quarta-feira, 9 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (9): Receita para o desastre

A fuga para a frente nas sanções contra a Rússia cada vez mais impactantes sobre a economia - como a proibição norte-americana de importação de petróleo e de gás russo -, a que Moscovo responde com contrassanções ainda mais disruptivas - como a proibição de exportação de matérias primas e outros produtos -, é uma espiral que ameaça tornar-se uma receita para o desastre económico, mas não apenas da Rússia: entre dois fogos, a UE, incapaz de assumir uma linha autónoma, arrisca-se a tornar-se uma importante vítima colateral de uma guerra de que não é parte ativa...

Adenda
O Primeiro-Ministro alerta para os efeitos de ricochete das sanções ocidentais contra a Rússia, a que se pode acrescentar as contrassanções russas. Sucede, porém, que não era difícil antecipar tais consequências, como se alertou AQUI. O masoquismo político tem consequências...

Adenda 2
Um leitor acha que se está a «exagerar o impacto negativo da guerra e das sanções» na economia da UE. Penso que não tem razão: desde o início do ano, a cotação internacional do gás subiu cerca de 140%; a do petróleo, cerca de 40%; e a do trigo, cerca de 25%. Estas subidas vão obviamente repercutir-se sobre toda a economia, em inflação e em perda de crescimento (e também sobre as finanças públicas, quer pela redução da receita fiscal, quer pelo aumento da despesa para tentar amenizar o impacto da subida do preço da energia). Não é de excluir que a situação se agrave, à medida que a guerra se prolonga e que as sanções e contrassanções produzem efeito.

terça-feira, 8 de março de 2022

Bloquices (18): A intolerável economia de mercado

Revelando mais uma vez a sua aversão à economia de mercado, o Bloco de Esquerda vem novamente defender a fixação administrativa dos preços dos combustíveis, fingindo ignorar que, por princípio, onde há concorrência, não tem cabimento a regulação política dos preços. 

O combate aos eventuais carteis (ou seja, a combinação anticoncorrencial dos operadores à margem do mercado) incumbe à Autoridade da Concorrência, que, aliás, tem mostrado mão bem pesada na sua punição, o que só é de louvar. E os lucros extraordinários (windfall profits) resultantes das condições atuais do mercado (invasão da Ucrânia, sanções ocidentais) devem ser combatidos com medidas fiscais conjunturais sobre as empresas, cuja receita deve reverter em benefício dos consumidores.

Mas, como é vidente, isto são "pormenores" que o Bloco prefere ignorar, no seu anticapitalismo primário.

Adenda
Um leitor argumenta que (i) «o aumento dos combustíveis [é] um autêntico esbulho aos consumidores que conduz ao enriquecimento ilícito das petrolíferas», (ii) que «não há verdadeira concorrência, [pois] os preços praticados são idênticos, muitas vezes à milésima de Euro» e que (iii) «para a AdC actuar, é preciso provar que houve cartelização, combinação de preços entre os vários operadores» -, pelo que concorda com a fixação política de preços máximos. A minha resposta é que (i) a fixação administrativa de preços, para além de contrariar essencialmente a lógica da economia de mercado, é sempre um instrumento grosseiro, especialmente num setor muito volátil, como o dos combustíveis, em que as cotações mudam ao dia, e que (ii), começando pelos combustíveis, o risco seria avançar para a intervenção nos preços em outros setores. Por isso, prefiro o ataque fiscal aos sobrelucros das companhias, que são mais fáceis de estimar e de tributar.

Contra a invasão da Ucrânia (8): Cedência ucraniana?

1. Se sincera, esta abertura de Zelensky, numa entrevista um canal de TV norte-americana, a concessões quanto a dois dos principais fatores que motivaram a invasão russa na Ucrânia - ou seja, a desistência de entrada na Nato e o reconhecimento de um estatuto especial para os territórios russófonos do leste do país - pode abrir uma perspetiva negocial para a paz. 

De resto, se feita antes, essa abertura negocial bem poderia ter evitado a invasão em curso. O problema é que, com o imprudente apoio dos Estados Unidos e da UE, Kiev optou pela intransigência nacionalista desafiadora do ressentimento russo.

2. É certo que, depois de iniciada a invasão, Moscovo subiu a parada: não apenas a não entrada na Nato, mas também a desmilitarização e a "desnazificação" da Ucrânia; não somente o autogoverno das províncias do Leste, mas sim o reconhecimento da sua independência, assim como da anexação russa da Crimeia. Todavia, tendo em conta os pesados custos que a guerra também impõe à Russia, não é de excluir a possibilidade de um compromisso russo-ucraniano na base daqueles dois pontos fulcrais, em troca da garantia da soberania e da segurança da Ucrânia.

Neste novo quadro, em vez do seguidismo acrítico que tem mostrado em relação aos Estados Unidos, a UE, sem deixar de condenar firmemente a invasão e de apoiar a Ucrânia, deveria encorajar todos os sinais que possam representar janelas de oportunidade para uma solução negociada do conflito. Para bem dos ucranianos, que sofrem as agruras da invasão, e da própria União, que também vai pagar uma fatura pesada pela guerra (enquanto os Estados Unidos e a China dela beneficiam).

Adenda
Um leitor argumenta que «nenhum tradado de paz pode ser assinada pela Ucrânia se não incluir o retorno da Crimeia à sua soberania». Estou de acordo. Mas penso que a anexação da Ucrânia pela Rússia em 2014 foi uma reação à viragem antirrusssa em Kiev nesse ano e ao pedido de integração na Nato, o que poderia pôr em risco a base russa de Sabastopol, pilar essencial da defesa marítima da Rússia, pelo que é de admitir um compromisso que passe pela devolução da península à Ucrânia, com um estatuto de região autónoma, e pela confirmação, sem termo, da jurisdição russa sobre Sebastopol

Adenda 2
Não deixa de ser surpreendente que esta importante declaração do líder ucraniano tenha passado sem o devido destaque nos média e praticamente sem referência pela legião de comentadores que a toda a hora debitam opiniões sobre a guerra. Será porque ela não condiz com a narrativa belicista que têm persistentemente "vendido" sobre o conflito?

Adenda 3
Comentário de um leitor: «Depois desta estrevista, Zelensky arrisca-se a passar de herói a traidor e a ser despedido por Washington». Muito provável...

Adenda 4
Um leitor comenta que «Zelenski não é fiável e que (...) não tem real poder. Há na Ucrânia forças nacionalistas muito poderosas. Mesmo que Zelensky ceda, essas forças não cederão. E mesmo que Zelensky aceite acordar a paz, essas forças insistirão na via da guerra.» Pode ser que tenha razão, mas declarações destas não são gratuitas e devem ser exploradas a favor de uma solução de paz negociada.


segunda-feira, 7 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (7): Entre a paixão e a razão

Sendo claro que, passadas quase duas semanas do início da invasão, ela só vai terminar com a derrota e ocupação da Ucrânia e que, quanto mais durar a guerra, mais destruído ficará o país, não será altura de a União Europeia, sem prejuízo da condenação da invasão e da solidariedade com Kiev, reponderar a sua atitude passional e de alinhamento acrítico com Washington, atirando gasolina para a fogueira, e encarar a possibilidade de se tornar num fator ativo de moderação, em prol de um cessar-fogo e do início de negociações para a paz?

Não parece já evidente que, embora não sendo beligerante, a UE vai ter de suportar enormes custos da guerra (refugiados, preços da energia, inflação, travagem dos crescimento económico, nova guerra-fria duradoura com a Rússia) e que a China e os Estados Unidos vão ser os seus principais beneficiários? Não será altura de a UE (e em especial os governos social-democratas) introduzir um módico de racionalidade e de self-interest na avaliação da guerra?

