sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

PESC Lisboa-Washington

A maioria governamental chumbou um voto de protesto contra a construção do muro israelita na Cisjordânia, universalmente condenado, salvo em Washington, um protector de todas as arbitrariedades de Telaviv. Ficámos a saber que a dependência da actual maioria governamental em relação aos Estados Unidos é tal, que agora até os mimetizamos no seguidismo em relação a Sharon. Em vez de termos uma PESC europeia temos uma PESC com a Secretaria de Estado norte-americana.
São actos destes que encorajam Israel na sua opção guerreira e que tornam a guerra infinita. Não se pode esperar dos palestinianos que não resistam à violência bruta da ocupação com a violência. Trata-se de elementar legítima defesa.

Vital Moreira

Fuga para a frente (II)

O texto de Pacheco Pereira (ver post precedente) é provavelmente um dos mais impressionantes depoimentos sobre a grande mistificação da guerra do Iraque. Ele declara compartilhar das «outras razões» – ou seja, as verdadeiras e escondidas – «por que Bush e Blair quiseram ir para a guerra antes sequer de encontrarem o enganoso pretexto e legitimação nas ADM». A culpa do comprometedor engano, subentende-se, foi dos Powell e outros “multilateralistas” que condicionaram a determinação dos Rumsfeld/Wolfowitz e obrigaram Bush a procurar pretextos susceptíveis de impressionar os aliados e as Nações Unidas. A conclusão a tirar, nesta lógica, é que os Estados Unidos foram demasiadamente condescendentes com a opinião alheia...
Por mim, sempre entendi que a guerra foi desencadeada por motivos diferentes dos que foram invocados, designadamente uma afirmação imperial de força perante o mundo árabe, a vingança do 11 de Setembro sobre o "bode expiatório" mais vulnerável, a alteração da relação de forças no Médio Oriente, aliviar Israel da pressão palestiniana, assegurar o controlo dos recursos do petróleo da região, penetrar na esfera de influência da Europa e da Rússia, etc. Só que essas razões ou não podiam ser confessadas ou não davam para fazer “passar” a guerra. Por isso ela foi feita com base em motivos inventados – as ADM e as ligações ao terrorismo internacional – que a pudessem legitimar.
A pergunta crucial que resta é: numa democracia podem os governos enganar assim, de forma tão deliberada e acintosa, os parlamentos e a opinião pública numa decisão tão crucial como a de fazer a guerra?

Vital Moreira

Fuga para a frente

Ontem no Público, José Pacheco Pereira reconhece finalmente que Bush & Blair e todos os que apoiaram a guerra contra o Iraque (entre eles o próprio JPP) estão em maus lençóis porque o pretexto das ADM, «um dos principais argumentos a favor da guerra, era falso». E «lamenta muito todos os enganos à volta das ADM, em que quem defendeu a guerra participou».
Contudo, em vez de concluir que a guerra não devia ter sido feita, desde logo porque ilegítima, JPP conclui que o que esteve errado foi a invocação das ADM e não a guerra, devendo esta ter sido feita na mesma, mas somente com base nos seus verdadeiros motivos, ou seja, no seu entender, o 11 de Setembro e a luta contra o terrorismo.
Trata-se de uma evidente fuga para a frente.
Primeiro, sem o argumento das ADM não teria sido possível “vender a guerra” nem ao Congresso dos Estados Unidos nem muito menos ao Parlamento britânico, para não falara da "comunidade internacional". Só as ADM podiam “legitimar” a guerra, por que permitiam invocar o suposto “incumprimento” das resoluções da Nações Unidas por parte do Iraque – e é por isso que a falta delas não pode deixar de a deslegitimar.
Segundo, eram igualmente desprovidas de fundamento as acusações de ligação de Bagdad ao 11 de Setembro, à AlQaeda e ao terrorismo internacional. De resto, sabe-se hoje que a decisão de fazer a guerra é anterior ao 11 de Setembro. Invocar em primeira linha o problema do terrorismo, além de não chegar para justificar a guerra, teria tido o mesmo efeito deslegitimador quando se verificou que também era um falso pretexto. Agora, depois da ocupação, é que o Iraque se tornou um viveiro de terroristas!
Em conclusão havia as "boas" razões e as verdadeiras razões para justificar a guerra. Só que as "boas" razões não eram verdadeiras e as verdadeiras não eram "boas".

Vital Moreira

A estrela de Kerry

Depois das recentes vitórias destacadas em Estados do Sul (Virgínia e Tennessee) na campanha para a nomeação democrata às eleições presidenciais de Novembro nos Estados Unidos, J. F. Kerry tem praticamente garantida a ambicionada nomeação na convenção partidária de Boston, em Julho. Os seus concorrentes vão desistindo (agora o General Clark). O próximo a sair da corrida poderá ser a anterior favorito, Howard Dean, se Kerry o vencer, como parece certo, no Wisconsin, um Estado tradicionalmente alinhado com a esquerda democrata, e onde aquele parecia levar vantagem à partida.
Kerry passa portanto a ser o depositário das esperanças dos que apostam na derrota de Bush. A sua fulgurante ascensão desaponta a estratégia bushista, que apostava numa prolongada e debilitante luta dentro do campo adversário.
Vale a pena começar a seguir o candidato democrata. Aqui está o seu website oficial, bem como o seu blogue.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

Prado Coelho e a ironia de Mello

Mas não foi apenas este cruzamento de experiências no Corte Inglés (ver post abaixo) que me levou a referir a crónica de Prado Coelho. É que este meu velhíssimo amigo fez questão de aproveitar a insólita oportunidade para mostrar a sua discordância com aqueles que têm criticado as declarações de José Manuel de Mello sobre a dissolução de Portugal na Ibéria. Pelos vistos, a suposta e penetrante ironia de Mello teria passado completamente despercebida aos espíritos obtusos como eu. Ora, o meu problema não foi ter achado que Mello defendia a União Ibérica (até sou insuspeitíssimo na matéria, pois já fui insultado como suspeito de iberismo) mas não ter achado graça absolutamente nenhuma à boçalidade das suas larachas – e à sobranceria do estilo com que um herdeiro do proteccionismo industrial salazarista mostra hoje o seu ressentimento.
O que acho espantoso é como um intelectual sofisticado e cosmopolita como Prado Coelho se mostra sensível a um “nonsense” tão grosseiro. Será que leu mesmo a entrevista de Mello ao Expresso? Ou será que não a tendo lido ficou triste por ter perdido a oportunidade de ser o primeiro a reagir ao que nela se diz? A culpa será mesmo do inevitável “sistema mediático”, de que Prado Coelho é hoje, aliás, um dos cronistas mais visíveis (como Pacheco Pereira, esse outro crítico feroz do dito sistema)? Ou será ainda que, afinal, o sr. Mello e os intelectuais que o incensam têm uma capacidade de sedução a que não escapa o tão volúvel Eduardo?

