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domingo, 9 de novembro de 2025

Reforma da Justiça (15): Contra a imunidade do governo da justiça ao escrutínio público



 









1. Na entrevista que deu ao jornal Público do passado dia 6, o presidente do STJ, Conselheiro Cura Mariano, perguntado sobre as críticas ao estado da justiça pelo Manifesto dos 50 (de maio de 2024), permite-se surpreendentemente insinuar - como os excertos acima reproduzidos mostram - que os seus autores pretendem que os juízes sejam «escolhidos e nomeados pelo poder político» e submeter as suas decisões às «orientações do poder político», à semelhança da Polónia (!) e da Hungria (!), culminando na ideia de que pretendem «arranjar controleiros para os juízes» (sic!).

Ora, basta ler o Manifesto (disponível AQUI) e as posições do seus autores, entre os quais me conto, para ver que aquelas graves insinuações não têm absolutamente nenhum fundamento, sendo produto de pura especulação malévola do entrevistado. Aliás, no seu § 8, o Manifesto ressalva expressamente que a reforma da justiça nele proposta deve «respeitar integralmente a independência dos tribunais» e no § 9 declara à cabeça das suas prioridades a de «garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça».

De resto, quem é que poderia acreditar que aquele grupo de pessoas - todas com um currículo que pede meças na defesa do Estado de direito constitucional, que tem na independência dos juízes e dos tribunais um dos seus pilares -, poderia incorrer em disparates tão grosseiros como a defesa do controlo político da justiça?

O problema que aquelas declarações suscita é o de saber como é que pessoas com a posição e responsabilidade institucional de presidente de um supremo tribunal da República podem permitir-se fazer acusações tão levianas e tão ofensivas para os visados, sem nenhum fundamento. Assim, não vale! Sendo eu um dos coautores do Manifesto, julgo que o Senhor Conselheiro Cura Mariano deve corrigir aquelas irresponsáveis declarações e pedir desculpa aos visados.

2. Sendo intocável a independência dos juízes e a função de julgar (do STJ e de todos os tribunais), tal como garantida na Constituição - que ninguém contesta nesse ponto -, entendo, porém, que os órgãos de governo das magistraturas, onde se conta o CSM (a que o presidente do STJ preside por inerência), não podem reivindicar nenhuma imunidade ao escrutínio externo do desempenho das suas funções, que obviamente não têm natureza judicial (como prova o facto de ele ser composto maioritariamente por membros nomeados pelo poder político, aliás por exigência do princípio democrático). 

Por isso, na linha do Manifesto (§ 9, quinto item), defendo que, além do envio do seu relatório anual à AR, como previsto na lei, o presidente da CSM, nessa qualidade, devia ser chamado regularmente a apresentá-lo na comissão de justiça da AR e a responder às questões dos deputados, e que que AR devia organizar anualmente uma sessão de debate sobre o estado da justiça, justamente com base dos relatórios do CSM, do CSTAF e do Ministério Público. O preocupante estado da justiça exige essa sabatina regular.

Numa democracia constitucional, não pode haver poderes de gestão pública imunes ao escrutínio público nem irresponsáveis perante a coletividade. Os cidadãos têm o direito de conhecer e de avaliar o desempenho do sistema de justiça, nos seus vários subsistemas, e de pedir contas a quem os governa. Isso vale também para o CSM e o seu presidente.

Adenda
Um leitor, que se apresenta como magistrado judicial, faz o seguinte comentário: «Era o que faltava, ver o presidente do STJ submetido a um exame parlamentar!». Mas não tem nenhuma razão: não defendo que o Consº Cura Mariano compareça perante a AR na sua qualidade de presidente do STJ (embora tal não esteja excluído, para responder sobre a gestão administrativa do Tribunal), mas sim como presidente do CSM -, o que não é a mesma coisa! Constitucionalmente, Portugal é um Estado de direito democrático, onde o poder público vem da coletividade e é responsável perante ela. Não é por acaso que, por imposição constitucional, o CSM tem uma maioria de membros designados pelo PR e pela AR (e o mesmo sucede, por analogia, com o CSTAF), nem que o PGR é nomeado e destituído livremente pelo PR, sob proposta do Primeiro-Ministro. Num Estado democrático, o poder judicial não pode viver em autogestão, nem ser imune à responsabilidade externa. O que aquela frase revela é a prevalência, na esfera judicial, de um sentimento corporativista de autogoverno do sistema de justiça, por natureza imune ao escrutínio externo, à revelia da Constituição -  o qual não pode perdurar.

Adenda 2
Excerto do comentário de um leitor informado e credenciado: «Um texto que subscrevo, em defesa do Estado de direito. Sucede que a administração da justiça está em roda livre há muito tempo. E o poder político demitiu-se de fazer um escrutínio sério e objetivo. Tem medo, e a cobardia paga-se caro. 
Os conselhos superiores estão no essencial reduzidos à esfera disciplinar; não há discussões de fundo entre os conselhos e os deputados. O relatório anual é um mero proforma. Ninguém o lê na AR e ninguém quer saber dos vogais dos conselhos após as eleições na AR. Depende do empenho e do espírito de missão de serviço público de cada eleito, que se vê numa situação de profunda indiferença do parlamento. (...) Penso que estão a fazer um ótimo trabalho com as intervenções públicas do Manifesto, porque o tema da justiça tem de regressar ao centro do discurso político reformista». É um relato impressionante, que chama a atenção para um facto pouco conhecido: a demissão do poder político, incluindo a AR e os partidos políticos, de usarem o poder de escrutínio do sistema de justiça, de que dispõem.   

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (60): O colegislador clandestino

1. No princípio de agosto, o Governo anunciava a aprovação em Conselho de Ministros de um diploma a fundir a FCT com a Agência de Inovação, pelo que, como é normal, o diplomá deverá ter sido enviado para promulgação do PR. Contudo, mais de três meses passaram sem promulgação do diploma nem notícia de veto presidencial.

Passado este tempo todo, o Governo vem anunciar uma nova versão do diploma, com uma significativa alteração em relação ao que se sabia do primeiro, quanto ao formato institucional da nova entidade, informando que ela resultava de uma «sugestão» do PR, não se sabe a que título, nem quando, nem por que meio. O que se terá passado?

Conjeturalmente, passou-se o seguinte: face à forte oposição da comunidade científica ao referido diploma, e não concordando também com ele ou com algumas das suas soluções, o PR decidiu não o promulgar, sem, porém, o vetar, como devia, preferindo devolvê-lo à procedência com sugestões de alteração (que desconhecemos), que o Governo acabou por acolher, no todo ou em parte, como agora anuncia. O problema é que nada disto é conforme à Constituição.

2. Em primeiro lugar, nada autoriza o PR a devolver ao Governo um diploma legislativo sem veto formal, devidamente justificado, tal como previsto na Constituição. Segundo, tudo na Constituição contraria essa espécie de "negociação legislativa" informal (?) entre o Governo e o PR, tornado colegislador, em afronta do princípio constitucional da separação de poderes. Por último, é inadmissível este procedimento legislativo clandestino, sem qualquer informação pública, ao arrepio do princípio da transparência e do acompanhamento público que a formação das leis deve observar num Estado de direito constitucional, que foi justamente construído contra a "arcana praxis" do Antigo Regime pré-liberal.

