domingo, 28 de dezembro de 2025

Este País não tem emenda (38): Irresponsabilidade pessoal e cívica

1. Não espanta saber que cerca de 80% das pessoas internadas por causa da epidemia da gripe não estavam vacinadas. Ou seja, uma minoria das pessoas que não se fizeram vacinar - apesar de serviço gratuito - são responsáveis pela esmagadora maioria dos internamentos que congestionam muitos hospitais públicos e os levam a cancelar outros serviços, por falta de meios, em prejuízo de outros utentes.

Na verdade, é sabido que, mesmo que não impeça a contaminação em todos os casos, a vacinação pelo menos atenua subtancialmente os seus efeitos, reduzindo os casos de internamento. Por isso, a não vacinação constitui uma grave irresponsabilidade não somente pessoal, mas também cívica, perante a coletividade, pelos custos adicionais sobre o SNS e os seus utentes em geral. 

É caso para pensar se essas pessoas não deviam ser obrigadas a pagar uma taxa ao SNS pela sua irresponsabilidade.

2. Pelo contrário, é lamentável saber (informação numa estação de TV hoje) que uma percentagem significativa de profissionais de saúde não se fizeram vacinar. Ora, aqui, à irresponsabilidade pessoal e cívica soma-se a irresponsabilidade profissional, por causa dos prejuízos causados ao serviço, em caso de infeção.

É caso para pensar se a vacina antigripal (e anti-Covid) não devia ser considerada uma obrigação deontológica por parte das respetivas ordens profissionais (médicos, enfermeiros, etc.) e se não devia ser tornada obrigatória em todos os serviços de saúde públicos e privados que impliquem contacto com os utentes.


O que o Presidente não deve fazer (61): Até ao fim!

1. Julgava eu que esta minha rubrica de crítica da atuação presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) ao longo destes anos tinha chegado ao fim, mercê da aproximação do termo do seu mandato, com as eleições já marcadas para 18 de janeiro e estando já em curso a pré-campanha eleitoral, pelo que se julgaria que o Presidente cessante deveria entrar discretamente em fase de retiro, para não perturbar o debate entre os candidatos à sua sucessão.

Eis senão quando ele anuncia a convoção de uma reunião do Conselho de Estado para o dia 9 de Janeiro«para analisar a situação internacional, em particular a situação na Ucrânia»! Ora, além de manifestamente inoportuna - até porque a atual composição do Conselho de Estado inclui dois candidatos presidenciais (Mendes e Ventura) e a vaga da Provedora de Justiça continua por preencher -, esta reunião também é constitucionalmente descabida. De facto, como estabelece a Constituição, o Conselho é o órgão consultivo do Presidente, naturalmente para dar parecer sobre «o excercício das suas funções», e é evidente que o PR não tem nenhuma competência quanto à condução da política externa, que pertence ao foro exclusivo do Governo, sob escrutínio político da AR. 

Por conseguinte, como já assinalei noutras ocasiões semelhantes (por exemplo AQUI e AQUI), trata-se de mais um flagrante caso de abuso de poder de MRS, quer para se ingerir na condução da política exterior do País, quer para transformar o Conselho de Estado numa espécie de segunda câmara parlamentar de debate e escrutínio político, usurpando o papel próprio da AR.

2.  É certo que, como defendo há muito, numa interpretação sistemática da Constituição, o PM deve consultar o PR sobre decisões de política externa e de defesa. Mas tal função de aconselhamento presidencial - que não está explicitamente prevista na Constituição - constitui uma relação privativa entre ambos, em que o PR não deve fazer-se substituir pelo Conselho de Estado, dada a composição politicamente plural deste, incluindo a oposição. 

Parece que MRS se queixa de que Montenegro não consultou Belém sobre decisões já publicamente anuncidas em relação à Ucrânia, pelo que a convocação do Conselho de Estado seria um modo de corrigir essa omissão do PM. Porém, o Conselho é órgão de aconselhamento do PR, e não do PM, e não pode ser transformado num instrumento de avaliação e disciplina das omissões do segundo em relação ao primeiro.

As eventuais advertências do PR ao PM, por desrespeito das obrigações deste, devem ser feitas diretamente (se necessário, em público), e não por intermédio do Conselho de Estado, instrumentalizando a explícita função constitucional deste, de aconselhamento politicamente plural do PR.

Adenda
O candidato presidencial Gouveia e Melo defende que Marques Mendes deveria ter deixado de ser membro do Conselho de Estado ao candidatar-se à presidência. Não o tendo feito, entendo que deve escusar-se a participar na reunião aprazada, por duas razões: 1º- para não usufruir de uma vantagem política e mediática em plena campanha eleitoral; 2º - para não se tornar cúmplice de mais um abuso de poder presidencial, deixando entender que, se fosse eleito, continuaria com a mesma prática à margem da Constituição. Mas esta sua declaração de que vai participar na reunião mostra que MM finge não se aperceber do que está em causa - o que é grave.

sábado, 27 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (30): Como reagir a revisões constitucionais inconstitucionais?


1. Penso que um candidato presidencial com a responsabilidade de A. J. Seguro não pode evidenciar desconhecimento da Constituição num tema crucial, como o dos limites constitucionais da revisão constitucional, como a que revela nesta passagem, acima transcrita, da sua entrevista ao Expresso de ontem. 

