segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (28): Um teste importante aos candidatos

1. A chamada regionalização - ou seja, a instituição das autarquais regionais previstas na Cosntituição, desde o início, com o nome de "regiões administrativas", mas até agora sem concretização legislativa -  voltou a ser exigida no congresso da Associação Nacional de Municípios, convocado na sequência das recentes eleições locais, considerando-a um elemento essencial de desenvolvimento e de coesão territorial do País.

Mas logo o Primeiro-Ministro, dando seguimento à atávica oposição do PSD, desde a direção de Marcelo Rebelo de Sousa, há três décadas, veio declarar que a descentralização regional continua fora da agenda deste Governo, prolongando a ostensiva omissão constitucional e privando o País desse instrumento essencial de descentralização territorial no Continente. 

Este episódio de reafirmação do centralismo do Governo de Lisboa não pode ser deixado passar em silêncio, desde logo na campanha eleitoral presidencial em curso.

 2. Com efeito, compete ao PR velar pelo cumprimento da Constituição, que ele jura cumprir e fazer cumprir, o que abrange tanto as proibições como as imposições constitucionais, ou seja, as obrigações de fazer, como é o caso a descentralização territorial. 

Não é por acaso que a Constituição atribui ao Presidente o poder (que é também um dever) de suscitar junto do Tribunal Constitucional situações de inconstitucionalidade por omissão. E, embora o Tribunal não possa obviamente substituir-se ao legislador (separação de poderes oblige), a simples constatação oficial da omissão constitucional coloca a AR e o Governo numa situação de ilicitiude constitucional, tornando politicamente insustentável a continuação da inércia legislativa e politicamente exigível a intervenção presidencial, como guardião da Constituição.

Ora, não se trata de uma obrigação constitucional qualquer, uma vez que a descentralização regional é elemento constituinte dos princípios fundamentais da descentralização territorial e da subsidiariedade territorial (art. 6º da CRP).  Dada a reduzida escala dos municípios, a ausência de autarquias regionais  permite manter na esfera do Governo e da administração central atribuições que não lhe deviam caber ao abrigo daqueles princípios -, o que explica a oposição de Lisboa. 

A desconcentração territorial nas CCDR, mesmo na versão reforçada que lhes deu António Costa, não é sequer um sucedâneo da descentralização regional, que implica a autonomia e o autogoverno das coletividades territoriais regionais.

3. Até agora, a questão da descentralização regional tinha estado quase ausente do debate presidencial. Além da explícita oposição de A. Ventura - como líder que de um partido nacionalista e centralista e que despreza ostensivamente a Constituição -, nenhum dos outros principais candidatos presidenciais, incluindo os apoiados pelo PSD e pelo PS, se tem pronunciado sobre o assunto. 

Mas a referida revindicação da ANM e a sua imediata rejeição pelo Governo vêm obrigar os candidatos a tomarem posição explícita, incluindo sobre duas questões concretas com que devem ser confrontados: (i) se tencionam suscitar a questão da omissão constitucional junto do TC; (ii) se se comprometem a dar pronto seguimento ao procedimento que vier a ser iniciado, promulgando prontamente a lei de instituição e convocando sem demora o necessário referendo (como é sua obrigação).

A partir de agora, não é compreensível nem aceitável o silêncio dos candidatos presidenciais nesta importante matéria

sábado, 13 de dezembro de 2025

Praça da República (85): Um passo em falso do PS

1. Afinal, em vez de propor a reforma do atual sistema de governo municipal num sentido homólogo ao atualmente vigente para as freguesias, como tinha indicado inicialmente, o PS veio agora propor, como se deduz deste artigo do Públicoum sistema de governo que, embora idêntico para ambas as autarquias locais, introduz uma substancial alteração retrógrada no modelo atualmente vigente para as freguesias.

Concretamente, no atual sistema em vigor para as freguesias, há só uma eleição - a da assembleia de freguesia (AM) -, sendo a junta de freguesia (JF) automaticamente presidida pelo 1º nome da lista vencedora daquela eleição e sendo os vogais da junta eleitos pela AF, sob proposta do presidente, o que quer dizer que, no caso de este não ter maioria absoluta na AF, terá de negociar um acordo no seio desta para a composição da JF.

Tendo provado bem ao longo destas décadas, é essa solução que há muito defendo que seja transposta para o governo municipal - como expus recentemente num artido na Revista dos Municípios (AQUI) - , deixando a câmara municipal (CM) de ser diretamente eleita, passando a ser presidida pelo 1º elemento da lista vencedora na eleição da assembleia municipal (AM) e sendo os vereadores eleitos pela AM sob proposta do presidente. Além de pôr fim ao absurdo vigente da eleição direta de um órgão executivo colegial (a CM), trata-se de uma solução democrática, consistente e com provas dadas!

2. Mas na proposta do PS, tal como resulta do referido texto do Público, o novo sistema de governo comum às freguesias e aos muncípios não seria esse. Recuperando uma proposta negociada em 2008 com o PSD, que acabou por não vingar, é certo que em ambos os casos o órgão executivo não seria direta e separadamente eleito, pois o presidente do executivo seria o 1º nome da lista mais votada para a respetiva assembleia, mas os vogais das JF e os vereadores das CM não seriam eleitos pelas AF e AM, conforme os casos, sob proposta do presidente. Seriam nomeados pelo presidente e só não entrariam em funções, se a lista fosse rejeitada pela AM por maioria de 2/3.

Além do inaceitável recuo democrático no que respeita às freguesias, a proposta do PS padece de um claro défice democrático, pois permitiria que os executivos paroquiais e municipais fossem monopolizados por um único partido, mesmo que muito minoritário na AF ou na AM, desde que tivesse mais de um terço dos deputados, o que hoje não é possível nem no caso das freguesias nem no caso dos municípios. 

Não se compreende como é que o PS pode apresentar e defender uma proposta destas.