Adenda
Manifestando a sua concordância, um leitor habitual acrescenta: «Eu acrescentaria que, para o efeito pretendido, a UE tem todo o interesse em começar a aligeirar as sanções sobre a Rússia, as quais constituem um impedimento maior a que esta aceite qualquer solução negociada. Algumas sanções são supinamente estúpidas - como banir os meios de comunicação russos e como banir artistas ou desportistas russos - e deveriam ser imediatamente eliminadas. E tem que se dar à Rússia a perspetiva de que as outras sanções também serão eliminadas, desde que haja uma solução negociada.» Penso que, salvo as duas referidas (que, a meu ver, envergonham a União), as sanções devem manter-se como pressão sobre a Rússia para uma solução negociada.

Adenda 2
Outro leitor também habitual deste blogue pergunta se estou «a sugerir uma política de "appeasement"», ou seja, concessões a um agressor para evitar conflitos. A resposta é obviamente negativa: primeiro, porque o conflito já está desencadeado; segundo, porque o que proponho é um compromisso negocial entre as partes, "abonado" por outras potências (incluindo a UE), em que as cedências da Ucrânia (renúncia à entrada na Nato e autogoverno das províncias russófonas) teriam como contrapartida a garantia pela Rússia da soberania e da segurança daquela.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (6): Erro de enquadramento

1. Há quem condene a invasão russa da Ucrânia, não por ser uma agressão à soberania territorial de outro Estado (como se isso não bastasse!), mas sim por se tratar do ataque de uma alegada "ditadura" a uma suposta "democracia liberal". 

Compreende-se o propósito implícito: uma invasão já não seria censurável se se tratasse de uma democracia liberal a uma ditadura, para mudar ao regime, tese que o chamado pensamento "neoconservador" norte-americano defendeu há poucas décadas, para justificar as intervenções dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, e que ressurge regularmente quando convém, como, por exemplo, para justificar as intervenções ocidentais na Síria e na Líbia, e chegou a ser encarado no mandato do Presidente Trump para justificar uma intervenção na Venezuela.

No entanto, não há invasões de um país por outro menos ilegais e condenáveis do que outras. À face do direito internacional, o respeito pela soberania territorial dos Estados e a proibição da agressão militar não dependem do regime político dos países em causa

2. Sucede que, tanto quanto é possível avaliar a partir da justificação russa para a invasão - proteção dos direitos da minoria russa, desmilitarização e "desnazificação" da Ucrânia -, ela não tem a ver com o regime político vigente em Kiev, podendo ter ocorrido mesmo que se tratasse de um regime autocrático.

Sendo lícito considerar que a principal razão russa para invasão visa impedir a jurisdição da Nato de chegar às fronteiras da Rússia, mantendo a Ucrânia como país-tampão neutral, também tem de concluir-se que não existe nenhuma identificação necessária entre a Nato e a democracia liberal: sendo verdade que a maior parte do países que integram a Nato são democracias liberais, tal não é uma condição (Portugal antes de 1974, Turquia e Hungria hoje), havendo várias democracias liberais europeias que a não integram, mantendo-se neutrais (Suécia, Suíça, Finlândia, Áustria). 

Por conseguinte, não sendo necessário para a condenar sem reservas, em nome do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, também não é politicamente correto enquadrar a invasão russa da Ucrânia como uma guerra entre a autocracia e a democracia liberai.


Contra a invasão da Ucrânia (5): O Estado ucraniano não pode ser posto em causa

1. Não conheço nenhuma indicação que a apoie a tese, hoje corrente na interpretação antirrussa da guerra, segundo a qual os objetivos da invasão não seriam apenas os declarados - ou seja, desarmar a Ucrânia, de modo a garantir a segurança da Rússia, e salvaguardar os direitos da minoria russa -, mas sim reintegrá-la na esfera russa, a que pertenceu durante séculos. E francamente, não se vê como é que um tal objetivo poderia ser realizado: uma coisa é atacar e vencer pelas armas um país vizinho, outra coisa é subjugar e absorver politicamente um país com a dimensão territorial e populacional da Ucrânia.

Aliás, se a Rússia nunca poderia reverter a independência da Ucrânia, que reconheceu há quase três décadas, a própria invasão russa e as perdas materiais e humanas infligidas pela guerra vão criar um clima de hostilidade, se não de ódio, ao ocupante, que tornaria impossível qualquer tentativa de reintegração pacífica do País. Isto, para além das sanções internacionais e do isolamento da Rússia na comunidade internacional.

2. Parecendo isto óbvio, não se compreende a insistência de Putin, antes e após a invasão, em afirmar a "unidade" da Rússia e da Ucrânia, que seriam "um só povo", como se esta fosse uma parte naturalmente integrante daquela e como se a secessão e a independência ucraniana há três décadas não fosse mais do que um "efeito colateral" acidental do desmoronamento da União Soviética e do comunismo, que fosse possível reparar agora.

Por mais que pudesse debater-se a questão da identidade nacional da Ucrânia - dadas as suas mutações territoriais e a sua diversidade étnica, linguística e religiosa -, a verdade é que é a própria invasão russa e a resistência ucraniana que vem fornecer ao País o cimento político e o sentido de unidade e identidade de que eventualmente pudesse carecer. Com a invasão, Putin veio proporcionar à Ucrânia aquilo que lhe negava!

A história mostra que as tentativas de reintegração pela força de antigos territórios separados apenas legitimam e reforçam o seu sentido de independência.

terça-feira, 1 de março de 2022

Regionalização (5): A questão do referendo

1. Tendo voltado à agenda política, por iniciativa do governo do PS, a questão da descentralização regional no Continente (ou "regionalização"), mais de duas décadas sobre a rejeição da sua primeira versão no referendo de 1998, era inevitável que a questão do referendo regional, introduzido somente na revisão constitucional de 1997, viesse a ser de novo sujeita a debate público.

O que era menos esperado é que a abertura desse debate coubesse à nova presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, a socialista Luísa Salgueiro (presidente da CM de Matosinhos), a qual, embora sem pôr em causa a necessidade de referendo, imposto pela Constituição, avançou com uma proposta pública de alteração do regime constitucional do referendo quanto a dois pontos precisos

         - sujeitar a referendo somente o mapa regional geral, eliminando a segunda pergunta, relativa a cada área regional em especial;   

        - suprimir o requisito do quorum de 50% de participação no referendo como condição de vinculatividade da deliberação popular.

Embora na área do PS esta proposta não tenha suscitado comentários públicos, o mesmo não sucedeu no âmbito do PSD, como decorre desta recente peça noticiosa. Parece evidente que as ideias da presidente da ANMP não são consensuais à partida.

2. Das duas referidas propostas, a que faz mais sentido é a segunda, visto que a eventual exigência de participação de mais de metade dos eleitores no território nacional no referendo poderia vetar mais uma vez a criação das autarquias regionais, mesmo que o "sim" ganhasse por confortável maioria.

Note-se que o art. 256º da CRP não é líquido sobre essa questão. Se o nº 3 desse preceito constitucional remete para o regime geral do referendo (art. 115º), onde se inclui o requisito da participação de 50%, já o nº 1 daquele mesmo preceito apenas exige o «(...) voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta (...)», sem referir um quorum mínimo. Todavia, parece evidente que não pode convocar-se o referendo sem clarificar esta dúvida constitucional e ela não pode ser resolvida por consulta prévia ao TC.

Com efeito, nunca se conseguiu o referido quorum em nenhum dos referendos nacionais até agora realizados, nomeadamente no citado referendo regional de 1998, apesar da polémica a que deu lugar. Não há nenhuma razão para acreditar que desta vez seria diferente, tanto mais que a abstenção eleitoral cresceu desde então. A inclusão no recenseamento interno de muitos eleitores ausentes no estrangeiro (mas co morada indicada em Portugal) aumenta artificialmente a abstenção (calcula-se que em cerca de 10pp). 