Em primeiro lugar, se e na medida em que seja admissível, a revisão do art. 288º da CRP não carece de maioria de 4/5. Em segundo lugar, a questão principal é a de saber se os princípios nucleares da CRP listados nesse artigo (independência nacional e a unidade do Estado, forma republicana de governo, separação das Igrejas do Estado, etc.) podem ser subvertidos ou abolidos da Constituição, por qualquer maioria que seja. 

Ora, há boas razões para sustentar que a revisão constitucional, como "poder constituído" que é, serve para atualizar ou aperfeiçoar a Constituição, mas não para a substituir por outra, como se fora uma renovação do poder constituinte originário.

2. Por isso a questão a que os candidatos presidenciais devem responder é a seguinte: na eventualidade de violação daqueles "limites materiais de revisão" -- o que a atual composição da AR pela primeira vez permite equacionar --, o que é que o PR pode fazer para impedir uma revisão constitucional inconstitucional? 

Seguro tem razão quando diz que as leis de revisão constitucional não podem ser objeto de veto político, e também é pelo menos questionável se podem ser submetidas a fiscalização preventiva da constitucionalidade. Quer isso dizer que um Presidente não pode opor-se a uma pseudorrevisão constitucional que subverta o "núcleo duro" da Constituição, convertendo-a noutra, apesar da sua obrigação de defesa da Constituição (que ele jura defender e fazer cumprir ao tomar posse do cargo)?

Se o Presidente deixar concluir o procedimento de revisão e a aprovação do decreto de revisão na AR, nada lhe resta mesmo para impedir a sua promulgação e publicação. Mas, como já assinalei AQUI, a propósito de uma ideia do candidato Jorge Morais (apoiado pelo Livre), embora expressa em termos pouco rigorosos, nada impede o Presidente de, na iminência de isso acontecer, proceder à dissolução da AR, transformando as eleições seguintes num referendo implícito à revisão constitucional. A salvação da Constituição é motivo mais do que suficiente para o PR decretar a dissolução parlamentar, interrompendo o processo de revisão.

Adenda
Um leitor observa que quem deve ser confrontado especialmente com esta questão é Marques Mendes, «como candidato apoiado pelo PSD e como candidato que as sondagens indicam como provável vencedor numa 2ª volta». Bem observado: com efeito, uma revisão dessas só poderia ocorrer mediante uma aliança do PSD com o Chega e a IL.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Regionalização (9): A regovernamentalização das CCDR

1. 

  [Pedro Adão e Silva, "A transformação das CCDR num saco de gatos", Público, de 24/12/2025]  

O autor tem toda a razão na crítica a esta reversão centralista do atual Governo, retomando o controlo governamental das CCDR
 
2. Confrontado com a oposição do PSD e a hostilidade de Marcelo Rebelo de Sousa à retoma do processo de descentralização regional do País (vulgarmente conhecida por "regionalização"), mediante a instituição das autarquias regionais, previstas na Constituição desde o início, António Costa não deixou de avançar, porém, com três medidas que a preparavam: (i) concentrar nas cinco CCDR vários serviços regionais desconcentrados do Estado dependentes de diferentes ministérios (agricultura, saúde, educação, etc.); (ii) fazer eleger pelos autarcas de cada uma das CCDR os respetivos presidentes e um dos dois vice-presidentes e (iii) conferir-lhe personalidade jurídica, como institutos públicos territoriais, tornando-as suscetíveis de atribuições e direitos e obrigações próprias. 

Além de consolidar o mapa regional das CCDR, essa reforma agregava nelas as tarefas e os serviços regionais elegíveis para integrarem as futuras autarquias regionais e ensaiava uma fórmula de autogoverno através da eleição da maioria da sua direção pelos autarcas. Embora continuassem a pertencer à administração territorial desconcentrada do Estado, com a eleição da maioria da sua direção pelos autarcas respetivos, as CCDR ganhavam um certo grau de autonomia e unidade de gestão e de derrogação do controlo governamental setorial, adquirindo um estatuto híbrido de descentralização e descentralização, algo como uma administração territorial semiautónoma. 

Era um significativo progresso no sentido da regionalização! 

3. A retoma do controlo governamental das CCDR (maioria de dirigentes escolhidos pelo Governo) e a sua ressubmissão ao controlo de ministros setoriais (vários vice-presidentes respondendo perante os respetivos ministros) reverte deliberadamente a evolução encetada no sentido de edificar a infraestrutura das autarquias regionais. 

Quando, recentemente, o Primeiro-Ministro veio reiterar a sua oposição à retoma do processo de regionalização, é fácil perceber a razão por que é que, apesar da sua retórica em favor da descentralização em geral, o Governo continua a não querer equacionar a descentralização regional, embora constitucionalemente imperativa. Do que se trata é de manter o controlo governamental central sobre o conjunto da administração territorial.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Concordo (30): A responsabilidade do PSD para com a Constituição

«Durante cinquenta anos, a democracia portuguesa sobreviveu e prosperou porque existiu um núcleo mínimo de responsabilidade partilhada entre os partidos do centro democrático. Esse núcleo garantiu que instituições-chave, como o Tribunal Constitucional, permanecessem protegidas da lógica de radicalização, revanche ou instrumentalização. É por isso que, no Tribunal Constitucional, não se decide quem governa, mas vela-se para que a democracia continue a merecer esse nome. E, para que isso aconteça, o centro político terá de se entender para a proteger.»

