Em 19/2/2004 A CAPITAL publicou um artigo do Deputado Telmo Correia acusando-me de radicalismo num recente debate televisivo (a que faltou, à última hora, um outro deputado da maioria). Segundo o Diccionário da Porto Editora, 7ª edição, pag. 1505, radicalismo é ‘o sistema de governo que pretende reformas profundas de carácter democrático na organização social’. O Senhor Deputado acertou, nesse ponto, em cheio: naquela definição, sou radical. Estou na política e no PS porque acredito que a maioria dos portugueses também quer reformas profundas. Assumo-o, como sempre assumi tudo. Entre outros aspectos, isso me distingue de políticos hipócritas e cobardes, incapazes de assumir passados ou orientações privadas ou públicas...
Ser radical é ir à raiz dos problemas e não ficar à superfície na untuosidade hipócrita da actual lei reguladora da IVG. Uma lei que suscita incomodidade tanto ao Primeiro-Ministro como aos profissionais que têm de a aplicar, gerando interpretações que frustram o sentido da própria lei – e Estado democrático com leis que não são cumpridas, nem para cumprir, não é digno do nome nem serve a sociedade. Uma lei que, também, se presta a zelos fundamentalistas de polícias e magistrados que dedicam anos de trabalho (pago por todos nós, os que pagam impostos), usando métodos ilegais e violadores dos direitos humanos, para perseguir pacatas cidadãs, como as sujeitas à humilhação do julgamento de Aveiro, em vez de apanharem traficantes e outros perigosos criminosos à solta neste país.
Como sublinhei no tal debate televisivo, o aborto clandestino em Portugal é sobretudo um problema de mulheres pobres e mal informadas e de famílias de escassos recursos. Mulheres que não recorrem aos hospitais porque encontrariam médicos e enfermeiras que, estribando-se na actual lei ou em «objecção de consciência», se recusariam a ajudá-las. Que só entram nas urgências hospitalares se a operação corre mal no vão de escada onde abortam: assim aconteceu a cerca de 11.000 mulheres em 2002. E assim morreram pelo menos 5 mulheres nesse ano. Vidas que não contam para os fanáticos da vida dos embriões.
Como toda a gente sabe, a actual lei não impede o aborto. Nem, sobretudo, combate o aborto clandestino: pelo contrário, faz florescer esse negócio, tal como a «lei seca» favorecia o do Al Capone. E alimenta a hipocrisia geral. Porque a verdade é que todos sabem que existem, como sempre existiram, por esse país fora clínicas privadas e consultórios respeitáveis onde mulheres das classes média e alta fazem abortos, encapotados como outras intervenções obstétricas. Todos lêem nos jornais anúncios de clínicas em Badajoz e em Madrid onde as portuguesas podem ir abortar com acompanhamento médico e em perfeita legalidade.
Não defendo o aborto pelo aborto, nem como método contraceptivo. Quero que se acabe com o aborto clandestino em Portugal e para isso é preciso mudar a lei, descriminalizar o aborto, tornando-o acessível, de forma regulada, a todas as mulheres que a ele entendam recorrer em hospitais públicos ou privados. Quero que diminuam drasticamente os abortos praticados pelas portuguesas; e para isso é preciso que as mulheres e os homens, os jovens em particular, sejam devidamente informados sobre a sexualidade, a contracepção e apoiados no planeamento familiar. A sexualidade deve ser responsável e informada, para a maternidade e a paternidade também poderem ser responsavelmente assumidas.
Defendo, justamente, o que é contrariado pela política deste governo de direita, assumida (ao menos assume...) pela correligionária do Deputado Telmo Correia, a Senhora Secretária de Estado Mariana Cascais, cujo discurso (não a pessoa) eu classifiquei de «troglodita», para incómodo do Senhor Deputado, levando-o a afirmar que ‘nós à direita somos educados’. Estranho conceito de ‘educação’! Basta atentar no que aquela responsável pela ‘Educação’ tem dito, desdito e feito – a invocação de uma religião oficial, o insulto aos professores por ‘falta de ética’, a arrogância obscurantista do ‘se eu quisesse não havia educação sexual’, os cortes nos programas de educação sexual nas escolas, o desmantelamento da rede nacional de escolas promotoras de saúde, o fim da linha verde «Sexualidade em linha», etc... Brada aos céus num país que tem a maior taxa da Europa de incidência de HIV/SIDA entre os jovens e as mulheres e que tem a segunda maior taxa de gravidezes adolescentes!
O Deputado Telmo Correia, desonestamente, procura atribuir-me a defesa do aborto como solução final, como se eu sustentasse um malthusiano «dever de aborto». Eu defendo o direito à vida, com qualidade e perspectivas de futuro decente. O direito à vida de quem tem vida auto-sustentada, nasce, é pessoa. Eu defendo o direito à vida e aos outros direitos humanos básicos para todos os que andam neste mundo. Incluindo para os mais vulneráveis, que podem facilmente ser vítimas de abuso e exclusão, como as crianças da Casa Pia, a quem por isso a sociedade e o Estado deviam especialmente proteger. Por isso revolta que meninos e meninas entregues à responsabilidade do Estado possam ser abusados em muitas casas pouco pias deste país, que são depósito de milhares de crianças sem familiares que as acolham e acarinhem. E em muitas outras casas que são as dos próprios pais ou familiares que delas abusam. Alguém tem dúvidas de que muitos desses meninos e meninas são produto de gravidezes não desejadas? No referido debate citei dados do Ministério da Segurança Social, de 2002: a maior parte das 10.300 crianças albergadas em lares em Portugal não são órfãos (menos de 1%), mas antes vítimas de negligência (51,6%), abandono (32,5%) e pobreza (30%).
Indigna o que sofrem aqueles meninos e meninas e o silêncio e inacção do Estado e da sociedade (todos nós!). Pelas mesmas razões, revolta que crianças e adultos continuem a ser dizimados em conflitos e pandemias por esse mundo fora. Como os milhões destroçados pela SIDA em Àfrica ou os milhares de vidas destruidos na guerra ilegal no Iraque. Guerra que o Deputado Telmo Correia e muitos fundamentalistas do direito à vida dos embriões não tiveram qualquer pejo em aplaudir. Eu atenho-me aos direitos humanos. A direita bate-se pelos direitos dos embriões.
(Artigo publicado em A CAPITAL em 21.2.04)
Ana Gomes