Por isso, realizar o referendo sem afastar claramente essa condição é matar deliberadamente a regionalização à partida.

3. Ora, independentemente de se considerar exagerada essa condição para qualquer referendo - o que levaria a reduzi-la, como proponho (por exemplo, para 40%) -, penso que há bons argumentos para prescindir de qualquer exigência de participação mínima no caso deste referendo específico.

São eles os seguintes:

  - trata-se do único referendo obrigatório sobre a implementação de uma reforma institucional prevista desde o início na CRP, cuja ausência configura uma "inconstitucionalidade por omissão", ainda por cima numa questão-chave da arquitetura do Estado territorialmente descentralizado preconizado na Constituição;

  - trata-se do único caso em que a execução de uma lei da AR (aliás, uma "lei orgânica" aprovada por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções) fica dependente da sua subsequente ratificação em referendo, à revelia da lógica da democracia representativa;

  - este referendo não é sobre a regionalização em si mesma (pois esta está determinada pela Constituição), nem sequer sobre a lei-quadro em geral (atribuições, organização, etc.), mas sim somente sobre o mapa das autarquias regionais previamente definidas na referida lei;

  - uma vez que os residentes no estrangeiro não participam neste referendo, não se compreende que nele interfiram indiretamente, só pelo facto de muitos manterem indevidamente a sua morada em Portugal. 

Por conseguinte, não faz nenhum sentido que um referendo especial como este fique sujeito ao regime geral do referendo e que a vontade de uma maioria absoluta da AR e dos cidadãos votantes na consulta popular seja aniquilada pelos abstencionistas, que, por definição, não querem participar na decisão. Neste caso, a abstenção não pode ser contada como "não". 

É importante, por isso, que os partidos que apoiam a descentralização regional se pronunciem claramente e atempadamente sobre esta decisiva questão.

Adenda
Ao contrário do que se lê no título desta descuidada peça jornalística, Luísa Salgueiro não defendeu nenhum "referendo sem mapa", tendo defendido somente a supressão da segunda pergunta, sobre cada região em especial, de modo a evitar que alguma das autarquias regionais sujeitas a referendo fique por criar, caso seja rejeitada pelos respetivos eleitores (como poderá ser o caso de Lisboa e Vale do Tejo...).

Adenda 2
Um leitor pergunta se o PR pode recusar a convocação do referendo, quando proposta pela AR. Parece óbvio que não, justamente por se tratar de um referendo obrigatório para dar cumprimento a uma obrigação constitucional. Se o PR tiver alguma objeção à modalidade de descentralização regional adotada, o momento de a suscitar é na promulgação da lei da AR que cria as autarquias regionais, e que precede o referendo.

Sim, mas (9): Emergência sanitária

1. O Jornal de Notícias de hoje relata que o PS vai avançar com a prometida lei de emergência sanitária, a fim de enquadrar devidamente as medidas necessárias num quadro de pandemia, como sucedeu nos últimos dois anos.

Não tenho dúvidas da conveniência de uma tal lei, para autorizar restrições especiais a algumas liberdades individuais (como a liberdade de circulação, a liberdade de empresa, a liberdade de trabalho, a liberdade de reunião, a liberdade culto, etc.) e para impor certas obrigações excecionais (obrigação de uso de máscara, de testes sanitários, etc.), mas entendo que, sem uma mudança na Constituição, algumas medidas adotadas durante a recente pandemia, como a quarentena, o confinamento domiciliário ou o recolher obrigatório, só podem ser decretadas em estado de sítio ou estado de emergência, por se tratar de casos de verdadeira suspensão ou privação de direitos, e não da sua simples restrição, a qual não permite lesar o "núcleo essencial" dos direitos fundamentais afetadas, como ocorre nos referidos casos.

2. Houve quem, durante a pandemia, tentasse justificar constitucionalmente tais medidas, invocando a necessidade de proteger o direito à saúde de terceiros, também garantido na Constituição.

Todavia, tal como ensinam os constitucionalistas, um eventual conflito de direitos (entre o direito à saúde e o direito à liberdade pessoal) só poderia justificar a restrição de ambos, não a privação de um deles em benefício do outro, tanto mais que a Constituição cuida de enunciar explicitamente os casos excecionais de privação do direito à liberdade além da pena de prisão e da prisão preventiva (CRP, art. 27º), entre os quais não se conta o direito à saúde, o qual obviamente não pode ser acrescentado por suposta analogia. Foi este, aliás, o entendimento das decisões judiciais que concederam o habeas corpus em várias situações de quarentena fora de estado de emergência, por detenção infundada.

Por conseguinte, tal como tenho defendido várias vezes (por último, AQUI), a tal lei de emergência sanitária ficará aquém do necessário sem uma prévia revisão constitucional.

Contra a invasão da Ucrânia (4): "A Ucrânia não deve aderir à NATO"

Vale a pena recordar este artigo de 2014  sobre a Ucrânia de Henry Kissinger, que sabia a do que falava, onde defendia que o país deveria manter o estatuto de neutralidade, sem aderir à NATO (como aqui também defendi).

Adenda
Um leitor acusa-me de "desalinhar do consenso ocidental" de condenação sem reservas da agressão russa, mas não tem razão. Tendo condenado desde o início a invasão em termos inequívocos, só não tenho acompanhado o tal "consenso" político e mediático quando se trata de ignorar deliberadamente as responsabilidades euro-americana e ucraniana na criação dos fatores que deram à Rússia os pretextos para a invasão e sem consideração dos quais não se vislumbra a possibilidade de repor a paz na Ucrânia e restabelecer uma vizinhança pacífica entre a UE e a Rússia. Por isso, pareceu-me importante recordar este texto de Kissinger, que não pode seguramente ser acusado postumamente de "falta de alinhamento" com o Ocidente na relação com a Rússia pós-soviética. Os interesses políticos da UE na Europa - a que a Rússia pertence - não têm de coincidir sempre com os dos Estados Unidos.

Adenda 2
Também não sufrago a sanção de banimento de cadeias de informação russas do espaço mediático ocidental: primeiro, porque se trata de medidas de censura impróprias de democracias liberais e, segundo, porque não vejo motivo para privar os cidadãos de conhecerem o ponto de vista russo. Embora apoiando a Ucrânia contra a invasão russa, como devem, os EUA e a UE não estão em guerra com a Rússia, pelo que não devem recorrer a medidas mais próprias do "outro lado".

Este País não tem emenda (27): Calotes estudantis

Só por incúria das universidades e institutos politécnicos é que a dívida de propinas do ensino superior público pode atingir um tal montante.

Sabendo-se que as taxas do ensino superior baixaram substancialmente desde 2015 - um dos custos orçamentais da "Geringonça" - e que cresceu o número de estudantes beneficiários de bolsas de estudo - o que é de aplaudir -, não há nenhuma razão para este nível elevado de incumprimento, mesmo contando com algum impacto negativo da pandemia. E, em vez de se queixarem somente do seu subfinanciamento orçamental, as instituições de ensino superior públicas fariam bem a cobrar os seus créditos e robustecer o seu nível de autofinanciamento -  aliás, condição de uma maior autonomia face aos governos.

