quinta-feira, 25 de maio de 2023

Corporativismo (43): Uma reforma que morre na praia?

O Governo aprova hoje o primeiro pacote de projetos de revisão dos estatutos das muitas ordens profissionais que proliferaram entre nós nas últimas décadas, cujo ponto fulcral é a revisão da esfera de "atos próprios", ou seja, exclusivos, de cada profissão, cuja redução é essencial para levar a bom termo esta grande reforma na prestação de serviços profissionais qualificados, que é essencial nas economias de mercado contemporâneas. 

Mas as primeiras indicações não são tranquilizadoras, com a notícia de que, perante os protestos das respetivas ordens, o Governo recuou em relação aos cortes inicialmente previstos em relação ao atual monopólio profissional dos contablistas e dos psicólogos.

Se este espírito de cedência às corporações se verificar também em relação às profissões mais impactantes, como os advogados e os médicos, então é de recear que se mantenham as principais barreiras à liberdade profissional e à concorrência na prestação de serviços profissionais, por efeito da "captura" do Estado pelas principais corporações profissionais, o que quer dizer que a anunciada grande reforma pode "morrer na praia".

Adenda
Um leitor aconselha-me a não depositar muitas esperanças nessa reforma, uma vez que o Goveno e a AR estão cheios de membros das ordens (advogados, economistas, engenheiros, etc.), que naturalmente «não vão tomar decisões contra elas e contra os interesses coletivos da sua profissão». Entendo o argumento, mas penso que, apesar da pressão dos lobbies corporativos, as coisas políticas não são assim tão "mecânicas"...

Revisão constitucional (6): Tiro no pé

1. A ameaça de bloquear a revisão contitucional brandida por Luís Montenegro, alegando a indisponibilidade do PS para aprovar muitas das propostas do PSD, não faz nenhum sentido e não mostra grande responsabilidade democrática por parte de um líder da oposição que ambiciona vir a chefiar o Governo do País.

Antes de mais, por definição, a revisão constitucional takes two, sendo um exercício que, dada a necessária maioria de 2/3, exige a convergência dos dois partidos, quer quanto à sua oportunidade, quer quanto ao seu âmbito e extensão, quer quanto às alterações a adotar. Se o PS não aprova certas propostas do PSD, a vice-versa também é verdadeira. O PS até já cedeu muito, quando aceitou discutir propostas de alteração que caem manifestamente fora do âmbito inicialmente admitido para a revisão constitucional.

A revisão constitucional depende muito da capacidade de transação dos dois partidos e da sua disponibilidade recíproca para conceder nuns pontos para obter ganhos noutros. A birra partidária não faz parte da arte de negociar uma revisão constitucional.

2. De resto, o bloqueamento da revisão constitucional, por não ser suficientemente ambiciosa nos termos do PSD, implicaria que a Constituição ficasse como está, sem alterações, o que obviamente não pode ser o desejo do partido. O PCP agradeceria a cortesia.

Pessoalmente, entendo que, estando a Constituição quase a celebrar meio século e justificando-se o seu aggiornamento, tinha cabimento uma revisão constitucional bastante extensa, tendo-me dedicado a coligir e a fundamentar a minha proposta pessoal, que ainda me proponho publicar. Mas julgo que a revisão se justifica, mesmo que ela se limitasse aos dois ou três pontos sobre que existe largo consenso, a saber, permitir a suspensão da liberdade pessoal de movimentos em caso de crise sanitária grave, permitir o uso de metadados das comunicações pessoais na investigação criminal, e permitir a punição penal de maus tratos a animais domésticos.

Numa revisão constitucional nenhum partido pode obter tudo o que pretende, pelo que a ameaça de boicote constitui sempre um "tiro no pé".

Adenda
Um leitor comenta que «falta a Montenegro a dimensão de estadista», sem a qual a sua liderança política do PSD se limita a um taticismo sem vocação estratégica.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Aplauso (23): Notável desempenho

1. Há que saudar o Governo, e em especial o ministro das Finanças, pela descida significativa do peso da dívida pública, retirando Portugal do comprometedor trio dos países mais endividados da UE (junto com a Grécia e a Itália). De resto, o FMI prevê que esta descida não fique por aí, como mostra o gráfico junto.

Essa evolução traduz-se naturalmente na melhoria do rating pelas agências, na descida relativa do spread da emissão de dívida e na poupança de muitos milhões em juros mais baixos, melhorando o saldo orçamental - um círculo virtuoso, portanto. 

Sendo a descida do peso da dívida pública e a disciplina orçamental dois objetivos sempre apoiados neste blogue - como mostram as séries Ai, a dívida e Ai, o défice - é com particular satisfação que saúdo este notável desempenho orçamental.

2. É evidente que este bom resultado na frente financeira deve muito ao aumento das receitas públicas resultante da favorável evolução da economia - taxa de crescimento em alta (entre as mais elevadas da União), taxa de emprego elevada, confortável saldo da balança externa -, que os investimentos financiados pelo PRR, mas também o crescente investimento direto estrangeiro, têm ajudado a obter. 

Se a isto somarmos a descida consistente da inflação e a progressiva recuperação do poder de compra dos portugueses, é caso para dizer que a situação económica e social supera as melhores expectativas

3. Neste quadro económico e social favorável, a condição do Governo seria politicamente invejável, não fora a comprometedora perturbação política decorrente do inquérito parlamentar à TAP, encarniçadamente explorada pelas oposições, à falta de outros argumentos.

Em todo o caso, toda a conversa sobre eleições antecipadas, soprada a partir de Belém, afigura-se assaz artificial, não somente por isso ir ao arrepio dos referidos êxitos do Governo e pôr em risco a sua continuidade, mas também porque o principal partido da oposição não dá mostras de ser uma verdadeira alternativa, nem só nem (mal) acompanhado, o que ajuda a explicar o nervosismo que reina nas suas hostes (e nos seus numerosos comentadores mediáticos), que a recente intervenção militante do seu antigo líder, Cavaco Silva, apenas veio sublinhar.

Adenda
Um leitor pergunta se também acho «ilegítima a intervenção da Cavaco Silva». Ilegítima, não considero; mas, sem dúvida, pouco curial para um antigo PR, que, a meu ver, deve manter alguma reserva na expressão de posições político-partidárias. Não tendo sufragado também a militante ação de Mário Soares contra o Governo de Passos Coelho (embora ele não o tivesse feito num evento oficial do PS), entendo que para quem foi "presidente de todos os portugueses", voltar a vestir o fato de líder partidário e regressar ao combate político-partidário, aliás em termos agressivos e sectários, não me parece o modo mais apropriado de um ex-Presidente honrar o seu legado político de mais alto magistrado da República.