Vicente Jorge Silva

Aventuras no Corte Inglés

O meu querido amigo Eduardo Prado Coelho escreve hoje uma inspirada crónica no Público sobre a sua experiência metafísica numa “descida helicoidal” no parque de estacionamento do Corte Inglès lisboeta. Como não tenho automóvel nem possuo sequer carta de condução não pude aceder a tal aventura aterradora. Em contrapartida, vivi ali outra experiência digna do “Playtime” de Tati, quando as máquinas registadoras electrónicas se avariaram em todo o centro comercial e o pagamento com cartão de crédito se tornou inviável.
Perguntei se não havia aquelas velhas e simpáticas maquinetas manuais que ainda existem em alguns restaurantes. Não, não havia. Era uma coisa ultrapassada, impensável até, numa catedral de consumo moderníssima como aquela. Limitaram-se a propor-me que escrevesse a protestar e a apresentar sugestões. A hipótese era apenas – uma vez que eu não dispunha de euros suficientes na carteira – o pagamento por cheque. E por improvável que parecesse, eu ainda tinha um caderninho de cheques na minha pasta.
Preenchi um, apresentei o meu bilhete de identidade, declinei o meu número de telefone e a morada, mas pelos vistos a minha aparência não oferecia garantias suficientes de credibilidade e liquidez bancária. Passou-se um tempo razoável de inquirição e pedidos de esclarecimento até que, já irritado, vi-me coagido a recorrer a uma arma que rarissimamente utilizo: o meu cartão de deputado. Consegui então efectuar o pagamento, entre sorrisos amarelos de vendedor e consumidor, mas jurando a mim mesmo nunca mais voltar a pôr ali os pés. Será este o preço da modernidade, quando as funções electrónicas entram em colapso e o consumidor fica desamparado face à desconfiança humana do vendedor (e que foi certamente instruído para isso)?

Vicente Jorge Silva

Madeira: Garajau contra Jardim

Desde 15 de Janeiro, publica-se na Madeira um quinzenário "sério e cruel", com vocação crítica e satírica em relação ao sistema jardinista. É a primeira iniciativa do género a ser tentada em muitos anos naquela região autónoma (mas que autónoma só o é para assegurar a inimputabilidade do tiranete local). As duas primeiras edições foram um sucesso assinalável: a primeira vendeu mais de 5 mil exemplares, a segunda terá vendido mais de 3 mil, o que constitui um facto digno de nota à escala madeirense. Garajau, nome de um pássaro associado aos tempos da descoberta da ilha.
O jornal chama-se "O Garajau" e ainda não se vende fora da Madeira, por razões óbvias. Dificilmente teria leitores fora do círculo mais familiarizado com o quotidiano regional. Mas valeria a pena conhecê-lo, mesmo assim. É um gesto raro e corajoso, protagonizado por dois cavaleiros andantes do inconformismo madeirense: Gil Canha e Eduardo Welsh. E para abrir o apetite, permito-me citar alguns excertos de uma crónica da secção Cartas de Cuba, que enviei para a terceira edição do Garajau, amanhã nas bancas do Funchal e arredores.

O prisioneiro de si mesmo
Percebo que muita gente queira ver Jardim pelas costas (...) e persista em alimentar a ilusão de que só com a sua passagem à reforma, na cena madeirense, será possível a nossa terra enfrentar o futuro a partir de bases novas, mais saudáveis, mais democráticas e mais libertas da hipoteca de um poder pessoal asfixiante e autoritário.
Mas, como todas as ilusões, esta tem um preço: se Jardim saísse de cena no momento escolhido por ele, deixando atrás de si um rasto de homem invencível e providencial, a Madeira estaria condenada por tempo indefinido a viver à sombra do seu mito, ainda mais prisioneira dele do que foi até agora.
Se Jardim saísse de cena com a marca da infalibilidade política, entregando a gestão dos custos do seu reinado aos que lhe sucedessem na governação (fossem eles quais fossem), correríamos o risco de o ver lembrado e desejado como uma espécie de D. Sebastião. Ora sabemos como o sebastianismo se tornou uma doença mórbida que alimenta a fixação dos portugueses na fatalidade, na impotência, na descrença ou na espera de alguém que possa resolver, por artes mágicas, os seus problemas.
A Madeira só se libertará de Jardim e do jardinismo se souber assumir a necessidade da sua rejeição, se perceber finalmente que o rei vai nu, que o sistema implantado na Região ao longo dos últimos vinte e sete anos é um sistema podre, autoritário e clientelista, uma rede de interesses em que um punhado de parasitas e sanguessugas fez do enriquecimento fácil e do servilismo político à vontade do chefe o único modo de vida com sucesso garantido no arquipélago.
A Madeira só se libertará de Jardim se souber e quiser exprimi-lo através do voto popular – por mais condicionadas que estejam (como efectivamente estão) as condições de exercício da democracia na Região. E a verdade é que hoje são cada vez mais visíveis os sinais de desencanto e cansaço com o poder jardinista. As próximas eleições regionais constituem, por isso, uma oportunidade de mostrar, pelo menos, um claro cartão amarelo, não apenas a Alberto João Jardim mas ao sistema que ele fabricou – e de que se tornou, finalmente, prisioneiro.
Já se percebeu que Jardim não sai, apenas porque não pode sair. Porque não tem saídas, porque se tornou prisioneiro de si mesmo e da rede que teceu à sua volta. Encerrado na sua Bastilha de cartão e de cordel, rodeado pelos seus soldadinhos de chumbo, Jardim está condenado a ver a ilusão do jardinismo esboroar-se à sua frente. Está nas mãos nos madeirenses libertarem-se definitivamente disso.

Vicente Jorge Silva

Por uma boa causa

Fico sempre intrigado quando uma mulher diz que se vai despir por uma boa causa. Acho curioso, por exemplo, que essa pergunta seja habitual em questionários de vedetas. Reparem: a resposta nunca é negativa. "Considera a hipótese de se deixar fotografar nua?", "Sim, se for por uma boa causa". O que deixa implícito que a interrogada já considerou o assunto, já ponderou os prós e os contras e concluiu, sim, sim, sem dúvida, estou disposta a despir-me toda à frente de pessoas que não conheço e aparecer em público aos olhos de muitos mais desconhecidos e alguns conhecidos, como o avô, a mãe e o vizinho do 2º-esq que costuma mandar-me uns olhares estranhos.