Não dá para compreender como é que o Presidente da República se deixa envolver numa operação tão grosseiramente à margem da Constituição quanto ao exercício do poder legislativo. 

3. Há que encontrar meios para pôr cobro a estas situações de descabido "conluio legislativo" entre Belém e São Bento, à margem do procedimento previsto na Constituição e da separação clara entre o poder legislativo do Governo, quando o tem, e o subsequente poder de controlo presidencial, para efeitos de promulgação ou de eventual veto.  

Para impedir isso, impõem-se três mudanças em relação à prática corrente:
- que o Governo publique antecipadamente a agenda legislativa de cada Conselho de Ministros;
- que, logo depois, publique o texto dos diplomas legislativos aprovados e indique a data do seu envio para Belém;
- que o PR publique o despacho de promulgação ou veto dos diplomas governamentais, como faz em relação aos da AR.

O procedimento legislativo dos decretos-leis não pode continuar escondido numa "caixa negra", à margem do escrutínio público.

4.  Quanto à emenda presidencial do diploma, substituindo o formato institucional da nova entidade pública, que deixa de ser o de sociedade comercial (SA) para passar ao de entidade pública empresarial  (EPE), ela atenua um pouco a gravidade da solução governamental, mas continua a ser uma solução errada, pois não se vê onde onde é que na gestão da subvenção pública à investigação existe produção de serviços contra um preço, que é essencial à noção de empresa. 

Continua, portanto, a verificar-se a mesma fraude à distinção constitucional entre o setor público empresarial (SPE) e o setor público administrativo (SPA) e de fuga indevida da nova entidade administrativa às regras da "Constituição administativa" da CRP. O PR não se devia deixar expor como coautor de um desvio desta gravidade aos princípios constitucionais.

5. Acresce o risco de se verificar uma situação politicamente embaraçosa.

Os decretos-leis governamentais podem ser chamados ato contínuo à AR, para efeitos de rejeição ou de alteração - o que provavelmente vai ocorrer. Se a AR questionar o formato pseudoempresarial da nova agência administrativa, que se sabe agora provir de Belém, em que situação fica o PR, se a AR decidisse - como, a meu ver, devia - revogar esse ponto da "parceria legislativa" entre Belém e São Bento?  E em que situação fica ele, quando fosse chamado a promulgar essa lei da AR que descarte esse seu indevido contributo de legislador ocasional?

Eis como o desrespeito dos limites constitucionais dos poderes presidenciais - o PR não é legislador nem colegislador - pode gerar consequências políticas assaz delicadas...

Adenda
Um leitor bem informado observa que essaa prática «já vem do passado, com outros Presidentes e outros governos». É verdade, e eu já a critiquei anteriormente, por ter conhecimento dela. O que é novo, porém, é ela ter sido referida publicamente por um ministro, como se fosse uma prática perfeitamente normal. Ora, não pode aceitar-se a "normalização" de uma prática contrária à Constituição e ao escrutínio público da atividade legislativa.

Adenda 2
Neste editorial do Público sobre esta questão diz-se que a fórmula das "entidades públicas empresariais" está «amplamente experimentada» no caso dos hospitais públicos - o que é verdade. No entanto, ao contrário dos hospitais EPE - que preenchem os pressupostos técnicos da noção de empresa, como prestadores de serviços ao público, e cujo financiamento orçamental é efetivamente calculado em função dos cuidados de saúde por eles prestados aos utentes do SNS e que são "pagos" pelo Estado em vez deles (algo de paralelo às autoestradas "SCUT", em que o Estado paga a sua utilização às empresas respetivas, em vez dos utilizadores) -, parece evidente que a missão da projetada IA2 não preenche a noção de atividade económica, que é pressuposto do conceito de empresa: na noção de "entidade pública empresarial", ela só prenche o primeiro conceito, não o segundo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (59): Emendar a mão

1. Ao contrário de outros artigos desta série e da sua rubrica, este não é de crítica ao PR, mas sim de aplauso.

Em meados de Setembro, MRS anunciava o seu propósito de, «dentro de duas ou três semanas», emitir publicamente o seu juízo sobre a Ministra da Saúde. Critiquei prontamente (AQUI) esse anunciado juízo presidencial, com fundamento em que não cabe constitucionalmente ao PR avaliar publicamente o desempenho político dos ministros, o que é competência do PM, da AR e dos cidadãos, visto que o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente, nem este dispõe de qualquer poder de tutela política sobre aquele.

Passadas várias semanas, esse juízo presidencial sobre a ministra da Saúde nunca veio a público - e bem! Desta vez, a minha crítica não caiu em saco roto.

2. Em vez disso, há dias, o Presidente resolveu manifestar publicamente a sua preocupação quanto ao estado do SNS e a falta de estabilidade e continuidade das políticas governamentais da saúde, omitindo qualquer avaliação do desempenho da Ministra ou do Governo. Fez bem, de novo!

Na sua missão de "poder moderador" e de supervisão sobre o respeito da Constituição, o PR pode - e em certas circunstâncias, deve - chamar atenção do Governo, da AR e dos partidos políticos para situações que põem em causa valores constitucionais eminentes, onde se conta obviamente o SNS e o direito à saúde. Além de caber nas suas competências constitucionais, o alerta do PR sobre a gravidade da situação e o seu apelo a um "acordo de regime" sobre a matéria é pertinente e oportuno.

Ou seja, para desempenhar bem o seu papel constitucional, o PR não precisa de abusar dos seus poderes, como tantas vezes tenho registado. Vale a pena emendar a mão.

Adenda
Um leitor entende que «tal como qualquer cidadão, Marcelo Rebelo de Sousa deve ter uma péssima opinião sobre a Ministra da Saúde». Pois pode tê-la, mas ele não é "qualquer cidadão"; mesmo que a tenha, ele não pode, sendo PR, exprimi-la publicamente.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (21): Entre a passividade e o ativismo presidencial

 1. Merece reflexão este alerta de Pedro Adão e Silva, esta semana, na sua habitual coluna no Público, na sequência da publicação do meu livro "Que Presidente da República para Portugal?", que ele fez o favor de comentar há dias na sessão de lançamento público, em Lisboa:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.»

Na verdade, sou igualmente contra um Presidente excessivo (como foi o caso de Marcelo Rebelo de Sousa) e contra o Presidente que se limitasse a fazer papel de corpo presente, como se fora um monarca puramente representativo e cerimonial, à imagem do que sucede nas monarquias constitucionais e em algumas repúblicas que as imitam nesse aspeto. Se não elegemos o PR para competir com a AR e o Governo, enquanto legislador ou governante paralelo, tampouco o elegemos para deixar na gaveta as suas funções enquanto garante do regular funcionamento das instituições, enquanto vigilante do respeito pela Constituição e enquanto moderador da conflitualidade política e dos excessos legislativos ou políticos. 

Pelo contrário, os seus poderes constitucionais são para serem usados, quando for caso disso e de forma prudente e responsável, em defesa dos valores constitucionais, da transparência e da responsabilidade política e da estabilidade política e governativa.

2. No entanto, a lógica do poder indica e a experiência comprova que o risco de excesso presidencial é muito maior do que o risco de défice ou de omissão, pelo que a principal preocupação deve ser a de cuidar das garantias contra aquele . 