Adenda 2
Um amigo meu, igualmente conservador em matéria orçamental, receia que «uma vez terminado o novo ouro do Brasil que é o PRR, regressem o défice e a dívida como antes». O receio é legítimo, e é por isso que tenho alertado contra as medidas imprudentes que levam ao aumento substancial da despesa estrutural, designadamente aumentos de pensões e de salários do setor público (professores, pessoal de saúde, etc.) insustentáveis a longo prazo.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37) : Teoria da (ir)responsabilidade política

1. Referindo-se ao "caso Galamba" (embora sem o mencionar), o Presidente da República afirmou que não se pode ter poder político sem responsabilidade. Tem razão: num Estado de direito democrático e numa democracia representativa, o poder político, nomeadamente o Governo, como poder executivo, está sujeito a responsabilidade política, tendo de prestar contas e podendo ser sancionado.  

No entanto, nos termos da Constituição, numa democracia parlamentar, como a nossa, o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente da República, que o não pode demitir nem censurar pela sua atividade política, mas sim perante o parlamento, e os próprios ministros, individualmente, podem ser alvo de interpelações ou de inquéritos parlamentares sobre a sua conduta política (como sucede neste momento ao referido ministro). De resto, as falhas graves de um ministro, se não for demitido, podem levar, em última instância, à apresentação de uma moção de censura ao próprio Governo, tendente à sua demissão. 

Com efeito, se há um poder sem imunidade política no nosso quadro político-constitucional, é o Governo, em geral, e os ministros, em particular.

3. Inversamente, quem não respeita o tal postulado poder político = responsabilidade política é o próprio inquilino do Palácio de Belém, que não responde politicamente pelos significativos poderes constitucionais que exerce, pois não pode ser escrutinado nem censurado pela AR, nem muito menos ser demitido ou ver o seu mandato revogado.

Por isso, além de dever exercer os seus poderes constitucionais com moderação, o PR não pode ingerir-se no exercício dos poderes políticos e legislativos do Governo (ressalvado o poder de veto), nem posicionar-se como tutor político deste, como tem sucedido, visto que não compartillha da responsabilidade política do Governo, e este não pode invocar a tutela presidencial para se isentar da sua responsabilidade perante a AR.

Embora constitucionalmente isento de responsabilidade política, o PR deve atuar como se o não fosse.


quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (21): Uma coisa e o seu contrário

Esta imagem foi colhida esta manhã no Diário Económico digital. Na notícia de baixo, às 7:00, informa-se que o IVA zero no cabaz de compras alimentares fez descer o custo deste em 11 euros; na de cima, escassos 12 minutos depois, dá-se curso à opinião de que o impacto daquela medida se reduz a «uns cêntimos». Óbvia contradição, que a proximidade temporal torna mais flagrante!

Eis os estragos que faz o jornalismo politicamente enviesado...

Pobre língua (26): Calinadas oficiais

Que pessoas ignorantes ou descuidadas usem "ter a haver com" em vez de "ter a ver com" na conversação corrente é preocupante. Mas que um serviço público central, como a direção executiva do SNS, incorra nessa calinada num comunicado oficial, isso brada aos céus!

Enquanto uns abencerragens continuam a lutar contra o Acordo Ortográfico, como se este fosse reversível e eles não tivessem o direito de não o usar, vão proliferando sem escândalo público atentados qualificados à correção linguística, como este e vários outros, os quais, pela sua frequência, mostram que a escola não está a cumprir a sua obrigação quanto ao ensino do Português. 

O que é especialmente inadmissível é que um serviço público faça publicar um texto sem revisão prévia por parte do seu responsável. O Ministério da Saúde deve corrigir imediatamente o texto e dar uma explicação pública.

Adenda 
Um leitor também acha estranho que o Diário de Notícias tenha transcrito textualmente essa passagem do comunicado oficial sem corrigir o disparate. A pior hipótese é não se terem apercebido do dislate...

Assim, não (3): Incoerência

Segundo o nosso comentariado económico, quando a economia vai mal, a culpa só pode ser do Governo; quando corre melhor do que o esperado, como agora, a causa só pode estar em fatores exógenos, apesar do Governo. 

Ora, como é bom de ver, a diferença de desempenho das economias da UE deve-se essencialmente  a diferentes conjunturas e circunstâncias nacionais, entre as quais se contam obviamente a política económica e a política orçamental (investimento público, incentivos públicos, contratos públicos, etc.). Por isso, mesmo não sendo hoje o Estado um agente económico decisivo, nem tendo uma tutela sobre as empresas, não faz nenhum sentido defender que o desempenho económico é alheio à acção governativa, para o bem a para o mal.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Concordo (27): Novas medidas antitabagistas

As propostas do Governo de novas medidas de restrição quanto aos locais de consumo e de aquisição de tabaco não visam somente refinar a proteção dos não-fumadores (por exemplo, a proibição de fumar em esplanadas ou na entrada de de estabelecimentos de uso coletivo), mas também travar o seu consumo e reduzir a adicção tabágica, por causa dos enormes custos do tabaco para o sistema de saúde, que a coletividade, incluindo os não fumadores, tem de suportar.

Parecendo-me necessárias e proporcionais para atingir os interesses públicos visados, e ficando longe de uma proibição generalizada de fumar no espaço público, entendo ser totalmente descabida a acusação de "fascismo higiénico", com que alguns críticos pretenderam fulminá-las.

Adenda
Penso que os deputados do PS que se preparam para "suavizar" as propostas governamentais deveriam apresentar uma declaração de como não são fumadores, nem tem outro interesse adverso ao regime proposto. Convém evitar conflitos de interesses.

Adenda 2
Um leitor entende que eu devo corrigir "adicção" para "adição", invocando em seu favor o uso corrente desta fórmula na imprensa. Mas não tem razão, como expliquei aqui. Infelizmente, quando o erro linguístico se torna dominante, transforma-se em norma...

sábado, 13 de maio de 2023

+ Europa (72): A AR à frente na cooperação parlamentar com a Comissão

1. Neste estudo sobre o papel dos parlamentos nacionais no funcionamento da União, a nossa AR surge destacada à frente no "diálogo político" com a Comissão Europeia, medido pelo número de tomadas de posição enviadas. Essa dianteira mantém-se mesmo se somarmos a contribuição das duas câmaras nos muitos países de bicamaralismo parlamentar (Alemanha, França, Itália, etc.). 

