1. Apesar de, na sua génese e configuração constitucional, o SNS ser um serviço universal e geral de provisão pública de cuidados de saúde (Estado financiador e prestador), a verdade é que ao longo destes 40 anos não cessou de minguar a sua quota no mercado de saúde em Portugal, em contrapartida da expansão do setor privado.
Foram duas as vias de desenvolvimento do setor privado:
- o crescimento autónomo de um mercado privado de saúde à margem do SNS, financiado pelos próprios utentes ou por esquemas de seguros de saúde;
- a crescente subcontratação externa de cuidados de saúde pelo próprio SNS, desde meios auxiliares de diagnóstico a cirurgias, por incapacidade de resposta do serviço público.
2. Entre as medidas que facilitaram a vida e os negócios do setor privado, em prejuízo do SNS, mencionaria os seguintes, que fui apontando ao longo dos anos:
- a manutenção da ADSE, como sistema de saúde privativo dos funcionários públicos, essencialmente assente no financiamento público de cuidados de saúde privados;
- o continuado défice de oferta do SNS em algumas áreas, como a medicina dentária e a oftalmologia, deixando terreno livre à medicina privada;
- as generosas deduções de despesas de saúde no IRS e a subsidiação dos medicamentos prescritos na medicina privada em pé de igualdade com os prescritos no SNS, que equivaleram a uma pingue subvenção do setor privado;
- a complacência com a prática sistemática da contratação externa de exames e meios de diagnóstico, com abandono ou subutilização dos recursos e serviços internos do SNS;
- o exclusivo público de formação de médicos e de especialistas, com os enormes custos financeiros envolvidos, mas sem dedicação exclusiva dos estagiários e sem exigência de nenhum período de serviço posterior no SNS, tudo se traduzindo num invetimento público na medicina privada;
- a prática de atribuição de seguros de saúde pelas próprias entidades administrativas e empresariais públicas.
3. Rejeitando teorias simplistas de "parasitização" do SNS pelo setor privado, parece evidente que este foi estimulado deliberadamente pelo Estado, como meio de reduzir a procura e os encargos financeiros do SNS.
Sem surpresa, apesar da cobertura tendencialmente universal do SNS como serviço de provisão pública, a despesa pública em saúde em Portugal (em rácio do PIB) já está abaixo da média da OCDE, enquanto a despesa privada está acima.
A manter-se esta tendência, o SNS corre o risco de tornar-se, a prazo, num subsistema subsidiário de saúde, confinado aos cuidados mais onerosos que o setor privado não cobre (oncologia, doenças vasculares, etc.) e às camadas de utentes sem meios para aceder ao setor privado. Um destino pouco condizente com a sua grandiosa consagração constitucional e com o seu percurso épico na melhoria das condições de saúde em Portugal...