As minhas teses sobre esse ponto crucial assentam em dois pontos, que não é preciso ter estudado direito constitucional para entender:

1º) - numa democracia constitucional o PR só tem os poderes enunciados na Constituição;

2º) - quando os poderes presidenciais afetarem a autonomia de outros órgãos de soberania (como sucede com o poder de dissolução ou o poder de veto legislativo), devem ser interpretados restritivamente e ser praticados com prudência e contenção, de acordo com os princípios da necesidade e da proporcionalidade. 

Sinteticamente,  como mostra a tabela abaixo, a posição do PR no nosso sistema político pode ser sumariada num conjunto de contraposições, entre o que o Presidente é ou pode fazer e o que ele não é nem pode fazer. 

É fácil ver na coluna da direita os riscos da "tentação presidencialista" que denuncio no meu livro.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (58): Insistir no erro

1. Insistindo na sua veste de comentador político, Marcelo Rebelo de Sousa anuncia ir fazer proximamente um juízo público sobre a Ministra da Saúde

Ora, num Estado constitucional os órgãos do poder político só tem os poderes enunciados na Constituição, e entre os poderes do Presidente não consta o de comentar nem de avaliar publicamente o desempenho político do Governo ou dos seus membros (salvo para justificar o eventual recurso a um dos seus poderes extremos, como seria a dissolução da AR ou a demissão do próprio Governo, o que não é seguramente o caso).

O Presidente não é eleito como comentador-mor da República.

2. Como tenho escrito repetidamente, o Governo não depende da confiança política do PR nem está sujeito à sua tutela política, pelo que a avaliação política da sua atividade só cabe aos partidos da oposição (na AR e fora dela), aos comentadores e aos cidadãos e grupos da sociedade civil. O PR não se encontra em Belém em nenhuma dessas capacidades. Como cidadão crítico, protesto contra esta "concorrência desleal" de Belém.

É pena que até o fim do seu mandato, daqui a poucos meses, MRS não se tenha dado conta de que estas incursões em seara alheia não atentam somente contra a Constituição - que jurou cumprir e fazer cumprir -, mas também que a sua banalização lhes retira eficácia e degrada a imagem do próprio Presidente, pondo em causa a integridade do cargo e expondo a sua impotência .

Adenda
Uma leitora pergunta se, «no caso de chegar a um juízo muito negativo sobre a Ministra, MRS virá defender a demissão dela, como fez quanto ao ministro Galamba, no último Governo PS». Creio que a questão não se vai colocar, porque a condição posta - o "mau juízo" presidencial sobre a ministra - não se vai verificar. Amigo não ataca amigo... 

Adenda 2
Um leitor pergunta se o Presidente "não pode formar uma opinião negativa sobre um ministro". Pode,  sem dúvida, e também pode transmiti-la ao PM, nos seus encontros semanais em Belém, mas não deve exprimi-la em público, condicionando o chefe do Governo na sua liberdade de formar e gerir a sua equipa governativa, assumindo a responsabilidade política pelo seu desempenho, que só a ele cabe. O PR não é um "treinador de bancada".

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O que o próximo Presidente deve fazer (19): E quanto à dissolução parlamentar?

1. Se existe uma questão a que todos os candidatos presidenciais devem responder com clareza - depois da penosa experiência dos últimos anos quanto a instabilidade política, mercê de uma sucessão de dissoluções parlamentares e de governos de curta duração -, ela é a de saber a que critérios eles vão sujeitar o poder de dissolução parlamentar, que é seguramente o mais intrusivo dos seus poderes constitucionais, por isso designado correntemente como a “bomba atómica”. 

 Além da interrupção da legislatura e da convocação de eleições antecipadas, com os inerentes elevados custos financeiros, a dissolução parlamentar suspende a ação legislativa e governativa durante várias semanas, até à formação de novo Governo, o que tem também impacto negativo sobre os investimentos públicos e sobre a vida económica e as decisões de empresários e consumidores, dada a incerteza política criada. 

Acresce que a instabilidade política e a brevidade dos ciclos políticos que a frequência de dissoluções gera põem em causa também a confiança dos cidadãos na democracia parlamentar, em particular, e nas instituições políticas, em geral, fazendo evocar o fantasma de má memória da instabilidade da I República, que a vitimou

 2. Segundo a nossa Constituição, o Presidente da República tem o poder de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas, aparentemente sem outra limitação que não sejam os “períodos de defeso” nela definidos, que proíbem a dissolução nos primeiros seis meses depois das eleições parlamentares e nos últimos seis meses do mandato do Presidente da República. 

Tratar-se-ia, portanto, de um poder discricionário, ou seja, de um poder presidencial livre, embora devendo ser justificado, como todos os atos do poder público numa democracia constitucional. Discordo, porém, desse entendimento, que considero “laxista” e pouco respeitador das regras de interpretação constitucional. Como sabe qualquer aprendiz de jurista, as normas não podem ser lidas literalmente nem isoladamente, devendo a sua interpretação ter em conta a sua razão de ser (“ratio legis”) e o seu enquadramento sistemático com outras normas com elas relacionadas, neste caso as atinentes ao exercício do mandato presidencial. 

 3. Quanto à razão de ser da dissoluação parlamentar, importa sublinhar que, sob pena de “desvio de poder” presidencial, o poder de dissolução não pode ser exercido por capricho presidencial, ou deliberadamente para pôr fim a um parlamento de cuja composição política se não gosta, ou para reforçar a posição do partido governante, aproveitando uma conjuntura propícia. Tal como os demais poderes presidenciais, o poder de dissolução parlamentar está ao serviço da realização das funções do Presidente da República, enunciadas no art. 120º da CRP, que, por sua vez, visam a realização dos objetivos constitucionais do Estado. Além disso, quanto ao seu enquadramento no sistema constitucional, é obrigatório considerar que a dissolução parlamentar se traduz numa derrogação grave do princípio da separação de poderes entre o Presidente da República e a AR e da autonomia constitucional desta perante aquele, interrompendo a legislatura de quatro anos, para a qual ela é eleita pelos cidadãos. 

Por conseguinte tem de optar-se por uma interpretação restritiva daquele poder presidencial, que só deve ser exercido quando se torne imprescindível renovar o mandato parlamentar, considerando sobretudo a função da Assembleia da República de suporte institucional e político do Governo e a estabilidade governamental. Ou seja, a dissolução parlamentar deve estar submetida a um princípio de necessidade e de proporcionalidade, de modo a evitar a sua banalização

 4. Neste quadro, ao contrário da doutrina adotada num passado recente, não há nenhuma razão para dissolver a Assembleia da República só porque houve rejeição de um orçamento ou autodemissão do PM, pois pode ser possível negociar um novo orçamento com a oposição ou formar novo Governo no quadro parlamentar existente. 

Apesar de a experiência mostrar resistência a formar novos governos no quadro parlamentar existente, preferindo a dissolução (como foi o caso em 1979, 1983, 1987 e, especialmente, em 2023, quando havia uma maioria absoluta), os efeitos negativos da instabilidade parlamentar daí resultante aconselham vivamente a mudar essa prática, que a Constituição de modo nenhum favorece. 