É um notável desempenho, que honra a AR e que muito deve ao zelo da sua Comissão de Assuntos Europeus e à liderança desta.

2. No sistema de "federalismo cooperativo" da UE, é crucial a intervenção das instituições políticas nacionais na ação das instituições da União, não se limitando à participação dos governos nacionais no Conselho Europeu e no Conselho da União. Também os parlamentos nacionais, como titulares do poder legislativo, devem poder transmitir as suas posições quanto ao exercício do poder legislativo da União junto das competentes instituiações (Comisssão Europeia, Parlamento Europeu e Conselho da União).

O Tratado de Lisboa, que inclui um protocolo específico sobre o assunto, veio institucionalizar e reforçar esse papel dos parlamentos nacionais, tanto quanto às iniciativas legislativas, como, em especial, no escrutínio do respeito pelo princípio da subsidiariariedade (no exercício das competências partilhadas com os Estados-memmbros). 

É bom saber que a AR leva a sério esse papel na construção da União.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Corporativismo (43): Reduzir os "atos médicos"

É de esperar que a Ordem dos Médicos, invocando a sacrossanta reserva de "ato médico", conteste esta orientação de dispensar a intervenção de obstetra nos partos de baixo risco, mas a medida é de aplaudir, aliviando a pressão sobre os blocos de partos devida à insuficiência de médicos.

Esta decisão constitui um bom exemplo da necessária redução dos "atos próprios" (isto é, exclusivos) das profissões "ordenadas" (ou seja, organizadas em ordem profissional), que há muito venho defendendo. Penso, aliás, que no caso da saúde, seguindo o exemplo do Reino Unido, há muito para fazer entre nós na redução do monopólio médico, em favor de enfermeiros e técnicos de saúde.

Espero que a Autoridade da Concorrência não deixe de assinalar esse ponto na revisão do estatuto da Ordem dos Médicos, que se torna necessária para pôr em vigor a nova lei-quadro das ordens profissionais.

Adenda (14/5)
Como eu acima antecipara, a OM não tardou a manifestar-se contra a medida, mostrando-se menos preocupada com a boa prestação do SNS do que com a invasão do seu monopólio corporativo. Este desafio constitui um bom teste sobre a coerência e firmeza do Governo quanto ao anunciado propósito de redução do excesso de "atos próprios" das profissões reguladas entre nós. Infelizmente, a ter em conta o tradicional "temor reverencial" do Governo perante as Ordens, é de temer um recuo...

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guerra na Ucrânia (55): Cancelamento

Era de temer que a passional onda antirrussa desencadeada no Ocidente pela invasão da Ucrânia, que logo se manifestou no cancelamento da atuação de artistas e desportistas russos, viesse a dar lugar a atitudes como esta do Reitor da Universidade de Coimbra, que, com base na denúncia pública de dois cidadãos ucranianos, sobre alegada "propaganda pró-Putin", despediu sumariamente um professor russo do departamento de estudos russos da Faculdade de Letras, rescindindo imediatamente o seu contrato (aliás, gracioso), sem nenhum processo de averiguação, nem audição do acusado.

Neste caso, a simples denúncia de posições filorrussas legitimou a expedita punição, com despedimento, do delito de opinião, sem contraditório, de nada valendo o vínculo contratual nem a tradicional garantia da liberdade académica. Como é bom de ver, quando a exclusão ideológica chega à academia, preparemo-nos para o pior...

Adenda
Como diz um leitor, na "caça às bruxas" anticomunista do senador MacCarthy nos EUA, a seguir à Guerra, ainda havia acusação e processo público, o que agora se dispensa nesta «purga antirrusa». 

Adenda 2 (14/5)
Outro leitor lembra que na ditadura do Estado Novo o banimento de professores por motivos político-ideológicos era «feito pelo Governo, sob denúncia da PIDE, e não pelas próprias universidades, abusando da sua autonomia»Tem razão. O que não mudou, porém, hoje como ontem, é a cumplicidade, pelo silêncio, da generalidade da academia perante estes atos sumários de exclusão...

Adenda (3) (18/5)
Concordo com o leitor que comenta que, «se, em vez de um reitor de direita a despedir sumariamente um professor por alegada propaganda pró-Putin [aliás, entretanto desmentidos pelos alunos], fosse um reitor de esquerda a despedir um professor por alegada propaganda pró-Trump, o caso daria seguramente a iradas acusações de perseguição política nas televisões e mesmo na AR». Sim, a tradicional duplicidade de critérios...

O que o Presidente não deve fazer (37): Direito de objeção política contra a Constituição, não!

1. É manifesto que o PR só vetou novamente a lei da despenalização da eutanásia, com argumentos deliberadamente especiosos, para não a promulgar voluntariamente, "convidando" a AR a reaprovar o diploma, o que esta vai fazer, tornando a promulgação constitucionalmente obrigatória. 

Sendo esta uma via constitucionalmente aberta ao PR, para se descomprometer politicamente em relação à lei, salvaguardando neste caso a sua oposição do foro religioso, não há nada a objetar a este "esquema" presidencial de veto instrumental. Embora "forçada", não deixa de haver promulgação presidencial, como é devida.

2. O que não faria nenhum sentido, constituindo uma violação qualificada da Constituição, seria admitir que o PR ainda pudesse recusar-se a promulgar o diploma, invocado uma objeção de consciência

Primeiro, enquanto tais, no exercício dos seus poderes constitucionais, os titulares de cargos políticos não podem naturalmente invocar e prevalecer-se de direitos que, por definição, só cabem aos cidadãos. Por exemplo, enquanto cidadão, MRS pode praticar atos de culto religioso, mas não enquanto PR, dado o princípio da laicidade do Estado. Segundo, ao promulgar a lei, despenalizando a eutanásia em certas circunstâncias, muito exigentes, o PR não pratica nenhum ato de eutanásia nem obriga ou autoriza ninguém a praticá-lo, tanto mais que os médicos e outro pessoal de saúde, esses sim, têm assegurado o direito à objeção de consciência.

Por conseguinte, é manifestamente descabido invocar um direito presidencial de objeção de consciência como fundamento para incumprir uma, aliás taxativa, obrigação constitucional de respeitar a soberania legislativa da AR -, o que abriria a porta ao puro arbítrio presidencial à margem da Constituição.