Sei bem que para os dirigentes estudantis as propinas nem sequer deveriam existir, apesar de atualmente só cobrirem uma pequena parte dos custos do investimento de que beneficiam, sendo o seu financiamento coberto na maior parte pelos contribuintes em geral. Mas, enquanto as propinas existirem - e eu espero que continuem a existir! -, devem ser cobradas.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (3): «O Ocidente falhou a Ucrânia»

1. Na justa condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia não devemos esquecer, porém, o encadeamento do processo político que levou a este desenlace, justamente recordado neste artigo de um especialista em política internacional, J. P. Teixeira Fernandes, no Público de ontem, de que vale a pena transcrever o último parágrafo:

«O Ocidente falhou em termos morais e políticos. Falhou por não falar claro à Ucrânia e ajudá-la a perceber a opções reais que tinha. Levou-a a afastar-se da neutralidade sem lhe dar uma alternativa exequível. Pior ainda, o Ocidente ignorou o interesse estratégico permanente da Rússia e os seus sentimentos de humilhação, sem proteger efectivamente a Ucrânia. Não obstante a invasão da Rússia ser totalmente injustificada, desrespeitar grosseiramente o Direito Internacional e merecer uma condenação inequívoca, há responsabilidades ocidentais que não se podem iludir agora. A ambição ucraniana de integração da NATO e União Europeia precisava de garantias efectivas de realização. Se isso sempre foi assim, tornou-se demasiado evidente após a anexação da Crimeia (2014). Mas o que fizeram a NATO e a União Europeia? Encorajaram (demasiado) a orientação ocidental da Ucrânia — espicaçando o nacionalismo russo — sem se comprometerem (de forma adequada) com a sua adesão. Não o fizeram porque isso implicava dar garantias de adesão e de segurança militar, assumindo o risco de enfrentar a Rússia, algo que os ocidentais não estavam dispostos a fazer. Para além das manifestações de solidariedade a custo zero, afinal, quem quer morrer pela Ucrânia?»

2. Outro aspeto em que a atual unanimidade antirrussa me parece falhar consiste em apresentar a invasão da Ucrânia como uma decisão isolada do "ditador" Putin e da elite do poder do Kremlin na execução de um maquiavélico projeto pessoal de reconstituição do antigo império russo. 

Ora, se bem interpreto o que se passa na Rússia, o espírito nacionalista e o receio pela segurança nacional são hoje sentimentos vastamente dominantes entre a população, decorrentes da desagregação do império aquando do desmoronamento da União Soviética, da discriminação das minorias russas nos novos países independentes e da expansão da Nato até às fronteiras da Rússia.

Como já assinalei anteriormenteespicaçar e alienar uma potência vencida e ressentida acarreta riscos, aliás anunciados, que não deviam ter sido ignorados.

Fernando Rocha Andrade (1971-2022)

Académico bem-sucedido, político brilhante, socialista empenhado, Fernando Rocha Andrade ("FRA", entre alguns amigos) foi um dos espíritos mais fogosos, criativos e conviviais que conheci. O seu falecimento tão prematuro priva a FDUC, o PS e o País de um grande valor. As minhas condolências a familiares e amigos pela enorme perda.

Adenda

Contra a invasão da Ucrânia (2): Imprevidência russa

Há manifestamente vários fatores com que Putin não terá contado na sua decisão de invadir a Ucrânia, que podem complicar a sua guerra: (i) a determinação de Kiev em resistir ao ataque; (ii) a condenação geral por esse mundo fora e, em especial, na UE; (iii) a escala sem precedente das sanções (financeiras, económicas, desportivas, etc.) aplicadas à Rússia pelos Estados Unidos e pela UE.

Suponho não ser exagero afirmar que, para além do grande e duradouro fosso que vai aprofundar entre o ocidente e a Rússia - porventura o aspeto mais negativo -, uma das consequências desta guerra vai ser o reforço da coesão interna e da política de defesa da União Europeia e o enfraquecimento dos partidos antieuropeístas, alguns dos quais não escondiam a sua simpatia com o nacionalismo russo.

Adenda
Um leitor diz que não vê base nos Tratados da União para o financiamento de armas à Ucrânia e para o  anúncio pela presidente da Comissão Europeia da admissão antecipada do país como membro da União, cujo processo de adesão ainda nem sequer foi iniciado. Dúvidas pertinentes...

Não com os meus impostos (6): O RBUI

Não consigo compreender como é que uma ideia tão insensata, tanto política como financeiramente, como o "rendimento básico universal incondicional" pode ser levada a sério. 

De facto, que sentido faz subsidiar por igual, e sem condições, toda a gente, multimilionários e beneficiários de RSI, esperando que daí não resulte redução da propensão para o trabalho, a poupança e o investimento? E que ganhariam os mais pobres, se tal nova prestação implicasse a cessação das prestações não contributivas de que já são beneficiários (como o RSI, o abono de família, o subsídio social de desemprego, etc.), como propõem os adeptos da peregrina doutrina? E - questão crucial - como é que um país altamente endividado, como Portugal, poderia acrescentar mais uns milhares de milhões de euros por ano à despesa pública, sem uma enorme subida da já elevada carga fiscal, com a consequente fuga de capitais, de investimentos e de profissionais mais bem remunerados, que seriam os principais financiadores do novo "maná social"?!

Sempre houve utopias políticas, mas esta não se conta seguramente entre as chamadas "utopias realizáveis"!

Adenda
Um leitor manifesta surpresa pela minha oposição sem concessões ao RBUI, julgando tratar-se de uma ideia sufragada pela esquerda em geral. Lamento desapontá-lo, mas oponho-me a essa proposta desde sempre, por exemplo AQUI e AQUI. E, se bem estou informado, nem os partidos da extrema-esquerda sufragam essa ideia.

Adenda (2)
Pelas razões acima aduzidas, também me recuso a ver no RBUI um reforço do "Estado social". Pelo contrário, o enorme custo orçamental dessa nova prestação universal poria seguramente em risco o financiamento público das tradicionais prestações universais do Estado social, a saber, o ensino, os cuidados de saúde e a segurança social, cujos custos, aliás, não cessam de aumentar.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Contra a invasão da Ucrânia

1. Não é admissível o silêncio sobre a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, a maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial. Por mais previsível que fosse, não deixa de ser uma agressão, em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, que só pode merecer condenação geral.

Só é de lamentar que a Ucrânia e a Nato tenham fornecido pretextos à Rússia para esta ofensiva, desde o abandono do estatuto de neutralidade ucraniana (que tinha sido condição explícita do reconhecimento da independência ucraniana por Moscovo), logo substituída pelo pedido de adesão à Nato (uma óbvia provocação à Rússia), até ao incumprimento do acordo de Minsk de 2015 sobre a autonomia dos territórios russófonos do leste da Ucrânia (que Kiev manteve sob constante assédio militar).

Quando se mora ao lado de um gigante ressentido, convém não lhe dar pretextos para a agressão.

2. Para além dos imprevisíveis custos humanos, materiais e financeiros da guerra para os biligerantes e dos seus reflexos económicos negativos sobre terceiros países, especialmente na Europa (aumento dos custos da energia, inflação, travagem da retoma económica) - agravados pelas sanções e contrassanções -, esta lamentável guerra na Europa vem reestabelecer a inimizade estratégica entre o ocidente (EUA e UE) e a Rússia, que se julgava superada desde o desmoronar da União Soviética há três décadas, desvalorizando a oposição sistémica com a China, entretanto tornada uma potência económica e militar de primeiro plano e apostada em ocupar um lugar hegemónico num futuro próximo.

Se há uma capital que pode tirar proveito desta guerra europeia, é Pequim.

Adenda
Sobre o risco sério de estagflação (estagnação económica acompanhada de inflação) ver este texto de Nouriel Roubini (reservado a assinantes).

Adenda 2
A propósito de atual coro quase unâmine de condenação da invasão russa, noto que muitos dos críticos aplaudiram entusiasticamente, num passado não muito longínquo, agressões externas não menos ilegítimas e condenáveis, como a agressão da Nato à Sérvia, em 1999 (a pretexto de um suposto "genocídio" no Kosovo, que não passava de repressão do separatismo kosovar) e da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003 (a pretexto de alegadas "armas de destruição maciça", que depois se provou não existirem). Duplicidade de critérios, portanto!

