sábado, 9 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (7): Direito a votar

O direito de voto a votar é um direito a votar, tendo o Estado a obrigação de proporcionar a todos a possibilidade de o exercer. 

Por isso, concordo com esta opinião de que, se as pesssoas acolhidas em lares de idosos não podem ir às urnas de voto, por causa da pandemia, devem estas ir aos lares onde haja idosos que queiram votar, tal como vão às prisões recolher os votos dos presos que tenham manifestado vontade de votar. E isso pode ser feito ao longo de vários dias, em voto antecipado, que a Constituição não proíbe. Basta mudar a lei em procedimento de urgência e disponibilizar os meios logísticos necessários.

Em tempos excecionais, medidas excecionais.

Adenda
Um leitor comenta que nada disso seria necessário, se houvesse voto por correspondência, como nos Estados Unidos e outros países. Sucede, porém que a Constituição estipula expressamente o voto presencial nas eleições presidenciais em território nacional, o que inviabiliza o voto a distância, designadamente o voto por correspondência.

Adenda 2
Um leitor argumenta que, por razão de igualdade, os idosos que estão em casa também deviam beneficiar do voto no domicílio. Mas não é a a mesma coisa. Os que estão em lares vivem em comunidade e ficam em quarentena se saírem, para não correrem o risco de serem infetados e contaminarem os demais, o que os impede de ir votar -, o que não sucede com quem mora em casa

Livres & iguais (55): "Tradições culturais" contra os direitos humanos

[Fonte da imagem AQUI]

Saudemos esta primeira condenação em Portugal da multilação genital feminina, desde que a punição dessa prática bárbara foi autonomizada criminalmente em 2015.

A punição penal da MGF simboliza bem o facto de a proteção dos direitos humanos  não visar somente as violações efetuadas pelo Estado mas também as perpetradas na "sociedade civil" e no âmbito familiar, em nome de práticas culturais atávicas, que lesam a integridade fisica e moral das pessoas, neste caso das crianças do sexo feminino. O Estado não tem somente a obrigação de respeitar ele mesmo os direitos humanos, mas também a obrigação de protegê-los contra a sua violação por terceiros (respect and protect).

Que este seja o primeiro passo para combater decididamente esse flagelo em algumas comunidades de origem africana entre nós.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Falsas boas ideias (2): Revisão constitucional inútil

Penso que não faz nenhum sentido a ideia de uma revisão constitucional relâmpago para permitir a votação da eleição presidencial em mais do que um dia

De facto:

       -  havendo estado de emergência declarado, é imposssível aprovar qualquer revisão constitucional neste período, que é expressamente proibida pela Constituição; 
       - não é a Constituição, mas sim a lei eleitoral, que impõe a eleição presidencial num só dia, pelo que não é necessário alterá-la para esse efeito (de resto, a lei eleitoral já permite o voto antecipado, em certos termos, assim como a votação em dois dias no estrangeiro);
       - não é por haver mais do que um dia de votação que a previsível abstenção elevada vai diminuir, pela simples razão de que - como AQUI mostrei - ela se vai ficar a dever-se a diversos factos que não têm a ver com a duração do período da votação, a saber (i) as eleições terem um vencedor antecipado, (ii) falta de empenhamento dos dois principais partidos nas eleições; (iii) não haver campanha presencial por causa da pandemia e (iv) o receio de contaminação pela COVID nas assembleias eleitorais.

Em suma, uma revisão constitucional ad hoc não adiantaria nada.

Adenda
Também não leva a nada, por inviável, a ideia de adiamento das eleições, mesmo que tal fosse defensável politicamente, como alguns propõem (a meu ver, erradamente). Primeiro, nem a Constituição nem a lei eleitoral preveem a remarcação das eleições; segundo, de acordo com a Constituição, o novo PR tem de estar eleito até ao termo do mandato em curso (9 de março), havendo que descontar três semanas para uma eventual segunda volta (por menos verosímil que seja tal hipótese), pelo que a primeira votação teria de ocorrer até 14 de fevereiro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Assim vai a política (4): Instrumentalização política da justiça

1. Por menos feliz e oportuna que tenha sido a acusação de António Costa sobre uma alegada "campanha internacional contra Portugal" por parte de alguns dirigentes e militantes do PSD, a propósito da nomeação do membro português na Procuradoria da União, tal não pode justificar a ideia de uma queixa-crime contra o Primeiro-Ministro, como defende a própria direção do PSD, apadrinhando a posição dos seus dirigentes.

Sendo manifestamente descabida, por não haver nenhum ilícito criminal, uma tal iniciativa não passa de uma lamentável operação de intrumentalização da justiça para efeitos políticos imediatos, destinada a impressionar cidadãos menos bem informados e a alimentar as "redes sociais" durante algumas horas.  

2. Numa democracia liberal, as acusações políticas devem ser combatidas na esfera política e não no foro judicial. Os juízes não devem ser chamados a adjudicar o combate político entre a oposição e o Governo. No combate político, mesmo os ataques de natureza pessoal - que neste caso nem sequer existem - só em casos-limite são criminalmente relevantes.

A judicialização da política, sobretudo quando promovida pelos próprios políticos, degrada tanto a justiça como a política. E não enobrece quem a promove. 

Adenda
Como seria de esperar, os visados no deslocado ataque do Primeiro-Ministro declinaram qualquer propósito de queixa-crime (que, aliás, não levaria a nada...), revelando mais sensatez política do que a tonta e precipitada decisão da comissão permanente do PSD.

Adenda (9/1)
Se acusação de António Costa aos militantes do PSD foi infeliz e inoportuna, é manifestamente excessiva e despropositada a crítica de Ana Gomes ao líder socialista, "equiparando-o a Orbán". Além do mais, este não é seguramente o melhor mod0 de cativar o voto socialista para a sua candidatura presidencial...

Praça da República (43): Os pontos nos ii

1. Faz bem o Primeiro-Ministro em lembrar uma regra essencial da responsabilidade política ministerial no sistema de governo estabelecido na Constituição, que o Presidente da República e muitos observadores políticos por vezes esquecem, a saber: «É perante o Primeiro-Ministro que cada ministro responde». 