3. Também não teria nenhum fundamento constitucional a hipótese de substituir o PR pelo presidente da AR, para efetuar a promulgação (como sugere o autor da referida ideia). A Constituição só admite a substituição por "impedimento temporário" do PR, ou seja, por incapacidade para exercer o cargo, e não para a prática momentânea de um certo ato, como a promulgação. 

De resto, o Tribunal Constitucional, a quem compete verificar os impedimentos presidenciais, nunca poderia admitir essa ficção de impedimento pontual para a prática de certo ato presidencial, aliás constitucionalmente obrigatório.

Adenda
Um leitor comenta que, se um PR não puder de todo em todo, por pruridos religiosos, observar um princípio constitucional tão essencial como a soberania legislativa do peraarlamento, «só lhe resta abandonar o cargo e dar lugar a quem o possa fazer». Subscrevo.

Adenda 2
Como era de prever, o PR afastou prontamente qualquer tergiversacão sobre a promulgação, pelo que a questão não passou de excesso de imaginacão de um constitucionalista. Ainda bem!

terça-feira, 9 de maio de 2023

Amanhã vou estar aqui (15): A questão das ordens profissionais

E já amanhã que vai decorrer na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) este colóquio sobre a nova Lei-quadro das Ordens profissionais, onde intervenho junto com vários qualificados especialistas nesta temática.

Recorde-se que, além da geral oposição das ordens e do intenso debate político que susciou, esta importante reforma legislativa também foi contestada por alegada desconformidade constitucional, a qual, porém, foi afastada pelo Tribunal Constitucional.

Pela minha parte, aceitei o encargo de abordar a relação do Estado com as ordens, onde tenciono analisar a tradicional passividade oficial (com exceção da Autoridade da Concorrência) face à deriva corporativista que elas em geral têm protagonizado entre nós, na linha da minha série de posts neste blogue sobre o tema (o último dos quais AQUI).

O que o Presidente não deve fazer (36): Modo de litígio institucional

1. Este caso das objeções presidenciais oficiais contra um diploma legislativo governamental sobre concurso de professores - que, no entanto, entendeu não poder vetar - culmina um prática inovadora desviante do atual PR que, desde o início, recorreu à promulgação com reservas, demarcando-se dos atos legislativos, como se, de outro modo, fosse considerado politicamente corresponsável por eles.

Ora, constitucionalmente, o PR não compartilha do poder legislativo com a AR e o Governo. Contrariamente ao que sucedia na monarquia constitucional, as leis não carecem de sanção (assentimento) do chefe do Estado. O atual poder de veto presidencial é um puro "poder negativo", obrigando o legislador a reconsiderar o diploma, pelo que a promulgação é um ato "por omissão", não traduzindo nenhuma concordância política presidencial com o diploma, nem expressa nem implícita. 

Por isso, o veto tem obviamente de ser justificado, mas a promulgação, não. A novel prática de "promulgação com reservas", pelo qual o Presidente regista objeções políticas aos diplomas que promulga, como se fosse colegislador, não tem cabimento constitucional, nem político.

Um manifesto abuso de poder.

2. Este caso é, porém, especialmente grave, na medida em que o PR vem denunciar oficialmente o Governo por não ter seguido uma insistente pressão presidencial para alterar o diploma, incluindo uma "proposta concreta", como se o PM tivesse uma obrigação de ceder. Tal como no caso da proposta de demissão do ministro Galamba, também desta vez o PR resolveu denunciar publicamente a rejeição das suas propostas pelo PM, como se fossem um desafio à sua autoridade.

Mas é justamente o contrário que sucede. O Governo não tem nenhuma obrigação de seguir os conselhos presidenciais, quando se trata de ingerência nos poderes constitucionalmente reservados ao executivo, seja a condução política do País, seja a demissão de ministros, seja o exercícío do poder legislativo, pelos quais ele não responde politicamente perante o PR, mas somente perante a AR e o país.

Manifestamente, apesar de ser uma traves-mestras do Estado de direito constitucional, a separação de poderes não goza de grande consideração em Belém.

3. Para agravar as coisas, acrescentando uma dose concentrada de veneno político, MRS resolveu dar foros oficiais à sua ideia de o Governo dever ceder na negociação em curso com os professores, aceitando uma «recuperação faseada do tempo docente prestado e ainda não reconhecido», o que constitui uma linha vermelha reiteradamente afirmada pelo Governo.

Além de não ter precedente nos anais da prática presidencial em Portugal, este golpe deliberado no poder negocial do Estado numa negociação sindical em curso não é somente uma inaceitável ingerência na condução da política governamental, constituindo também uma grosseira provocação política ao Governo.

Parece evidente que Belém entrou em modo de litígio institucional aberto contra o Governo - e que já não poupa as armas.

Adenda (11/5)
A. Homem Cristo no Observador:
 «Em termos de equilíbrios institucionais e separação de poderes, este comportamento do Presidente da República é incompreensível. Recorde-se: o Presidente não decide políticas públicas nem legisla. Neste campo, os seus poderes são de veto, para bloquear iniciativas legislativas, e, mais informalmente, de usar a sua magistratura de influência para sensibilizar os agentes políticos (governo e legisladores) — apontando problemas ou sugerindo soluções, mas não se imiscuindo no desenho das políticas públicas.»

 Subscrevo inteiramente.

Adenda 2
Daniel Oliveira no Expresso:
«O Governo pode desvalorizar esta nota, porque conseguiu a promulgação que desejava e não lhe interessa manter o foco no conflito com Belém. Mas se as relações entre a Presidência e o Governo estão definitivamente estragadas, vai ser ainda mais importante cumprirem as regras formais e constitucionais. E uma das mais óbvias é esta: o Presidente não legisla.»
É o mínimo que se pode dizer.

Adenda 3 (12/5)
Comentário de um leitor no Linkedin, onde republiquei este post: «Como não se pode destituir o Presidente, resta assinalar vigorosamente todos esses episódios, para que não se tornem numa prática subversiva da Constituição que outros Presidentes se sintam tentados a repetir no futuro.» É o que me move ao assinalá-los, perante a generalizada complacência dos partidos políticos e do comentariado, que vê nestes litígios institucionais uma mina para o seu "negócio". A minha ideia é não deixar passar a idea de uma "prática política incontestada" que pudesse vir a ser invocada como base de um costume constitucional.

domingo, 7 de maio de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (20): Um coro indiferenciado

Merece ser lido e meditado este artigo de J. Pacheco Pereira no Público que denuncia o lamentável alinhamento político da generalidade dos jornais e televisões na análise e comentário do recente confronto o entre o PR e o o PM sobre o "caso Galamba", em que indiferenciadamente os média "de referência" e a imprensa tabloide fizeram coro acrítico com as teses da direita política e ideológica. 