Adenda 3
Um leitor pergunta porque é que a projetada adesão da Ucrânia à Nato seria uma "provocação à Rússia". A resposta é: pela mesma razão que os Estados Unidos não tolerariam nenhuma aliança militar de um país seu vizinho com uma potência hostil, tendo por isso considerado uma intolerável provocação a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, em 1962 (aliás em resposta à instalação de mísseis norte-americanos na Turquia), emitindo um ultimato para a sua retirada e pondo o mundo à beira de uma guerra nuclear. Nenhuma potência admite mísseis de outra apontados contra si no quintal do vizinho.

Adenda 4
Um leitor comenta que Putin quer ocupar a Ucrânia e destituir o governo, para depois conseguir, numa posição de força, obter os seus dois objetivos (neutralidade militar e política ucraniana e autonomia das províncias russófonas), a troco da desocupação e de um pacto de segurança do País. Pode ser que tal seja o resultado deste conflito, mas a invasão russa e as feridas da guerra terão destruído qualquer possibilidade de vizinhança respeitosa entre os dois países, além de uma nova "guerra fria" entre o ocidente e a Rússia.

Adenda 5 (27/2)
Um leitor argumenta que o único modo de um país não-nuclear se sentir seguro é integrar uma aliança militar poderosa. Mas há também o estatuto de neutralidade, especialmente protegido pelo direito internacional, que nem mesmo Hitler ousou violar em relação à Suíça e à Suécia. Não consta que Ucrânia tenha sido ameaçada de invasão russa enquanto manteve o estatuto de neutralidade, até 2014. A propósito, a Suécia e a Finlândia, com fronteiras com a Rússia, cuidaram de reiterar que não pretendem abandonar o estatuto de neutralidade e aderir à Nato...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Não dá para entender (32): Imprevidência à portuguesa

1. Como aqui bem se argumenta, a propósito de iminente ataque terrorista em Lisboa, a falta de acesso das autoridades competentes a metadados das comunicações privadas de pessoas suspeitas de atos terroristas e outros crimes graves constitui uma importante vulnerabilidade da segurança em Portugal.

Sucede que depois de várias tentativas frustradas para contornar a Constituição, devidamente rejeitadas pelo Tribunal Constitucional, os dois partidos de Governo em Portugal não avançaram para a necessária revisão constitucional, que só eles podem aprovar, mantendo a equívoca situação existente. Não dá para entender.

2. Independentemente  de uma revisão constitucional mais vasta, destinada a "aprimorar" a Lei Fundamental e prepará-la para mais meio século de vigência, há alguma alterações pontuais que há muito se impõem, porque têm a ver com a capacidade do Estado para responder a ameaças à segurança, lato sensu, do País

À cabeça surgem as seguintes, destinadas a validar medidas atualmente sem cobertura constitucional:

        - permitir o internamento ou o confinamento pessoal em caso de doenças infeto-contagiosas que ameacem a saúde pública, sem necessidade de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência;

        - permitir o acesso das serviços de segurança aos metadados de comunicações privadas, em certas situações de risco grave para a segurança interna ou externa;

        - permitir a participação das forças armadas em missões de segurança interna, em coordenação com as forças de segurança. 

O poder político não é responsável somente pelas políticas malsucedidas, mas também pelas omissões indevidas. 


Este País não tem emenda (26): Desperdício

As volumosas perdas de água nas redes de abastecimento público não são somente um sobrecusto da gestão municipal que os munícipes têm de suportar na sua conta de água ou nos seus impostos e taxas municipais, sendo também o irresponsável desperdício de um recurso natural que a seca vai tornando cada vez mais escasso e valioso. 

Apesar de se tratar de feridas que não se veem, por ficarem debaixo do chão, os governos municipais têm de lhe dar prioridade. O serviço público de distribuição de água é municipal, mas existe uma agência reguladora do Estado, a ERSAR, que tem de levar a sério este inaceitável desperdício de água, quanto mais não seja no que respeita à recolha e a divulgação da informação pertinente, para informação dos cidadãos e vergonha dos municípios mais desmazelados.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Sim, mas (8): Ranking democrático

Embora baixando dois lugares em relação ao ano anterior, Portugal mantém-se relativamente bem posicionado no habitual ranking da democracia no mundo, da revista britânica The Economist, relativo a 2021, ocupando a 28ª posição na lista geral (entre 165 países e territórios) e um dos primeiros lugares do vasto grupo das "democracias imperfeitas" (flawed democracies), junto com países como a França, a Espanha, os Estados Unidos e a Itália.

Como se retira da tabela junta, a classificação resulta de consideração de cinco critérios, sem ponderação preferencial. Entre eles, os pontos mais fortes de Portugal são as "processo eleitoral e pluralismo" político" (9,58/10) e as "liberdades civis" (8,58/10), fatores decisivos de qualquer regime democrático; e os indicadores mais fracos são a "participação" e a "cultura política", onde o score fica abaixo de 7/10. 

Obviamente, os aspetos menos positivos não são fáceis de corrigir num breve lapso de tempo, porque não dependem de reformas legislativas nem de voluntarismo político dos governos. Mas não devemos desistir de os melhorar...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Praça da República (62): Feliz escolha

Saúdo a nomeação de Jorge Miranda para presidir às comemorações de 10 de junho deste ano, que desta vez decorrem em Braga. 

Como assinalou o Presidente da República, trata-se de um bracarense que, além de insigne constitucionalista, foi uma dos mais influentes deputados à Assembleia Constituinte (1975-76), deixando a sua marca pessoal no texto da CRP de 1976, cujo cinquentenário se aproxima, e que, como poucos, a tem ensinado e valorizado, como Lei fundamental do País.

Como coconstituinte, amigo e admirador de Jorge Miranda, aqui deixo as minhas felicitações e os meus votos de êxito nesta nova tarefa cívica.

Ai, a dívida (20): Continuamos em terceiro lugar


1. Neste gráfico, tirado daqui, com dados de outubro de 2021, já com os efeitos da pandemia, vemos que há 12 países no mundo ainda mais endividados do que Portugal, incluindo países muito ricos (como o Japão e os Estados Unidos) e outros muito pobres (como a Eritreia e Moçambique). 

No entanto, no nosso "campeonato", que é o dos países da UE, só a Grécia e a Itália nos batem

2. Reduzindo a receita pública (por causa da crise económica) e aumentando a despesa (despesas de saúde e de apoio à economia), a pandemia não podia deixar de aumentar o défice e a dívida, como  se antecipou aqui

No entanto, a retoma económica pós-pandemia e o "pote" de dinheiro do PRR da UE proporcionam condições excecionais de redução substancial do défice orçamental e do rácio da dívida, o que bem preciso é, para contrariar a provável subida dos juros no mercado da dívida, provocada pelo previsível aperto da política monetária do Banco Central Europeu (cessação do programa de compra de obrigações de dívida pública e subida da taxa de juro de referência), em resposta à subida da inflação na zona euro, muito acima do valor de referência de 2%. 

O maná do endividamento barato (cortesia BCE) está em vias de acabar e as normas de disciplina orçamental da UE, suspensas desde 2020, devem regressar no próximo ano. Prudência orçamental e redução acelerada da dívida, aproveitando as condições favoráveis, impõem-se.

Adenda (10/1)
Como decorre do meu texto, concordo inteiramente com esta posição do governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, sobre a «prioridade absoluta» a dar à redução da dívida pública, aproveitando o robusto crescimento económico e as verbas do PRR da UE e prevenindo a anunciada mudança de ciclo da política monetária do BCE. A tentação política de aumentar a despesa pública, a pretexto da alegada "folga orçamental", deve ser rigorosamente evitada. De resto, não há "folga orçamental" enquanto houver défice orçamental. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Assim vai a política (10): Não vale tudo contra o Chega

O pior modo de combater politicamente o Chega é pelo recurso à ofensa pessoal. Tais métodos só lhe dão força. Não se combate o Chega com as armas do Chega.   