Daí que só a ele, como chefe do Governo, caiba decidir sobre a demissão dos seus ministros, assumindo a correspondente responsabilidade política, devendo o PR abster-se de tomadas de posição públicas sobre tal assunto.

2. Mas, da mesma maneira, o PM deveria recordar publicamente uma outra regra constitucional que é consequência dessa, ou seja, que é somente ao PM (e não aos ministros, individualmente) que incumbe informar o PR sobre a condução das políticas governamentais, pelo que é politicamente descabida e constitutionalmente ilegítima a chamada de ministros a Belém (como AQUI mostrei). 

O PM é a única interface entre São Bento e Belém.

A degeneração da democracia constitucional começa quando, por deferência ou oportunismo político, se consentem práticas à margem da Constituição, por mais "inocentes" que pareçam à primeira vista.

Adenda

Na versão do Primeiro-Ministro sobre o caso da Ministra da Justiça há um aspeto que não "cola", que é a ideia de que as "incorreções" constantes da nota curricular enviada pelo MJ para Bruxelas eram "irrelevantes" para a escolha do candidato em causa, que se baseava na hierarquização dos candidatos pelo CSMP. Se assim fosse, não faria sentido enviar tal nota adicional, bastanto invocar a seleção feita pelo CSMP e o CV oficial do candidato que constava do processo do Conselho da União em Bruxelas (e que não continha nenhuma das mencionadas incorreções). É óbvio, portanto, que o MJ procurou reforçar a sua opção perante Bruxelas com elementos novos sobre o candidato escolhido, infelizmente infundados, sem o cuidado mínimo de verificar a sua veracidade.

White House 2021 (7): A demência trumpista

Incitada por um Presidente tresloucado pela derrota eleitoral, uma multidão furiosa de apoiantes invadiu o Capitólio (Congresso) em Washington, perante a irresponsável imprevisão da polícia, e interrompeu a cerimónia de contagem oficial das eleições presidenciais. Um dia negro para a democracia estadunidense.

Não podia terminar da pior maneira o mandato de um dos piores e mais rancorosos presidentes da história dos Estados Unidos. Só por isso ele merecia ser destituído e condenado por sedição.  Uma vergonha nacional e internacional!

Adenda

Vale a pena ler este editorial do New York Times.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

João Cutileiro (1937-2021): Uma grande perda


 Grata recordação de um almoço em Coimbra, 1999.

Presidenciais 2021 (6): Sem escrúpulos

Como AQUI se defendeu, o STA rejeitou liminarmente a ação judicial interposta pelo deputado André Ventura para obrigar o Presidente da AR a suspender o seu mandato parlamentar. O Tribunal considerou corretamente que, independentemente da substância do caso, «o STA não é uma instância de controlo jurídico-político dos atos [políticos] do Governo ou do Parlamento».

No entanto, num comentário provocatório, Ventura insinuou que o STA tem "receio" da AR e ameaçou voltar à via judicial depois de haver um decisão parlamentar sobre o caso. Decididamente, há uma aposta clara em provocar as instituições. Já inundado com processos, o STA não pode ser politicamente abusado, de má fé, para servir os mesquinhos objetivos mediáticos de um candidato presidencial sem escrúpulos políticos nem deontologia profissional como advogado.

Era conveniente saber a reação dos restantes candidatos presidenciais a este condenável espisódio.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Assim vai a política (3): Não há como desvalorizar

Não há como desvalorizar a gravidade do envio ao Conselho da União de uma nota curricular com vários erros importantes sobre o percurso profissional do candidato que Portugal propôs para a Procuradoria da União Europeia

Mesmo que o referido papel não tenha tido influência na escolha - que se baseou solidamente no facto de o referido candidato ter sido classificado em 1º lugar pelo Conselho Superior do Ministério Público -, a situação é constrangedora e pode ser explorada para pôr em causa a confiança de Bruxelas nas informações vindas de Lisboa.

Não basta a Ministra da Justiça vir reconhecer os erros e imputá-los a lapso dos serviços; importa saber quando é que teve conhecimento da situação e que medidas tomou para apurar responsabilidades e para reparar a incorreção da informação prestada ao Conselho da União.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Praça da República (42): Contradições oportunistas

1. Esta proposta oportunista do PSD, à boleia do caso Ventura, para alargar os casos de suspensão do mandato parlamentar a pedido dos próprios deputados, por razães de conveniência pessoal, invoca um alegado propósito de "desproletarizar" [sic] a função parlamentar, mas o seu resultado traduz-se numa inequívoca descaraterizaçao da natureza do mandato parlamentar, como obrigação política que deve ser. 
Os demais titulares de cargos políticos (alguns de duração mais longa) também não podem suspender o mandato por vontade pessoal. A conveniência pessoal dos deputados não pode sobrepor-se ao exercício do mandato que assumiram. 

2. Desde logo, pode questionar-se a necessidade de admitir a suspensão do mandato por motivos da vida pessoal, profissional ou política dos deputados num regime em que o função não é exclusiva e em que os deputados podem acumular livremente com outras tarefas. 
Mas a principal objeção tem a ver com o facto de a suspensão voluntária se traduzir num verdadeiro incumprimento do mandato político, que é de natureza pessoal. Embora eleitos em listas partidárias, os deputados são eleitos pelo voto popular, segundo a ordem da lista de candidatos, que é pública.  O nome dos deputados conta! 
Fomentar a instabilidade na composição parlamentar por motivos pessoais só reforça a partidocracia parlamentar e alimenta a pulsão populista contra a elite política.

3. De resto, numa altura em que a exigência de personalizaçao das eleições parlamentares sobe na opinião pública - sendo, aliás, uma proposta oficial do PSD desde há muito -, retomar a "fungibilidade" e a rotação dos deputados eleitos é uma insanável contradição.
Tendo sido apresentada por um vice-presidente da bancada parlamentar, com provável apoio de Rui Rio, esta proposta insensata do PSD agrava o sentimento de desorientação política e doutrinária em que se acha o principal partido da oposição.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Assim vai a política (2): Brincar com as instituições

1.  Esta intimação judicial contra o Presidente da AR requerida pelo Deputado André Ventura para obter a suspensão do seu mandato parlamentar não faz nenhum sentido.