3. Nem se diga que a solução proposta se inspira no sistema de governo nacional, em que o Governo também não carece de aprovação parlamentar, bastando que não seja rejeitado por maioria absoluta na sua apresentação na AR. 

Todavia, além da diferença essencial quanto à maioria de rejeição (maioria absoluta contra 2/3), há outras diferenças evidentes: 

1º - no caso do sistema de governo nacional é o próprio Governo, a começar pelo PM, que é submetido a eventual voto de rejeição, enquanto no caso dos governos locais seriam apenas os vereadores ou os vogais, respetivamente, visto que os presidentes de JF e de CM são automaticamente os primeiros nomes das listas vencedoras das eleições parlamentares locais; 

2º- no caso do sistema de governo nacional, a rejeição de um Governo pode dar lugar a outro, chefiado por diferente PM, enquanto no caso das autarquais locais, só pode haver lugar a governos locais com outro presidente, através de novas eleições.

Em todo o caso, como defendo no meu recente livro sobre os poderes presidenciais, a solução constitucional vigente dá, desde há muito, sinais de esgotamento, pela instabilidade e ineficácia governativa causada por governos minoritários, pelo que deve ser substituída numa próxima revisão constitucional pela exigência de aprovação parlamentar dos governos, sendo por isso incongruente estendê-la agora ao sistema de governo local.

4. Além da reversão democrática em que assenta e da aposta numa solução esgotada, a referida proposta do PS não tem condições para ser aprovada na AR, pois a Constituição exige uma maioria de 2/3 para aprovação dessa lei - para o que agora não bastam o PSD e o PS  -  e não se vê como é que qualquer outro partido pode votar uma proposta dessas, que os deixa de fora dos executivos locais, onde hoje estão representados, quer por efeito da representação proporcional na eleição direta das CM, quer por efeito de acordos de coligação nas JF, em caso de não haver maioria absoluta do partido vencedor.

Parece óvio que a única maneira de convencer outros partidos (nomeadamnte o Chega, a IL ou o Livre) a aprovar a reforma do sistema de governo local é a fórmula atualmente vigente para as juntas de freguesia, dando-lhes a possibilidade de entrarem também na composição das CM, por efeito de acordos de coligação, sempre que o partido vencedor nas eleições municipais não tenha maioria abosluta na AM.

Por conseguinte, a proposta do PS não é apenas questionável em termos democráticos, sendo também politicamente inviável, pelo que tem de ser corrigida. Trata-se de um dispensável "tiro no pé", numa reforma que o PS teve o mérito de repor na agenda política.

Adenda
Concordando inteiramente com este post, um leitor acrescenta que, ao exigir 2/3 para a rejeição das equipas da CM e da JF propostas pelo respetivo presidente (e logicamente também para aprovação posterior de moções de censura), a proposta do PS «incorre em inconstitucionalidade, por atentatória da necessária legitimidade democrática dos executivos autárquicos». Como se deduz do que escrevo acima, concordo em absoluto, o que só reforça a ligeireza política com que esta proposta foi desenhada a apresentada publicamente.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (27): Mais do mesmo quanto ao Conselho de Estado?


1. Sem dúvida que Marques Mendes se tem claramente demarcado em relação aos mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa quanto a vários dos aspetos mais censuráveis do desvio presidencialista deste, como a banalização da intervenção pública, o abuso do poder de dissolução e de veto legislativo, as reservas às leis promulgadas, os comentários sobre o desempenho do Governo ou de certos ministros. 

Mas tal não sucede em relação a todos os aspetos da herança do Presidentes cessante, como é o caso da instrumentalização política do Conselho de Estado, como órgão de escrutínio político do Governo ou de debate de reformas políticas ou legislativas, como se fosse uma segunda câmara parlamentar, o que a seu tempo critiquei devidamente (AQUI e AQUI).

É certo que, como conselheiro de Estado que foi, Marques Mendes foi "cúmplice" desse qualificado  abuso de poder presidencial, mas isso não devia ser justidicação bastante para insistir nele, se vier a ser eleito.

2. De facto, o que Marques Mendes tem dito quanto ao Conselho de Estado consiste em continuar e, mesmo, agravar essa visão errada do papel do órgão consultivo do PR, como a ideia de reuniões regulares ou a de convocar uma reunião sobre a reforma da justiça. 

Ora, nos termos dos artigos 145º e 146º da CRP, a tarefa constitucional do Conselho de Estado consiste especificamente em pronunciar-se, sob a forma de parecer, sobre concretas competências presidenciais, e desde logo sobre as decisões aí explicitamente previstas

Por um lado, o Conselho só deve reunir quando (mas deve reunir sempre que) o PR tenha de obter o seu parecer sobre essas decisões ou sobre outras que entenda submeter-lhe, pelo que não se compreende a ideia de reuniões periódicas, como se o Conselho fosse um órgão de debate político regular, independentemente de qualquer decisão presidencial concreta.

Por outro lado, também não tem nenhum cabimento a ideia de uma reunião sobre a reforma da justiça (ou outra qualquer), matéria que evidentemente é da competência exclusiva da AR e do Governo, e sobre a qual o PR só pode tomar posição, primeiro, no exercício do seu poder informal de aconselhamento do Governo (que, por definição, só pode ser exercido de forma discreta, perante o Primeiro-Ministro, não sendo elegível para ser submetido a parecer do Conselho de Estado) e depois, quando se tratar de promulgar a legislação em que a reforma se vier a concretizar, podendo (então, sim) o PR recorrer ao parecer do Conselho sobre a questão de a promulgar, ou não.

Trata-se de uma das "linhas vermelhas" listadas no "pentadecálogo" que enunciei há um ano (AQUI), quanto aos requisitos que entendo deverem ser respeitados pelos candidatos, sob pena da sua exclusão da minha equação de voto

3. Constitucionalmente, o Conselho de Estado - cuja composição inclui personalidades indicadas pelo próprio PR, mas em minoria - é um mecanismo de ponderação e condicionamento das decisões presidenciais, desde logo das politicamente mais sensíveis (como a dissolução parlamentar), obrigando-o a levar em conta o parecer eventualmente negativo daquele, devendo, por isso, equacionar-se a ampliação dos atos sujeitos obrigatoriamente a parecer do Conselho (como proponho no meu recente livro sobre os poderes presidenciais).