Estranho é que esta pergunta não seja feita a homens. Mesmo em revistas especializadas em bikinis, literatura light e densamente documentadas sobre todas as vantagens de um evax ultra fina e segura, a questão não é colocada a homens, o que nos faz pensar. Não pode um homem despir-se por uma boa causa? Porque não? Se me apetecer despir todo para que o Benfica ganhe o campeonato, não haverá uma revistinha disposta a publicar o exclusivo? E ser estritamente para mulheres é sintoma misógino ou, ao contrário, um último reduto severamente protegido por um movimento secreto de emancipação feminina? O mistério continua.

O facto de ser uma área onde "menino não entra" torna-se ainda mais perturbante quando pensamos no leque de causas pelas quais as mulheres parecem dispostas a despir-se: do cancro da mama à venda de peles de animais, passando por campanhas que incentivam a beber leite ou manifestações contra a guerra, é notável observar que há sempre uma ou um milhar delas dispostas a despir-se pela boa causa. Infelizmente, a vida tem ironias tramadas. Ou muito me engano - e uma vez que as guerras são normalmente feitas por homens - ou, se continuar a haver milhares de mulheres nuas contra a guerra, é provável que esta continue. Com um sorrisinho nos lábios.

Infelizmente, e apesar da diversidade, ainda há boas causas que não mereceram o privilégio de ter quem se dispa por elas. Interrogo-me ansioso: para quando o dia em que Ferreira Leite fará topless em nome do défice, Odete Santos marcará posição pelo Teatro de Revista, para quando um Morais Sarmento nu pela subida de audiências do canal 2, Durão despido pelo TGV ou Ferro em pelota pela inocência de Pedroso? Até porque nem todos os políticos têm votado esta matéria ao ostracismo. Aliás, está a chegar a altura do ano em que Alberto João Jardim apresenta ao país as suas novas ceroulas. Embora mantenha segredo sobre as causas por que o faz.

Contrariando o eventual nojo que o leitor possa estar a sentir pelo parágrafo anterior, aqui vai uma singela imagem para desopilar: Marisa Cruz nua para levantar a moral portuguesa. Notem bem que nem sempre as palavras "nua" e moral" surgem tão harmoniosamente na mesma frase.

O que me leva à definição dos dicionários Porto Editora para a palavra "causa". Das duas uma, ou é tudo o que determina a existência de uma coisa ou acontecimento; ou é tudo aquilo que produz um efeito. Ora bem, a mim sucede que a visão de mulheres sem roupa provoca, de facto, um efeito evidente - mas atormenta-me pensar que tal ocorrência possa não corresponder exactamente ao fim que as ditas cujas tinham em mente quando se despiram. Deixará a causa de ser boa por causa disso? Deixo esta pergunta para reflexão.

Luís Filipe Borges

Duzentos anos depois de Kant

Passam dois séculos sobre morte de Imanuel Kant (1722-1804), um dos maiores e mais influentes filósofos da modernidade, que como nenhum outro deu estatuto filosófico ao Iluminismo e que consolidou as bases do racionalismo, da autonomia individual, da moral universal, dos direitos humanos, do Estado de Direito e mesmo da ideia da “cidadania universal”.
Os centenários do nascimento e da morte são desde há muito ocasiões privilegiadas para revisitar e reavaliar os grandes pensadores do passado (e não só). O Público de hoje dedica atenção devida ao autor da “Crítica da Razão Pura” (ed. revista, 1787). Duzentos anos depois do desaparecimento, na antiga cidade alemã de Koenigsberg, no Báltico oriental (hoje o enclave russo de Kaliningrad), onde nasceu e passou toda a vida, o seu pensamento mantém-se incontornável, porventura engrandecido. Se existem filósofos cujas ideias tenham tido influência relevante na esfera da “vida prática”, entre eles avulta seguramente o idealismo kantiano, ainda mais visível depois do eclipse do pensamento marxista, por natureza dotado de uma inerente vocação para a acção.
Na Internet está tudo sobre o grande filósofo. A título de exemplo: esta excepcional página de Steve Palmquist, em inglês, e esta da "Sociedade Kant Brasileira", em português, bem como este novíssimo site da Universidade de Colónia, com um "Kant-Korpus" on line, em alemão.

Vital Moreira

Crime sem pena

A proposta hoje feita na Visão pelo Prof. Freitas do Amaral sobre a questão do aborto verbaliza a ideia de despenalização sem descriminalização (para além dos limitados casos já contemplados no Código Penal), mediante o recurso a uma presunção de "estado de necessidade desculpante" em favor da mulher, presunção que só seria elidida por "prova concludente em contrário" do Ministério Público.
No entanto, não é provável que a sugestão tenha êxito, devendo ser rejeitada tanto pela direita, que não quer despenalização nenhuma, como, sobretudo, pela esquerda, que quer afastar desde logo o estigma da criminalização do aborto, o qual permaneceria como ameaça sobre as mulheres, dada a margem de incerteza sobre a eficácia da tal presunção (para além da humilhação do próprio procedimento penal). Tal como noutras matérias, aparentemente os tempos não são propícios para a metodologia do "consenso possível".
É pena, sobretudo para as vítimas da actual situação.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

"Boticário de província"

O meu artigo na 3ª feira no Público sobre as restrições legais na criação de novas farmácias desencadeou a fúria trenga de um “boticário de província”, o qual, depois de me acoimar contraditoriamente de «comuna empedernido» e «liberal empedernido», entre outros mimos – como certa gente pensa que o ataque pessoal gratuito pode substituir a vacuidade dos argumentos próprios!... –, se esforça depois ingloriamente para alinhar duas ou três considerações irrelevantes para defender o actual regime.
É fácil desmontar o débil aranzel, o qual de resto silencia os pontos mais comprometedores da situação existente (como a insuficiência de farmácias, os muitos casos de propriedade fictícia e o seu valor especulativo no mercado).
Assim, como refere hoje mesmo o Diário Económico, um estudo encomendado pela Comissão Europeia revela que Portugal está entre os países onde o acesso à actividade farmacêutica (incluindo o regime de criação de farmácias) é dos mais restritivos. Tirando o caso especial da Suécia, onde as farmácias constituem um monopólio do Estado, trata-se de países do sul da Europa, onde a tradição corporativista e proteccionista é mais forte. Nos países onde essas restrições são maiores, nomeadamente as de carácter geográfico e populacional, elas estão a ser atacadas pelas respectivas autoridades da concorrência (Espanha, Itália, por exemplo).
O argumento de que essas restrições visam garantir a existência de farmácias no interior e nas zonas rurais é perfeitamente hilariante. É evidente que só existem candidatos nessas zonas porque elas são rentáveis mesmo aí. A abolição das restrições só faria aumentar o seu número. Há muitos farmacêuticos que gostariam de ter a sua farmácia, mesmo com reduzida rentabilidade.
Nas minhas controvérsias sobre este assunto costumo lançar um desafio aos defensores do “status quo”: por que não um referendo a todos os farmacêuticos sobre o assunto?
Não conheço nenhum beneficiário de um privilégio que não defenda que não se trata de privilégio, mas antes de uma forma de defesa do “interesse público”. De vez em quando, os privilégios corporativos podem ter certas vantagens sociais como "efeitos colaterais". Neste caso, nem isso. O malthusianismo na criação de farmácias não favorece ninguém, a não ser os actuais proprietários, com prejuízo de toda a gente, designadamente os demais farmacêuticos, o público em geral e o Estado. Pura vantagem particular; pura lesão do interesse público.
A abolição dos referidos limites só teria dois efeitos: (i) aumentar o número de farmácias e fomentar a competição entre elas, para bem do público; (ii) diminuir o valor especulativo do trespasse de farmácias, facilitando a sua transmissão e pondo fim a um escandaloso enriquecimento sem justa causa dos seus proprietários.
Desnecessário será dizer que prefiro um mercado bem regulado do que um arcaico corporativismo protegido, que é o que temos no sector farmacêutico desde o Estado Novo. Como deixa entender o referido estudo da Comissão Europeia, este regime não tem muito futuro à sua frente e os seus beneficiários sabem-no. Por isso perdem a tramontana sempre que alguém mostra a sua irracionalidade.