Em contrapartida, há situações que podem tornar obrigatória a dissolução parlamentar, nomeadamente quando, no seguimento de eleições parlamentares, não seja possível formar um novo Governo, dentro dos seis meses de impedimento de dissolução parlamentar, ou quando não tenha sido possível aprovar o orçamento anual dentro de um prazo dilatório razoável, por exemplo, até aos três meses do novo ano orçamental. Outros casos podem autorizar a dissolução parlamentar, como a inviabilidade, após demissão do Governo, por renúncia ou por ato parlamentar, de formar novo Governo, ou quando a dissolução seja solicitada pelo próprio PM, invocando a dificuldade de governar no quadro parlamentar existente. 

Ou seja, em princípio, a dissolução paralementar deve ser um remédio de último recurso para as situações de inviablidade de soluções de governo.

5. A frequência da dissolução parlamentar, nada menos de 10 casos, gera uma evidente instabilidade política. Dos dezasseis parlamentos eleitos, só seis completarem a legislatura

A nossa experiência constitucional mostra que, embora tenha havido casos de dissolução de parlamentos onde havia maioria parlamentar de um partido ou de uma coligação (casos de 1983, 1985, 2004 e 2023), a maior parte delas ocorreu com parlamentos com governos minoritários, justamente por serem mais vulneráveis a crises políticas, resultantes de derrotas parlamentares ou do mau estado da economia ou das finanças públicas, e por, em regra, não haver soluções governativas alternativas no quadro parlamentar existente. 

Não por acaso, quase todos os casos de legislatura completa respeitam a parlamentos com maioria absoluta (monopartidária ou de coligação)

6. Neste quadro, para além de um critério exigente para a dissolução parlamentar, como recurso de última instância, a estabilidade política depende também da capacidade de o sistema eleitoral gerar parlamentos suscetíveis de proporcionar soluções de governo sólidas, bem como de condições apropriadas de passagem parlamentar dos governos e da sua manutenção

Nesse sentido, a reforma do sistema eleitoral para contrariar a fragmentação parlamentar e a reforma do procedimento de formação de governos - exigindo a sua aprovação parlamentar à partida, “forçando” governos de coligação negociada, bem como a adoção da “moção de censura construtiva” -, poderiam prevenir, ou pelo menos limitar muito, a ocorrência das situações que têm dado lugar, com demasiada frequência, a dissolução parlamentar. 

No entanto, se a mudança nos mecanismos de formação e de dependência parlamentar dos governos, carece de revisão constitucional, outro tanto não sucede com a revisão da lei eleitoral, que pode ser feita sem mexer no texto constitucional, embora também por maioria de 2/3.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O que o Presidente não deve fazer (56): Pode Belém rejeitar a equipe ministerial?

1. Ao afirmar, no comunicado público de Belém sobre a nomeação do novo Governo, que o Presidente «deu o seu assentimento» à equipa ministerial apresentada pelo Primeiro-Ministro, Marcelo Rebelo de Sousa deixa entender que podia não ter concordado, obrigando aquele a corrigi-la. Todavia, embora haja notícia de alguns casos passados de veto presidencial a um ou outro ministro, tal nunca foi prática frequente. E a melhor interpretação da Constituição não valida tal hipótese.

Com a revogação da responsabilidade política do Governo perante o Presidente, na revisão constitucional de 1982, este perdeu a tutela política que tinha sobre aquele, incluindo o relativo poder de escolha que tinha anteriormente na nomeação do Governo, a começar pelo PM, tendo agora de pautar-se exclusivamente pelos resultados das eleições parlamentares e consequente composição da Assembleia da República, tanto mais que na prática política as eleições parlamentares são disputadas em torno da escolha do melhor partido e do melhor líder partidário para governar e de opções de governação.

A necessidade de nomeação presidencial não significa que o Governo seja também da responsabilidade do Presidente, pois este se deve limitar a interpretar e seguir as indicações das eleições parlamentares. Embora o Governo comece a existir com a simples nomeação presidencial, a verdade é que ele só assume plenitude de funções depois da sua passagem parlamentar, ficando pelo caminho se for rejeitado (como sucedeu em 2015). Antes disso não passa de uma espécie de governo provisório, temporário e sob condição.

2. Quanto à nomeação dos ministros e secretários de Estado, deve agora prevalecer a proposta do PM, sem possibilidade de oposição do Presidente, por duas razões convergentes: (i) deve caber exclusivamente ao chefe do Governo escolher a equipe que ele melhor considera poder executar o programa de governo e responder politicamente por ele na AR; (ii) resulta claro da CRP que que as relações do Governo com o PR são estabelecidas por intermédio do PM, e não dos ministros, pelo que não existe razão para aquele interferir na composição da equipa governativa. Por isso, a formação do Governo não deve ser considerada como uma parceria entre o PM e o Presidente, em que este possa opor-se discricionariamente aos nomes propostos pelo primeiro.

Obviamente, no seu poder geral de aconselhamento do PM, o PR não está impedido de, nos seus encontros institucionais, levantar reservas em relação a algum nome, nem de sugerir alguma alteração ao elenco que lhe for apresentado. Mas uma coisa é aconselhamento, que o PM deve considerar seriamente, mas não é obrigado a seguir, outra é a possibilidade de o Presidente exercer um poder de veto dos nomes propostos. A última apalavra só pode ser a do PM, não podendo Presidente dar-lhe uma escusa para o eventual mau desempenho do seu Governo.

3. São, no entanto, de admitir duas exceções a esta regra de não ingerência presidencial na formação da equipe ministerial.  

A primeira aplica-se aos ministros da defesa e dos negócios estrangeiros, dada a especial relação do PR com esta duas áreas da política, pelo que se justifica reconhecer-lhe um poder de oposição em relação aos respetivos titulares, com quem vai encontrar-se no exercício as suas funções de representante externo da República e de Comandante Supremo das Forças Armadas. 

A segunda exceção consiste no dever de o PR rejeitar nomes que incorram em incapacidade ou incompatibilidade para o exercício de funções políticas. por exemplo, personalidades privadas de direitos políticos por decisão judicial ou magistrados judiciais, respetivamente. Lamentavelmente,  os presidentes, em geral, e MRS, em particular, têm sido pouco zelosos neste ponto, aceitando a nomeação de vários magistrados judicias para diversos cargos governamentais, como sucedeu ainda no Governo Montenegro I, com a Ministra da Administração Interna e com uma das secretárias de Estado da Justiça (o que denunciei prontamente AQUI) e voltou agora a repetir-se com a nomeação de um juiz para secretário de Estado da Justiça.

É a defesa do "regular funcionamento das instituições" que está em causa.

4. Se, pelas razões indicadas, a escolha da equipa ministerial deve ser considerada uma prerrogativa do PM, que a vai dirigir, outro tanto vale para a sua eventual remodelação posterior, substituindo alguns dos seus membros, quer quanto à sua oportunidade, quer quanto aos nomes envolvidos.

Por isso, sem prejuízo do poder de aconselhamento discreto ao PM, deve ser vedado ao Presidente exigir publicamente uma remodelação governativa ou a substituição de um ministro em concreto, como lamentavelmente sucedeu em maio de 2023, com a exigência de MRS de demissão do então Ministro das Infraestruturas, João Galamba, que o PM recusou ostensivamente, do que resultou um óbvio envenenamento das relações políticas entre Belém e São Bento, que culminou na inopinada dissolução parlamentar, na sequência da demissão de António Costa, por força do anúncio público de um pretenso envolvimento dele no caso Influencer.