O que não faz sentido é que, ao invés disso, o Conselho seja instrumentalizado para alavancar a intervenção política do PR fora das suas competências constitucionais e em violação da separação de poderes, nomeadamente para efeitos de escrutínio ilegítimo da ação governativa fora da sua sede própria (que é a AR e a esfera pública) ou de debate das reformas políticas que são da exclusiva competência do Governo e do parlamento. 

O Conselho de Estado não pode concorrer com a missão própria da AR, nem ser uma via de usurpação presidencial de um poder de ingerência na condução política do País, que a Constituição nega a Belém.

4. Benjamim Constant, o mais conhecido progenitor da teoria de um poder próprio do chefe do Estado, um quarto poder, neutro, enquanto poder de supervisão dos três poderes clássicos (legislativo, executivo e judicial), como garantia de respeito da Constituição e do equilíbrio entre eles - que veio a ser designado como  "poder moderador" -, afirmou, de forma perentória, que a "chave do sistema político" por ele proposto era a separação entre o poder moderador (do Chefe do Estado) e o poder executivo (do Governo).

A lição de Constant foi levada a preceito pela CRP de 1976, na versão corrigida de 1982, por três vias: (i) ao conferir ao Governo, em exclusivo, a condução da vida política do País; (ii) ao abolir a responsalibidade política do Governo perante o PR, que constava da 1ª versão da Constituição; e (iii) ao focar o poder moderador na tarefa de velar pelo respeito da Constituição e pelo "regular funciomento das instituições" e ao reduzir o seu poder, no essencial, a poderes de veto (lato sensu), sem ingerência na definição e na condução das políticas governamentais.

Além de incompatível com a Constituição, a deliberada metamorfose do Conselho de Estado em instância paralela de escrutínio político do Governo e de debate de reformas políticas subverte essencialmente a filosofia do poder moderador, na formulação originária de Constant.

Adenda
Concordando com as minhas objeções, um leitor bem informado sugere que, «em vez de submeter reformas políticas a debate no Conselho de Estado, o PR opte por mensagens à AR sobre elas». Sim, desde que se limite a suscitar os problemas, sem avançar com soluções para os mesmos, o PR pode seguir essa via, que a Constituição lhe faculta. E mais, nesse caso, até pode pedir ao Conselho de Estado um parecer sobre essa iniciativa.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (25): Não dá para acreditar

Não dá para acreditar como é que, em pleno debate eleitoral sobre a disputa presidencial, com múltipla informação disponível sobre o estatuto constitucional do PR (incluindo o meu recente livro sobre o assunto), um jornal com as responsabilidades do Público publica um texto tão disparatado como este sobre os poderes do Presidente da República (AQUI):

«É o Presidente da República que, consoante os resultados das eleições, nomeia o primeiro-ministro e o Governo — e tem poder para os demitir. Não o pode, contudo, fazer de ânimo leve: deve ouvir o Conselho de Estado e apenas pode fazê-lo quando a demissão é necessária para “assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”.
A demissão do Governo pode acontecer quando não é possível manter uma maioria parlamentar que aprove medidas fundamentais, como o Orçamento de Estado, ou quando há contestação generalizada e duradoura ao Governo que ameace a segurança pública. Também há outras situações em que o Governo pode ser demitido, como a não aprovação de uma moção de confiança, como aconteceu em Março — e acabou por nos levar às legislativas de Maio.»

O 1º parágrafo omite a informação essencial de que nunca houve nenhum caso de demissão presidencial do Governo, pelo que a hipótese não pode ser mencionada entre os poderes presidenciais normais do PR; e o 2º parágafo - que mistura, a despropósito, casos de demissão do Governo pela AR (e não pelo PR) e casos de possível dissolução parlamentar (que não implicam diretamente a demissão do Governo) - é um hino à confusão e à ignorância sobre o sistema político-constitucional, imprópio de qualquer cidadão minimamente informado. 

Que falta faz uma disciplina obrigatória no ensino secundário, incluindo para candidatos a jornalista, sobre os fundamentos da constituição política da República!


terça-feira, 18 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (24): Sistema de governo semiparlamentar?

1. Há dias o jornal Público perguntou aos candidatos presidenciais (AQUI) se defendiam uma alteração dos poderes presidenciais. Sem supresa, nenhum defendeu a sua redução, e os candidatos A. Ventura e Cotrim de Figueredo até acham que deviam ser reforçados.

A verdade, porém, é que não são eles que têm competência para decidir essa questão, mas sim a AR, quando for caso de revisão constitucional, que é feita sem nenhuma intervenção presidencial, não havendo poder de veto político das leis de revisão. É de recordar o caso da revisão constitucional de 1982, em que o Presidente Ramalho Eanes tinha exigido ao PS -  que o apoiara nas eleições presidenciais anteriores em que ele foi reeleito - um compromisso de não redução dos poderes presidenciais. Como se sabe, houve uma redução, e bem substancial, como mostro no meu recente livro sobre o Presidente da República.

Num Estado constitucional, não são os presidentes, nem muito menos os candidatos presidenciais, que definem os seus próprios poderes.

2. Quanto à caracterização do sistema de governo que resulta do quadro constitucional, alguns dos candidatos utilizam inovadoramente a expressão de sistema "semiparlamentar", em alternativa à fórmula até agora mais corrente de "sistema semipresidencial".

É um claro progresso, que saúdo, visto que, como argumento no referido livro, não tem fundamento a segunda caraterização, Com efeito, a Constituição não oferece nenhum dos traços essenciais do sistema de governo presidencial, pois o Presidente não governa, nem semigoverna, e o Governo nem sequer é politicamente reponsável perante ele. 