Vital Moreira

«O novo espaço público dos blogues»

Numa das apostilas ao seu original artigo de hoje no Diário de Notícias sobre a regulação do "direito ao amor", Miguel Poiares Maduro, hoje no Luxemburgo como "advogado-geral" no Tribunal de Justiça da Uinão Europeia, discorre com propriedade sobre os blogues nacionais.
Vale a pena registar a sua opinião neste mesmo "espaço público" a que ele se refere:

«Os Blogs
Nesta coluna de "blogs" nunca falámos dos verdadeiros blogs, os originais! E, no entanto, este é um dos fenómenos mais interessantes dos últimos anos em Portugal: a emergência de uma nova comunidade crítica e de uma opinião livre de uma marca política partidária. Sejamos honestos, muita da melhor opinião que se escreve em Portugal hoje em dia encontra-se nos blogs. Importados dos Estados Unidos, começaram por trazer uma nova opinião de direita ao espaço público português, mas hoje parecem ser os blogs de esquerda que estão mais activos (a isso não será estranho o facto de, felizmente, muitos dos bloguistas de direita terem passado a colaborar, igualmente, na imprensa escrita, o mesmo não tendo sucedido, da mesma forma, à esquerda). Se quisesse ser provocador, diria que a direita chegou primeiro mas se aburguesou e que a esquerda chegou mais tarde mas é mais resistente. O que mais admiro no espaço público dos blogs, no entanto, é que a defesa de um discurso ideológico marcado e transparente coincide com a manifestação de uma notável liberdade face aos campos tradicionalmente definidos pelo discurso partidário e da opinião escrita dominante em Portugal. Simultaneamente, o assumir claro de um debate ideológico não impede a emergência de um notável respeito recíproco entre bloguistas com posições bem diferentes (que, inclusive, desenvolvem amizades e se citam mutuamente). Se há um verdadeiro espaço público em Portugal (no sentido Habermasiano de procura de um espaço de discurso universal, livre e transparente) ele encontra-se, paradoxalmente, no espaço virtual da nossa Internet.»

O império do futebol

Num jantar em casa de amigos brasileiros, a residir temporariamente em Portugal, fiquei estupefacta com esta revelação: a maior surpresa que tinham tido quando há dois anos aqui desembarcaram foi o excesso de futebol no nosso quotidiano. Tendo em mente o relevo do futebol no Brasil, até pensei que não tinha ouvido bem. Pedi que repetissem. Era isso mesmo. Confirmado. Adivinhando a razão do meu espanto, explicaram-me:
“Os brasileiros entusiasmam-se até mais do que vocês, mas com um jogo, um campeonato. No final, desligam, vão à vida. Aqui é o que conta no dia do jogo, no dia seguinte, todos os dias. São os jornais que se vendem. É a obsessiva presença na televisão. É o peso que tem na vida política. É o que se discute no café, em casa, no autocarro, na escola, onde quer que seja. É o tema sobre o qual mais pessoas têm mais informação. É aquilo que mais vos mobiliza, vos apaixona, a toda a hora, sempre. Dir-se-ia que o futebol é a única causa verdadeiramente nacional em Portugal”.
Ontem, ao ouvir o relevo dado a umas declarações de Pinto da Costa ao vivo (sem Bobby e sem Tareco), repetidamente pré-anunciadas com um chamativo «Ao Ataque» no noticiário principal da RTP 1, “a televisão de serviço público”, lembrei-me desta história. Sabe-se lá porquê!

Maria Manuel Leitão Marques

Se fosse eu, inquietava-me

1. Mudar o treinador que ganha?
Depois de Jorge Coelho se ter disponibilizado há dias para liderar o PS num futuro não especificado, foi agora a vez de João Soares anunciar também a sua pré-candidatura, este já com calendário para o desafio. Curiosa é a justificação. Segundo ele, «a questão da liderança do PS deve colocar-se no final deste ano, após o PS sair vitorioso das eleições europeias e regionais».
Segundo as regras da experiência, se uma equipa ganha não há razão para mudar de treinador. Pelos vistos no PS esta regra não goza de universal acolhimento.

2. Alfobre de candidatos
No PS não faltam candidatos autopropostos para tudo e mais alguma coisa. «Estão a acontecer coisas esquisitas no PS», diz Clara Ferreira Alves a propósito disso. Ela carrega naturalmente nas tintas. Mas se eu fosse do partido inquietava-me. Mesmo não sendo, preocupo-me...

3. Sousa Franco?
Parece confimar-se que a lista do PS para as eleições europeias vai ser encabeçada por Sousa Franco, que foi Ministro das Finanças do primeiro Governo de António Guterres, tendo saído bastante zangado. Há-de haver alguma lógica convincente nessa escolha. Mas como ela não está à vista, seria bom que alguém a explicasse...

Vital Moreira

Post Scriptum

Diferentemente do que pressupõe o Post Scriptum (um blogue recente, infelizmente anónimo), quando diz – benevolamente, aliás – que o nosso CN é «um blogue tipicamente PS», nós não somos todos do PS, nem sequer a maioria. De resto, não nos importamos de o ver qualificado como «livre, desorganizado, amigável». É para ser assim mesmo. Depois, cá por mim, entendo que acreditar «em princípios e ideias» não é «péssimo para quem quer ser governo». Bem pelo contrário, é a falta deles e delas, e de políticas correspondentes, que costuma ser a receita para uma efémera passagem por S. Bento. Por último, embora não sendo prosélitos de nenhuma missão, acredito porém que a convicção nos princípios e a razão das ideias constituem a melhor alavanca para o persuasão dos outros. Não escrevemos para os peixes...