Merece leitura o resto do artigo certeiro artigo de Bernardo Ivo Cruz, AQUI

A hipótese de negociar uma revisão constitucional com o Chega - um partido assumidamente hostil à CRP - e de lhe abrir as portas do Tribunal Constitucional - cuja missão é justamente defender a ordem constitucional instituída - seria uma verdadeira traição do PSD à sua responsabilidade histórica na fundação e consolidação da atual democracia constitucional.

Adenda
Um leitor comenta que, depois de vermos o PSD a votar, junto com o Chega, «a barbaridade da aplicação de um pena acessória de perda de nacionalidade aos portugueses que a tenham obtido por nacionalização, quando sejam condenados por certos crimes, que o TC chumbou por unanimidade, nada se pode esperar da fidelidade do PSD à CRP e à integridade do TC». Porém, mesmo receando que o atual processo de "cheguização" do PSD arraste a sua deserção do campo constitucional de que foi um dos principais arquitetos, junto com o PS, ao longo de 50 anos - incluindo quanto ao equilíbrio do TC -, custa-me ver que vantagem política é que aquele poderia retirar dessa integração do Chega no "arco constitucional" e no TC, à custa do PS. Uma coisa são as convergências políticas e legislativas que o oportunismo e a falta de escrúpulos políticos de Montenegro cultiva e outra coisa é o regime político-constitucional, cuja integridade e estabilidade não pode estar sujeita a essas vicissitudes conjunturais. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (29): A ficção do Presidente "cerimonial" ou "simbólico"

1. Numa entrevista de hoje ao Diário de Notícias, o Professor Reis Novais, um dos "pais intelectuais" do "semipresidencialismo" entre nós, autor de uma importante obra sobre o tema, vem defender as conhecidas posições identificadas com essa teoria, numa clara tentativa de resposta ao meu recente livro sobre os poderes do Presidente da República, em que contesto essa leitura sobre a posição do PR na CRP.

Embora discordando inteiramente dessa posição (que tendo a considerar como um "cadáver adiado"), nada tenho a objetar obviamente a esta renovada defesa da tese semipresidencialista por um dos seus autores mais credenciados - e até me admirava que várias semanas depois da publicação do meu livro, que a contesta de alto a baixo, isso ainda não tivesse ocorrido. Já acho, porém, menos curial, a insinuação de que os críticos da tese semipresidencialista defendem um papel apenas «cerimonial» ou «simbólico» do Presidente da República, quando é evidente que nem eu nem os demais críticos do semipresidencialismo (e não são poucos) não anulamos nenhum dos poderes presidenciais fortes na CRP, desde o poder de veto legislativo à dissolução parlamentar, desde a convocação dos referendos à nomeação de importantes cargos públicos, os quais são obviamente incompatívis com qualquer versão "cerimonial" ou "simbólica" do papel do Presidente.

Caricaturizar grosseiramente as posições adversas para fazer vingar as próprias apenas cancela qualquer possibilidade de debate fecundo sobre os poderes presidenciais.

2. Como tenho escrito desde há muito, a principal diferença entre a leitura semipresidencialista e a leitura do PR como quarto poder moderador num sistema de governo de base parlamentar, como defendo, está em que a primeira vê o PR como "presidente cogovernante", com poder para se ingerir na atividade do Governo, enquanto a leitura alternativa vê o PR como "presidente-garante", titular de um poder próprio, de supervisão da regularidade de funcionamento das instituições e estritamente separado do poder executivo, que compete exclusivamente ao Governo, politicamente responsável somente perante a AR.

A disputa doutrinal e política sobre o lugar do PR no sistema político-constitucional não se resolve com "slogans" fáceis, mas somente com o apuramento de qual dessas leituras alternativas resulta favorecida numa leitura integrada da CRP, que inclua, entre outros, os seguintes pontos: o princípio da separação de poderes; a indicação do PR como "órgão de soberania" autónomo, ao lado dos três órgãos de poder clássicos; a definição constitucional do PR, centrada sobre a representação da República e garantia do regular funcionamento das instituições; a irresponsabilidade política do PR no exercício das suas funções; a atribuição ao Governo do poder de condução da política geral do País, sendo responsável politicamente somente perante a AR.

A opção a favor ou contra o semipresidencialismo não consiste em saber qual é a melhor solução sob o ponto de vista político, mas sim em saber qual a melhor leitura da Constituição, à luz dos instrumentos clássicos de intepretação das leis, em geral, e da Constituição, em particular.

Adenda
É desnecessário dizer que discordo absolutamente das duas propostas de revisão constitucional de JRN, no sentido de (i) passar para o PR a nomeação das autoridades administrativas independentes, em derrogação da norma constitucional de responsabilidade governamental sobre a Administração Pública, e (ii) a de admitir inquéritos parlamentares sobre atos presidenciais, o que só se compreenderia, se o PR fosse politicamente responsável perante a AR, o que é constitucionalmente absurdo. Ambas as propostas, seriam admissíveis, se o PR fosse um poder cogovernante, como pretende a tese semipresidencialista, mas são inadmissíveis justamente porque ela não é procedente. Para as condenar liminarmente basta tratar-se de mais duas derrogações sérias do princípio constitucional da separação de poderes e de um passo largo no sentido da "tentação presidencialista" de transformar o PR em cotitular do poder executivo (em conjunção ou em conflito com o Governo).