Todavia, embora menos incorreta, a nova fórmula continua a não exprimir devidamente o facto de que o sistema de governo constitucional apresenta os elementos essenciais do sistema de governo parlamentar, a saber (i) a  legitimidade política do Governo fundada nas eleições parlamentares - que põem sempre fim ao mandato governamental em curso e iniciam um novo ciclo governativo, ao contrário das eleições presidenciais - e (ii) a responsabilidade política do Governo perante o parlamento, sendo demitido no caso de perder a confiança dele.

O máximo que se pode dizer é que se trata de um sistema de governo parlamentar atípico, visto que "corrigido" pelo "poder moderador" do PR, sobretudo pelo poder de dissolução parlamentar (a qual acarreta sempre a substituição do Governo, ainda que do mesmo partido). Mas essa "correção" não altera a lógica essencialmente parlamentar do sistema de governo.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Laicidade (18): Não ao financiamento público das religiões

1. É evidente a inconstitucionalidade da proposta de excluir o financiamento público de mesquitas apresentada pelo Chega, na sua obsessão anti-islâmica -, mas só é inconstitucional por ostensiva e inaceitável discriminação religiosa. 

O que o princípio constitucional da separação entre o Estado e as religiões impõe é a proibição de financiamento público de qualquer religião. O Estado não tem religião e é neutro em matéria religiosa. A sustentação das igrejas (templos, ministros, etc.) só pode constituir encargo dos seus crentes, não dos contribuintes, sejam ou não crentes de outras religiões.

Como contribuinte, tenho o direito de exigir: não com os meus impostos.

2. A Constituição garante a liberdade religiosa, ou seja, a liberdade de crença e de culto, dos crentes e das suas igrejas, sem discriminação,  incluindo a liberdade dos primeiros de financiarem as segundas; mas, tal como as demais liberdades públicas, não existe nenhum direito à religião contra o Estado, nem dos crentes nem das respetivas igrejas, em termos de exigir a prestação pública de serviços religiosos ou a sua subsidiação pública. 

O Estado não tem nenhuma obrigação de subsidiar nenhuma religião; pelo contrário, não pode fazê-lo. Num Estado laico, o financimento dos encargos do culto religioso, incluindo os locais de culto, é uma responsabilidade exclusiva do seus crentes. As igrejas não podem parasitar o Estado.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Concordo (25): Perda de nacionalidade no TC, obviamente


1. Concordo inteiramente com esta opinião do Prof. Jorge Miranda sobre a necessidade de sujeitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade a perda de nacionalidade de cidadãos naturalizados, como sanção adicional por crimes graves, recentemente aprovada na AR, por estranha convergência política entre o PSD e o Chega.

Na verdade, tal como também já escrevi sobre esta questão (AQUI), entre nós, o direito à nacionalidade goza de proteção constitucional qualificada, como um dos "direitos, liberdades e garantias pessoais" (art. 26º, nº 1 da CRP), ao mesmo título que o direito à identidade e à capacidade civil, entre outros. E, embora a Constituição não exclua em termos absolutos a privação da nacionalidade (nº 4 desse preceito), ela só poderá ter lugar nos termos constitucionais, ou seja, quando respeitados os princípios da necessidade e da proporcionalidade na restrição de tais direitos (art. 18º), bem como o princípio constitucional da igualdade e não discriminação (art. 13º), ambos violados pela referida privação da nacionalidade. 

2. Com efeito, quanto ao primeiro aspeto, como a nacionalidade é um direito que é pressuposto de muitos outros direitos, a privação de nacionalidade é uma sanção extremamente grave, em que a vítima passa à situação de estrangeiro, perdendo os direitos de cidadão nacional e de cidadão da União Europeia, desde os direitos civis aos direitos políticos, e podendo ser expulso e extraditado do País, sendo afastado do seu trabalho, da sua família e das suas relações. Sem exagero, é uma pena de morte civil e política, pelo que não surpreende que nunca tenha sido inscrita no Código Penal e que até agora a nacionalidade só pudesse perder-se por renúncia, e só admitida no caso de pessoas com outra nacionalidade.

Por isso, além de não poder ter fundamento em motivos políticos, como impõe a Constituição, uma pena dessa gravidade superlativa só deve ser equacionada quando tal seja requerido pela proteção de um valor constitucional superior (por exemplo, crime de traição à pátria), e nunca como instrumento oportunista de política penal. Ora, no caso concreto, além da manifesta motivação política contra imigrantes, não existe nenhum eminente valor constitucional que justifique tal pena.

3. Além disso, ao abrigo do crucial princípio constitucional da igualdade, os cidadãos nacionais são todos iguais, independentemente do modo de aquisição da nacionalidade, pelo que a origem da nacionalidade não pode sequer constar do cartão de cidadão. A única exceção é o cargo de Presidente da República, que só está aberto a cidadãos nacionais de origem, mas não é preciso ser estudante de direito para saber que, por definição, as normas excecionais só valem para os casos nelas contemplados. 

Por isso, é inadmissível a discriminação dos cidadãos em matéria penal, como no Antigo regime pré-constitucional, como se propõe neste regime de aplicação daquela pena a uma certa categoria de cidadãos, especificamente os cidadãos naturalizados, só por o serem. Sucede, aliás, que, tratando-se em geral de cidadãos residentes no país, eles são, por via de regra, muito mais identificados com a comunidade nacional do que muitos cidadãos de origem nascidos e residentes desde sempre no estrangeiro.

A privação da nacionalidade não pode ser um instrumento discriminatório de revisão retroativa da aquisição de nacionalidade, que só pode ser definitiva e irreversível.

domingo, 9 de novembro de 2025

Reforma da Justiça (15): Contra a imunidade do governo da justiça ao escrutínio público



 









1. Na entrevista que deu ao jornal Público do passado dia 6, o presidente do STJ, Conselheiro Cura Mariano, perguntado sobre as críticas ao estado da justiça pelo Manifesto dos 50 (de maio de 2024), permite-se surpreendentemente insinuar - como os excertos acima reproduzidos mostram - que os seus autores pretendem que os juízes sejam «escolhidos e nomeados pelo poder político» e submeter as suas decisões às «orientações do poder político», à semelhança da Polónia (!) e da Hungria (!), culminando na ideia de que pretendem «arranjar controleiros para os juízes» (sic!).