Como jurista qualificado que é, ele sabe bem que (i) os atos da Assembleia da República ou do seu Presidente relativos ao governo do parlamento não são atos administrativos, sendo por isso insuscetíveis de escrutínio pela justiça administrativa e que (ii), como atos singulares que são, também não podem ser impugnados junto do Tribunal Constitucional, ressalvados os atos mencionados no art. 223º da CRP.

As normas constitucionais ou legais pertinentes são "normas imperfeitas", à margem de sanção judicial. Com algumas exceções, a Constituição deixou o escrutínio de atos políticos (do PR, da AR, do Governo) exclusivamente à esfera política, assim evitando a judicialização da política e, no caso da AR, respeitando o autogoverno parlamentar.  

2. É por saber isso, como qualquer estudante de Direito Constitucional sabe, que o deputado Andre Ventura só pode estar de ma fé quando recorre à justiça administrativa, numa óbvia operação de provocação das instituições para efeitos políticos. 

Por isso, além da rejeição liminar da descabida pretensão, o STA deveria equacionar a condenação por litigância de má fé.

Adenda
Um leitor pergunta o que penso sobre a suspensão do mandato de Ventura enquanto for candidato a Presidente da República. Apesar de não prevista no Estatuto dos Deputados, penso que faz sentido e entendo mesmo que poderia  ser automática, independentemente da vontade do deputado e de decisão paralamentar. Trata-se, a meu ver, de uma óbvia lacuna de previsão da lei.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ai, Portugal (7): Os comboios não votam

1. Segundo este relato do estado das obras de renovação da ferrovia, anunciadas em 2016 e que deviam estar concluídas quase todas em 2020, a maior parte delas já foram recalendarizadas para serem concluídas somente em 2023, sem contar com o abandono de três delas (uma vetada pela UE e outras duas retiradas).

Como é óbvio, o principal fundamento para esta derrapagem temporal tem a ver com falta de financiamento, por causa da redução do investimento público durante estes anos, vítima "colateral" da prioridade orçamental dada ao aumento da despesa corrente (pensões. salários, prestações sociais), por causa da aliança governamental à esquerda ("Geringonça"). 

Manifestamente, os comboios não votam.

2. Outro aspeto típico, "à portuguesa", deste plano ferroviário foi a aventureira previsão de uma nova linha, entre Aveiro e Mangualde, passando por Viseu, um projeto ultraoneroso (675 milhoes de euros!) - que, aliás, duplicava a linha da Beira Alta existente - e que era manifestamente inviável, como a Comissão Europeia mostrou duas vezes, tendo sido incluída no plano ferroviário apenas para satisfazer interesses localistas. 

Assim se planeam, irresponsavelmente, infraestruturas em Portugal...

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Praça Schuman (11): Problemático e inoportuno

1. Parece estar iminente o anúncio da conclusão de um acordo de investimento direto estrangeiro entre a UE e a China, em negociação há vários anos.

Impõe-se, de facto, abrir a economia chinesa ao IDE europeu e garantir os direitos dos investidores europeus, corrigindo a assimetria existente (já que o investimento direto chinês na União encontra poucos obstáculos, como mostra o caso de Portugal).  Resta saber, porém, se o acordo está à altura das necessidades e se este é o momento politicamente oportuno para o anunciar.

2. Por um lado, as informações disponíveis não são concludentes quanto à substância dos ganhos obtidos pela União, em termos de "market access" e de solução de litígios sobre violação dos direitos dos investidores europeus na China. 

Por outro lado, é de questionar a oportunidade de anúncio deste acordo nas vésperas da tomada de posse do Presidente Biden nos Estados Unidos, sabendo-se que as falhas da China nesta campo (desproteção da propriedade intelectual, ajudas de Estado, privilégios das empresas estatais, preferências na contratação pública, etc.) só podem ser combatidas numa ação coordenada entre a União e os EUA. 

Anunciar neste momento um acordo com a China nesta área é dar um trunfo a Pequim contra Washington.

No bicentenário da Revolução Liberal (25): A Revolução e a Contrarrevolução em Braga

A JN HISTÓRIA nº 29 (novembro/dezembro) publica mais um artigo da já extensa série de textos da minha coautoria com o Professor José Domingues sobre a Revolução Liberal, desta vez sobre "A Revolução Liberal (e a contrarrevolução) em Braga".

Com base em fontes até agora inéditas, mostramos que, se a cidade foi essencial na organização e no apoio militar à Revolução do Porto, tanto no controlo do Minho como de Trás-os-Montes, já o apoio civil e institucional foi tardio e longe de entusiástico. Em contrapartida, quando a contrarrevolução chegou em 1823, Braga assinalou prontamente a sua adesão através de uma insólita e radical iniciativa, que foi a de convocar todos os cidadãos que tinham votado nas eleições das Cortes Constituintes de 1820 e das Cortes ordinárias de 1822, para revogarem individualmente o ato eleitoral!

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Free and fair trade (18): Uma falha corrigida

1.  Como se esperava, o acordo comercial entre a UE e o Reino Unido, concluído in extremis, mantém o comércio de produtos entre ambas as economias (incluindo indústria, agricultura e pescas) isento de tarifas aduaneiras e de restrições quantitativas, como antes (mas agora sujeitos a controlos fronteiriços).

Todavia, o que há de inovador no acordo não é a sua amplitude pouco ambiciosa (que tem pouco cobertura quanto aos serviços), mas sim aquilo que se veio a designar nas negociações como level playing field, ou seja, a proibição de as partes degradarem os seus padrões laborais e ambientais e de recorrerem a ajudas de Estado para aumentarem artificialmente a sua competitividade recíproca nas trocas comerciais entre eles.