O caso Montenegro (16): Não terminou

Luís Montenegro bem pode ufanar-se da ilibação de responsabilidade criminal no caso Spinunviva que o  PGR lhe prodigalizou como "prenda de Natal", numa decisão cujos fundamentos ficam por conhecer. 

Do que, porém, o MP não o pode ilibar é das acusações não criminais, não menos graves politicamente, como as de violação da regra legal da exclusividade do cargo de Primeiro-Ministro e de incorrer em conflito de interesses, ao manter, sob a ficção de empresa familiar (como  mostrei, por exemplo, AQUI), a sua atividade de advogado e de consultor de negócios e ao beneficiar dos seus avultados proventos, acusações que Montenegro nunca conseguiu elidir, tão flagrantes são os seus indícios.

Numa República democrática, a responsabilidade dos titulares de cargos públicos não se reduz à responsabilidade criminal, abrangendo também a responsabilidade política pelo incumprimento de obrigações legais e da ética republicana. Nenhum favor oportuno do Ministério Público pode livrar o Primeiro-Ministro dessa outra responsabilidade no caso Spinumviva, que vai continuar a pôr em causa a sua credibilidade política.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Rasto no tempo (5): Prémio de direitos humanos

1. Infelizmente, por causa de um compromisso anterior inadiável, não pude comparecer hoje na Assembleia da República para a cerimónia de entrega do Prémio de direitos humanos, que me foi atribuído junto com os antigos deputados constituintes, Jorge Miranda e  M. Costa Andrade, em reconhecimento pelo nosso contributo para a aprovação do capítulo de direitos fundamentais na CRP, em 1975-76.

Não quero, porém, deixar de dizer publicamente que me sinto honrado com a distinção da AR e que tive pena de não compartilhar esse feliz momento junto com os dois referidos deputados constituintes (por quem tenho grande estima pessol e académica), asssinalando os quase 50 anos da CRP que ajudámos a fazer e que, não por acaso, além do catálogo de direitos e liberdades individuais sem paralelo na nossa história cosntitucional, invoca explicitamente a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, que inaugurou e constitui a base do amplo código internacional de direitos humanos hoje em vigor, que a ditadura so Estado Novo tinha totalmente ignorado.

Feliz ideia a da AR, de associar este ano o prémio de direitos humanos aos 50 anos da Constituição que vamos festejar dentro de poucos meses e à Assembleia Constituinte que a aprovou.

2. Acresce que na minha posterior vida académica, além do ensino do direito constitucional, dediquei especial atenção, desde finais do século passado, à investigação e ao ensino do próprio direito internacional dos direitos humanos, quer no âmbito do Programa europeu de direitos humanos - uma iniciativa de um consórcio de universidades da UE, reconhecida e apoiada pela União -, de que fui diretor nacional durante muitos anos, quer no quadro do Centro de Direitos Humamos da FDUC, um inovador centro de investigação e de ensino em direitos humanos, cujo curso de pós-graduação vai na 28ª edição.

Foi certamente por isso que me foi atribuída em 2013 a medalha de ouro de direitos humanos da Ordem dos Advogados, de que igualmente me orgulho.

Posso por isso dizer que um dos rastos que a minha carreira académica deixa no tempo tem ver com o estudo e o ensino dos direitos humanos.

Alma Mater (6): Orgulho académico

1. Para assinalar os 25 anos da sua vida, o Cedipre (Centro de Estudos de Direito Público e Regulação), instituição de estudo e de ensino pós-graduado que em boa hora fundei na FDUC, em 2000, fez publicar não somente um belo álbum, profusamente ilustrado, sobre a sua atividade ao longo do tempo (incluindo a primeira década de vida, sob minha direção), mas também uma coletânea de estudos em homenagem ao fundador, cuja apresentação decorreu ontem num hotel de Condeixa, que acolheu várias realizações do Cedipre, incluindo a aprovação, em 2002, do Manifesto de Condeixa (Por uma regulação independente ao serviço da economia de mercado e do interesse público).

Profundamente reconhecido, tive a oportunidade de manifestar publicamente a minha gratidão, tanto à direção do Cedipre pela sessão, como aos organizadores do volume (todos meus antigos colaboradores), bem como às dezenas de autores, entre profissionais e académicos nacionais e estrangeiros, muitos deles presentes, que contribuíram para o nutrido volume (mais de 1000 páginas). 

Foi uma gratíssisma surpresa!

2. A cerimónia de ontem e a publicação dos dois referidos livros enche-me de orgulho académico, não somente pelo sucesso do Cedipre, numa área de investigação e de ensino até aí pouco cultivada  - a regulação pública da economia de mercado -, mas também por ver o entusiasmo dos numerosos jovens investigadores, docentes e profissionais formados no âmbito do Centro e empenhados na sua atividade.