Maria Manuel Leitão Marques

Wishful thinking

«Se eu teria apoiado a guerra se soubesse (ou estivesse convencido) de que não existiam ADM [armas de destruição maciça]? Não.» Assim escreveu, sem "ses" nem "mas", Pedro Mexia, agora regressado ao seu "Dicionário do Diabo" (post de 06.02.).
É uma declaração digna de registo, tanto mais que idêntica declaração está por fazer por quase todos os outros que apoiaram a guerra no Iraque por causa das tais armas (e só elas a poderiam legitimar, se existissem) mas que agora "assobiam para o ar" com inexcedível cinismo. Por isso só pode ser louvada a atitude de PM.
Falta porém admitir também que, face à fragilidade ou inverosimelhança das alegadas provas oportunamente apresentadas por Bush & Blair - para mais não corroboradas pela inspecção das Nações Unidas no terreno -, acreditar nelas foi uma expressão de “wishful thinking” e que a posição justa foi a dos demais membros do Conselho de Segurança, liderados pela França e pela Alemanha, que reclamaram que, antes de se ir precipitadamente para a guerra, se desse mais tempo à missão de inspecção no Iraque para descobrir a verdade.
De facto, a controvérsia da guerra não foi entre quem dizia que havia armas e quem dizia que não havia (pois também ninguém podia asseverar que elas não existiam), mas sim entre os que interromperam unilateralmente as inspecções, dizendo que já tinham provas mais do que suficientes para avançar para a guerra imediata e os que, não convencidos, eram pela prossecução das inspecções que até então nada tinham descoberto.
A verdade dos factos deu razão aos segundos, que foram miseravelmente vilipendiados pela maior parte dos partidários da guerra. O mínimo que podemos fazer agora é vindicá-los. O que deve ficar para a história deve ser a verdade dos factos e não a mistificação do partido da guerra.

Vital Moreira

terça-feira, 10 de fevereiro de 2004

Apostilas das terças

1. "Sunshine rule"
O inspector-geral do Ensino Superior deu conta da existência de fraudes nos pedidos de bolsas de estudo. Com o sistema fiscal que temos e a falta de controlo dos elementos fornecidos pelos requerentes, a fraude é uma tentação. Só o escrutínio público pode atenuá-la. Todos os beneficiários de subsídios públicos deveriam ser obrigados a autorizar a publicitação dos seus pedidos e das suas declarações de rendimentos, como condição do seu recebimento.

2. De mistificação em mistificação
Numa entrevista televisiva, Bush voltou a defender a "inevitabilidade" da guerra contra o Iraque, invocando a "ameaça" que Bagdad representava. Ora, como se não bastasse a confirmação de que as tais "armas de destruição maciça" não existiam, o chefe da CIA veio há dias comunicar que a agência "nunca declarou que o Iraque constituía uma ameaça iminente". Bush vai-se assim enterrando de mistificação em mistificação até ao total descrédito final.

O intruso

Navegava a malta do Mar Salgado no seu remansoso rumo de centro-direita moderada quando de súbito lhe caiu a bordo um peso pesado da direita dura. Menos prudente e auto-contido do que Portas no Governo, V. Lobo Xavier julgou ter campo livre para exprimir despejadamente as suas peculiares posições branqueadoras do Estado Novo («a propalada falta de liberdade...») e do colonialismo português («das melhores colonizações do século XX...»). Teve a resposta devida “on the spot”, à conta de Pedro Caeiro e de Tiago Reis Marques.
Rotunda vitória da tripulação democrata. A operação de revisionismo histórico-político foi repelida e o intruso posto na defensiva, às arrecuas. Ainda bem. Assim, podemos comemorar mais confiantemente os 30 anos do fim da ditadura e do colonialismo.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

Medalha ao sofrimento

Eis um excerto das declarações do judoca João Pina, em quem a tribo lusitana deposita esperanças na obtenção de uma medalha olímpica, ao jornal Record de 9 de Fevereiro:


“O meu peso normal ronda os setenta e poucos quilos [para 1,76 m de altura] e é nesta fase que rendo mais nos treinos. Só que, a 15 dias das competições, sou obrigado a perder peso para entrar na categoria dos 66 kg e isso causa-me muito sofrimento. Antes de vir para Paris
[para um torneio pré-olímpico, onde o atleta conquistou uma medalha de bronze], as refeições foram mínimas [uma frugal salada pode servir de repasto] e, para o peso baixar, nem sequer se pode beber água [João Pina chega a beber quase três litros de água depois de se pesar para uma competição, a fim de compensar a privação de líquidos por que passa nos dias anteriores]. Este tipo de coisas não dá saúde a ninguém. Isto mata.”
Após os Jogos Olímpicos de Atenas, João Pina quer mesmo subir à categoria dos 73 kg, já que a manutenção artificial nos 66 kg está a deixar o atleta psicologicamente afectado. É que, “se o peso não estiver equilibrado com as necessidades do organismo, aumentam os riscos de lesões e o sistema imunitário fica debilitado. Infelizmente, o judo [de competição] tem de conviver com este tipo de sacrifícios”.

Terá mesmo? E os dirigentes desportivos nacionais, também terão? E a medicina desportiva, também terá? Vale tudo para caçar medalhas?
Fotografia de David Finch (http://www.judophotos.com)

Luís Nazaré

Marx e Nietsche na BBC ...