Nunca se tinha ido tão longe nesta preocupação. Como mostrei anteriormente, Londres não poderia gozar de melhores condições de acesso ao mercado interno da União depois de sair do que antes.

2. Note-se, no entanto, que desde há duas décadas, os acordos comerciais da União já incorporavam uma cláusula laboral e ambiental, com o mesmo objetivo. A diferença estava em que até agora essas cláususlas eram desprovidas de mecanismos de enforcement, pelo que a sua violação não era suscetível de sanção, nomeadamente através da aplicação de tarifas aduaneiras compensatórias ou retaliatórias.

Há muito que eu criticava esta falha da política de comércio externo da União, designadamente no meu livro de 2014 sobre o assunto (capa em epígrafe). Apraz-me verificar que, finalmente, essa falha foi corrigida, sendo de esperar que a solução encontrada passe a ser uma regra em todos os futuros acordos comerciais da União.

Assim vai a política: Hegemonia socialista?

1. Esta sondagem eleitoral, da responsabilidade do Observador (acesso reservado a assinantes), confirma que as coisas continuam a correr politicamente bem ao PS, por mérito próprio na gestão da pandemia, demérito alheio (nomeadamente do BE e do PSD) e muita ajuda da UE (bazooka financeira, vacinas, acordo sobre o Brexit).

A próxima passagem tranquila das eleições presidenciais (de que deliberadamente se alheou oficialmente) e da presidência do Conselho da União (cujos principais dossiês foram resolvidos pela presidência alemã), assim como a perspectiva de controlo da pandemia antes do verão e da concomitante retoma económica - tudo aponta, salvo algum imprevisto acidente, para um bom ano político para António Costa.

A ideia de um "fim de ciclo político", que ainda há poucas semanas entretinha alguns comentadores precipitados, releva de excesso de imaginação política.

2. Em contrapartida as coisas não correm de feição para o PSD nem para a direita no seu conjunto.  

Com este resultados, as direitas somadas teriam menos deputados do que o PS sozinho (dado o efeito da fragmentação da votação por quatro partidos) e muito menos do que as esquerdas juntas. Ou seja, continuam muito longe do poder.

Ora, sem perspectiva de mudança do clima político a nível nacional e sem apresentar uma alternativa de governo credível (que Rio parece incapaz de formular), as eleições autárquicas do próximo ano podem constituir mais um sério revés para o PSD.

3. Outra "ideia feita" que as recentes sondagens contrariam é a da imparável tendência para a fragmentação da representação parlamentar e para uma maior dificuldade de reformas de fundo, por falta de maioria de 2/3 por parte do PS e do PSD.

Com efeito, segundo esta sondagem, os dois partidos somam quase 70% dos votos, muito acima do 2/3 de deputados necessários para a revisão constitucional e outras reformas políticas que carecem dessa maioria (como a reforma da lei eleitoral), sem poder de veto de nenhum outro partido. 

Torna-se evidente que só não há tais reformas (e outras) porque o PS as não quer, por causa da sua aliança política com o PCP, reconhecendo-lhe um implícito poder de veto político.

No bicentenário da Revolução Liberal (24): A Revolução em Coimbra


Apresentação pública do livro 'Há Constituição em Coimbra' - No bicentenário da Revolução Liberal, ontem, na Câmara Municipal de Coimbra, ladeado por Carina Gomes, vereadora da Cultura, e Manuel Machado, Presidente.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Não dá para entender (26): Regulador público contra o interesse público?

O debate público em curso sobre as redes de 5G, entre a ANACOM e os operadores instalados, tem rodado à volta da legalidade ou ilegalidade dos privilégios conferidos aos "novos entrantes" no concurso aberto pela entidade reguladora, para facilitar o aumento de operadores no mercado, a fim de alegadamente proporcionar mais concorrência entre eles. 

Ora, este texto sobre as novas redes de 5G mostra que não se trata somente de uma questão de legalidade. De facto, depois de mostrar que «a existência de 4 operadores vai conduzir a uma menor qualidade de experiência dos utilizadores», o autor remata: 

«Como se vê, a existência de 3 ou 4 operadores não é exclusivamente uma questão de concorrência. Se analisarmos os 9 países europeus com população da ordem de grandeza de Portugal (entre 7 e 12 milhões de habitantes), apenas 2 (22%) possuem 4 operadores (todos os outros possuem 3). Adicionalmente, países como Estados Unidos da América, Japão e Alemanha, com mais de 80 milhões de habitantes, possuem 3 operadores.
Em conclusão, relativamente ao número de operadores em 5G, “technology matters”.»

Adenda
Como declaração de interesses, é público que dei a um dos operadores um parecer no sentido da ilegalidade/inconstitucionalidade do Regulamento da ANACOM. É bom saber que ele não padece somente dessa mancha.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Não com os meus impostos (4): Pôr os contribuintes a pagar a ADSE, não!

1. É claro que os beneficiários da ADSE, que financiam integralmente esse subsistema de saúde - e assim deve ser -, têm razão quando consideram injusto terem de pagar pelas isenções de quotização dos aposentados com pensões mais baixas, que nada justifica. 

A ADSE não é um direito, a par do SNS; é uma prerrogativa facultativa que deve ser paga por quem dela beneficia, como se impõe. Os aposentados do setor privado, se quiserem ter um seguro de saúde, têm de o pagar, não se vendo razão nenhuma para seja diferente para os aposentados da função pública. No caso da ADSE, aliás, o cálculo "prémio" do seguro até os favorece, pois é uma percentagem do rendimento, sendo, portanto, baixo para quem tem menor rendimento.

2.  O que não faz sentido é exigir do Governo que passe a ser o Estado, ou seja, os contribuintes em geral, a financiar essas isenções da ADSE dos pensionistas públicos, quando todos já têm de pagar o SNS, único sistema de que beneficiam. Espero que o Governo responda com um rotundo "não". De resto, com  o novo regime, o número de isentos até vai baixar. 

E se os beneficiários-pagadores (entre os quais me conto...) não quiserem continuar a suportar ess encargo adicional, não são obrigados a permanecer. Há privilégios que têm ónus associados. Duvido que alguém saia por causa disso!