Olhando para trás, como professor jubilado da FDUC, costumo dizer que, embora sem desvalorizar a minha atividade de docente em disciplinas tradicionais durante muitos anos (sobretudo nas disciplinas de Direito Constitucional e Direito Administrativo) e os textos publicados no seu âmbito, o que mais valorizo na minha carreira académica foi a fundação de dois centros de investação e ensino pós-graduado sobre áreas até aí sem cobertura nas faculdades de direito (nomeadamente o IGC - Centro de Direitos Humanos e o Cedipre), abrindo a escola a novas problemáticas e a novos públicos.

Parabéns aos meus sucessores, que se excederam em valorizar o testemunho recebido.

Adenda
Um leitor pergunta como é que eu consegui este desempenho académico «contando os muitos anos em cargos públicos, certamente incompatíveis com a atividade universitária». Boa pergunta! De facto, estive fora da Universidade cerca de 20 anos, intercalados (1975-76; Assembleia Constituinte; 1976-82: AR; 1983-89: Tribunal Constitucional; 1996-97: AR; 2009-14: Parlamento Europeu).  No entanto, voltei sempre a casa e quando de regresso à FDUC, optei em geral por dedicação exclusiva e intensiva: não exerci advocacia e só fiz jusconsultoria seletiva; não ensinei em universidades privadas, salvo um ano; tive escassa atividade partidária (enquanto a tive...) e política; nunca me candidatei a nenhum cargo de gestão universitária e só me aposentei, por obrigação legal, aos 70 anos. Vários dos meus livros são em coautoria com colegas (por exemplo, três com o Prof. J. J. Gomes Canotilho) ou colaboradores. Além disso, tive a sorte de ter comigo excelentes e dedicados colaboradores, quer nas diciplinas que lecionei quer nos centros de pós-graduação que fundei, como se mostrou agora no livro de homenagem. A meu ver, só génios podem ser bem-sucedidos em trabalho isolado, pelo que optei pelo trabalho em equipa.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Aplauso: Quando a Constituição prevalece


1. Como era de esperar, as alterações mais graves da lei da nacionalidade, filiadas numa deriva ideológica e política anti-imigração, foram julgadas inconstitucionais pelo TC, em fiscalização preventiva da constitucionalidade, pelo que a lei não pode ser promulgada pelo PR como está, sendo devolvida ao parlamento, para suprimir os referidos preceitos. 

 A inconstitucionalidade era evidente, como mostrei AQUI. O que espanta é como inconstitucionalidades tão grosseiras como estas foram propostas e militantemente defendidas pelo Governo da AD, em uníssono com o Chega, e depois votadas sem um sobressalto de consciência constitucional por todos os deputados da direita parlamentar. 

Felizmente, como é próprio de um Estado de direito constitucional, a Constituição não serve somente para legitimar o poder político estabelecido, mas também para estabelecer limites ao exercício arbitrário do poder da maioria parlamentar... 

2. Esta pesada e merecida derrota da maioria governante e da direita em geral no campo constitucional, numa decisão que foi sufragada pela unanimidade (salvo num ponto) dos juízes do TC, também vem pôr em causa, perante a opinião pública, o projeto, que tem vindo a ser alimentado pelo Chega e pela ala "cheguista" da AD, de alterar a composição do Tribunal Constitucional no preenchimento das vagas existentes, por termo do mandato.

Com efeito, para além de esta derrota mostrar que há alianças comprometedoras, o referido projeto mostraria a falta de escrúpulos morais e políticos do PSD, como uma das forças políticas fundadoras do regime constitucional, caso violasse a "convenção constitucional" entre o PSD e o PS que está na base da criação do Tribunal Constitucional, segundo a qual a composição deste é "concertada" entre ambos os partidos, de modo que as vagas são sempre preenchidas por candidatos indicados pelo partido que fizera a indigitação do juiz cessante, ressalvado o direito de veto recíproco. 

Até agora sempre respeitada, a violação qualificada desta "convenção", pela entrada no Tribunal Constitucional de juízes identificados com forças assumidamente anticonstitucionais constituiria um verdadeiro "casus belli", que poria em risco a imprescindível cooperação entre ambos os partidos na sustentação do regime constitucional de que ambos são os principais coautores.

Eleições presidenciais 2026 (28): Um teste importante aos candidatos

1. A chamada regionalização - ou seja, a instituição das autarquais regionais previstas na Cosntituição, desde o início, com o nome de "regiões administrativas", mas até agora sem concretização legislativa -  voltou a ser exigida no congresso da Associação Nacional de Municípios, convocado na sequência das recentes eleições locais, considerando-a um elemento essencial de desenvolvimento e de coesão territorial do País.

Mas logo o Primeiro-Ministro, dando seguimento à atávica oposição do PSD, desde a direção de Marcelo Rebelo de Sousa, há três décadas, veio declarar que a descentralização regional continua fora da agenda deste Governo, prolongando a ostensiva omissão constitucional e privando o País desse instrumento essencial de descentralização territorial no Continente. 

Este episódio de reafirmação do centralismo do Governo de Lisboa não pode ser deixado passar em silêncio, desde logo na campanha eleitoral presidencial em curso.