Como diz o autor, a crise política revelou uma óbvia "crise do jornalismo".

Onde para o pluralismo jornalístico entre nós?!

Era o que faltava (8): Financiamento público, benefício privado

Mais uma vez o lobby das escolas privadas vem reivindicar apoio financeiro do Estado aos seus alunos em paralelo com os do ensino público

Mas o argumento da "discriminação" é uma falácia. O Estado só tem a obrigação constitucional e política de financiar as escolas públicas e os seus alunos, não as escolas privadas (salvo as que beneficiam de "contratos de associação", em caso de carência de escolas públicas). Existe obviamente a liberdade (não um direito) de opção pelo ensino privado, mas por conta e risco de quem faz tal opção, não podendo depois vir reivindicar apoios de que naturalmente goza o ensino público.

De resto, além de não ser devido, o financiamento público do ensino privado é mesmo de considerar ilegítimo, na medida em que seja feito à custa da responsabilidade do Estado pelo financiamento do ensino público.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Corporativismo (42): A OA vai partir para a greve?

1. Lendo esta convocação para a luta contra a revisão do seu estatuto em conformidade com a nova Lei-quadro das ordens profissionais, a bastonária da Ordem dos Advogados parece ignorar que as ordens são entidades públicas criadas pelo Estado para desempenharem as tarefas que a lei lhes confere e que num Estado de direito as entidades públicas estão submetidas, de modo qualificado, ao princípio da legalidade, ficando por isso sujeitas a tutela governamental.

Sendo a OA uma entidade pública administrativa, a rebelião "sindical" contra a Lei-quadro - que a revisão dos seus estatutos, a aprovar também pela AR, tem respeitar e implementar - constitui um lamentável desafio à autoridade do Estado, e em especial à autoridade legislativa da AR. Estando ao serviço do interesse público, tal como definido pelo Estado, as ordens não são sindicatos nem grupos de defesa de interesses privados, não podendo, por isso, propor-se resistir ao cumprimento das leis.

2. O principal ponto contencioso tem a ver com a inevitável redução da esfera dos chamados "atos próprios" dos advogados, ou seja, dos atos que só eles podem praticar, excluindo outros profissionais, sendo óbvio que a OA quer manter intocável o generoso elenco legal atual.

Ora, parece evidente que se trata de um objetivo impossível, por várias razões: (i) a revisão dos atos exclusivos das profissões constitui um objetivo essencial da nova Lei-quadro, dado que o monopólio profissional injustificado se traduz numa óbvia restrição ilegítima da liberdade profissional; (ii) a Lei-quadro estabelece que nessa tarefa o legislador deve ouvir previamente a Autoridade da Concorrência, a qual não tem escondido a sua hostilidade aos monopólios profissionais, por restrição manifesta da concorrência na prestação de serviços profissionais; (iii) a Constituição só reserva aos advogados o patrocínio forense, sendo este a única tarefa que, como tenho defendido (por exemplo, AQUI e AQUI), deve ser salvaguardada como competência exclusiva.

De resto, não há nenhuma justificação para que os demais "atos próprios" atuais  (consulta jurídica, assistência na negociação de contratos, etc.), embora continuando a ser competência dos advogados, não sejam abertos a outros profissionais, desde logo outros juristas, tanto ou mais habilitados para os praticarem. 

As coutadas profissionais devem ser excecionais e limitar-se ao mínimo necessário.

Adenda
Um leitor adverte que a luta contra a redução dos atos próprios dos advogados não é somente dos "descamisados" (sic), dado que os grandes escritórios obtêm grandes proveitos do patrocínio na celebração de contratos dos seus clientes. O que penso é que esses escritórios não temem a concorrência de outros possíveis prestadores de tais serviços

Adenda 2
O lema da OA inscrito no seu escudo é "A Lei". Mas, pelos vistos, está desde logo contra a lei que a regula. Contradição....

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Revisão constitucional (5): Incongruência do PS

1. Noto, com surpresa, que apesar de ter defendido uma revisão limitada da Constituição - concretamente quanto ao capítulo dos direitos fundamentais, única matéria sobre que apresentou propostas -, o PS está a participar na discussão de propostas de revisão sobre o sistema político - como se deduz desta notícia -, capítulo que explicitamente excluiu desta revisão.

Parece-me que, além de esquecer essa posição de partida, não faz nenhum sentido o PS discutir propostas de revisão em matérias sobre as quais não definiu posição e não tem propostas próprias para negociação, sujeitando-se a jogar nos termos definidos por outros partidos e perdendo, portanto, a liderança da revisão constitucional, como lhe competia.  Além disso, essa ampliação da latitude de revisão constitucional retarda a entrada em vigor das alterações que levaram o PS a dar-lhe luz verde, como a questão dos metadados e do confinamento pessoal por razões de saúde. 

Não dá para entender...

2. Em que ficamos? Os deputados do PS na CERC entraram em autogestão? 

Admito sem dificuldade que, num partido plural, pode haver posições diversas sobre a oportunidade, a amplitude e o sentido da revisão constitucional. Mas,  uma vez definida a posição partidária na sede competente, ela deve ser vinculativa para todos.

Confesso que, apesar de acompanhar de perto as posições políticas do PS, por razão de afinidade política, de vez em quando tenho dificuldade em perceber a sua coerência - como neste caso, que não versa sobre uma questão menor

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O que o Presidente não deve fazer (35): A tutela sobre o Governo

1. Suponho que é a primeira vez, no sistema político-constitucional de 1976, que um Presidente da República faz saber publicamente que entende que um ministro deve ser demitido e que, depois, vem anunciar oficialmente que discorda da opção do Primeiro-Ministro de recusar o pedido de demissão entretanto apresentado pelo próprio Ministro em causa.

A razão para esta inovação é simples: até agora nenhum PR entendeu, como MRS, que detém um poder de superintendência e tutela política quotidiana sobre o PM, quer para efeitos de recorrente crítica e de recomendações públicas sobre a atividade governativa, quer para se permitir, como agora, censurar e propor publicamente a demissão de ministros.