Ora, basta ler o Manifesto (disponível AQUI) e as posições do seus autores, entre os quais me conto, para ver que aquelas graves insinuações não têm absolutamente nenhum fundamento, sendo produto de pura especulação malévola do entrevistado. Aliás, no seu § 8, o Manifesto ressalva expressamente que a reforma da justiça nele proposta deve «respeitar integralmente a independência dos tribunais» e no § 9 declara à cabeça das suas prioridades a de «garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça».

De resto, quem é que poderia acreditar que aquele grupo de pessoas - todas com um currículo que pede meças na defesa do Estado de direito constitucional, que tem na independência dos juízes e dos tribunais um dos seus pilares -, poderia incorrer em disparates tão grosseiros como a defesa do controlo político da justiça?

O problema que aquelas declarações suscita é o de saber como é que pessoas com a posição e responsabilidade institucional de presidente de um supremo tribunal da República podem permitir-se fazer acusações tão levianas e tão ofensivas para os visados, sem nenhum fundamento. Assim, não vale! Sendo eu um dos coautores do Manifesto, julgo que o Senhor Conselheiro Cura Mariano deve corrigir aquelas irresponsáveis declarações e pedir desculpa aos visados.

2. Sendo intocável a independência dos juízes e a função de julgar (do STJ e de todos os tribunais), tal como garantida na Constituição - que ninguém contesta nesse ponto -, entendo, porém, que os órgãos de governo das magistraturas, onde se conta o CSM (a que o presidente do STJ preside por inerência), não podem reivindicar nenhuma imunidade ao escrutínio externo do desempenho das suas funções, que obviamente não têm natureza judicial (como prova o facto de ele ser composto maioritariamente por membros nomeados pelo poder político, aliás por exigência do princípio democrático). 

Por isso, na linha do Manifesto (§ 9, quinto item), defendo que, além do envio do seu relatório anual à AR, como previsto na lei, o presidente da CSM, nessa qualidade, devia ser chamado regularmente a apresentá-lo na comissão de justiça da AR e a responder às questões dos deputados, e que que AR devia organizar anualmente uma sessão de debate sobre o estado da justiça, justamente com base dos relatórios do CSM, do CSTAF e do Ministério Público. O preocupante estado da justiça exige essa sabatina regular.

Numa democracia constitucional, não pode haver poderes de gestão pública imunes ao escrutínio público nem irresponsáveis perante a coletividade. Os cidadãos têm o direito de conhecer e de avaliar o desempenho do sistema de justiça, nos seus vários subsistemas, e de pedir contas a quem os governa. Isso vale também para o CSM e o seu presidente.

Adenda
Um leitor, que se apresenta como magistrado judicial, faz o seguinte comentário: «Era o que faltava, ver o presidente do STJ submetido a um exame parlamentar!». Mas não tem nenhuma razão: não defendo que o Consº Cura Mariano compareça perante a AR na sua qualidade de presidente do STJ (embora tal não esteja excluído, para responder sobre a gestão administrativa do Tribunal), mas sim como presidente do CSM -, o que não é a mesma coisa! Constitucionalmente, Portugal é um Estado de direito democrático, onde o poder público vem da coletividade e é responsável perante ela. Não é por acaso que, por imposição constitucional, o CSM tem uma maioria de membros designados pelo PR e pela AR (e o mesmo sucede, por analogia, com o CSTAF), nem que o PGR é nomeado e destituído livremente pelo PR, sob proposta do Primeiro-Ministro. Num Estado democrático, o poder judicial não pode viver em autogestão, nem ser imune à responsabilidade externa. O que aquela frase revela é a prevalência, na esfera judicial, de um sentimento corporativista de autogoverno do sistema de justiça, por natureza imune ao escrutínio externo, à revelia da Constituição -  o qual não pode perdurar.

Adenda 2
Excerto do comentário de um leitor informado e credenciado: «Um texto que subscrevo, em defesa do Estado de direito. Sucede que a administração da justiça está em roda livre há muito tempo. E o poder político demitiu-se de fazer um escrutínio sério e objetivo. Tem medo, e a cobardia paga-se caro. 
Os conselhos superiores estão no essencial reduzidos à esfera disciplinar; não há discussões de fundo entre os conselhos e os deputados. O relatório anual é um mero proforma. Ninguém o lê na AR e ninguém quer saber dos vogais dos conselhos após as eleições na AR. Depende do empenho e do espírito de missão de serviço público de cada eleito, que se vê numa situação de profunda indiferença do parlamento. (...) Penso que estão a fazer um ótimo trabalho com as intervenções públicas do Manifesto, porque o tema da justiça tem de regressar ao centro do discurso político reformista». É um relato impressionante, que chama a atenção para um facto pouco conhecido: a demissão do poder político, incluindo a AR e os partidos políticos, de usarem o poder de escrutínio do sistema de justiça, de que dispõem.   

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (23): O que o PR deve ser, e o seu contrário


Da minha entrevista de ontem no Diário de Notícias, acerca do meu recente livro Que Presidente da República para Portugal?:

«O perfil presidencial que defendo é de um Presidente moderador, e não perturbador; um Presidente estabilizador, e não desestabilizador; uma magistratura de influência, e não de ingerência.»

Esta mensagem constitui o "motivo diretor" do livro.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (22): Uma ideia que faz sentido

1. Na entrevista de hoje do candidato presidencial Jorge Pinto, oriundo do Livre, na RTP (jornalista Vítor Gonçalves), houve duas novidades quanto a possíveis iniciativas do PR - uma que deve ser rejeitada liminarmente e outra que merece séria reflexão.