Adenda
Em contrapartida, Louçã tem toda a razão nesta queixa judicial contra esta sacanice de um deputado do Chega. É óbvio que não se trata nem de liberdade de informação nem de opinião. Há limites contra a invenção de "factos" para denegrir os adversários políticos. E esta é a maneira correta de os combater.

+ Europa (58): Parlamento Europeu em alta


1.
Estes dois gráficos de um recente inquérito aos cidadãos europeus sobre a União revelam a opinião sobre o Parlamento Europeu, na União em geral e em Portugal em especial.

Há a assinalar tanto a manutenção da opinião positiva sobre o Parlamento em relação a inquéritos anteriores (com ligeira variação), como a posição mais favorável dos portugueses, quer quanto ao atual papel da instituição, quer quanto à ideia de que deve vir a ter uma intervenção ainda maior.

É bom de ver que em Portugal não há terreno para medrarem partidos antieuropeus.

2. Esta opinião positiva sobre o Parlamento Europeu, apesar da sua quase "hibernação" durante a pandemia, inscreve-se num progressiva legitimação da instituição como representante dos cidadãos europeus, como poder legislativo e orçamental e como órgão de debate político.

A evolução da opinião favorável sobre o PE é especialmente importante não somente para a consolidação da União e da integração europeia, mas também para a sua perceção como construção democrática, a caminho de uma genuína democracia parlamentar supranacional. 

3. Considerado que inicialmente o Parlamento Europeu não tinha o nome de parlamento, não era eleito diretamente, não representava os cidadãos europeus (mas sim os "povos" nacionais) e não tinha poderes decisórios, esta evolução da opinião pública sobre a assembleia parlamentar da União traduz os ganhos de legitimidade democrática e de poder que o Parlamento foi obtendo em sucessivos tratados de revisão, nomeadamente os Tratados de Maastricht (1992) e de Lisboa (2007) e consolidando pelo seu próprio mérito.

Como escrevi noutro lado, o PE é cada vez mais percebido como encarnando realmente «a vontade dos cidadãos da União».

[revisto]


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Praça da República (62): Elogio de governos de maioria

[Fonte: Aqui]

1. Como mostra o quadro junto, relativo a 2017 (mas que se mantém atual em geral), a regra nos países da OCDE é a de governos maioritários, de coligação ou monopartidários (mais de 3/4 dos países). A solução existente entre nós desde 2019 - governo minoritário sem acordo com outros partidos - é superminoritária (3,3%); e a solução de 2015 - governo minoritário com acordo com outros partidos - corresponde somente a 13,3% do total.

Sucede, que sendo os governos maioritários a regra, em Portugal a única possibilidade de um governo maioritário à esquerda é um Governo do PS, dada a impossibilidade de um governo de coligação à esquerda, não sendo viável um programa comum de governo entre o PS e a esquerda radical, por causa das profundas diferenças doutrinárias e políticas entre eles.  

É por isso que, apesar de o PS ter vencido a maior parte das eleições parlamentares desde 1976, só tenha havido até agora um governo maioritário de esquerda (o de Sócrates, 2005-2009). As eleições de 30 de janeiro passado proporcionam ao PS uma segunda oportunidade.

2. Contrariando a rejeição ou as reticências contra governos de maioria monopartidária, penso que eles apresentam um conjunto impressionante de vantagens, nomeadamente as seguintes:

       estabilidade política: os governos de maioria cumprem a legislatura, podendo lançar a executar as suas políticas e proporcionando previsibilidade política aos cidadãos, aos empresários e aos agentes políticos e sociais; dos vários governos de coligação e minoritários que tivemos, muitos não chegaram ao fim da legislatura, e nenhum tinha esse objetivo como garantido antecipadamente;

       - alargamento da área de recrutamento político: com um horizonte de quatro anos, é possível recrutar para o Governo personalidades que não estariam disponíveis para largar as suas atividades profissionais e integrar governos sem perspetivas de estabilidade;

      - controlo das finanças públicas: tendo maioria parlamentar, os governos não correm o risco de ver as suas propostas de orçamento estropeadas na AR pelos partidos de oposição, pelo aumento de despesa global ou pelo aumento da despesa corrente à custa do investimento público, pondo em causa a consolidação orçamental e a redução da dívida pública; 

      - reformas políticas: só os governos de maioria podem decidir as reformas que, apesar de necessárias, suscitam a oposição de outros partidos ou de poderosos grupos de interesse, e que normalmente são vetadas em governos de coligação ou em governos minoritários; foram as reformas económicas e fiscais de Cavaco Silva e as reformas de Sócrates em várias áreas (segurança social, saúde, Administração pública), que permitiram a modernização do País e a superação de barreiras institucionais atávicas ao progresso económico e social;

      - responsabilidade política: podendo executar o programa eleitoral com que se apresentaram aos eleitores e com que ganharam as eleições, os governos de maioria não têm as desculpas que os governos minoritários e de coligação invocam, quando apresentam contas ao julgamento dos eleitores no final do mandato; nesse sentido, os governos de maioria preenchem melhor os requisitos clássicos do "governo representativo e responsável" (representative and responsible government).

3. Confiando em que as garantias existentes contra as tentações de abuso do poder funcionam, a solução de governos maioritários pode ser a mais apropriada, especialmente em períodos, como o atual, em que assumem prioridade a necessidade de estabilidade política para superar a crise resultante da pandemia e a necessidade de reformas para responder aos desafios colocados ao País e à UE, como a transição digital e a transição energética.

E não sendo possível um governo de coligação de esquerda, nem sendo recomendável um governo de coligação ao centro ("bloco central"), a única solução de governo de esquerda maioritário é mesmo aquela que afortunadamente as eleições de domingo passado proporcionaram inesperadamente ao PS. 

Adenda (8/2)
Um leitor pergunta duas coisas: (i) caso o PS não tivesse obtido maioria absoluta, qual seria a fórmula de governo menos má e (ii)  se eu seria da mesma opinião sobre os governos de maioria se se tratasse do PSD. Quanto à primeira questão, tornei claro em vários posts antes das eleições (por exemplo, AQUI e AQUI) que a hipótese preferível seria um governo minoritário do PS com um acordo de viabilização parlamentar com o PSD; quanto à segunda questão, não tenho dúvidas de que um governo maioritário do PSD seria preferível a um governo minoritário, apoiado, como Rui Rio nunca excluiu (por último, AQUI), no radicalismo liberal da IL ou, pior ainda, no populismo reacionário do Chega; pior só um governo de coligação do PSD com um ou ambos esses partidos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Praça da República (61): Desfragmentar o Governo

1. Mesmo antes das eleições, António Costa comprometeu-se a tornar o Governo "mais compacto", o que passa necessariamente pela redução do número de ministérios e secretarias de Estado, que atingiram um número record no Governo cessante

Independentemente da qualidade dos seus atuais titulares (que aqui não está em causa), há ministérios sem consistência política bastante, de âmbito demasiado estreito, ou que responderam a necessidades conjunturais. E quanto ao excesso de secretarias de Estado, não se compreende que haja ministérios com nada menos de quatro e que alguns "miniministérios", que bem podiam ser secretarias de Estado, tenham várias secretarias Estado!

A redução da fragmentação governamental pode agilizar o funcionamento do Conselho de Ministros e das equipas ministeriais, contribuir para uma melhor coordenação e unidade de ação do Governo e reduzir a sua exposição a pressões setoriais. 