É evidente que, se fossem todos os contribuintes a pagar, seria muito mais leve suportar esse encargo, do que sendo somente os beneficiários da ADSE a fazê-lo. Mas seria socialmente iníquo pôr a cargo de todos o pagamento dos privilégios adicionais da função pública.  Com os meus impostos, não.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

No bicentenário da Revolução Liberal (22): A contribuição de Coimbra


1. Acaba de ser publicado este livro da minha coautoria com José Domingues sobre a  participação de Coimbra na Revolução Liberal, há 200 anos, desde a entrada das forças liberais na cidade em finais de agosto de 1820, festivamente acolhidas, até às eleições na cidade para as Cortes Constituintes, em dezembro desse ano, marcadas pela vigorosa luta da academia de Coimbra pelo direito de voto dos estudantes, liderada por Almeida Garret, então finalista de Leis.

Trata-se de um relato de páginas brilhantes nos anais da Revolução Liberal e da história da cidade de Coimbra, até agora pouco conhecidas, baseado em documentos em grande parte inéditos.

O curioso título do livro - "Há Constituição em Coimbra" - provém de uma informação "em código" que um partidário do antigo regime comunicou para Lisboa sobre a adesão de Coimbra à Revolução, utilizando para tal o seu principal objetivo, que era a aprovação de uma Constituição.

2. O livro, numa cuidada edição da Câmara Municipal de Coimbra - que colocou todo o empenho nesta iniciativa -, encontra-se disponível para venda ao público em três locais culturais municipais: na Bilblioteca Municipal, na Casa da Escrita e no Museu do Chiado. 

Da nossa parte, como autores (falando em nome dos dois), apraz-nos termos tido esta oportunidade de investigar estes episódios gratificantes da história conimbricense, que oferecemos graciosamente ao Município. Supomos que é a única monografia publicada neste ano do bicentenário sobre as vicissitudes da Revolução Liberal numa das cidades em que ela teve maior expressão (depois do Porto e antes de Lisboa). 

Infelizmente, o atual surto da pandemia inviabilizou a sessão pública de lançamento que tínhamos programado com aparticipação de um reputado historiador da Revolução Liberal. Ficará para ocasião mais oportuna. 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Presidenciais 2021 (6): "Ficção presidencial"

1. Concordo com esta análise de M. Vilaverde Cabral sobre a previsível abstenção elevada nas eleições presidenciais, que vão ser afetadas por três razões: (i) a pandemia, que afasta os cidadãos das eleições e não permite uma campanha eleitoral normal; (ii) o facto de a eleição ter vencedor antecipado, por larga margem; (iii) a falta de empenho dos dois principais partidos, visto que o PS não tem candidato próprio e o PSD não apoia MRS entusiasticamente.

Portanto, estas eleições têm tudo para serem pouco mobilizadoras, salvo para a disputa do segundo lugar entre setores minoritários do eleitorado.

2. Mas não acompanho MVC quanto à alegada culpa daquilo que ele designa por "ficção presidencial", ou seja, o argumento de que a eleição direta não se justifica face aos poucos poderes políticos do PR.

Na verdade, continuo a entender que no nosso sistema constitucional, apesar da estrita separação de poderes entre PR e Governo, há justificação para a eleição direta do Presidente, dada a importante função que lhe cabe de supervisão do sistema político e de contenção de abusos das maiorias parlamentares, designadamente quanto ao poder de veto legislativo, a partilha do poder de nomeação de importantes titulares de cargos públicos, a convocação de referendos, a declaração do estado-de-sítio e do estado-de-emergência e, em última instância, a dissolução parlamentar. Não vejo como é que estes poderes independentes poderiam ser legitimamente exercidos sem que o PR tivesse legitimidade eleitoral direta.

De resto, não faltam países com sistemas de governo de tipo genuinamente parlamentar em que o PR não dispõe de tais poderes mas é eleito diretamente (Irlanda, Áustria, Finlândia, etc.). 

3. A ficção política que há muito existe entre nós, e demora a desaparecer (desde 1982!), é a ficção semipresidencialista quanto ao sistema de governo, pois, de facto, entre nós: (i)  o PR não governa, nem cogoverna, nem compartilha da função governativa; (ii) o órgão de condução da política nacional é o Governo e só ele; (iii) o Governo, cuja legitimidade política decorre das eleições parlamentares (via AR), não depende da confiança nem de tutela política do PR.

Neste sentido, ao contrário do que sucede nos regimes presidencialistas ou semipresidencialistas (em sentido próprio), as eleições presidenciais entre nós não afetam o Governo nem a política governamental. Mas, dependendo das circunstâncias e do Presdente eleito, elas podem alterar, e muito, não somente o quadro político em que os governos em funções se movem e conduzem as suas políticas, mas também a sua própria subsistência política (caso de dissolução parlamentar). 

É por isso que as eleições presidenciais não podem nem devem ser desvalorizadas.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Pandemia (44): Confusão legal

1. Inovando em relação às anteriores edições, o projeto de decreto do Presidente da República para a próxima renovação do estado de emergência, a partir de 24 de dezembro, prevê expressamente a punição como crime de desobediência para quem não cumprir as suas determinações.

O decreto remete explicitamente para o art. 7º da Lei do Estado de Sitio e do Estado de Emergência (Lei nº 44/86, na sua atual redação), que diz examente isto:«A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência»

De resto, como o decreto presidencial não é uma lei, não poderia criminalizar uma conduta que não estivesse já prevista e punida por lei.

2. A questão é saber se esse preceito legal, na sua expressão literal,  altera o definição do crime de desobediência, tal como consta do Código Penal (art. 348º), segundo o qual, para haver tal crime, não basta infringir uma obrigação legal ou regulamentar (desobediência à norma), sendo necessário haver o incumprimento de uma ordem concreta de uma autoridade legítima.