Além de  um manifesto abuso de poder de Belém, esse ingerência pública na gestão da equipe governamental foi um exemplo claro de como o "poder moderador" do PR pode ser subvertido em "poder perturbador"!

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (18): O erro do Almirante

1. Ao responder a uma pergunta sobre se promulgaria a lei da despenalizacão da eutanásia, com a afirmação de que é «pró-vida» e que teria «dificuldades em deixar passar uma lei que de alguma forma facilitasse o suicídio assistido ou a eutanásia», Gouveia e Melo cometeu, a meu ver, um duplo erro: um erro político e um erro de conceção do poder de veto presidencial na CRP. 

Quanto à questão política, ao utilizar a expressão "pró-vida" - que é típica do fundamentalismo antidespenalização do aborto e da eutanásia, de base religiosa -, o candidato coloca-se contra o sentimento de grande parte do País, não só na esquerda, mas também na direita mais genuinamente liberal, gerando o legítimo receio de que tal posição retrógada possa justificar, não somente a sua oposição à despenalização da eutanásia, como explicitou, se ela for retomada, mas também ao alargamento do prazo para o aborto por livre decisão da gestante, de 10 para 12 semanas, que está na agenda política há algum tempo.

Não é questão de somenos importância: uma coisa é suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade - o que já foi feito em relação a ambas as situações -, outra coisa é recorrer ao veto político, fazendo sobrepor a sua convicção pessoal, por mais legítima que seja, à vontade democrática do legislador.

2. Não é menor a preocupação que a referida resposta suscita quanto à conceção sobre o exercício do veto legislativo

Com efeito, embora comece por afirmar, e bem, que o veto presidencial só deve ser exercido a título excecional, o candidato admite, porém, exercê-lo, não por qualquer motivo atinente às suas funções constitucionais, mas sim por discordância pessoal com a lei aprovada pelo legislador, ou seja, pela maioria da AR.

É certo que os anteriores inquilinos de Belém nem sempre escaparam a essa tentação, mas depois da inflação de vetos pelo atual PR cessante, é tempo de questionar esse desvio da função constitucional do veto, o qual só deve poder justificar-se à luz das funções constitucionais do Presidente. Na verdade, uma das regras essenciais da interpretação das competências das autoridade públicas é a de que não se trata de poderes plenamente discricionários, só podendo ser utilizados para a prossecução das atribuições das respetivas entidades, e não para outros fins, sob pena de "desvio de poder".

Ora, podem configurar-se díversas razões que podem justificar o veto presidencial, para salvaguardar o regular funcionamento das instituições e fazer respeitar as regras do jogo político, independentemente da  concordância ou discordância com a lei em causa, como por exemplo: essa lei contrariar o programa do Governo, dever merecer maior debate político e parlamentar, não ter sido objeto de avaliação de impacto legislativo (orçamental, ambiental, social), infringir normas da UE ou compromissos ou recomendações internacionais, desrespeitar o resultado de referendo recente, mesmo não vinculativo, suscitar problemas complicados de execução administrativa, não contribuir para a realização dos fins constitucionais do Estado, o veto ter sido recomendado pelo Conselho de Estado (caso o PR lho tenha submetido), etc.

Uma vez que o Presidente não é colegislador nem goza de um "direito de objeção de consciência" no desempenho das suas funções constitucionais, o veto não deve ser simples expressão de discordância subjetiva com a lei, nem muito menos, produto de caprichos ou estados de alma presidenciais.

3. Junto com o poder de dissolução parlamentar, o veto legislativo é a mais intrusiva derrogação do modelo clássico da separação de poderes, quanto à autonomia e ao exclusivo poder legislativo do parlamento, pelo que tais poderes só devem ser utilizados a título excecional.

O sistema de governo presidencialista instituiu, porém, o veto presidencial (EUA) e o sistema de governo parlamentar instituiu a dissolução parlamentar (Reino Unido), em ambos os casos para conferir ao executivo um instrumento de defesa contra o parlamento. Com a sua teoria do "quarto poder", investido no chefe do Estado, Constant conferiu-lhe ambos aqueles instrumentos (poder de veto e poder de dissolução), mas agora como componentes do seu "poder moderador" (como se veio a chamar depois), acima do poder legislativo e do poder executivo, e não, como anteriormente, enquanto instrumento de defesa do poder executivo contra o poder legislativo. 

Por isso, no caso da CRP, em que o PR detém um "poder moderador" de intensidade média (muito menor do que o da Carta Constitucional de 1826), ambos aqueles instrumentos só devem ser utilizados quando necessário para a cumprir a missão de contenção e equilíbrio institucional e de respeito pela Constituição, própria do "poder neutro" do Presidente, e não para satisfazer as idiossincrasias pessoais, políticas ou religiosas do seu titular.  

Aqui, como noutras áreas do sistema político, é essencial compreender e respeitar a filosofia e a lógica das instituições e dos poderes constitucionais.

domingo, 30 de março de 2025

O que o Presidente não deve fazer (55): A cumplicidade do silêncio

1. Se há uma marca do atual Presidente da República que vai ficar para a posteridade, é a de "Presidente-falante", tão nutrida tem sido sido a torrente das suas intervenções públicas, muitas delas de puro comentário político - papel que, porém, não integra as funções presidenciais -, em manifesto contraste com os seus antecessores, que nesse aspeto deixaram um registo geral entre a contida moderação (como Soares e Sampaio) e o austero recato (como Eanes e Cavaco Silva), o qual, a meu ver, é bastante mais conforme com o perfil constitucional de "poder neutro" e de "garante das instituições" do inquilino de Belém, como tenho defendido nos artigos desta série.

Há, todavia, situações em que a palavra presidencial se impõe, nomeadamente quando está em causa a infração pelo Governo das suas obrigações de conduta institucional, que não podem ser deixadas em silêncio pelo PR, sob pena de cumplicidade, por falha na sua missão constitucional de supervisão do funcionamento regular das instituições. Nessas situações, a loquacidade habitual de MRS torna esse silêncio ainda mais gritante.

2. Tal é o que sucede com o surpreendente silêncio presidencial sobre a notícia de que o Governo, demitido já há duas semanas, apresentou publicamente na sexta-feira passada, dia 28, às câmaras municipais de ambas as margens do Tejo em Lisboa um grandioso e pormenorizado projeto de investimento público de infraestruturas e de habitação, pomposamente chamado "Parque Cidades do Tejo", incluindo o investimento estimado para cada capítulo, no valor total de muitos milhares de milhões de euros.

Não está em causa aqui, obviamente, a crítica política do megalómano projeto de investimento público para a capital do País - que inclui uma nova travessia do rio, subaquática  - , em violação clara da obrigação constitucional de «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» (citando o art. 9º da CRP, sobre as "tarefas fundamentais do Estado"), confirmando o Governo Montenegro como Governo de Lisboa, e não do País, que deixa umas migalhas para a "província", sacrificando ostensivamente a "coesão territorial" (outro conceito constitucional, como se pode ler no art. 81º da CRP). 

Mas essa crítica política da ação governamental deve ser evidentemente assumida pela oposição, e não diretamente pelo PR, apesar da sua prática corrente de comentador político

3. O que é manifestamente do pelouro do PR é a ostensiva violação pelo Governo, com a referida iniciativa, de dois limites constitucionais claros, a saber: (i) a restrição de poderes dos governos demitidos, que só podem praticar os «atos estritamente necessários» à gestão dos negócios públicos (art. 186º, nº 5, da CRP) e (ii) a imparcialidade política das entidades públicas - incluindo, portanto, o Governo - na pendência de atos eleitorais (art. 113º da CRP).

