quinta-feira, 23 de junho de 2022

Era o que faltava! (3): A Ordem dos Advogados acima da lei?!

Não sendo advogado, não me tinha dado conta de que o Boletim da Ordem dos Advogados informa que «não adopta [sic] o novo Acordo Ortográfico», apesar de este estar em vigor desde 2015, sendo de presumir que a Ordem também o não faz na sua correspondência oficial e nos processos administrativos, disciplinares, judiciais, etc., em que intervém. O site da Ordem insere a mesma rejeição do AO (imagem acima)

Considero uma inadmissível provocação esta recusa da ortografia oficial da República por parte de uma entidade pública, criada pelo Estado e encarregada do desempenho de tarefas públicas de regulação e disciplina da profissão de advogado. Nem sequer pode ser invocado o facto de não haver sanção prevista para o incumprimento da ortografia oficial, sobretudo tratando-se de um organismo público empenhado na observância do Estado de direito, sabendo-se que a ordem jurídica, a começar pela Constituição, inclui outras normas "imperfeitas", desprovidas de sanção, sem que isso torne menos ilícita a sua violação.

Por que desconhecido privilégio se julga a OA acima da lei?

Adenda
Um leitor bem-humorado comenta que, para ser coerente, a OA deveria passar a usar a ortografia vigente em 1926, aquando da sua criação. Observo, porém, que nessa altura, já a ortografia tinha sido objeto de uma "abusiva" norma oficial em 1911, pelo que a Ordem deveria, sim, regressar à ortografia livre anterior à República... 

Adenda 2
Pergunta provocatória de um leitor: «como é que os advogados podem exigir nos tribunais o cumprimento da lei, se eles próprios se recusam a cumpri-la?» Boa!

Adenda 3
Outro leitor objeta que o AO «não é uma lei», pelo que a crítica não se justificaria. Vê-se logo que não se trata de um jurista, pois, se o fosse, saberia bem que os acordos internacionais vigoram diretamente na ordem interna e criam direitos e obrigações, sem necessidade de transposição legislativa. Mais, de acordo com a interpretação dominante, os acordos internacionais prevalecem sobre lei interna incompatível com eles, assim respeitando o compromisso do Estado com terceiros países. Por isso, o AO nem sequer pode ser validamente afastado por uma lei, o que torna o seu incumprimento ainda mais grave do que se se tratasse de uma lei interna.