 2. Com efeito, compete ao PR velar pelo cumprimento da Constituição, que ele jura cumprir e fazer cumprir, o que abrange tanto as proibições como as imposições constitucionais, ou seja, as obrigações de fazer, como é o caso a descentralização territorial. 

Não é por acaso que a Constituição atribui ao Presidente o poder (que é também um dever) de suscitar junto do Tribunal Constitucional situações de inconstitucionalidade por omissão. E, embora o Tribunal não possa obviamente substituir-se ao legislador (separação de poderes oblige), a simples constatação oficial da omissão constitucional coloca a AR e o Governo numa situação de ilicitiude constitucional, tornando politicamente insustentável a continuação da inércia legislativa e politicamente exigível a intervenção presidencial, como guardião da Constituição.

Ora, não se trata de uma obrigação constitucional qualquer, uma vez que a descentralização regional é elemento constituinte dos princípios fundamentais da descentralização territorial e da subsidiariedade territorial (art. 6º da CRP).  Dada a reduzida escala dos municípios, a ausência de autarquias regionais  permite manter na esfera do Governo e da administração central atribuições que não lhe deviam caber ao abrigo daqueles princípios -, o que explica a oposição de Lisboa. 

A desconcentração territorial nas CCDR, mesmo na versão reforçada que lhes deu António Costa, não é sequer um sucedâneo da descentralização regional, que implica a autonomia e o autogoverno das coletividades territoriais regionais.

3. Até agora, a questão da descentralização regional tinha estado quase ausente do debate presidencial. Além da explícita oposição de A. Ventura - como líder que de um partido nacionalista e centralista e que despreza ostensivamente a Constituição -, nenhum dos outros principais candidatos presidenciais, incluindo os apoiados pelo PSD e pelo PS, se tem pronunciado sobre o assunto. 

Mas a referida revindicação da ANM e a sua imediata rejeição pelo Governo vêm obrigar os candidatos a tomarem posição explícita, incluindo sobre duas questões concretas com que devem ser confrontados: (i) se tencionam suscitar a questão da omissão constitucional junto do TC; (ii) se se comprometem a dar pronto seguimento ao procedimento que vier a ser iniciado, promulgando prontamente a lei de instituição e convocando sem demora o necessário referendo (como é sua obrigação).

A partir de agora, não é compreensível nem aceitável o silêncio dos candidatos presidenciais nesta importante matéria

sábado, 13 de dezembro de 2025

Praça da República (85): Um passo em falso do PS

1. Afinal, em vez de propor a reforma do atual sistema de governo municipal num sentido homólogo ao atualmente vigente para as freguesias, como tinha indicado inicialmente, o PS veio agora propor, como se deduz deste artigo do Públicoum sistema de governo que, embora idêntico para ambas as autarquias locais, introduz uma substancial alteração retrógrada no modelo atualmente vigente para as freguesias.

Concretamente, no atual sistema em vigor para as freguesias, há só uma eleição - a da assembleia de freguesia (AM) -, sendo a junta de freguesia (JF) automaticamente presidida pelo 1º nome da lista vencedora daquela eleição e sendo os vogais da junta eleitos pela AF, sob proposta do presidente, o que quer dizer que, no caso de este não ter maioria absoluta na AF, terá de negociar um acordo no seio desta para a composição da JF.

Tendo provado bem ao longo destas décadas, é essa solução que há muito defendo que seja transposta para o governo municipal - como expus recentemente num artido na Revista dos Municípios (AQUI) - , deixando a câmara municipal (CM) de ser diretamente eleita, passando a ser presidida pelo 1º elemento da lista vencedora na eleição da assembleia municipal (AM) e sendo os vereadores eleitos pela AM sob proposta do presidente. Além de pôr fim ao absurdo vigente da eleição direta de um órgão executivo colegial (a CM), trata-se de uma solução democrática, consistente e com provas dadas!

2. Mas na proposta do PS, tal como resulta do referido texto do Público, o novo sistema de governo comum às freguesias e aos muncípios não seria esse. Recuperando uma proposta negociada em 2008 com o PSD, que acabou por não vingar, é certo que em ambos os casos o órgão executivo não seria direta e separadamente eleito, pois o presidente do executivo seria o 1º nome da lista mais votada para a respetiva assembleia, mas os vogais das JF e os vereadores das CM não seriam eleitos pelas AF e AM, conforme os casos, sob proposta do presidente. Seriam nomeados pelo presidente e só não entrariam em funções, se a lista fosse rejeitada pela AM por maioria de 2/3.

Além do inaceitável recuo democrático no que respeita às freguesias, a proposta do PS padece de um claro défice democrático, pois permitiria que os executivos paroquiais e municipais fossem monopolizados por um único partido, mesmo que muito minoritário na AF ou na AM, desde que tivesse mais de um terço dos deputados, o que hoje não é possível nem no caso das freguesias nem no caso dos municípios. 

Não se compreende como é que o PS pode apresentar e defender uma proposta destas.

3. Nem se diga que a solução proposta se inspira no sistema de governo nacional, em que o Governo também não carece de aprovação parlamentar, bastando que não seja rejeitado por maioria absoluta na sua apresentação na AR. 

