequente...