1. Não participei na discussão sobre as remunerações dos novos gestores da CGD, porque a considerei um tanto ociosa e, em geral, assaz demagógica.
Se o Estado quer ter bancos públicos, que têm de participar num mercado concorrencial, tem de aceitar que também há um mercado de gestores, em que o Estado só pode participar se cumprir as respetivas regras, incluindo quanto às remunerações.
Ora, o limite constante do estatuto legal dos gestores públicos - o vencimento do Primeiro-Ministro - não permite ao Estado entrar nesse mercado.
2. Diferente é o caso da obrigação de declaração pública de património, de rendimentos e de interesses, que hoje se aplica a todos os gestores públicos, e que poderia continuar a ser legalmente exigida (ou contratualmente imposta) aos gestores da CGD.
Importa, no entanto, salientar, que tal obrigação não decorre da Constituição, nem direta nem indiretamente. Aliás, a Constituição só se refere às obrigações e incompatibilidades especiais dos titulares de "cargos políticos", em cuja categoria não se integram os gestores de empresas públicas (que devem primar pela neutralidade e isenção política).
Mal ou bem, o Governo decidiu retirar inteiramente os gestores da CGD do âmbito do estatuto legal especifico dos gestores públicos -, o que parece implicar a revogação de todas obrigações legais ligadas a esse estatuto, incluindo a referida acima, sob pena de incongruência legislativa. As eventuais dúvidas sobre este ponto só podem ser superadas pelo Tribunal Constitucional.
Seja como for, não creio que essa eventual isenção seja inconstitucional por violação do princípio da igualdade, por causa de um alegado privilégio ilegítimo dos gestores da Caixa. Na verdade, o princípio da igualdade só pode comparar situações iguais, o que não é o caso, visto que, ao contrário de outras empresas públicas, a CGD participa num mercado tão concorrencial quanto regulado (pelo BdP) quanto à idoneidade e conflito de interesses dos gestores bancários.
3. Pode a AR vir a alterar esta situação por via legislativa, repondo explicitamente essa obrigação para os gestores da CGD?
Sem dúvida que sim, mas em princípio essa alteração só poderá valer para o futuro, não podendo alterar as situações profissionais criadas, tituladas por um contrato em vigor, sob pena de violação unilateral flagrante (aqui, sim!) da proteção das situações jurídicas contratualmente estabelecidas, dando à parte lesada o direito de resolver o contrato e pedir a competente indemnização do Estado. Além disso, há o princípio constitucional de que a criação (ou o restabelecimento) de obrigações públicas, como seria o caso, não pode ter efeitos retroativos para os particulares.
Nestes termos, e independentemente do juízo político de todo o processo, cabe perguntar se há alguma razão para a precipitação da aprovação da lei - que muito provavelmente seria vetada pelo Presidente da República, se dotada de eficácia retroativa -, para além do risco de reativar uma crise de dimensões imprevisíveis da CGD. Para os defensores da natureza pública da Caixa, a iniciativa legislativa que patrocinam pode ser um terrível tiro pela culatra...
Adenda
Porque é que os partidos que contestam a retirada dos gestores da Caixa do estatuto do gestor público não chamaram a apreciação parlamentar, para efeito de revogação ou de alteração, o respetivo diploma governamental - o Decreto-Lei nº 39/2016, de 28 de julho - logo na retoma dos trabalhos parlamentares em 15 de setembro, tendo mesmo deixado passar o prazo de o fazer?
Adenda 2
Perguntam-me se a não aplicação retroativa vale também para a questão das remunerações. A resposta é sim, por maioria de razão. Mesmo os contratos públicos, que admitem a sua modificação unilateral pelo Estado, impõem a "manutenção do equilíbrio contratual".