1. Não vejo que
«base programática» comum politicamente realizável pode estabelecer-se,
como aqui se propõe, entre um partido social-democrata como o PS - que defende a democracia liberal, uma economia de mercado regulada, a abertura económica externa, a gestão responsável das finanças públicas, um Estado social sustentável e o aprofundamento da União Europeia - com ideias tão díspares destas, como a crítica populista da democracia representativa, o intervencionismo económico do Estado, o protecionismo comercial externo, a irresponsabilidade orçamental do défice e da dívida pública, um Estado social sem sustentação financeira e um acentuado ceticismo sobre a integração europeia.
Neste quadro, sem prejuízo de uma competição pacífica e de convergências pontuais - o que sempre tem havido -, não há manifestamente cimento bastante para plataformas políticas comuns consistentes entre o PS e a sua esquerda.
2. A Geringonça (2015-2019) só foi possivel como solução política conjuntural, para afastar do Governo a direita (cuja coligação eleitoral tinha vencido as eleições) e reverter as principais medidas tomadas durante a tutela financeira externa, sem se basear, porém, num programa comum nem numa coligação de governo. Uma coisa é uma aliança negativa conjuntural contra a direita, outra coisa é um programa comum de esquerda, como base de uma proposta eleitoral ou de coligação de governo.
Sucede, de resto, que, depois do derrube do anterior governo do PS pela convergência da extrema-esquerda parlamentar com a direita, há hoje um governo socialista baseado numa sólida maioria parlamentar, com mandato até 2026, o qual, entre outras orientações positivas, tem avançado manifestamente no aprofundamento do Estado social (aumento do salário minimo, de pensões e de outras prestações sociais, isenção de IRS para os rendimentos mais baixos, subida acentuada da dotação orçamental dos serviços públicos), mantendo simultaneamente a disciplina orçamental e a redução do peso da dívida pública -, o que torna ainda mais descabida a ideia de uma macrocoligação das esquerdas como alternativa política ao Governo, ou seja, como oposição.
[Rubrica originária modificada]
Adenda
Um leitor manifesta a sua surpresa por haver deputados do PS a intervir no espaço público «com opiniões claramente desalinhadas das posições do partido, como se fossem da oposição». Assim é, por várias razões: (i) o PS sempre foi um partido plural, e sempre teve franjas discordantes do mainstream partidário, incluindo na sua representação parlamentar, como é notório hoje em dia com uma ala que se pode qualificar como "filobloquista", ou seja, propensa a "flirtar" com o BE; (ii) o substancial enfraquecimento da disciplina partidária no parlamento, no tempo de A. J. Seguro, libertou os deputados da obrigação de respeitarem publicamente a linha política do partido; (iii) o acordo da Geringonça (2015) proporcinou legitimidade a uma maior proximidade com os partidos à esquerda do PS (mesmo que estes tenham depois feito cair friamente o 2º Governo de Costa, aliando-se à direita no chumbo do orçamento, em 2021). A questão é saber se tais diferenças públicas podem afetar a credibilidade política do partido - e creio que não.