A primeira é a ideia de o PR convocar "assembleias de cidadãos" para debater e propor medidas sobre temas políticos concretos, à imagem do que tem sido feito noutros países, como forma sofisticada de democracia participativa. Trata-se de conselhos de cidadãos ad hoc, em geral formados por 20 a 30 pessoas tiradas à sorte do recenseamento eleitoral, segundo certos critérios que assegurem uma microrrepresentação sociológica da coletividade (equilíbrio de género, geracional, de população urbana e rural, etc.), convocadas para organizarem um debate entre si sobre questões concretas, ouvindo especialistas no tema, para, no final, apresentarem ao parlamento e ao governo um relatório fundamentado sobre o assunto, normalmente adotado por consenso, incluindo propostas ou recomendações políticas ou legislativas de solução. 

Basta esta definição para verificar que uma tal iniciativa está claramente fora da competência presidencial entre nós, primeiro, porque não consta do enunciado constitucional dos seus poderes e, segundo, porque, entre nós, o Presidente não compartilha nem da função legislativa (que cabe essencialmente à AR) nem da direção da política geral do País (que cabe ao Governo). O facto de em França uma iniciativa dessas ter partido do Presidente Macron é irrelevante em Portugal, pois naquele País é o Presidente que, em condições normais, dirige o governo. Não comparemos o que é incomparável.

2. Em contrapartida, merece reflexão a ideia de o Presidente, como guardião de último recurso das instituições constitucionais, poder decretar a dissolução parlamentar e a convocação de novas eleições para a AR, na hipótese de estar iminente a aprovação de uma revisão constitucional que atentase contra o "núcleo duro" da ordem republicana e democrática da CRP - hipótese que, embora improvável, merece ser equacionada. 

Na verdade, a Constituição proíbe a revisão das soluções que consubstanciam a própria identidade constitucional, que constam do art. 288º da CRP, e que vão desde a independência nacional e a unidade do Estado até à autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira. Contudo, em qualquer caso, o PR não pode vetar as leis de revisão (expressamente proibido no art. 286, nº 3) e, embora a fiscalização preventiva da conformidade constitucional das leis de revisão não esteja explicitamente excluída, há quem defenda que tambem nao tem lugar, por ela só estar prevista para convenções internacioais e atos legislativos.

Nesse quadro, na iminência de uma revisão gravemente inconstitucional, por desrespeito do art. 288º, a única solução disponível poderia a ser a dissolução parlamentar antes da aprovação da lei de revisão. Mesmo para quem defende uma visão restritiva da dissolução parlamentar, como é a minha, essa hipótese de o PR recorrer a ela, como meio de salvaguarda do regular funcionamento das instituições e de defesa em última instância da Constituição, é perfeitamente cabível, a título de «situação política excecional que torne imperiosa a renovação da legitimidade parlamentar» (como digo na competente sugestão de revisão constitucional constante do meu recente livro sobre o Presidente da República). 

A eventual dissolução num caso desses transformaria as subsequentes eleições numa espécie de referendo de rejeição da revisão constitucional interrompida.

O que o Presidente não deve fazer (60): O colegislador clandestino

1. No princípio de agosto, o Governo anunciava a aprovação em Conselho de Ministros de um diploma a fundir a FCT com a Agência de Inovação, pelo que, como é normal, o diplomá deverá ter sido enviado para promulgação do PR. Contudo, mais de três meses passaram sem promulgação do diploma nem notícia de veto presidencial.

Passado este tempo todo, o Governo vem anunciar uma nova versão do diploma, com uma significativa alteração em relação ao que se sabia do primeiro, quanto ao formato institucional da nova entidade, informando que ela resultava de uma «sugestão» do PR, não se sabe a que título, nem quando, nem por que meio. O que se terá passado?

Conjeturalmente, passou-se o seguinte: face à forte oposição da comunidade científica ao referido diploma, e não concordando também com ele ou com algumas das suas soluções, o PR decidiu não o promulgar, sem, porém, o vetar, como devia, preferindo devolvê-lo à procedência com sugestões de alteração (que desconhecemos), que o Governo acabou por acolher, no todo ou em parte, como agora anuncia. O problema é que nada disto é conforme à Constituição.

2. Em primeiro lugar, nada autoriza o PR a devolver ao Governo um diploma legislativo sem veto formal, devidamente justificado, tal como previsto na Constituição. Segundo, tudo na Constituição contraria essa espécie de "negociação legislativa" informal (?) entre o Governo e o PR, tornado colegislador, em afronta do princípio constitucional da separação de poderes. Por último, é inadmissível este procedimento legislativo clandestino, sem qualquer informação pública, ao arrepio do princípio da transparência e do acompanhamento público que a formação das leis deve observar num Estado de direito constitucional, que foi justamente construído contra a "arcana praxis" do Antigo Regime pré-liberal.

Não dá para compreender como é que o Presidente da República se deixa envolver numa operação tão grosseiramente à margem da Constituição quanto ao exercício do poder legislativo. 

3. Há que encontrar meios para pôr cobro a estas situações de descabido "conluio legislativo" entre Belém e São Bento, à margem do procedimento previsto na Constituição e da separação clara entre o poder legislativo do Governo, quando o tem, e o subsequente poder de controlo presidencial, para efeitos de promulgação ou de eventual veto.  

Para impedir isso, impõem-se três mudanças em relação à prática corrente:
- que o Governo publique antecipadamente a agenda legislativa de cada Conselho de Ministros;
- que, logo depois, publique o texto dos diplomas legislativos aprovados e indique a data do seu envio para Belém;
- que o PR publique o despacho de promulgação ou veto dos diplomas governamentais, como faz em relação aos da AR.

O procedimento legislativo dos decretos-leis não pode continuar escondido numa "caixa negra", à margem do escrutínio público.