Sucede que não existe nenhuma base constitucional para tal poder de tutela presidencial, pois o Governo não deriva a sua legitimidade política das mãos do PR nem é políticamente responsável perante ele, mas somente perante a AR. De igual modo, é domínio reservado do Primeiro-Ministro manter ou não a confiança nos seus ministros e decidir sobre eventual remodelação governamental.

2. Sou dos que pensam que os insólitos episódios ocorridos no gabinete ministerial do ministério das Infraestruturas questionam a credibilidade do Ministro, o qual, em condições normais, teria de sair. 

Por isso, penso que a surpreendente recusa do seu pedido de demissão resultará de uma decisão do chefe do Governo de não aceitar passivamente mais este grave passo na ingerência de Belém na esfera governativa e de não continuar a suportar discretamente, como até aqui, o abuso de poder presidencial, tornando-se conivente com a manifesta subversão do quadro constitucional sobre o sistema de governo (que venho denunciando há muito).

Como um ato público de "libertação" da indevida tutela presidencial, há que louvar a coragem política que revela. Resta saber se as circuntâncias comprometedoras deste caso permitem vindicar politicamente o confronto com Belém...

Adenda
Um coro de comentadores, desde o DN ao Correio da Manhã, veio qualificar a decisão de Costa como um "desafio" ao PR. Mas foi o contrário: foi MRS quem, num gesto sem precedente na nossa história constitucional democrática, veio desafiar o exclusivo da autoridade do PM sobre o seu governo, ao defender publicamente a demissão de um ministro em concreto. Nesta caso-limite, Costa decidiu rechaçar a descabida ingerência presidencial, a bem da separação de poderes. O seu a seu dono!

Adenda 2
Um leitor pergunta: «face às situações de abuso/desvio de poder [presidencial] assinaladas, acha que a CRP podia prever um mecanismo de "impeachment" do PR?». Entendo que não. Não sou favorável à figura do impeachment presidencial (salvo crime no exercício de funções, e por via judicial, tal como previsto na CRP) e continuo a pensar que os atos políticos, mesmo quando desconfrmes com a Constituição, só devem ser sindicáveis no plano politico. Entre o risco de atos inconstitucionais impunes e o risco da banalização da impugnação como arma de arremesso político (como se verifica no Brasil e noutros países), é preferível correr o primeiro.

domingo, 30 de abril de 2023

Novo aeroporto (6): Enviesamento

O jornalista Daniel Deusdado tem razão neste seu artigo, ao apontar a principal falha da lista de critérios anunciados pela Comissão Técnica Independente para a seleção da localização do novo aeroporto a recomendar no final ao Governo - que é a gritante ausência do critério do custo previsível e dos encargos orçamentais do Estado de cada uma delas, incluindo os acessos.

Mas há outros indícios de um enviesamento a favor de uma localização na margem sul do Tejo, nomeadamente o aditamento de várias localizações nessa área, além de Alcochete (na imagem), que não constavam da resolução do Conselho de Ministros, a prioridade dada ao critério da distância a Lisboa (e não o tempo de viagem), o esquecimento do decisivo critério da população e do território servido por cada localização, a degradação do sensível critério ambiental para oitavo lugar, na lista de dez critérios.

A meu ver, ao dar claros indícios de parcialidade à partida, a Comissão compromete a sua credibilidade e a legitimidade da sua decisão.

Adenda
Um leitor considera que era previsível o parti pris da presidente da CTI, pois ela tinha sido assessora no relatório do LNEC que em 2007 se pronunciou a favor de Alcochete, nessa altura contra a Ota, inicialmente escolhida pelo Governo. O erro está em ter como presidente de uma Comissão Técnica Independente alguém há muito comprometida com uma posição sobre a questão a decidir. Uma contradição!

Adenda 2
Outro leitor comenta que, se se vier a confirmar a opção trastagana e o subsequente encerramento da Portela, o sul do País ficará com três aeroportos (Lisboa, Évora e Faro), enquanto o território a norte do Tejo, mais extenso e mais povoado, tem somente um, o do Porto, o que é uma manifesta discriminação territorial. Tem razão!

Assim, não: Insustentável

A situação vinda a público no Ministério das Infraestruturas (desleadade qualificada de um adjunto, agressões, furto de computador, intervenção inaudita do SIS, uma queixa-crime, etc.) é politicamente degradante. 

Independentemente do apuramento de responsabilidades subjetivas, os Ministros são objetivamente responsáveis pela seleção e boa ordem do seu gabinete. A "roupa suja" que tem vindo a público mostra que Galamba não está à altura dessa dimensão do cargo. O Primeiro-Ministro não pode continuar mudo e quedo perante uma situação que lesa gravemente a reputação do Governo da República.

Como eleitor do PS, também me sinto comprometido, e penso que é demais!

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Amanhã vou estar aqui (15): Comemorar outra libertação, há dois séculos

A convite da CM de Arcos de Valdevez, vou participar amanhã, junto com o meu colega José Domingues, no lançamento público do nosso livro sobre as primeiras eleições parlamentares, em 1822, justamente no círculo eleitoral de Arcos de Valdevez (que abrangia todo o alto Minho), evento que o município integra nas comemorações deste ano do 25 de Abril.

É uma associação que faz todo o sentido. Tal como a Revolução Liberal de 1820 e a Constituição de 1822 puseram fim ao regime absolutista e instauraram em Portugal o Estado constitucional (soberania da Nação, separação de poderes, governo representativo, liberdades individuais, centralidade do parlamento, Estado de direito...), a Revolução democrática de 1974 e a Constituição de 1976 recuperaram esses valores constitucionais depois da sua negação na longa ditadura do "Estado Novo".

É justo que revolução libertadora de que usufruímos há meio século evoque a pioneira revolução vintista de há dois séculos, de que é herdeira.

Adenda
Importa notar que o lançamento do livro vai ser acompanhado pela inauguração de uma exposição sobre as referidas primeiras eleições parlamentares, organizada por uma parceria entre o município e a AR, com um catálogo preparado pelos dois autores, cuja capa se junta.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Concordo (27): Imposto sobre sucessões e doações

Não podia concordar mais com esta proposta de recuperação do imposto sobre sucessões e doações de elevado montante, pela simples razão de que há muito tempo eu próprio condenei a sua extinção (por exemplo, AQUI) e tenho vindo a defender a sua recuperação (por exemplo, AQUI e AQUI).