Todavia, além da diferença essencial quanto à maioria de rejeição (maioria absoluta contra 2/3), há outras diferenças evidentes: 

1º - no caso do sistema de governo nacional é o próprio Governo, a começar pelo PM, que é submetido a eventual voto de rejeição, enquanto no caso dos governos locais seriam apenas os vereadores ou os vogais, respetivamente, visto que os presidentes de JF e de CM são automaticamente os primeiros nomes das listas vencedoras das eleições parlamentares locais; 

2º- no caso do sistema de governo nacional, a rejeição de um Governo pode dar lugar a outro, chefiado por diferente PM, enquanto no caso das autarquais locais, só pode haver lugar a governos locais com outro presidente, através de novas eleições.

Em todo o caso, como defendo no meu recente livro sobre os poderes presidenciais, a solução constitucional vigente dá, desde há muito, sinais de esgotamento, pela instabilidade e ineficácia governativa causada por governos minoritários, pelo que deve ser substituída numa próxima revisão constitucional pela exigência de aprovação parlamentar dos governos, sendo por isso incongruente estendê-la agora ao sistema de governo local.

4. Além da reversão democrática em que assenta e da aposta numa solução esgotada, a referida proposta do PS não tem condições para ser aprovada na AR, pois a Constituição exige uma maioria de 2/3 para aprovação dessa lei - para o que agora não bastam o PSD e o PS  -  e não se vê como é que qualquer outro partido pode votar uma proposta dessas, que os deixa de fora dos executivos locais, onde hoje estão representados, quer por efeito da representação proporcional na eleição direta das CM, quer por efeito de acordos de coligação nas JF, em caso de não haver maioria absoluta do partido vencedor.

Parece óvio que a única maneira de convencer outros partidos (nomeadamnte o Chega, a IL ou o Livre) a aprovar a reforma do sistema de governo local é a fórmula atualmente vigente para as juntas de freguesia, dando-lhes a possibilidade de entrarem também na composição das CM, por efeito de acordos de coligação, sempre que o partido vencedor nas eleições municipais não tenha maioria abosluta na AM.

Por conseguinte, a proposta do PS não é apenas questionável em termos democráticos, sendo também politicamente inviável, pelo que tem de ser corrigida. Trata-se de um dispensável "tiro no pé", numa reforma que o PS teve o mérito de repor na agenda política.

Adenda
Concordando inteiramente com este post, um leitor acrescenta que, ao exigir 2/3 para a rejeição das equipas da CM e da JF propostas pelo respetivo presidente (e logicamente também para aprovação posterior de moções de censura), a proposta do PS «incorre em inconstitucionalidade, por atentatória da necessária legitimidade democrática dos executivos autárquicos». Como se deduz do que escrevo acima, concordo em absoluto, o que só reforça a ligeireza política com que esta proposta foi desenhada a apresentada publicamente.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (27): Mais do mesmo quanto ao Conselho de Estado?


1. Sem dúvida que Marques Mendes se tem claramente demarcado em relação aos mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa quanto a vários dos aspetos mais censuráveis do desvio presidencialista deste, como a banalização da intervenção pública, o abuso do poder de dissolução e de veto legislativo, as reservas às leis promulgadas, os comentários sobre o desempenho do Governo ou de certos ministros. 

Mas tal não sucede em relação a todos os aspetos da herança do Presidentes cessante, como é o caso da instrumentalização política do Conselho de Estado, como órgão de escrutínio político do Governo ou de debate de reformas políticas ou legislativas, como se fosse uma segunda câmara parlamentar, o que a seu tempo critiquei devidamente (AQUI e AQUI).

É certo que, como conselheiro de Estado que foi, Marques Mendes foi "cúmplice" desse qualificado  abuso de poder presidencial, mas isso não devia ser justificação bastante para insistir nele, se vier a ser eleito.

2. De facto, o que Marques Mendes tem dito quanto ao Conselho de Estado consiste em continuar e, mesmo, agravar essa visão errada do papel do órgão consultivo do PR, como a ideia de reuniões regulares ou a de convocar uma reunião sobre a reforma da justiça. 

Ora, nos termos dos artigos 145º e 146º da CRP, a tarefa constitucional do Conselho de Estado consiste especificamente em pronunciar-se, sob a forma de parecer, sobre concretas competências presidenciais, e desde logo sobre as decisões aí explicitamente previstas

Por um lado, o Conselho só deve reunir quando (mas deve reunir sempre que) o PR tenha de obter o seu parecer sobre essas decisões ou sobre outras que entenda submeter-lhe, pelo que não se compreende a ideia de reuniões periódicas, como se o Conselho fosse um órgão de debate político regular, independentemente de qualquer decisão presidencial concreta.

Por outro lado, também não tem nenhum cabimento a ideia de uma reunião sobre a reforma da justiça (ou outra qualquer), matéria que evidentemente é da competência exclusiva da AR e do Governo, e sobre a qual o PR só pode tomar posição, primeiro, no exercício do seu poder informal de aconselhamento do Governo (que, por definição, só pode ser exercido de forma discreta, perante o Primeiro-Ministro, não sendo elegível para ser submetido a parecer do Conselho de Estado) e depois, quando se tratar de promulgar a legislação em que a reforma se vier a concretizar, podendo (então, sim) o PR recorrer ao parecer do Conselho sobre a questão de a promulgar, ou não.