4.  Quanto à emenda presidencial do diploma, substituindo o formato institucional da nova entidade pública, que deixa de ser o de sociedade comercial (SA) para passar ao de entidade pública empresarial  (EPE), ela atenua um pouco a gravidade da solução governamental, mas continua a ser uma solução errada, pois não se vê onde onde é que na gestão da subvenção pública à investigação existe produção de serviços contra um preço, que é essencial à noção de empresa. 

Continua, portanto, a verificar-se a mesma fraude à distinção constitucional entre o setor público empresarial (SPE) e o setor público administrativo (SPA) e de fuga indevida da nova entidade administrativa às regras da "Constituição administativa" da CRP. O PR não se devia deixar expor como coautor de um desvio desta gravidade aos princípios constitucionais.

5. Acresce o risco de se verificar uma situação politicamente embaraçosa.

Os decretos-leis governamentais podem ser chamados ato contínuo à AR, para efeitos de rejeição ou de alteração - o que provavelmente vai ocorrer. Se a AR questionar o formato pseudoempresarial da nova agência administrativa, que se sabe agora provir de Belém, em que situação fica o PR, se a AR decidisse - como, a meu ver, devia - revogar esse ponto da "parceria legislativa" entre Belém e São Bento?  E em que situação fica ele, quando fosse chamado a promulgar essa lei da AR que descarte esse seu indevido contributo de legislador ocasional?

Eis como o desrespeito dos limites constitucionais dos poderes presidenciais - o PR não é legislador nem colegislador - pode gerar consequências políticas assaz delicadas...

Adenda
Um leitor bem informado observa que essaa prática «já vem do passado, com outros Presidentes e outros governos». É verdade, e eu já a critiquei anteriormente, por ter conhecimento dela. O que é novo, porém, é ela ter sido referida publicamente por um ministro, como se fosse uma prática perfeitamente normal. Ora, não pode aceitar-se a "normalização" de uma prática contrária à Constituição e ao escrutínio público da atividade legislativa.

Adenda 2
Neste editorial do Público sobre esta questão diz-se que a fórmula das "entidades públicas empresariais" está «amplamente experimentada» no caso dos hospitais públicos - o que é verdade. No entanto, ao contrário dos hospitais EPE - que preenchem os pressupostos técnicos da noção de empresa, como prestadores de serviços ao público, e cujo financiamento orçamental é efetivamente calculado em função dos cuidados de saúde por eles prestados aos utentes do SNS e que são "pagos" pelo Estado em vez deles (algo de paralelo às autoestradas "SCUT", em que o Estado paga a sua utilização às empresas respetivas, em vez dos utilizadores) -, parece evidente que a missão da projetada IA2 não preenche a noção de atividade económica, que é pressuposto do conceito de empresa: na noção de "entidade pública empresarial", ela só prenche o primeiro conceito, não o segundo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (59): Emendar a mão

1. Ao contrário de outros artigos desta série e da sua rubrica, este não é de crítica ao PR, mas sim de aplauso.

Em meados de Setembro, MRS anunciava o seu propósito de, «dentro de duas ou três semanas», emitir publicamente o seu juízo sobre a Ministra da Saúde. Critiquei prontamente (AQUI) esse anunciado juízo presidencial, com fundamento em que não cabe constitucionalmente ao PR avaliar publicamente o desempenho político dos ministros, o que é competência do PM, da AR e dos cidadãos, visto que o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente, nem este dispõe de qualquer poder de tutela política sobre aquele.

Passadas várias semanas, esse juízo presidencial sobre a ministra da Saúde nunca veio a público - e bem! Desta vez, a minha crítica não caiu em saco roto.

2. Em vez disso, há dias, o Presidente resolveu manifestar publicamente a sua preocupação quanto ao estado do SNS e a falta de estabilidade e continuidade das políticas governamentais da saúde, omitindo qualquer avaliação do desempenho da Ministra ou do Governo. Fez bem, de novo!

Na sua missão de "poder moderador" e de supervisão sobre o respeito da Constituição, o PR pode - e em certas circunstâncias, deve - chamar atenção do Governo, da AR e dos partidos políticos para situações que põem em causa valores constitucionais eminentes, onde se conta obviamente o SNS e o direito à saúde. Além de caber nas suas competências constitucionais, o alerta do PR sobre a gravidade da situação e o seu apelo a um "acordo de regime" sobre a matéria é pertinente e oportuno.

Ou seja, para desempenhar bem o seu papel constitucional, o PR não precisa de abusar dos seus poderes, como tantas vezes tenho registado. Vale a pena emendar a mão.

Adenda
Um leitor entende que «tal como qualquer cidadão, Marcelo Rebelo de Sousa deve ter uma péssima opinião sobre a Ministra da Saúde». Pois pode tê-la, mas ele não é "qualquer cidadão"; mesmo que a tenha, ele não pode, sendo PR, exprimi-la publicamente.

sábado, 1 de novembro de 2025

Contra a tentação presidencialista (6): Apresentação do livro em Coimbra

 


Depois de Lisboa, não podia faltar uma sessão de apresentação do meu livro em Coimbra, que se realiza na próxima sexta-feira pelas 18:00.

Quero agradecer desde já a disponibilidade da apresentadora - a Professora de Direito Constitucional da FDUC, Catarina Sarmento e Castro (que também foi juíza do Tribunal Constitucional e ministra da Justiça) -  e da Livraria Almedina / Estádio, pela cedência do seu acolhedor espaço, de que sou visitante regular.

Sejam bem-vindos os que decidirem vir.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Não concordo (53): Ventura agradece

1. Discordo da ideia de promover a dissolução do Chega, ao abrigo da norma cosntitucional que proíbe as organizações racistas ou de ideologia fascista. 

Entendo que essa proibição proibição constitucional tem por referência, por um lado, as organizações baseadas no ódio racial e apostadas em promovê-lo e, por outro lado, os regimes nacionalistas antidemocráticos e antiliberais, autoritários e repressivos do passado, de que o chamado Estado Novo foi referência entre nós. Ao contrário de outras constituições, como a alemã, a CRP não proíbe em geral partidos só por serem contrários à ordem constitucional instituída

2. Penso que, sem prejuízo do necessário combate político, uma democracia liberal, justamente por o ser, só deve promover a dissolução das organizações políticas que a põem em causa em caso de efetiva ameaça, quando recorram a meios de ação política à margem da Constituição.