Infelizmente, o partido que o poderia instituir, ou seja, o PS, abandonou essa ideia, que chegou estar prevista no seu programa eleitoral de 2015, mas que depois desapareceu do programa de governo da "Geringonça", sem explicação, não voltando a proposta a ser reeditada nas eleições seguintes.

Mais do que instituir uma nova receita do Estado - que, aliás, bem precisa é, tendo em conta o contínuo acréscimo de despesa do Estado social (SNS, educação, proteção social)  -, trata-se de um importante instrumento de luta contra a desigualdade económica, cujo crescimento infrene ameaça a coesão económica, social e política.

+Europa (73): Os custos da fragmentação do mercado interno

Vale a pena ler este estudo de um conhecido think tank de Bruxelas sobre as barreiras que continuam  a impedir a conclusão do mercado interno da União, sobretudo no setor dos serviços, cuja fragmentação ajuda a explicar o menor desempenho da economia da UE, comparado com a dos Estados Unidos, e o crescente fosso quanto ao rendimento per capita (como mostra o quadro acima).

Sintetizando as suas conclusões, pode ler-se:

«Major economic indicators show that Europe is caught in a protracted corporate and technology crisis. The EU has for a very long time now been tailing US corporate and innovation leadership. Europe’s underperformance is to the largest extent rooted in a legally fragmented internal market, disincentivising business growth and innovation. In addition, Europe’s outdated approach to competition policy discourages businesses from adopting innovation and scaling across Member State borders, risking that European companies continue to lose clout and international competitiveness(Sublinhado acrescentado.)

Sem correção deste défice de integração do mercado interno, a UE perde a corrida económica (e geoestratégica) com os Estados Unidos.

Adenda
Em comentário a este post, um leitor faz várias perguntas pertinentes: «por que razão há na União Europeia tantas bolsas de valores, uma por país? (...) E por que razão não posso comprar, em mercado primário, obrigações que sejam emitidas por uma empresa de um qualquer país da UE, tendo que me limitar às - muito poucas - obrigações emitidas pelas - muito poucas - empresas portuguesas?». Está em causa a inexistência de um mercado único de valores mobiliários, em projeto há vários anos.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

+Europa (72): O custo da guerra

Nas recentes previsões de crescimento económico do FMI para o corrente ano, a UE faz má figura, com um crescimento anémico de menos de 1% (metade dos Estados Unidos) e com meia dúzia de Estados-membros em recessão, incluindo a principal economia, a alemã, como mostra o quadro acima.

Entre os fatores da travagem económica conta-se obviamente a política monetária contracionista do BCE, tornada imprescindível para combater o surto inflacionista, provocado especialmente pelo aumento dos custos da energia e dos bens alimentares importados. 

A guerra na Ucrânia vai continuar a cobrar o seu tributo económico à UE.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Não concordo (42): Sem fundamento

Não vejo fundamento para a proposta de aumento extraordinário das pensões, adiantada por Marques Mendes no seu comentário de ontem, invocando o recente aumento adicional de 1% dado aos funcionários públicos, por causa da elevada inflação.

Em primeiro lugar, enquanto as remunerações da função pública dependem do orçamento geral do Estado e são uma política relativamente discricionária do Governo, a atualização das pensões é paga pelo orçamento da segurança social, financiado pelas contribuições dos trabalhadores no ativo, e segue uma fórmula pré-estabelecida na lei; em segundo lugar, desde o início do surto inflacionista, as pensões subiram muito mais do que as remunerações da função pública, pelo que o paralelismo acima invocado é descabido; por último, não faz sentido haver uma subida em função da inflação esperada para o corrente ano, pois a referida fórmula legal de cálculo das pensões incorpora justamente o fator da inflação verificada, a qual só se pode apurar no final do ano. 

Propostas orçamentalmente "pesadas" como estas deveriam assentar numa fundamentação sólida -, o que não é manifestamente o caso.

Adenda
Um leitor observa que a fórmula legal de atualização das pensões, que toma em conta o crescimento do PIB e da inflação (como se pode ver AQUI), estabelece critérios diferentes conforme o valor das pensões, desfavorecendo as de valor mais elevado. Em todo o caso, considerando o grande crescimento do PIB em 2022, todas as pensões (salvo as de valor superior a 5765 euros) beneficiaram em 2023 de uma atualização bem superior à dos funcionários públicos (como se pode ver AQUI). 

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Não é bem assim (14): PR não pode demitir livremente o Governo

1. Ao contrário do que frequentemente se ouve e lê - por exemplo, AQUI -, em 2004, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, não demitiu o Governo de Santana Lopes, tendo, sim, dissolvido a AR e convocado eleições antecipadas, invocando a evidente degradação da situação política. O Primeiro-ministro é que decidiu apresentar a sua demissão, passando a "governo de gestão" -, o que não estava obrigado a fazer.

Com efeito, salvo o caso excecional de estar em causa o "regular funcionamento das instituições" - situação até agora nunca invocada -, o Presidente da República não pode demitir diretamente o Governo, que não depende da sua confiança política e que só responde politicamente perante a AR

2. O que o PR pode fazer, quando o julgue politicamente justificado, é dissolver a AR e convocar eleições antecipadas, o que vai acarretar automaticamente a demissão do Governo em funções, com o início da nova legislatura.

Todavia, é fácil ver que, embora seja uma decisão presidencial relativamente discricionária - mas que carece sempre de fundamentação adequada -, o PR só a tomará normalmente se puder antecipar, com forte probabilidade, que as novas eleições e a nova composição parlamentar providenciarão uma solução governativa alternativa à existente. Em 2004, tal era praticamente garantido, dado o manifesto esgotamento da maioria governamental, sob a liderança de Santana Lopes, e a sólida afimação do PS de José Sócrates nas sondagens eleitorais; nas circunstâncias presentes, ninguém o pode assegurar, pelo contrário. 

Arriscar uma situação de impasse ou de fragilidade governativa nas atuais circunstâncias - guerra na Ucrânia sem fim à vista, surto inflacionista por dominar, prazo de implementação do PRR a correr - relevaria do aventureirismo político. 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Revisão constitucional (4): Uma solução problemática

1. Parece que a proposta do PS de incluir na Constituição um direito à alimentação apresenta boas hipóteses de vir a ser aprovada. Embora defensor desde sempre da consagração constitucional do Estado social e dos direitos sociais - capítulo em que a CRP foi além de todas as constituições ocidentais -, não me parece, porém, uma boa solução acrescentar mais este direito em particular.