Ora, não pode deixar de considerar-se uma violência desproprocionada punir como crime e com pena de prisão a simples violação das obrigações decorrentes do estado de emergência (por exemplo, quanto a uso de máscara, limites à circulação ou horários de estabelecimentos), sem ter havido desobediência a uma cominação de autoridade que tenha ordenado a cessação da infração, como estabelece o Código Penal.

A violação de restrições legais de índole administrativa devem ser punidas como contraordenações, e não como crimes.

3. Por conseguinte, é de concluir que a nova cláusula do decreto presidencial não veio acrescentar nada, nem o pretendeu, pois não era preciso invocar expressamente a Lei nº 44/86, para ela se aplicar à violação das obrigações decorrentes do estado de emergência, sempre que declarado. 

Em contrapartida, porém, esse preceito legal suscitaria um sério problema de constitucionalidade, se fosse entendido à letra, no sentido de punir como crime de desobediência o simples incumprimento das normas do estado de emergência, sem desobediência à ordem concreta de uma autoridade policial, como exige o Código Penal.

Praça Schuman (10): Pôr os gigantes tecnológicos na ordem

1. Os grandes operadores digitais suscitam duas questões cruciais: (i) o descontrolo dos conteúdos disponibilizados (violação de direitos de autor, veiculação de terrorismo, fake news, etc.) e (ii) o abuso de posição dominante contra concorrentes e utilizadores, pondo em causa a concorrência.

É evidente que, tratando-se de operadores globais, dotados de enorme poder económico, nenhum país pode ter a ilusão de enfrentar sozinho tais problemas. Felizmente, há a União Europeia.

Ora, a Comissão Europeia acaba de avançar com dois novos instrumentos legislativos, destinados a atualizar e reforçar os mecanismos existentes, que se têm revelado insuficientes: o Digital Services Act (DSA), ou lei dos serviços digitais, e o Digital Markets Act (DMA), ou lei dos mercados digitais. Trata-se de propostas vigorosas, da responsabilidade conjunta de dois dos comissários mais asserivos do atual executivo da União, Verstager e Breton.

Os dois comissários explicam AQUI o essencial do novo regime proposto.

2.  Agora espera-se que as propostas venham a ser prontamente aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho e que os parlamentos nacionais - que podem pronunciar-se sobre todas as iniciativas legislativas da União - não fiquem de fora desta batalha pelos direitos individuais e a veracidade da informação online e pela concorrência nos serviços digitais no mercado interno da União. 

É preciso pôr os gigantes digitais em linha com os princípios do Estado de direito e a ordem económica da União. Já se faz tarde!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Barbárie tauromáquica (11): A "cultura" da tortura

Subscrevo inteiramente este texto sobre o absurdo de equacionar a proteção das touradas como "património cultural imaterial da humanidade" pela UNESCO.

No dia em que um Governo socialista, por oportunismo "lisboacêntrico", descesse à ignomínia de patrocinar ou apoiar uma tal candidatura, garanto que aí terminaria a minha confiança na integridade de uma política de esquerda. E se, por absurdo, a UNESCO caísse na vileza de considerar como património cultural da humanidade a sádica tortura sangrenta de animais indefesos para gáudio público, então eu concluiria que o mundo tinha ensandecido!

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O que o Presidente não deve fazer (23): Uma "regra" cheia de buracos

1. Têm toda a razão todos os que entendem - por exemplo, AQUI e AQUI - que o PR extrapolou os seus poderes constitucionais no caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Desta vez, foi demasiado ostensivo.

Fê-lo quando se pronunciou publicamente sobre o destino do Serviço, que é obviamente uma exclusiva competência governamental (como o próprio MRS veio reconhecer, depois da ingerência consumada...); voltou a fazê-lo quando recebeu o comandante da PSP e lhe deu palco público para defesa da extinção do Serviço, tanto mais que os dirigentes dos corpos adminstrativos só respondem perante o Governo e é este que responde pela Administração Pública perante o PR, sendo descabido serem chamados diretamente a Belém. 

Estamos, portanto, perante uma ação do PR caraterizadamente fora do quadro dos seus poderes constitucionais.

2. O Primeiro-Ministro veio declarar que o PR «em regra» respeita «escrupulosamente» a separação de poderes. Mas é manifestamente uma "regra" com demasiadas exceções: só nesta série sobre "O que o Presidente não deve fazer", aqui no Causa Nossa, já conto nada menos de 23 casos, ao longo destes cinco anos -, sem ter sido exaustivo.

A verdade é que, dada a sua repetição, não se trata já de exceções ocasionais e acidentais, mas sim de um padrão de conduta presidencial, forçando os seus poderes constitucionais, em favor de uma espécie de tutela política sobre o Governo, o que não pode deixar de ser motivo de funda preocupação. É a autonomia constitucional do Governo na condução das suas políticas e na direção da Administração Pública, sob exclusiva responsabilidade política perante a AR, que é posta em causa.

3. Só é estranho que seja o PS a mostrar uma inesperada complacência política perante esta tentação presidencialista, uma vez que se trata do partido que tradicionalmente mais zeloso tem sido numa estrita delimitação dos poderes presidenciais e na autonomia política do Governo, desde o confronto de Mário Soares com o Presidente Eanes no início do regime constitucional de 1976, que culminou na revisão constitucional de 1982 e no fim da conflituosa responsabilidade política dos governos perante o PR. 

Ora, nem tudo pode ser justificado pela vulnerablidade política dos governos minoritários e pelo apoio oficioso de conveniência ao candidato presidencial incumbente...

Adenda
Um leitor objeta que o PR tem sido o "amparo" do Governo do PS e que, ao funcionar como "tutor do Governo" (citando-me), ele compartilha também a responsabilidade política pela ação governamental, dificultanto a tarefa da oposição. Compreendo o argumento, observando, porém, que o facto de o PR ser o "supervisor" do sistema político, como tenho defendido, não o autoriza a substituir-se à oposição e a suprir a inépcia e a desorientação desta, como se tem visto na conduta errática do PSD. O PR tem o dever constitucional de permitir ao Governo governar e à oposição opor-se. Mas, nem "amparo" do Governo nem suplente da oposição.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A mão visível (6): O seu a seu dono

1. A contestação de dois regulamentos de autoridades reguladoras independentes - o Regulamento da ANACOM sobre o concurso de redes de 5G, contestado pelos operadores, e o Regulamento da ERS (Entidade Reguladora da Saúde) sobre a transferência de doentes entre unidades de saúde, contestado pelo próprio Governo - veio dar expressão pública a um conflito, até agora latente, entre a competência política do Governo e a competência regulamentar das autoridades reguladoras independentes (ARI).