Na sua coluna no Expresso, pretensiosamente designada “Antes do Tempo” mas que se limita a expor semanalmente as posições do mais chão conservadorismo, de que se tornou um dos expoentes entre nós, João Carlos Espada ataca a BBC a propósito de Relatório Hutton. Declara peremptoriamente que ela já não é o que era e que se tornou cúmplice dos inimigos das tradições e instituições ocidentais e das sociedades livres em que vivemos! Nem mais.
Ora o episódio em causa só revela a excepcionalidade da BBC como órgão de informação independente e responsável. A agora comprovada falta de um dos seus jornalistas seria totalmente irrelevante, de tão banal e corriqueira nas televisões em geral, se não estivesse em causa essa estação. E a sua direcção só foi acusada de não ter “verificado” a história, não de ter deliberadamente encoberto a distorção da verdade factual. Apesar disso, ela demitiu-se, numa atitude de responsabilidade que seria de todo improvável em qualqer outra latitude.
JCE considera que no caso a BBC infringiu o “dever moral e intelectual de procurar a verdade”. Mas se a única falha da estação foi não ter controlado a veracidade de uma informação, apesar de provinda de fonte credível – ainda por cima altamente provável em si mesma -, então que dizer de Bush e de Blair, bem como de todos os jornais e televisões que os apoioaram, que basearam a sua decisão de guerra em “informações” claramente improváveis (como a peregrina tese do ataque em “45 minutos” adoptada pelo governo britânico) e que, não só não se deram ao cuidado de as mandar verificar antes de partirem para a guerra com base nelas, como mandaram interromper propositadamente a missão da inspecção das Nações Unidas que em nada confirmava essas informações? Neste contexto, falar de “desonestidade perante os factos” na questão da guerra do Iraque assenta muito melhor aos críticos da BBC do que a ela.
Ao pé da generalidade das televisões norte-americanas – e nem sequer é previso falar na cadeia Fox, esse modelo de falsificação militante dos factos em defesa das “sociedades livres” –, a BBC não tem de receber lições de objectividade, isenção e independência. Incluindo a independência em relação ao governo em funções (coisa bem difícil nas televisões públicas) e aos ideólogos da guerra que gostariam de a ter, tal como tiveram as outras televisõoes, ao serviço da propaganda bélica, incluindo a mais desavergonhada manipulação da informação. Não é seguramente por acaso que nos Estados Unidos mais de 80% da população acreditava nas patranhas sobre o arsenal iraquiano das armas de destruição maciça, que lhe eram diariamente servidas nos média, havendo mesmo uma forte percentagem a acreditar que elas foram usadas na guerra!
É por isso que Bush & Blair, bem como os seus ideólogos, estão a ser impiedosamente desmentidos pelos factos (e, mesmo assim, não se demitem...), enquanto a BBC, como ontem refere no El País o insuspeito Mário Vargas Llosa, permanece como um padrão de referência na isenção informativa, na independência política e na responsabilidade perante o público, mesmo quando um dos seus jornalistas se engana e ela é fundadamente acusada de ter falhado numa situação concreta.
No meio da histeria guerreira da generalidade dos média em relação ao Iraque, a BBC foi uma das excepções reconfortantes, em que o "respeito pela verdade dos factos" levou a melhor sobre o alinhamento na doutrinação belicista oficial. A hostilidade dos partidártios da guerra é por isso um elogio.

Vital Moreira

Uma perda para a UE

A recusa do congresso do Partido Popular Europeu – que conta ganhar as próximas eleições europeias – em apoiar qualquer candidato a presidente da Comissão Europeia que não pertença à sua área política vem tornar diminutas as hipóteses de António Vitorino em ascender ao cargo. Por outro lado, como o Governo já tornou claro, embora de forma não oficial, que não pretende reconduzi-lo como membro português na próxima Comissão – apesar de dizer que apoia a sua candiatura à presidência da mesma –, parece haver poucas perspectivas para ele poder concretizar a sua confessada “tentação” em ficar um segundo mandato em Bruxelas.
É pena, se tal se verificar. A UE só pode perder com a sua partida. No mandato que agora se aproxima do fim o comissário português tem a seu crédito, entre muitas coisas, a construção do espaço europeu de justiça e segurança, cuja importância é desnecessário encarecer, e teve papel primordial, porventura menos evidente mas não menos importante, na concepção e preparação da Carta de Direitos Fundamentais da UE e no projecto de Constituição Europeia.
Dado que, depois do falhanço da cimeira de Bruxelas, a Constituição Europeia ficou adiada, é de recear que António Vitorino já não tenha oportunidade de acompanhar, como comissário, essa tarefa até ao fim. Trata-se de uma injustiça, ele que bem merece figurar, como poucos, entre os “pais fundadores” da Constituição Europeia e tem assegurado sem dúvida um lugar de relevo na história do desenvolvimento institucional da UE. Ainda se houvesse muitos como ele nas instituições europeias...
Vital Moreira

domingo, 8 de fevereiro de 2004

Chama-me puto.

Tenho 26 anos. Da primeira vez que me chamaram "senhor" tinha 17 e assustei-me. Uma senhora num autocarro lotado, ao ver-me atrapalhado com os livros de liceu, disse para alguém: "Deixa passar o senhor". Tranquilizei-me com as inúmeras dioptrias da mulher que transformavam seguramente a minha barba rala num mato grosso de camionista e me acrescentavam - aos seus olhos - uma ou duas décadas.
9 anos depois, com muito mais barba e aqueles incómodos pêlos que começam a conquistar território no nariz, ainda gosto que não me tratem por senhor. Prefiro ser a mascote, o amigo mais novo, o companheiro caloiro, gosto de ser "o puto".
Agora, vindo orgulhosamente daqui, chego a esta casa nova. Venho com a mala carregada de boas intenções, mas também dúvidas. Não sou um pensador político como qualquer um dos nomes no cabeçalho. Sei também que não tenho a verve deste, a cultura daquele ou a paixão daqueloutro. E nem pretendo, sequer, insinuar que estou num meio onde encontrem uma qualquer virtude. Não, a coisa mais provável que encontrarão neste "meio" a que me refiro será o meu próprio umbigo.
Mas, depois de um mês de descanso electrónico, regresso com prazer às lides virtuais. Dá-me gozo - e compreenderão que dê - receber um convite electrónico do Vital, de quem li tantos livros durante o meu curso de Direito. É como um aspirante a monitor que recebe um convite do regente. Agrada-me partilhar conversas com o Luís Nazaré, que aprendi a admirar por motivos bem mais prosaicos (o Benfica) ou partilhar um cabeçalho com o Vicente que - sem o saber - deu título à minha crónica de 3 anos num semanário açoriano onde também era o menino da equipa (chamava-se "Geração Rasca"). E, sobretudo, alegra-me sobremaneira voltar a integrar uma equipa com o meu pai profissional, amigo e mestre Luís Osório. Espero que estes e os outros me ajudem a resolver uma angústia que me persegue: a da razão à direita e do coração à esquerda.
Tenho tempo. Afinal - nunca como agora - fez tanto sentido que me chamem "puto".

Luís Filipe Borges

Bem-vindo LFB

Luís Filipe Borges é tudo menos um desconhecido no “Causa Nossa”. Colaborou no seu nascimento, suscitou uma nota de lamento e desafio do Luís Osório, já publicou aqui um belo post como convidado. Agora ele passa a integrar de pleno direito o nosso blogue.
Para nós, representa um notável “reforço de inverno” a entrada deste jovem açoriano, com um curso de Direito trocado em boa hora pelo jornalismo, pela poesia, pelo teatro, pela rádio, pela televisão, pelo cinema, pela ópera e também pela blogosfera (co-fundador do “Desejo Casar”), entre várias outras paixões por onde tem prodigalizado o seu talento (associado das “Produções Fictícias”, colaborador do “Inimigo público”, etc.).
Confessa que sonha ser pai e realizar uma grande metragem. Entretanto, aqui o temos a partilhar da nossa causa. Bem-vindo!