Por isso, julgo que tal iniciativa não tem hipóteses de vingar e só vai permitir a Ventura armar-se em "perseguido" e tirar partido disso.

Adenda
Um leitor estranha a minha «complacência com o Chega», o que, porém, além de uma acusação pessoalmente ofensiva (basta ver o que tenho escrito aqui sobre isso), não é nenhum argumento contra a posição que acima defendo. Não é preciso estudar Direito constitucional nem saber de cor o art 18º da CRP, para entender que numa democracia liberal a liberdade expressão e de organização política é um direito fundamental que não pode ser restringido, muito menos cancelado, a não ser em situações-limite, quando tal seja estritamente necessário para salvaguadar a ordem constitucional. Não me parece que estejamos numa situação dessas. Penso que, em vez de tentar suprimir os inimigos da democracia, devemos combatê-los eficazmente.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (21): Entre a passividade e o ativismo presidencial

 1. Merece reflexão este alerta de Pedro Adão e Silva, esta semana, na sua habitual coluna no Público, na sequência da publicação do meu livro "Que Presidente da República para Portugal?", que ele fez o favor de comentar há dias na sessão de lançamento público, em Lisboa:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.»

Na verdade, sou igualmente contra um Presidente excessivo (como foi o caso de Marcelo Rebelo de Sousa) e contra o Presidente que se limitasse a fazer papel de corpo presente, como se fora um monarca puramente representativo e cerimonial, à imagem do que sucede nas monarquias constitucionais e em algumas repúblicas que as imitam nesse aspeto. Se não elegemos o PR para competir com a AR e o Governo, enquanto legislador ou governante paralelo, tampouco o elegemos para deixar na gaveta as suas funções enquanto garante do regular funcionamento das instituições, enquanto vigilante do respeito pela Constituição e enquanto moderador da conflitualidade política e dos excessos legislativos ou políticos. 

Pelo contrário, os seus poderes constitucionais são para serem usados, quando for caso disso e de forma prudente e responsável, em defesa dos valores constitucionais, da transparência e da responsabilidade política e da estabilidade política e governativa.

2. No entanto, a lógica do poder indica e a experiência comprova que o risco de excesso presidencial é muito maior do que o risco de défice ou de omissão, pelo que a principal preocupação deve ser a de cuidar das garantias contra aquele . 

As minhas teses sobre esse ponto crucial assentam em dois pontos, que não é preciso ter estudado direito constitucional para entender:

1º) - numa democracia constitucional o PR só tem os poderes enunciados na Constituição;

2º) - quando os poderes presidenciais afetarem a autonomia de outros órgãos de soberania (como sucede com o poder de dissolução ou o poder de veto legislativo), devem ser interpretados restritivamente e ser praticados com prudência e contenção, de acordo com os princípios da necesidade e da proporcionalidade. 

Sinteticamente,  como mostra a tabela abaixo, a posição do PR no nosso sistema político pode ser sumariada num conjunto de contraposições, entre o que o Presidente é ou pode fazer e o que ele não é nem pode fazer. 

É fácil ver na coluna da direita os riscos da "tentação presidencialista" que denuncio no meu livro.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (5): Um alerta pertinente

Merece ser lida (como, aliás, é usual neste autor) a coluna de hoje no Público de Pedro Adão e Silva, que ontem fez o favor de apresentar o meu livro Que Presidente da República para Portugal? na sessão de lançamento público, em Lisboa.

Eis um excerto com o argumento essencial, que regista um alerta sobre estas eleições presidenciais que tem de ser levado em conta pelos cidadãos inquietos com a saúde política da República:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.

Nos próximos tempos, andaremos consumidos por pronunciamentos de candidatos, por frente-a-frentes televisivos e por análises a sondagens, mas, nos 50 anos da Constituição, constataremos que o problema é mais profundo, o que obrigará a revisitar os poderes do inquilino de Belém: clarificando-os, limitando-os e reforçando a natureza parlamentar do regime.»



sábado, 18 de outubro de 2025

Não dá para entender (41): A questão da burqa

1. Não é que não haja bons argumentos para proibir o uso da burqa em público, que aliás levaram vários países a fazê-lo, na Europa e fora dela (incluindo países muçulmanos), e justificaram a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos de não considerar tal proibição incompatível com a Convenção.

O problema é que em Portugal se trata de responder a uma questão inexistente, não havendo notícia de uso frequente da burqa em alguma comunidade imigrante. Como mostram os dados recentes, a imigração orinária de países muçulmanos é pouco significativa, e a sua proveniência é de países onde o uso da burqa não é comum.

2. Assim sendo, a iniciativa do Chega agora aprovada na AR não passa de mais um degrau na construção de uma cruzada anti-islâmica ao serviço do discurso anti-imigração, xenófobo e islamófobo do partido populista. Por isso, é incompreensível que esta proposta, destinada a alimentar o ódio étnico e religioso, tenha colhido o pronto apoio da Iniciativa Liberal e do PSD, em mais um elo no processo de "cheguização" do centro-direita em Portugal.

Há alianças que comprometem.

Adenda
Um leitor entende que as pessoas devem ter a «liberdade de se vestir como quiserem e que a burqa só deveria ser interdita, quando forçada». Duas objeções: 1º - como todas, a liberdade no vestuário tem limites, e o rosto tapado coloca problemas de segurança e de identificação de pessoas com mandado de detenção; 2º - no caso da burqa, nunca se sabe se se trata de opção livre da mulher que o usa ou de coação familiar ou comunitária. A questão da sujeição feminina na cultura islâmica tradicional não pode ser descartada.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (3): A minha nota de apresentação


Eis um excerto da minha nota de apresentação do livro:


Adenda
O livro vai hoje para as livrarias.