A questão subjacente é a de saber se a atuação destas excede a esfera das suas atribuições legais. 

2. No "Estado regulador" contemporâneo, em que a intervenção económica do Estado se centra na correção das "falhas de mercado" e na defesa da concorrência, por via legislativa e administrativa, a execução dessas tarefas e a aplicação das correspondentes medidas não cabem em geral ao Governo e à administração direta ou indireta do Estado dependente daquele, mas sim a autoridades reguladoras independentes, que não respondem perante o Governo e que não estão sujeitas nem às suas instruções ou orientações nem à sua tutela ou controlo. Isso é assim nos Estados Unidos desde o princípio do Estado regulador, há quase um século (anos 30 do século passado) e posteriormente na Europa (desde os anos 80).

O problema que daí resulta é o de saber quais são as fronteiras entre o poder legislativ0 e a função política do Governo, por um lado, e os poderes das autoridades reguladoras independentes, por outro lado.

3.  Se há coisas que a independência das autoridades independentes não pode pôr em causa, elas são, por um lado, o princípio da legalidade inerente ao Estado de direito e, por outro lado,  a reserva governamental da função política, inerente à responsabilidade democrática.  Constitucionalmente, é tão importante a separação entre o poder legislativo e o poder executivo, como a separação, dentro do último, entre a função política e a função administrativa. Ora, as autoridades reguladoras independentes só podem ter funções administrativas, de índole essencialmente técnica, estando, portanto, subordinadas ao poder legislativo e à função política do Governo.

Uma vez que as autoridades reguladoras independentes não gozam de legitimidade democrática própria e não são responsáveis politicamente, nem perante o Governo nem perante o Parlamento, torna-se óbvio que elas não podem tomar medidas que dependem do legislador ou da decisão política governamental.

Por mais amplas que sejam as cláusulas da lei ou dos seus estatutos, estes preceitos têm de ser interpretados em conformidade com a Constituição. Numa democracia representativa, instituções "não maioritárias" têm de ser politicamente neutras na sua ação, não podendo tomar decisões que envolvam opções de política económica ou outra.

4. Por conseguinte, a autonomia regulamentar das autoridades reguladoras não pode invadir, antes tem de respeitar, a reserva de lei do legislador democrático e a reserva de decisão política do governo democrático, que respondem ambos, direta ou indiretamente, perante a coletividade política.

Nesse quadro, salvo delegação ou autorização expressa, as ARI não podem criar ou alterar direitos e obrigações dos particulares nem da Administração (que caem na esfera do legislador) nem podem versar sobre a organização dos respetivos mercados (que cai na esfera da política económica sectorial), pelo que o seu poder regulamentar se limita a dispor sobre o exercício dos seus próprios poderes de supervisão e de sanção administrativa que a lei lhes confere e sobre os procedimentos correspondentes.

Fora disso, salvo credencial legislativa específica, as autoridades reguladoras atuam ultra vires, invadindo ou infringindo a esfera de atribuições do legislador e/ou do Governo. É o que me parece ter sucedido nos dois casos acima referidos.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Não concordo (18): O Chega agradece

 1. Onde as coisas já vão na obsessão sobre o Chega! 

Começou pela hipótese de proibi-lo; depois, veio a ideia de que nem sequer devia ter sido legalizado; por último, há duas candidatas presidenciais que asseguram que não dariam posse a um governo que o integrasse (ou fosse formalmente apoiado por ele), embora sem invocar a base constitucional para tal.

Para além de considerar estas posições politicamente precipitadas e constitucionalmente assaz problemáticas, entendo que elas pouco contribuem para travar a expressão eleitoral do Chega e impedir a sua possível entrada numa eventual futura coligação governamental de direita, se a direita vier a ser maioritária (o que não está no horizonte próximo) e o PSD for por aí. Pelo contrário, esta obsessão política com o Chega só lhe traz publicidade, alimentando a sua agenda populista. Ventura agradece.

2. É certo que uma democracia liberal é um compromisso entre a democracia e o liberalismo, implicando limitações da democracia em nome da liberdade (garantia de direitos fundamentais contra as maiorias políticas) e limitações à liberdade política em nome da democracia (proibição de organizações de tipo militar ou que tenham por objetivo a destruição do regime democrático). Todavia, ressalvado o caso extremo de salvação da democracia, o princípio básico de uma democacia liberal é a liberdade política.

O imprescindivel combate à extrema-direita populista tem de ser travado no campo político, quer na defesa dos valores da dignidade humana, do Estado de direito e do Estado social, quer na resposta às inquitações e queixas sociais que alimentam a agenda populista contra a o Estado e a "classe política".  Com a ressalva acima referida, as "medidas de segurança" proibitivas de organizações políticas escondem o défice de resposta política e são uma reação contraproducente.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Livres & Iguais (54): Comemorando o dia internacional dos direitos humanos

Apraz-me participar amanhã nesta oportuna iniciativa da organização de mulheres do PS na comemoração do dia internacional dos direitos humanos (adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1848).

Este ano, tendo em conta o impacto negativo da pandemia sobre os direitos humanos, o lema das Naçoes Unidas é "Stand up for Human rights"!

No caso europeu, cumpre lembrar este ano também o 70º aniversário da Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950) e o 20º aniversário da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), que ocorreram recentemeente.

O que devemos a estes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, nas suas várias vertentes, desde a liberdade individual até ao direito à saúde?