Os fundadores do CN

sábado, 7 de fevereiro de 2004

É proibido contestar

Enquanto na Grã-Bretanha o relatório Hutton - que ilibou Blair e censurou a BBC no caso da alegada manipulação governamental de informações sobre o Iraque - não cessa de ser questionado na imprensa, da esquerda à direita, pelas suas limitações e incongruências, em Portugal não falta quem se escandalize com essa natural controvérsia. O director do "Expresso" usa o editorial do semanário para declarar que a contestação do relatório assume uma «enorme gravidade» e que «a recusa das conclusões da Justiça representará o regresso ao vale-tudo: à lei da selva».
J. A. Saraiva é naturalmente livre de proclamar a sua fé nas conclusões do contestado relatório. O que não pode é invocar para ele, por duas vezes, a autoridade da "Justiça" (com jota grande e tudo). De facto, o inquérito não é um procedimento judicial nem o relatório é uma sentença. Meter aqui a justiça constitui uma inaceitável confusão. A Justiça não é para aqui chamada. O facto de Blair ter escolhido um juiz aposentado para efectuar o inquérito (para explorar a sua credibilidade) não lhe confere natureza judicial. E pelos vistos, não foi o juiz Hutton [na imagem] que emprestou o pretendido crédito ao relatório, antes foi ele que saiu desacreditado.
Por isso, qualificar de «intelectualmente desonesta» a contestação do referido relatório é, para dizer o menos, uma atitude despropositada (Saraiva diria "pouco honesta").

Vital Moreira

Os alvos do "Expresso"

As manchetes do "Expresso" contra o PS já dão para fazer colecção. O principal título da 1ª página da edição de hoje - «todo o dinheiro foi para o PS» - a propósito do destino do dinheiro alegadamente recebido pelo antigo presidente do município da Guarda (e pelo qual ele foi condenado há anos), pretende manifestamente insinuar que o dinheiro ilícito acabou na tesouraria daquele partido. Ora, lendo a própria peça fica-se a saber: (i) que uma parte do tal dinheiro beneficiou o clube desportivo da cidade, pelo que a notícia («todo o dinheiro...») é em parte falsa; (ii) mais importante, que o resto do dinheiro serviu para financiar as campanhas eleitorais do próprio autarca, e não propriamente o partido, pelo que a notícia («...foi para o PS») é pelo menos enganadora.
Como no caso está à vista, as piores falsificações podem ser veiculadas por meias verdades.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2004

Jardim em Lisboa?

Hoje, sexta-feira, dia 6, antes de partir para o meu fim de semana no Funchal, interrogo-me sobre quais serão as manchetes do Expresso de amanhã. Já que Marcelo Rebelo de Sousa não irá para a Comissão Europeia e Alberto João Jardim recusa ser presidente da Assembleia da República - conforme os próprios se encarregaram de afirmar de forma veemente -, que grandes cachas jornalísticas nos serão servidas, pela mão invisível do impagável ministro Arnault ou outro confidente privilegiado da direcção do mais lido semanário do país?

A verdade é que nunca se sabe onde começa o Expresso e onde acaba o Inimigo Público ou o Contra Informação, desde que a paródia sobre o advogado de Carlos Silvino como defensor de Saddam Hussein foi tomada à letra pelo jornal de José António Saraiva. Afinal, meu caro Vital Moreira, já não terei a felicidade de ver-te emigrado na minha ilha quando Jardim assumir a presidência do Parlamento português. É apenas a parte mais infeliz desta história, pois aposto que te teria convencido de que, apesar de tudo, a Madeira não é só o Jardim (e não é exactamente do Jardim). Terás portanto de persistir na tua tese independentista da Madeira. Quanto a mim, ainda me bato pelo referendo, apesar dos famosos limites materiais da revisão constitucional.

Que se seguirá, neste fim de semana, se António Pires de Lima filho inventar mais um dislate, uma tonteria, uma alarvidade, um insulto, para confirmar a má criação compulsiva e patológica dos pagens de Paulo Portas? Depois de Pires de Lima ter chamado criminoso a Mário Soares por causa da descolonização, que inventarão ainda estes saudosistas do salazarismo suave para colocar o PSD como refém ideológico do CDS? Dir-se-á que o CDS está condenado a ser engolido e dissolvido no espaço do PSD, mas o PSD que ficar não irá parecer-se mais com uma formação da direita radical do que com um partido que ainda reivindica a (aliás abusiva e surrealista) designação de social-democrata? Porque é que Alberto João Jardim não toma enfim as rédeas do PSD nacional ? Seria também uma hipótese para eu convencer o Vital Moreira a passar um fim de semana na Madeira.

Vicente Jorge Silva

Que pactos de regime?

Uma das questões decisivas das democracias contemporâneas é como equilibrar o princípio da alternância entre diferentes opções políticas com a necessidade de estabelecer consensos em áreas estruturantes que ultrapassam o horizonte das legislaturas (finanças públicas, sistema de ensino, segurança social, por exemplo) e impõem, por isso, compromissos que assegurem continuidade a reformas consideradas essenciais e inadiáveis num mundo cada vez mais complexo e globalizado. Ou seja: como estabelecer "pactos de regime" que evitem rupturas dramáticas em domínios nucleares e transversais, garantindo ao mesmo tempo a existência de alternativas políticas?

Não há respostas fáceis para essa questão, até pela diversidade de dados e incógnitas que estão em jogo. Se as opções políticas se extremam excessivamente e ganham um cariz marcadamente ideológico (veja-se o caso actual dos Estados Unidos), a necessidade de rupturas parece inevitável e até necessária. Quando se puxa demasiado para um lado, é lógico que o princípio do equilíbrio e do consenso seja prejudicado e a ruptura se concretize. Por outro lado, a necessidade dos compromissos e consensos não acabará por favorecer um centrismo dissolvente da pluralidade das opções políticas? Estaríamos então condenados à fatalidade de um "centrão" eterno?

Para responder a tudo isto, seria necessário estabelecer, primeiro, e com a máxima nitidez possível, quais são os domínios cuja transversalidade e permanência no tempo impõem pactos e compromissos entre as forças políticas que asseguram a alternância. Depois, seria preciso definir as bases mínimas desses compromissos, bases essas que não prejudicassem a diversidade das opções e o pluralismo político. "Last but not the least", seria indispensável que entre os interlocutores existisse a disponibilidade, a vontade política e, sobretudo, a boa-fé negocial e o sentido cívico para encontrar plataformas de entendimento.