Ora, não se vê porque é que aquele megaprojeto tinha de ser anunciado agora aos beneficiários e não podia esperar pelo novo Governo saído das eleições - até porque não pode avançar na sua concretização -, salvo obviamente para favorecer as candidaturas da AD nas eleições parlamentares de maio e nas eleições autárquicas do outono. Claro abuso de poder, portanto.

Que o Governo de Montenegro não tenha escrúpulos em sede de moral política, já nos vamos habituando, mas o PR não pode ser conivente com ele, quando está em causa também uma dupla violação das obrigações institucionais daquele -, o que, de resto, não é a primeira vez que denuncio. Por isso, MRS deve interromper o silêncio que se impôs como "comentador político", por causa das eleições, justamente porque há uma situação que reclama a sua intervenção a outro título bem mais importante, como garante do regular funcionamento das instituições

Adenda
Na sua página do Facebook, Neto Brandão, deputado por Aveiro (PS), protesta, com toda a razão, contra o facto de o próprio PM, que já anunciou a sua candidatura à AR por esse distrito, ir inaugurar hoje, dia 30, três USF nesse distrito, aliás já abertos há tempo, comentando ser óbvio que não se trata de nenhum ato "estritamente necessário" ao seu funcionamento e que, portanto, as cerimónias só podem ser entendidas por aquilo que são, ou seja, «como despudoradas ações de pré-campanha eleitoral». Com efeito, além do abuso de poder, é uma rasteira instrumentalização política do cargo para efeitos eleitorais!

terça-feira, 11 de março de 2025

O caso Montenegro (10): O PR não devia coonestar o golpe do Governo

Penso que o Presidente da República não devia dar seguimento ao golpe do Primeiro-Ministro e do seu Governo para fugirem ao escrutínio parlamentar acerca da ligação daquele à sua empresa e às respetivas avenças. Pelo contrário, o PR deveria fazer valer essa obrigação essencial de qualquer Governo numa democracia parlamentar (como mostrei em post anterior) e fazer respeitar as prerrogativas da AR e os direitos da oposição, que integram a sua missão presidencial de "poder moderador".

Por isso, julgo que, em vez de dissolver imediatamente a AR e convocar eleições, cancelando a CPI - que era o grande objetivo de Montenegro -, o Presidente deve suspender essa decisão e manter o Governo em gestão até a CPI concluir o seu trabalho, dentro de 90 dias, como proposto pelo PS

Só então as eleições devem ser convocadas, com o conhecimento público das conclusões do inquérito, confirmando, ou não, as acusações que têm sido formuladas contra Montenegro, e habilitando os cidadãos a um voto esclarecido, em vez de serem chamados, como pretende o PSD, a uma espécie de plebiscito sobre o PM, feito "vítima" da demissão, sem conhecimento dos factos que só o inquérito parlamentar pode proporcionar.

Adenda
Um leitor sugere maliciosamente que o PR poderia seguir esse caminho, se se tratasse de um PM e um Governo do PS, mas que não vai fazê-lo agora, «para não enterrar o líder do seu partido de origem».  Seria bom que o PR não desse motivo a tais sugestões, tratando-se, como se trata, de um "poder neutro", na formulação clássica de Benjamin Constant, que não deve mover-se por preferências ou animosidades partidárias...

Adenda 2
Um leitor comenta que o PS deveria ter considerado a «desesperada cedência do Governo, de última hora, quanto ao inquérito parlamentar». Compreendo o argumento (que, se fosse eu, não teria desprezado), mas depois de ter declarado a guerra à AR e ao PS (apesar de este ter inviabilizado duas moções de censura), com a provocatória moção de confiança (como mostrei AQUI), em reação à proposta de inquérito parlamentar do PS, Montenegro perdeu toda a credibilidade política junto do PS para tentar negociar a CPI, o que, aliás, deve ter feito contravontade, por provável pressão de Belém e do susto da sondagem de opinião publicada ontem de manhã no Diário de Notícias, que colocava o PS muito à frente do PSD. Na política, antes de fazer uma declaração de guerra, convém ponderar se o único modo de evitar uma provável derrota não é retirá-la sem condições. 

Adenda 3
Depois de ter avançado provocatoriamente com um moção de confiança, explicitamente destinada a provocar eleições, a declaração de Montenegro, depois de conseguir esse objetivo, de que «tentámos a todo custo evitar eleições», não tem a mínima credibilidade, não passando de uma tentativa desesperada de fugir à censura pública pela provocação de eleições para fugir ao escrutínio parlamentar. Assente a indisponilidade do PS em ceder à chantagem, o único modo de evitar eleições era retirar a provocatória moção, sem condições, o que o Governo se recusou a fazer. Há limites para a hipocrisia política.

domingo, 9 de março de 2025

O caso Montenegro (8): Um mau negócio para o PS

1. Tal como antes defendi que o PS não devia apresentar nem votar nenhuma moção de censura, para não derrubar o Governo, também agora defendo que não deve votar contra a moção de confiança apresentada por este, sendo preferível a abstenção, para evitar a fuga do Primeiro-Ministro ao escrutínio parlamentar sobre a sua comprometedora ligação à Spinumviva, o que é inaceitável. 

Por um lado, é por demais evidente que este desafio do PM à oposição para a sua demissão parlamentar constitui uma verdadeira provocação política (como defendi AQUI), que visa culpabilizar a oposição pela queda do Governo e, sobretudo, obter uma espécie de "amnistia" por via eleitoral para o que se afigura ser uma intolerável acumulação das funções de governante e de verdadeiro responsável e beneficiário de uma pseudoempresa familiar, criada para continuar a prestar os seus anteriores serviços de advogado aos mesmos clientes, em violação da regra da exclusividade e em conflito de interesses entre as duas atividades (como mostrei AQUI). 

Sem deixar de negar ao Governo a confiança que ele pede, para o que basta a abstenção, a prioridade do PS deveria ser impedir, em defesa da democracia parlamentar, esta fuga sem precedentes de um PM a essa forma qualificada de escrutínio político, por uma questão tão grave como essa.

2. Nem se diga que a realização de eleições e a nomeação de novo Governo não impede a retoma posterior do inquérito parlamentar, pois, para além de ser uma hipótese constitucionalmente muito problemática, não vejo que faça algum sentido uma investigação parlamentar sobre um anterior mandato de Primeiro-Ministro, quer ele se mantenha, quer não, como chefe do novo executivo depois das eleições. 

Se, apesar de tudo, o PSD, fazendo-se de vítima e invocando as boas condições económicas e sociais, ganhasse as eleições e formasse novo Governo, a retoma do inquérito parlamentar apareceria como uma manifestação de mau-perder do PS; caso fosse derrotado, e Montenegro deixasse de ser PM, o inquérito parlamentar surgiria como "chover no molhado". 

Ou seja, mesmo que fosse constitucionalmente admissível, o inquérito parlamentar no novo parlamento seria politicamente pouco convincente.

