segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

Blogues nocturnos (2)

O cimento da ortodoxia
Uma bagunça - , eis como pode ser classificada a desorientação momentânea do PSD em matéria de despenalização do aborto. No seguimento da corajosa tomada de posição do bispo do Porto contra a penalização do aborto, o porta-voz do PSD (sabe-se agora que em concertação com o Ministro Arnaut) insinuou a disponibilidade do partido para a reabertura do 'dossier'. Foi secundado por idêntica posição de alguns deputados. O parceiro de coligação governamental, intransigente na punição penal do aborto, chama o PSD à ordem. Durão Barroso intervém e decreta a interdição do assunto. A questão da despenalização do aborto terá de passar por novo referendo e não será nesta legislatura. Nem sequer haverá liberdade de voto na bancada governamental na votação das iniciativas da oposição nesta matéria, que serão inexoravelmente chumbadas. Entretanto no tribunal de Aveiro, a condenação espera os arguidos no processo de crime de aborto que o Código Penal pune severamente, fora dos três casos nele previstos. Moral da história: o PP é o cimento da ortodoxia do PSD.

Cidadania inclusiva
No congresso sobre imigração que decorreu em Lisboa o comissário europeu António Vitorino defendeu o reconhecimento de direitos eleitorais aos imigrantes com residência estabilizada. Trata-se de uma proposta de grande alcance. Desde há muito que a defendo. Não é propriamente inédita. A Bélgica, por exemplo, acaba de reconhecer direito de voto nas eleições locais aos imigrantes instalados há mais de cinco anos no País, embora sem reconhecimento do direito de candidatura.
Esta providência só beneficia de novo os imigrantes exteriores à UE, visto que os nacionais dos Estados-membros desta gozam dos direitos de cidadania europeia, entre os quais se contam direitos eleitorais nas eleições locais e nas eleições europeias, quando residentes noutro Estado-membro. Em alguns países reconhecem-se ainda direitos eleitorais aos nacionais de certos outros Estados com ligações afectivas ao Estado de residência, como sucede em Portugal em relação aos nacionais de outros países lusófonos, designadamente o Brasil.
Mas é justamente para os outros imigrantes que o reconhecimento do direito de participação nas eleições locais se justifica inteiramente. Na verdade, com a imigração considerável verificada nos últimos anos para os países europeus, em especial na UE (mas não só, como sucede na Suíça), as sociedades europeias tornaram-se crescentemente plurais. Em alguns países o número de imigrantes atinge mais de 25% da população adulta. Restringir a participação eleitoral em função da nacionalidade, de acordo com o princípio tradicional da ligação entre cidadania e nacionalidade, deixa de fora da participação nos negócios públicos uma parte importante dos membros activos da comunidade. Por outro lado, o reconhecimento de direitos eleitorais pode ser um instrumento valiosíssimo de inclusão e de coesão social.

História mal contada
O Governo montou uma bem orquestrada barragem para desactivar a acusação de favoritismo governamental na história da transformação da entidade gestora da Universidade Lusíada em fundação, por via de um decreto-lei individual. Os cronistas afectos ao poder apressaram-se a ecoar a tese da lisura e transparência de todo o processo. E o próprio PS, depois de ter elevado a voz para exigir uma investigação dos pormenores do caso, enterrou subitamente o assunto, quanto o antigo Ministro da Educação, Guilherme de Oliveira Martins, confirmou que ele já tinha estado na agenda do seu Governo.
Todavia a revista 'Visão' desta semana, que tinha levantado a questão, voltou ao tema, com declarações do Secretário de Estado de então, José Reis, revelando justamente que a pretensão da Universidade Lusíada tinha sido negada por falta de fundamento legal e por se configurar como uma situação de favor.
Seja como for, uma coisa parece certa: se a transformação de cooperativa em fundação era legal, então não precisava de um diploma legislativo 'ad hoc' para ter lugar, tanto mais que se trata de uma operação jurídico-privada. Isto significa que ela não era legalmente possível. Por outro lado, se o Governo quisesse suprir uma lacuna legislativa, deveria ter promovido uma lei geral (que aliás seria da competência da Assembleia da República), válida para todos os interessados, e não uma lei singular 'ad hoc', que beneficia apenas a Universidade Lusíada. Todo o tratamento singular cheira a favoritismo.
Entre os sofismas produzidos pelo Ministro Morais Sarmento em defesa da medida governamental conta-se o argumento de que idêntico procedimento tinham sido adoptado noutros casos precedentes, como por exemplo a Fundação de Serralves, a Fundação Luso-Americana, etc. Ora, é evidente que em nenhum desses casos se tratou da transformação de uma cooperativa em fundação, mas sim da criação originária de fundações. Pode-se morrer por excesso de zelo e défice de conhecimento...

O discurso do ódio
A nossa direita radical, em geral, perdeu o verniz liberal com o entusiasmo da captura de Saddam Hussein, aplaudindo o indigno tratamento dado ao prisioneiro pela exibição de imagens ostensivamente humilhantes e ridicularizando a reclamação de julgamento justo daquele. Com toda a justeza José Pacheco Pereira - honra lhe seja, ele que apoia desde o início a política norte-americana no Iraque - zurze no 'Público' desta semana a incontinência retórica de um dos nossos mais fundamentalistas fãs de Bush a esse propósito. Mas que dizer desta 'pérola' de um dos cronistas do 'Independente' desta semana?
'Ao ver este criminoso enfiado num buraco de ratazana, a minha primeira vontade era empalar a criatura numa praça de Bagdad. Mas então lembro Talleyrand e as sábias palavras do mestre: nunca sigas o teu primeiro impulso porque ele será sempre generoso'.

Canotilho



Associo-me com regozijo à atribuição do prestigiado 'Prémio Pessoa' ao Professor Canotilho, pelo seu estatuto de universitário eminente, pela sua obra de constitucionalista brilhante, pela densidade teórica da sua produção jurídica, pela amplitude das suas preocupações intelectuais, pela vastidão da sua bagagem cultural, pela intervenção activa nas questões da cidadania, pela dimensão cosmopolita da sua irradiação. Sendo seu amigo de há muitos anos, companheiro de tantas experiências comuns, colaborador de várias obras conjuntas, não é sem emoção que vejo reconhecida publicamente nele a responsabilidade do homem, do cidadão, do professor e do jurista na luta por uma sociedade mais livre, mais democrática e mais justa. Parabéns Joaquim! Bem o mereces.

Vital Moreira