2. Em contrapartida, penso, porém, que é altura de encarar, como há muito defendo e ocorre em vários Estados-membros da UE, a separação e autonomização da pelouro governamental para a coordenação e execução da política europeia, que não há nenhuma razão para se manter no MNE e que deve ser confiada a um responsável governamental (ministro ou secretário de Estado) sob tutela direta do PM.

A política europeia em geral não faz parte da política externa, tendo a ver com quase todas as políticas internas. Em matéria de UE, o MNE deve limitar-se a participar no Conselho de Negócios Estrangeiros da União sobre a ação externa. 

Importa que a importância política da UE na política interna encontre expressão na organização governamental.

3. A composição dos últimos Governos tem sido justamente sensível a uma preocupação com o equilíbrio de género, incluindo um número crescente de mulheres. É de esperar que o próximo Governo represente um novo avanço nesse sentido.

Menos significativo, se algum,  tem sido o esforço para atenuar o monopólio governativo de Lisboa (com uma quota para o Porto), o que, num País ainda muito centralizado, faz correr o risco de enviesar em favor das duas áreas metropolitanas as decisões sobre investimentos públicos, localização de serviços e recrutamento de quadros públicos.

4. Criou-se entre nós o hábito de mudar o nome dos ministérios, mesmo quando eles se mantêm com o mesmo núcleo do de competências, muitas vezes para introduzir qualificações ou aditamentos fúteis.

Essa prática não acarreta somente despesa desnecessária com novas placas nos serviços e novos endereços postais e eletrónicos, mas também quebra a continuidade institucional. Só deve haver mudança em caso de fusão ou agregação de ministérios. O Ministério dos Negócios Estrangeiros não precisou de mudar de nome, só porque a evolução semântica fez perder à palavra "negócios" o antigo  significado de "assuntos"...

É tempo de acabar a mudança dos nomes dos ministérios por puro caprichismo ministerial ou modismo político.

5. Uma última declaração de princípio, que reitero há muito: espero que o Governo cessante tenha sido o último em que o ministério da Justiça é ocupado por um juiz ou um magistrado do Ministério Público, o que não só põe em causa o princípio da separação de poderes e a independência política do poder judiciário, mas também corre o risco de tornar o ministério vulnerável ao poderoso lobby dos respetivas corporações. As pressões políticas mais nocivas sobre o Governo são as endógenas, in house.

São riscos que importa não correr.

Este País não tem emenda (25): Impunidade

1. Estes números sobre não cobrança de coimas por viagens sem título nos transportes públicos de Lisboa e do Porto, no valor de milhões de euros, são o verdadeiro retrato da irresponsabilidade cívica nacional e da incúria das autoridades na cobrança dos dinheiros públicos. 

É evidente que esta impunidade geral só atrai mais incumprimento: "se tantos não pagam, porque é que eu hei de pagar?». Em vez de gratuitidade seletiva, gratuitidade geral!

2. O que reforça a gravidade desta situação é que no caso dos metropolitanos se trata de dinheiro do Estado e não dos municípios, visto tratar-se de empresa estatal (Lisboa) ou com participação estatal (Porto). E se já é uma injustiça que os contribuintes em geral sejam copagadores dos transportes públicos de Lisboa e do Porto, é escandaloso que tenham de pagar também pelos "calotes" dos beneficiários. 

Como defendo há muito tempo: municipalização dos metropolitanos de Lisboa e do Porto, já!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Praça da República (60): Os limites da maioria absoluta

1. Na noite eleitoral, António Costa procurou tranquilizar os cidadãos eventualmente receosos da maioria absoluta conquistada pelo PS, assegurando que ele próprio gostaria de "reconciliar" os cidadãos com os governos de maioria, resgatando-os do mau conceito prevalecente entre nós, interesseiramente alimentado pela esquerda, a pretexto dos governos maioritários de Cavaco Silva (1987-1995), e pela direita, a propósito do governo de Sócrates (2005-2009), como se fossem a vera expressão do mítico Leviatão, sem limites ao seu poder.

O que o líder do PS poderia ter acrescentado é que porventura nenhum sistema constitucional institui tantos limites e tantos "poderes de veto" ao poder da maioria parlamentar e governamental como o nosso, tal como decorre da Constituição e das instituições criadas para conter o poder da maioria.

2. Vale a pena enunciar os principais:

        - a  âmbito e a densidade dos direitos fundamentais garantidos na Constituição, sem paralelo em nenhuma outra, que não podem ser arbitrariamente restringidos pela maioria parlamentar, sob pena de inconstitucionalidade;

        - os limites da competência política do Governo, que resultam das transferência de atribuições, no sentido ascendente, para a UE e, no sentido descendente, para as regiões autónomas e autarquias locais, retirando ao Estado importantes fatias do poder político;

        - a exigência de maioria de 2/3 na AR para aprovação de certas leis mais sensíveis, como a lei eleitoral, o sistema de governo das autarquias locais, os poderes legislativos das regiões autónomas, que portanto, não estão à mercê da maioria governamental;

        - a eleição pela AR, por maioria de 2/3, de um conjunto de órgãos públicos importantes, incluindo, entre outros, a maior parte do juízes do TC, o Provedor de Justiça, a entidade de controlo da comunicação social;

        - a existência de numerosas autoridades publicas independentes (desde o Banco de Portugal à entidade reguladora dos média, passando pelas entidades reguladoras das atividades económicas), que o Governo não pode destituir e a quem não pode dar instruções nem orientações;

        - a existência de um grande número de ordens profissionais, autónomas e independentes,  representativas de poderosos grupos de interesse profissional e dotadas de poderes públicos que o Governo tem de respeitar;

        - a existência de instituições independentes de controlo da gestão orçamental e das contas públicas, como o Tribunal de Contas, o Conselho de Finanças Públicas e a UTAO (junto da AR), e de controlo da contratação de altos funcionários (CRESAP);

        - o poder de controlo da União Europeia sobre a utilização dos dinheiros provenientes do orçamento europeu, assim como das políticas públicas nacionais que possam traduzir-se no incumprimento de obrigações perante a União;

        - o direito de oposição assegurado pela Constituição aos demais partidos com representação parlamentar, como poderes "potestativos", como o poder de interpelação parlamentear, o poder de inquérito parlamentar, etc.;

        - especial relevo assume naturalmente o chamado "poder moderador" do PR, nomeadamente o veto legislativo - que, em vários casos só pode ser superado por maioria de 2/3 da AR -,  a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, a nomeação de certos cargos públicos (como o PGR, as chefias militares e os embaixadores), sem esquecer o poder extraordinário de dissolução parlamentar, que pode ser utlizado contra uma maioria que esteja manifestamente a abusar do seu poder.

É um impressionante conjunto de matérias que escapam ao poder da maioria ou que estão sujeitas ao veto de vários contrapoderes.

3. Por último, convém não esquecer que numa democracia liberal, além da decisiva liberdade de imprensa, há também o poder de oposição social, de sindicatos, instituições particulares e grupos de interesses, que podem fazer vergar o poder político maioritário, como o Governo de Passos Coelho aprendeu à sua custa, sendo obrigado a retirar a proposta de alteração das contribuições para a segurança social, aumentando a dos trabalhadores e reduzindo a das empresas.

De resto, o essencial de uma democracia liberal é que nenhum Governo maioritário deixa de prestar diretamente contas aos eleitores no final do mandato e que, em caso de derrota, as suas políticas podem ser revertidas pelo Governo seguinte. Há um privilégio que nenhum Governo tem, por mais maioritário que seja, que é o poder de se perpetuar ou de tornar irreversíveis as suas políticas.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (25): Leitura errada

Não concordo com a leitura da derrota eleitoral do PSD que a atribui à "deriva centrista de Rio". Pelo contrário, penso que a derrota se deve sobretudo ao facto de Rio, apesar de tal proclamação centrista, ter apostado desde o início numa coligação governativa de direita, não somente com o defunto CDS, mas também com a radical Iniciativa Liberal (que fez gáudio da sua inimizade ao Estado social), sem nunca ter querido excluir convictamente o Chega, tendo mesmo acabado por admitir uma "geringonça" de toda a direita, mesmo que o PS vencesse as eleições, o que foi um "tiro no pé" de enormes proporções.