3. Acresce que, tanto quanto é possível antecipar neste momento, é pouco provável que as eleições tenham um resultado clarificador da situação política e proporcionem uma solução governativa evidente. Na melhor das hipóteses, o PSD poderá pensar numa sensível subida eleitoral, mas aquém de uma maioria absoluta, mesmo numa coligação alargada à IL; e quanto ao PS, mesmo que venha a vencer as eleições, igualmente sem maioria, o mais provável é que não tenha condições para formar um Governo politicamente sustentável, dada a óbvia improbabilidade de uma maioria à esquerda.

Avançar para eleições de resultado tão imprevisível, incorrendo nos respetivos custos financeiros e económicos e suspendendo a governação do País durante meses, pode fazer sentido para o PSD, porque consegue o seu objetivo essencial, que é a fuga ao escrutínio parlamentar de Montenegro, mas pode ser um mau negócio para o PS, que desiste do inquérito parlamentar e pode não obter nada em troca, podendo mesmo pôr em causa a sua liderança, em caso de derrota.

Adenda
Um militante socialista que concorda com este post manifesta a sua estranheza por o líder do PS «cair nesta emboscada do Governo, em nome de uma posição anunciada há meses, em abstrato, sem considerar a mudança substancial de circunstâncias, como é o interesse desesperado do primeiro-ministro em fugir do inquérito parlamentar que certamente o enterraria». Ao invocar a noção de "alteração das circunstâncias", o leitor deve ter formação jurídica, pois trata-se de uma situação que permite a modificação unilateral das obrigações contratuais, incluindo a rescisão; mas não é preciso ter conhecimentos jurídicos para recorrer a essa figura na vida política.

Adenda 2
É estranho que ninguém censure o Presidente da AR - que, aliás, deve a sua eleição a um acordo com o PS - por vir apelar publicamente às oposições para viabilizarem a moção de confiança ao Governo, para evitar a crise política, em vez de apelar ao seu próprio partido para a retirar, pois foi ela que a desencadeou.  Um amigo meu pergunta se o anterior Presidente da AR, Ferro Rodrigues, teria passado incólume a crítica de "falta de imparcialidade política", se, em 2021, tivesse pedido às oposições, à esquerda e a direita do PS, para viabilizarem o orçamento do 2º Governo de A. Costa, para evitar a dissolução parlamentar que o PR já tinha anunciado na eventualidade do chumbo, como veio a suceder. Tem razão: a dualidade do comentariado nos media é, por vezes, gritante.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (53): Os limites do Presidente-comentador

1. Segundo o Diário de Notícias de hoje, ontem, pouco depois de o Ministro da Defesa ter afirmado perante a comissão parlamentar respetiva que os EUA são aliados permanentes, «independentemente do que a administração Trump disser ou fizer», Marcelo Rebelo de Sousa veio declarar aos jornalistas que «temos de perceber se a NATO é para levar a sério ou não, porque se a América tem reservas, na prática, em relação ao seu envolvimento na Ucrânia (...)já se percebeu que está difícil de convencer os aliados, ou antigos aliados norte-americanos - nunca se percebe bem, com esta nova administração -, a participarem nesse esforço de segurança [da Europa]».

Se é inaceitável em geral que o PR faça comentários públicos sobre a política de defesa, que é da exclusiva competência do Governo, é inadmissível que contrarie publicamente as posições governamentais na matéria, por mais discutíveis que sejam -, mas isso é tarefa para a oposição e para os comentadores (como eu), não para o Presidente da República.

2. Além de estatuir que é ao Governo que compete «a condução da política geral do País» - respondendo politicamente por ela apenas perante a AR - , a única obrigação que Constituição impõe ao Primeiro-Ministro é a de «informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da potica interna e externa do Páis».

Mas, além dessa estrita obrigação de informação, é comummente aceite o entendimento constitucional de que, embora não tendo responsabilidades governativas, o PR pode aconselhar o Governo, desde que o faça diretamente e de forma discreta (ou seja, nunca por intermédio de jornalistas!), para respeitar a separação de poderes e a liberdade do Primeiro-Ministro na condução da política governamental. E, indo mais além, também parece consensual a ideia de que em matéria de política de defesa e de política externa existe mesmo um dever do PM de consultar antecipadamente o PR sobre a execução dessas políticas, dados os poderes presidenciais específicos nessas duas áreas (comandante supremo das Forças Armadas, presidente do Conselho Superior de Defesa Nacional, representante externo da República, nomeação de embaixadores). Aliás, ambas estas regras fazem parte, desde há muito, da prática política normal e incontroversa entre São Bento e Belém.

Por conseguinte, para respeitar o quadro constitucional das suas competências, quando perguntado pelos jornalistas sobre questões dessa natureza, o PR deveria responder simplesmente o seguinte: «Como sabem, trata-se de matéria da competêmcia do Governo, sobre a qual terei certamente a oportunidade de transmitir a minha opinião ao PM, mas compreendem que não possa adiantá-la publicamente.»

Chegado ao último ano do seu mandato, será tarde para convencer Marcelo Rebelo de Sousa de que não é um comentador externo da vida política; mas, para impedir qualquer forma de "usucapião" de poderes nesta matéria, nunca é tarde para lembrar os estritos limites constitucionais dos seus limitados poderes em relação ao Governo.

Adenda
Comentando as muitas intervenções públicas de MRS, um leitor observa que ele «regressou, completamente, à sua posição pré-presidencial de comentador e explicador da vida política». Pois é, mas o que sustento é que a atividade de comentador político, sobretudo quando tem por objeto a política governamental ou as posições da oposição, não é compatível com o mandato presidencial, e não é para isso que elegemos o PR. 

Adenda 2
Não estou de acordo com o leitor que observa que «as pessoas já não ligam muito aos comentários de MRS e [que] daí não vem grande mal ao mundo». Na minha opinião, as frequentes declarações em modo de comentador banalizam a função presidencial, e a sua interferência na esfera própria do Governo e da AR subverte a separação constitucional de poderes e gera confusão entre os cidadãos sobre quem dirige a política nacional

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): Confusão de papéis

1. Procurando, comprensivelmente, preencher o longo período de tempo que vai até às eleições, em janeiro do próximo ano, o primeiro candidato a anunciar oficialmente a sua candidatura presidencial, Luís Marques Mendes, com o apoio do PSD (de que chegou a ser líder), anunciou a realização de uma iniciativa pública, para debater as suas "causas do Presidente" (iniciativa a que o Público chamou indevidamente "Estados gerais", uma noção que, desde há três décadas, pertence ao património político do PS) .

Tendo o candidato deixado o seu espaço dominical de comentário televisivo - o que é de louvar -, esta iniciativa é uma boa ideia, permitindo-lhe ocupar o espaço político e ganhar visibilidade como candidato, enquanto outros possíveis candidatos adiam o momento de "entrar em cena", designadamente o(s) candidato(s) da área socialista e o almirante Gouveia e Melo, que até agora tem os melhores índices nos inquéritos à opinião pública, apesar do (ou devido ao?) seu absoluto silêncio sobre o assunto.

Compreende-se, por isso, a preocupação de Marques Mendes, em ocupar o terreno, enquanto este está vago e não há concorrentes à vista.

2. Mais problemático é o tema da iniciativa, a saber, debater as "causas da Presidência", nada menos de doze, que o anúncio da iniciativa discrimina, desde a pobreza à ambição económica, o que em tudo faz lembrar um programa eleitoral partidário de candidatura à chefia do Governo. 