Trata-se de uma das "linhas vermelhas" listadas no "pentadecálogo" que enunciei há um ano (AQUI), quanto aos requisitos que entendo deverem ser respeitados pelos candidatos, sob pena da sua exclusão da minha equação de voto

3. Constitucionalmente, o Conselho de Estado - cuja composição inclui personalidades indicadas pelo próprio PR, mas em minoria - é um mecanismo de ponderação e condicionamento das decisões presidenciais, desde logo das politicamente mais sensíveis (como a dissolução parlamentar), obrigando-o a levar em conta o parecer eventualmente negativo daquele, devendo, por isso, equacionar-se a ampliação dos atos sujeitos obrigatoriamente a parecer do Conselho (como proponho no meu recente livro sobre os poderes presidenciais).

O que não faz sentido é que, ao invés disso, o Conselho seja instrumentalizado para alavancar a intervenção política do PR fora das suas competências constitucionais e em violação da separação de poderes, nomeadamente para efeitos de escrutínio ilegítimo da ação governativa fora da sua sede própria (que é a AR e a esfera pública) ou de debate das reformas políticas que são da exclusiva competência do Governo e do parlamento. 

O Conselho de Estado não pode concorrer com a missão própria da AR, nem ser uma via de usurpação presidencial de um poder de ingerência na condução política do País, que a Constituição nega a Belém.

4. Benjamim Constant, o mais conhecido progenitor da teoria de um poder próprio do chefe do Estado, um quarto poder, neutro, enquanto poder de supervisão dos três poderes clássicos (legislativo, executivo e judicial), como garantia de respeito da Constituição e do equilíbrio entre eles - que veio a ser designado como  "poder moderador" -, afirmou, de forma perentória, que a "chave do sistema político" por ele proposto era a separação entre o poder moderador (do Chefe do Estado) e o poder executivo (do Governo).

A lição de Constant foi levada a preceito pela CRP de 1976, na versão corrigida de 1982, por três vias: (i) ao conferir ao Governo, em exclusivo, a condução da vida política do País; (ii) ao abolir a responsabilidade política do Governo perante o PR, que constava da 1ª versão da Constituição; e (iii) ao focar o poder moderador na tarefa de velar pelo respeito da Constituição e pelo "regular funcionamento das instituições" e ao reduzir o seu poder, no essencial, a poderes de veto (lato sensu), sem ingerência na definição e na condução das políticas governamentais.

Além de incompatível com a Constituição, a deliberada metamorfose do Conselho de Estado em instância paralela de escrutínio político do Governo e de debate de reformas políticas subverte essencialmente a filosofia do poder moderador, na formulação originária de Constant.

Adenda
Concordando com as minhas objeções, um leitor bem informado sugere que, «em vez de submeter reformas políticas a debate no Conselho de Estado, o PR opte por mensagens à AR sobre elas». Sim, desde que se limite a suscitar os problemas, sem avançar com soluções para os mesmos, o PR pode seguir essa via, que a Constituição lhe faculta. E mais, nesse caso, até pode pedir ao Conselho de Estado um parecer sobre essa iniciativa.

Adenda 2
Além de «eleitoralista, demagógica e oportunista», um leitor argumenta que a proposta de Marques Mendes para nomear um jovem para o Conselho de Estado confirma a ideia de que ele «pretende transformar o Conselho num órgão politicamente representativo [e que] só falta propor também um conselheiro vindo da emigração». Tem toda a razão: Marques Mendes propõe-se mesmo instrumentalizar politicamente o CdE como instância de ativismo presidencial.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (25): Não dá para acreditar

Não dá para acreditar como é que, em pleno debate eleitoral sobre a disputa presidencial, com múltipla informação disponível sobre o estatuto constitucional do PR (incluindo o meu recente livro sobre o assunto), um jornal com as responsabilidades do Público publica um texto tão disparatado como este sobre os poderes do Presidente da República (AQUI):

«É o Presidente da República que, consoante os resultados das eleições, nomeia o primeiro-ministro e o Governo — e tem poder para os demitir. Não o pode, contudo, fazer de ânimo leve: deve ouvir o Conselho de Estado e apenas pode fazê-lo quando a demissão é necessária para “assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”.
A demissão do Governo pode acontecer quando não é possível manter uma maioria parlamentar que aprove medidas fundamentais, como o Orçamento de Estado, ou quando há contestação generalizada e duradoura ao Governo que ameace a segurança pública. Também há outras situações em que o Governo pode ser demitido, como a não aprovação de uma moção de confiança, como aconteceu em Março — e acabou por nos levar às legislativas de Maio.»

O 1º parágrafo omite a informação essencial de que nunca houve nenhum caso de demissão presidencial do Governo, pelo que a hipótese não pode ser mencionada entre os poderes presidenciais normais do PR; e o 2º parágafo - que mistura, a despropósito, casos de demissão do Governo pela AR (e não pelo PR) e casos de possível dissolução parlamentar (que não implicam diretamente a demissão do Governo) - é um hino à confusão e à ignorância sobre o sistema político-constitucional, imprópio de qualquer cidadão minimamente informado. 

Que falta faz uma disciplina obrigatória no ensino secundário, incluindo para candidatos a jornalista, sobre os fundamentos da constituição política da República!