Em primeiro lugar, salvo o Brasil, desde 2010, não conheço nenhum outro precedente constitucional relevante. No plano do direito internacional dos direitos humanos, o art. 11º do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (PIDESC), de 1966, menciona-o, mas somente como uma das componentes do «direito a um nível de vida adequado», a par do vestuário e do alojamento, e não como um direito autónomo

2. Entre nós, tal como em vários outros países, está legalmente consagrado desde 1996 (I Governo Guterres) o direito a um rendimento mínimo, destinado a assegurar a todos um nível de vida decente - mais tarde renomeado como "Rendimento Social de Inserção" -, o qual inclui obviamente a cobertura das necessidades alimentares, entre outras. 

O que se justificaria, portanto, era constitucionalizar explicitamente esse direito geral, em vez de particularizar somente uma das suas manifestações.

3. A constitucionalização autónoma de um direito à alimentação, a assegurar pelo Estado, suscitaria não poucos problemas de construção jurídica e de implementação prática. Sendo um direito separado do direito ao rendimento mínimo, seriam, porém, os mesmos os seus beneficiários? Como deveria o Estado satisfazê-lo: em espécie, através de uma rede de cantinas públicas ou de cantinas sociais subsidiadas, ou por via financeira ("vales" alimentares ou um subsídio adicional para compras alimentares)?

Quando o Estado revela crescentes dificuldades em assegurar adequadamente alguns direitos sociais constitucionais originários, como o direito à saúde e o direito à habitação, cabe perguntar se se justifica abrir mais uma frente particular de fácil litigiosidade política e ideológica.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Guerra na Ucrânia (54): "Agressão não provocada"?

1. De vez em quando, ousando desafinar do coro a uma só voz orquestrado a partir de Washington e de Bruxelas (sede da Nato) sobre a guerra na Ucrânia, há autores ocidentais, como Jeffrey D. Sachs, que têm a coragem de lembrar as origens da guerra e de contestar a versão ocidental da "invasão não provocada".

Que houve invasão da Rússia, é óbvio, por mais que Moscovo insista na abstrusa designação de "operação militar especial". Mas é igualmente indesmentível que Moscovo foi continuadamente provocada desde 2014 por Washington, com a cumplicidade europeia, mediante a deliberada alteração do estatuto da Ucrânia como "Estado-tampão" neutro, através da sua integração na Nato, ameaçando diretamente a segurança da Rússia e, depois, pelo incumprimento por Kiev dos acordos de Minsk sobre a autonomia dos territórios russófonos do Leste da Ucrânia, os quais, em vez disso, foram continuamente flagelados pela artilharia ucraniana. 

Evidentemente, as provocações ocidentais não desculpabilizam a Rússia pela invasão, em patente violação do direito internacional, mas descredibilizam manifestamente a retaliação em todas as frentes de Washington e de Bruxelas, especialmente no "Sul global" (desde o Brasil à Índia), que se recusa a alinhar na cruzada ocidental contra a Rússia.

2. Dadas as origens da guerra, não se vê como ela pode vir a acabar um dia sem a renúncia à integração da Ucrânia na Nato, regressando ao seu estatuto de neutralidade, em troca da retirada da Rússia dos territórios ocupados e anexados, que ficariam transitoriamente sujeitos a administração das Nações Unidas, até à organização de um referendo local sobre o respetivo estatuto político, sob a égide da ONU.

Mas, tendo em conta as posições absolutistas de ambas as partes, tudo indica que o desenlace do conflito está mais longe do que perto. Entretanto, além dos beligerantes, a União Europeia paga a principal fatura da guerra que se trava nas suas fronteiras entre Washington e Moscovo, por interposta Ucrânia.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Não dá para entender (41): Jogar dinheiro fora

1. Pelas razões AQUI expostas, discordo inteiramente da isenção de IVA de um vasto cabaz de compras, que o Governo adotou à pressa, desdizendo repetidas posições anteriores contra essa política, que, aliás, contraria também as recomendações do BCE e da Comissão Europeia contra medidas de contenção de preços de natureza transversal, socialmente indiferenciadas.

Mesmo assumindo que ela se vai repercutir inteiramente em correspondente descida de preços - que, aliás, já estão em curva descendente - , sucede que, contraditoriamente, essa isenção de IVA vai obviamente beneficiar quem menos precisa de ser subsidiado, ou seja, os titulares de mais elevados rendimentos, porque consomem mais. Custando esta medida cerca de 600 milhões de euros aos cofres públicos (incluindo subsídios agrícolas), e resultando num escasso desconto médio mensal de uns doze euros, aqueles milhões teriam melhor serventia se destinados a subvencionar mais o poder de compra de quem mais precisa.

Não podendo ser socialmente seletiva, a isenção de IVA traduz-se em deitar dinheiro público fora.

2. Aliás, esta medida de subvenção fiscal universal vêm somar-se a outras tomadas logo no início do surto inflacionista e que não foram, entretanto, revertidas - como a redução do ISP e das portagens nas autoestradas -, cuja despesa fiscal se traduz também em centenas de milhões de euros e que, beneficiando especialmente os automobilistas, não têm como destinatários as camadas sociais de menores rendimentos. 

Não dá para entender que filosofia é que justifica esta política socialmente "neutra" de contenção dos preços.

Adenda
«Estranho país este onde se come o dobro do recomendado, pelo que, obviamente, mais de metade dos adultos tem excesso de peso, mais de 1/5 é mesmo obeso — e onde esta situação é ainda mais grave nas classes socioeconómicas mais desfavorecidas — e que também, para agravar, consome quatro vezes mais carne do que o recomendado, o Governo tenha decidido eliminar o IVA dos “produtos mais consumidos”, incluindo a carne e a manteiga. (...) Da lista não faz parte o siso, provavelmente por não ser dos “produtos mais consumidos”». H. Carmona da Mota, Coimbra, nas Cartas dos Leitores do Público de hoje. Subscrevo!

Adenda 2
Um leitor argumenta que o Governo só avançou para esta medida porque a inflação já está a diminuir e tudo indica que continue a baixar, mesmo sem IVA zero, para no fim dizer que "o investimeto valeu a pena".  É, de facto, uma boa jogada política, mas talvez demasiado cara, nao é?