Nada disso se verifica neste momento em Portugal. O sentido das opções estratégicas transversais às legislaturas é dominado pela crispação ideológica (claramente favorecida pela actual maioria de direita) e a má-fé ou o malabarismo táctico de uma indigência aflitiva continuam a sobrepor-se à necessidade de definir compromissos. A forma como o Governo se apresentou esta semana no Parlamento para "negociar" um pacto sobre as finanças públicas desafia as regras mais elementares da seriedade política.

Como é possível negociar com base num rascunho feito sobre o joelho e sobre a hora e obrigar a oposição a aceitar isso? E como é possível chegar a resultados sérios e credíveis quando a própria maioria governamental já é incapaz de fundamentar as suas políticas e os seus objectivos? Como é possível estabelecer qualquer entendimento sobre o vazio?

Vicente Jorge Silva

O fiel vassalo

O chefe do governo espanhol, J. M. Aznar, deslocou-se em romagem de despedida a Washington, tendo sido premiado com a honra de discursar no Congresso dos Estados Unidos, embora para escasso auditório. Os media estadunidenses ignoraram em geral a presença do fidelíssimo e aplicadíssimo aliado europeu. O El País descreve assim o episódio, com veneno qb:

«Un párrafo. Seis líneas. Ese es exactamente el espacio que los principales medios norteamericanos dedican a la visita de José María Aznar a Estados Unidos en sus ediciones digitales. Ni la ultraconservadora Fox News, ni el prestigioso Washington Post, ni la CNN hacen referencia al viaje del presidente español.»

Mas como prémio de consolação, segundo fontes do governo espanhol, o próprio Bush telefonou a Aznar para o felicitar pelo discurso, antes de ele deixar Washington. De que vale o desprezo da plebe se se tem a gratidão do imperador em pessoa?

A politicofobia judicial

1. Uma carta
«José Marques Vidal deu à estampa o seu novo livro "Justiça em crise?" em vernissage concorrida na Bertrand, com a presença da Ministra Celeste Cardona.
(...) Trata-se de um descabelado ataque contra a classe política e os partidos políticos, especialmente o Partido Socialista, não escapando sequer o Presidente da República e o Tribunal Constitucional. Dois pequenos exemplos do que escreve Vidal:

"(...) A esta sanha persecutória contra os magistrados aderem alguns representantes dos órgãos de soberania. Não só alguns deputados no compreensível afã de terçar armas por colegas de partido apanhados nas malhas da lei mas também o Presidente da República a descer em cerimónia pública ao dislate de criticar a actuação de um juiz de direito em processo penal pendente. O Presidente da República é o titular do órgão de soberania máximo do Estado e representa a Nação. Independentemente do fundamento ou falta de fundamento da crítica produzida, o Presidente da República, ao fazê-lo, pôs em crise o princípio da separação dos poderes, esteio basilar da democracia e do Estado de Direito, o que é inadmissível. Mais ainda: com tal gesto permitiu especulações desprestigiantes relativamente à sua pessoa e ao cargo que ocupa, fazendo vir à tona a sua ligação partidária, e possivelmente maçónica, a um dos arguidos no processo"! (Capítulo VI, Medidas de coacção,pág. 98).
"(...) E que dizer de um Tribunal Constitucional marcado à nascença pelo vício da composição partidária, de que os seus juízes não se livram por mais isentas que sejam as suas decisões? Para salvaguarda dos direitos constitucionais seria suficiente um tribunal composto por juízes dos Supremos Tribunais Judicial e Administrativo eleitos pelos seus pares." (Capítulo X, pág. 163).

Um livro destes não deve passar sem uma crítica contundente aos verdadeiros dislates do autor!»
(AAG)

2. Comentário
Ainda não li o referido livro, mas, pelo relato que vi, fiquei com vontade de o ler. Limitando-me aos excertos acima transcritos, é manifesto que se trata de mais uma expressão da politicofobia fundamentalista que prevalece em muito discurso judicial.
A invocação da separação de poderes para julgar ilícita a manifestação de opiniões pelo Presidente da República em matérias de justiça não tem sentido. Os tribunais são independentes nas suas decisões, mas não estão imunes ao escrutínio e ao comentário externo, pelo contrário. As observações oportunamente feitas pelo PR, de resto sem referenciar nenhum caso concreto, limitaram-se a sublinhar aspectos que o Tribunal Constitucional já tinha decidido, em matérias de direitos dos arguidos.
A meu ver é muito mais lesiva da separação de poderes e da independência dos juízes a aceitação de cargos públicos de nomeação governamental e de confiança política. Mas há juízes que se "pelam" por esses cargos extrajudiciais, como sucedeu com o próprio Marques Vidal, juiz transferido para a polícia judiciária.
Quanto à contestação do Tribunal Constitucional, ela vem desde a sua origem, fazendo parte do decálogo de todo o juiz de carreira que se preze. Mas a crítica não é procedente. É evidente que a composição do TC pode ser questionada. Mas não é por acaso que em geral os tribunais constitucionais não são compostos exclusivamente por juízes de carreira; e o mesmo sucede, aliás, com os tribunais supremos com poderes de jurisdição constitucional.
Para poder rever as decisões dos tribunais comuns, o TC tem de ter uma legitimidade diferente e uma composição que garanta a sua autoridade inquestionável em matérias constitucionais. O caso Casa Pia veio de resto mostrar o que seria se o TC fosse composto por juizes dos tribunais comuns, que dão provas de muito deficiente sensibilidade e preparação constitucional.
Dispenso-me obviamente de comentar as insinuações de mau gosto em relação ao PR. Onde minguam os argumentos sobra o rasteiro ataque pessoal...

Vital Moreira

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

Quem ganhará o prémio, Lucky Luke ou James Bond?


O vírus informático Mydoom virou família Dalton. Lucky Luke foi chamado à Microsoft. Silicon Valley assumiu-se no Oeste. Bill Gates ofereceu um prémio pela cabeça do inventivo criminoso ($250.000).
Mas Hollywood não se ficou por aqui. Será que o vírus não veio do frio? A Rússia regressou à URSS. James Bond vai a caminho de Moscovo.
Os adeptos do Linux (os "marginais" do sistema) são agora suspeitos de perigoso terrorismo anti-capitalista.
No meio deste cenário de "guerra fria" e "biológica" com cheirinho a filme de cowboys há, porém, alguns aspectos positivos. Mais gente ficou a saber que existe um sistema operativo de código-fonte aberto, disponibilizado gratuitamente na Internet. Que foi inventado por Linus Torvald, um jovem estudante finlandês que actualmente trabalha na Califórnia. Que é preciso concorrência à Microsoft. E que, mesmo em jeito de brincadeira, a segurança informática é um assunto sério.

Maria Manuel Leitão Marques