Essa posição incoerente do líder do PSD - apelando, por um lado, ao voto ao centro, mas apostando, por outro lado, ostensivamente, numa aliança de todas as direitas - teve duas consequências fatais para ele. Primeiramente, legitimou o voto na direita liberal e, mesmo, no Chega, como voto numa solução de governo, anulando qualquer efeito de "voto útil" no PSD; segundo, assustou sobremaneira o eleitorado de esquerda e centro-esquerda, que foi a correr votar no PS, para impedir aquela solução, afundando o Bloco e o PCP, e dando-lhe uma maioria absoluta.

Eleições parlamentares 2022 (24): Um terramoto político


[Fonte: Aqui]

1. Resumindo a jornada eleitoral de ontem:

- ao apontar para um "empate técnico", as sondagens falharam rotundamente em antecipar os resultados eleitorais;

- surpreendentemente, o PS, merecido vencedor, conseguiu uma folgada maioria absoluta (a segunda vez que a obtém na história da democracia em Portugal), embora com menos de 42% dos votos (mercê da grande distância para o PSD e da dispersão de votos noutros partidos), quando tinha sido "forçado" a deixar de a pedir, confirmando o velho ditado de que "as maiorias absolutas não se pedem, obtêm-se", se merecidas;

- o PSD falhou de novo, e fragorosamente, a aposta em ser alternativa de governo, continuando abaixo do limiar dos 30% (embora com ligeira melhoria em relação a 2019, levando Rio à demissão, como era inevitável, perante a sua inconvincente liderança;

- o PCP e o Bloco foram severamente punidos, como deviam, pela irresponsável rejeição do orçamento e abertura da crise política, perdendo respetivamente quase três quartos e metade dos seus deputados, embora, como é tradicional nestes partidos, nenhum dos seus líderes tenha decidido tirar consequências da sua rotunda leviandade política (a culpa é sempre dos eleitores...);

- o CDS desapareceu do Parlamento, como se antecipava, e o presidente demitiu-se, como tinha de ser;

- o PAN ficou reduzido a um deputado, fragilizando a agenda animalista;

- só a direita populista (Chega) e liberal (IL) obtiveram o êxito que as sondagens lhes atribuíam; 

- as direitas somadas aumentam a votação, as esquerdas juntas descem apesar da substancial subida do PS.

2. Em suma, estas eleições constituíram um verdadeiro terramoto político no arco parlamentar, reconfigurando tanto a esquerda partidária (humilhação da esquerda radical em proveito do PS), como a direita (enfraquecimento relativo do PSD, desaparecimento de um partido histórico e emergência de dois novos partidos à direita mais radicais e mais doutrinários). 

Claramente, estas eleições vão ficar na história política nacional, pois, a partir de hoje, há um novo sistema partidário em Portugal e isso vai ter impacto no funcionamento do sistema de governo e no sistema político em geral.

[revisto]

sábado, 29 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (23): Discordo

Não acompanho o PR, mais uma vez, quando ele sugere a abolição do chamado "dia de reflexão", na véspera do dia das eleições. 

Ao contrário do lobby dos média, da indústria das sondagens e do comentariado político, penso que um dia de descanso antes da votação não é somente é uma benção contra o massacre dos eleitores até ao último momento, mas também um antídoto contra golpadas dos partidos ou dos média, com fake news ou outras provocações de última hora, sobre as quais os eleitores já não teriam tempo de refletir.

É lamentável que o PR tenha decidido tomar posição contra uma solução tão arraigada como esta, numa intervenção oficial em véspera de eleições, que, aliás, poucos teriam ouvido, se o dia de reflexão não nos libertasse do frenesim do último dia da campanha eleitoral.

Adenda
Um leitor comenta: «Independentemente da posição de qualquer um de nós sobre o "dia de reflexão", parece-me muito deslocado e inapropriado o Presidente da República tomar posição pública sobre ele, e sobre outros aspetos da lei eleitoral, da forma que fez. O Presidente não é um deputado e dever-se-ia abster, em minha opinião, de passar julgamento sobre aquilo que a Assembleia da República andou, ou deixou de andar, a fazer. É inapropriado ele declarar publicamente que a lei eleitoral deveria ter sido alterada». Concordo.

Eleições parlamentares 2022 (22): Nunca pareceu tão complicado

1. Eis o produto do meu "dia de reflexão" sobre as possíveis equações governativas que podem resultar das eleições de amanhã. 

Nunca terá havido umas eleições tão problemáticas como estas: para além da incógnita que as sondagens alimentam sobre o vencedor e sobre a solidez da sua vitória, há também os numerosos  arranjos governativos que delas podem decorrer.

Se a primeira incógnita estará resolvida amanhã à noite, outro tanto não se pode dizer das soluções de governo, que podem demorar dias ou semanas a encontrar, conforme os resultados, e nada garante que sejam minimamente estáveis.

  

2. Há uma assimetria óbvia quando às soluções de governo, conforme seja o PS ou o PSD a vencer, a qual resulta, quer da maior incompatibilidade programática e política entre o PS e os partidos à sua esquerda, quer do anúncio de demissão de António Costa, se o PS perder as eleições. Essa assimetria é especialmente vincada no caso de um partido vencer, mas o campo político adverso obtiver a maioria na AR. 

Na verdade, depois da surpreendente declaração de Rio ontem à noite, mesmo que o PSD perca as eleições, pode bem haver uma "geringonça" ou, mesmo, uma coligação de direita, se as direitas juntas (incluindo o Chega) tiverem maioria parlamentar, ao passo que à esquerda a hipótese inversa está praticamente excluída, quer pela saída de Costa da liderança do PS, que deixa o partido sem condições, e mesmo sem legitimidade, para protagonizar a solução de 2015, quer pelo travo amarguíssimo deixado pelo rompimento político que consistiu na rejeição do orçamento e na abertura da crise política.

3. Importa sublinhar que na nossa história eleitoral desde 1976, as eleições foram em geral ganhas por maioria relativa (todas, exceto as de 1979, 1980, 1987, 1991 e 2005) e o partido vencedor só ficou confrontado com uma maioria do campo político oposto nas eleições de 2011, em que uma coligação eleitoral de direita (PSD+CDS) venceu as eleições, porém com uma maioria parlamentar de esquerda, o que gerou a "Geringonça".

Esperemos que essa situação excecional de discrepância política entre o partido vencedor das eleições, qualquer que seja, e a maioria parlamentar não se volte a verificar nas eleições de amanhã, para não complicar ainda mais o puzzle eleitoral.

4. Hipótese a não descartar em caso de disputa renhida, como a presente, é a de um partido ter mais votos mas menos deputados, por efeito de uma distribuição assimétrica da votação nos círculos eleitorais mais pequenos, onde as distorções da proporcionalidade podem ser maiores, tornando os deputados do partido mais votado mais "caros", em termos de número de votos, do que o partido concorrente à vitória.

Essa hipótese nunca ocorreu até agora, mas, a verificar-se, poderá ser contra o PS, por causa da tendencial vantagem do PSD nos círculos de menor dimensão do Centro e do Norte do País.

É evidente que numa democracia parlamentar o que conta é o número de deputados e não o número de votos, mas também é incontornável que uma tal situação abalaria a credibilidade do sistema proporcional e a autoridade política do partido vencedor, além de complicar ainda mais o encontro de uma solução governativa.