Brexit (3): No limite do prazo, a discórdia UE-UK persiste

[Origem da foto AQUI]

1. A três semanas do fim do prazo para a saída definitiva do Reino Unido da União Europeia, deixando de ter acesso livre ao seu mercado interno, persistem as divergências que têm impedido um acordo comercial entre ambos, para vigorar a partir de 1 de janeiro.

Entre as divergências remanescentes avulta a recusa do RU em dar garantias de manter um level playing field concorrencial entre as duas economias, especialmente quanto à proibição de ajudas de Estado, que favorecem ilegitimamente a competitividade comercial externa.

Além de invocar a sua soberania legislativa, Londres argumenta que a União não impôs tais exigências, por exemplo, ao Canadá. Ora, este argumento não faz nenhum sentido, porque as situações não são comparáveis.

2. De facto:
         - o acordo comercial com o Canadá não eliminou integralmente as tarifas aduaneiras com a UE, ao contrário do que se pretende no acordo com o RU;
        - o Canadá está longe, pelo que as suas exportações de bens para a União8 ficam mais caras, por causa dos elevados custos de transporte, o que não sucede com o RU;
        - as empresas exportadoras britânicas já têm as suas densas redes de clientes em toda a União, o que não sucede com o Canadá;
        - por último, o comércio internacional assenta cada vez mais nos serviços (financeiros, transportes, telecomunicações, etc.), onde o RU já é excecionalmente competitivo.

Ora, o RU não pode beneficiar de melhores condições no comércio com a UE depois da saída da União do que antes, quando tinha de cumprir as regras sobre proteção da concorrência no mercado interno da União contra ajudas de Estado ilícitas. 

3. O mesmo vale, pelas mesmas razões, para a garantia de padrões idênticos de proteção do do trabalhado e do e ambiente, impedindo o "dumping" laboral e ambiental. 

Por isso, a União tem toda a razão em (e a obrigação de) fazer do level playing field uma questão sine qua non.

Adenda

Declaração da chancelerina Merkel no Parlamento alemão: «We are starting now from a similar, harmonized legal system, but over the years these legal systems will develop apart in the fields of environmental policy, labor policy or health policy ... And we can't just say: We don't talk about that. Instead, we need a level playing field not only for today but also for tomorrow and the time ahead, and for that we need an agreement on how either side can react if the other changes the legal system,». Nem mais!

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Concordo (17): O imbróglio da TAP

[Fonte da imagem AQUI]

1. Concordo com a decisão do Governo de submeter o plano de recuperação da TAP, negociado com a UE,  a ratificação parlamentar. Se a Constituição não permite à AR avocar decisões de competência governamental, já nada impede que o Governo lhas submeta, sobretudo quando, como é o caso, a decisão vai ter um grande impacto duradouro sobre a economia e as finanças nacionais, que vai perdurar muito para além do mandato do atual Governo.

Importa, por isso, que todos os partidos assumam posição sobre o destino da TAP. A alternativa é: pagar uma fatura elevada pela sua reestruturação (e forte "emagrecimento"), confiando que o plano seja bem-sucedido, ou determinar o encerramento da transportadora, por inviabilidade.

2.  Sempre fui muito crítico do controlo político e da gestão empresarial da TAP, assim como da reversão da privatização em 2016 e do regresso do controlo do Estado em 2019. Entendo que a TAP tem custado demasiado dinheiro aos contribuintes nas últimas décadas, pagando a interferência política, a gestão ineficiente da empresa e os privilégios sindicais. E duvido que uma companhia aérea de gestão pública tenha condições de sobrevivência no ambiente concorrencial da UE e da aviação mundial.

Mas também compreendo a falta que pode fazer uma companhia aérea nacional sediada em Lisboa, capaz de assegurar ligações aéreas satisfatórias dentro do território nacional e com a Europa, os PALOP, o Brasil e demais países de forte emigração portuguesa.

Complicada equação política, portanto, aquela que o parlamento vai ser chamado a resolver e que vai pôr à prova todos os partidos da oposição.

3. A equação vai ser especialmente incómoda para a extrema-esquerda parlamentar (BE e PCP), confrontada com o dilema entre, por um lado, seguir o seu nacionalismo económico, e salvar a TAP, ou, por outro lado, ceder à tentação de rejeitar a "ditadura da União" e de recusar despedimentos e redução de regalias laborais (o que consideram inadmisssível em empresas públicas), mesmo que a alternativa seja pior, isto é, o encerramento da empresa.

Para o PSD (e demais direita), o desafio do Governo vem na pior altura, obrigando-o a optar entre apoiar a decisão governamental, em nome do "superior interesse" do País, ou em "tirar o tapete" ao Governo, para lhe criar dificuldades, como fez recentemente na recusa de injeção de capital no Novo Banco, via Fundo de Resolução.

Tudo somado, é de admitir que, por uma razão ou por outra, todos se recusem a aceitar o desafio governamental, através da abstenção, no meio de forte crítica da metodologia e da "inépcia governamental" na condução do dosssiê. E depois, é o habitual: o Governo dirá que a sua decisão foi apoiada pelo parlamento (com os votos do PS...) e as oposições dirão que a não endossaram!...

Adenda

Contrariando a vontade do Ministro da pasta, Pedro Nuno Santos, o Governo descartou a hipótese de submeter o plano de reestruturação a ratificação parlamentar. Terá pesado a consideração de que isso poderia criar problemas políticos indesejáveis. É evidente que, para além das reservas  da oposição em geral, o plano só podia suscitar a oposicão do PCP (por causa do seu custo social e por ser uma "imposição" da UE), o qual constitui o principal interlocutor político do Governo na atual legislatura, como se mostrou na votação do orçamento. 

Adenda 2

É de estranhar que o PSD, não se querendo comprometer nesse assunto, tenha invocado a "separação de poderes" como obstáculo à ratificação parlamentar do plano governamental (que seria feita a pedido do Governo), quando ainda há pouco, na votação do orçamento, esse partido votou airosamente várias pr0postas que claramente configuram decisões políticas, do foro governamental, alheias ao orçamento e à competência parlamentar, como mostrei AQUI e AQUI.