Ora, no nosso sistema político-constitucional, os candidatos presidenciais não são candidatos partidários, nem candidatos a governar (ao contrário do que sucede nas eleições parlamentares), pelo que não tem nenhum cabimento apresentarem um programa de governo ou algo de parecido. Da Constituição resultam, sem margem para dúvidas, duas coisas: (i) quem governa é o Governo, saído das eleições parlamentares, e não o Presidente; (ii) o Governo é responsável politicamente perante a AR, e não perante o PR.  

Por isso, é o Governo, e não o PR, que define as políticas públicas em todas as áreas e o modo de as realizar.

3. Daí decorre que, no nosso sistema constitucional, o PR não integra o "poder executivo" da clássica separação tripartida dos poderes e de órgãos do Estado, sendo um "quarto poder", o qual, ao contrário dos poderes legislativo e executivo -  que são poderes de origem e expressão partidária -, só pode ser um "poder neutro" (B. Constant), que está acima da dialética Governo-oposição, vocacionado para «assegurar o regular funciomento das instituições democráticas» (como diz a Constituição), desde logo o respeito pelas regras do jogo por parte dos atores políticos (AR, Governo, partidos). Nessa função de tipo arbitral, não cabe ao PR defender causas políticas, em concorrência, e portanto em potencial conflito, com quem é suposto tê-las, ou seja, justamente  o Governo e as oposições.

Neste quadro, não se vê que sentido faz o lançamento, por parte de um candidato presidencial, de um debate sobre políticas públicas que ele não tem poder para implementar, sob pena de conflitos com quem tem o poder de o fazer, ou seja, o Governo.

4. Sem dúvida, no exercício do seu mandato constitucional o PR tem obrigações explícitas, que pode abraçar como "causas".

Tais são, em primeira linha, as que resultam das suas competências constitucionais - que são sempre poderes-deveres -, tal como enunciadas no art. 120º da Constituição, a saber: representar a República, garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições e assumir o cargo de comandante supremo das Forças Armadas. Mas a estas tarefas devemos acrescentar o de «defender (...) e fazer cumprir a Constituição», como consta do seu juramento ao iniciar funções (art. 127º, nº 3), o que lhe permite promover, por meio dos poderes que tem, os demais valores constitucionais, desde o Estado de direito ao Estado social, desde a integração europeia à solidariedade lusófona, etc. etc. 

São essas "causas cosntitucionais" que justificam a generalidade dos poderes do PR, tanto os poderes próprios, como os poderes em relação aos outros dois órgãos políticos, a AR e o Governo, e que se traduzem em derrogações da autonomia destes, como a dissolução parlamentar, o veto legislativo, a recusa de nomeação de cargos públicos propostos pelo Governo, etc. Ora, é fácil verificar que quase nenhuma das doze propostas colocadas por Marques Mendes na agenda das suas "causas presidenciais" tem algo a ver diretamente com as referidas causas constitucionais.

5.  É certo que, embora o PR não tenha funções governantes, há uma obrigação constitucional do PM de o informar sobre a condução da atividade governativa, pelo que, mesmo sem norma expressa, há um consenso doutrinal de que ele pode aconselhar o Governo, e, na minha opinião, o Primeiro-Ministro tem mesmo o dever de o consultar sobre a condução da política externa e da política de defesa, devido às sua incumbências constitucionais de representação externa da República e de comandante supremo das Forças Armadas.

Todavia, tratando-se sempre de interferência, embora soft, no mandato governativo, essa função consultiva do PR deve ser exercida de modo discreto, nos encontros regulares com o PM, e não em público, o que configuraria uma ingerência óbvia na esfera governativa, suscetível de gerar conflitos entre os dois poderes, pondo em risco a estabilidade política e governativa. Afinal, mesmo quando tomados sob consulta do PR, a responsabilidade dos atos do Governo recai sempre exclusivamente sobre ele, até porque aquele não é politicamente responsável no exercício do seu mandato.

Por conseguinte, não se consegue vislumbrar qual é a lógica de os candidatos submeterem a debate público prévio as suas supostas "causas presidenciais" e de se vincularem publicamente a elas, para efeitos de uma atividade consultiva, que, além de não ter expressão pública, pode não ter qualquer consequência.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Free & fair trade (21): Como responder à cruzada protecionista dos EUA?

1. Em mais um salto na sua escalada protecionista - depois da aplicação de tarifas punitivas ao México e ao Canadá, entretanto suspensas mas não revogadas, e à China, e de uma taxa de 25% à importação de aço e alumínio, de qualquer país -, o Presidente Trump decretou agora a aplicação de "tarifas recíprocas" às importações de todos os países. 

Ora, as regras da OMC - de que os Estados Unidos são membro fundador e a cujas normas está obrigado -, estabelecem que: (i) a pauta aduaneira de cada país, que está depositada na OMC e teve o assentimento dos outros membros, proíbe que eles apliquem tarifas acima dessa pauta; (ii) cada membro da OMC tem uma pauta aduaneira única, não podendo discriminar entre os seus parceiros comerciais (chamada "cláusula da nação mais favorecida"). 

Ao passar a aplicar tarifas de importação diferenciadas para os mesmos produtos, subindo-as até refletirem as tarifas correspondentes de cada um dos seus parceiros comerciais, os Estados Unidos, que têm tarifas em média muito baixas, rasgam descaradamente as duas referidas obrigações, com tarifas acima da sua pauta e tarifas discriminatórias

2. Obviamente, os países mais prejudicados vão ser os menos ricos, incluindo a Índia e o Brasil, que tendem a ter tarifas em média bem mais elevadas do que os EUA ou a UE.

Mas a própria União vai ser atingida, não somente na exportação daqueles produtos cujas tarifas de importação americanas são inferiores às europeias (por exemplo, os automóveis), e que, portanto, vão subir, mas também de muitos outros produtos, pois bizarramente Trump considera o IVA europeu como uma tarifa sobre as exportações americanas, quando é óbvio que os produtos importados de qualquer origem pagam na Europa o mesmo IVA que os produtos nacionais (aliás, ao abrigo da regra do "tratamento nacional" da OMC).

A aplicação deste absurdo critério pode vir a lesar profundamente muitas exportações para os Estados Unidos.

3. Há comentadores que defendem - por exemplo, Luís Aguiar-Conraria ontem no Expresso - que os países afetados, a começar pela UE, não devem retaliar com a subida das tarifas de importação dos produtos vindos dos EUA, quando elas são mais baixas do que as americanas, pois a subida de tarifas só iria prejudicar os consumidores e as empresas europeias, que passariam a pagá-los mais caras. Mas não estou de acordo, convergindo com a posição retaliatória prontamente anunciada pela Comissão Europeia.

Há três boas razões para isso: 1º - as violações graves, como estas, das regras da OMC não podem ficar impunes; 2º - se a ofensiva de Washington lesa obviamente as exportações europeias, o único modo de obrigar Trump a revogá-las é atingir na mesma medida as exportações norte-americanas (salvo nos casos em que não haja alternativa a elas); 3º - em resposta ao protecionismo de Trump, que ameaça não ficar por aqui, a UE deve aprofundar a sua política de comércio livre com outras geografias igualmente lesadas (aqui em concordância como referido autor).

O neoimperialismo económico norte-americano não pode deixar de ser combatido por quem o pode fazer. E no caso do comércio internacional, a UE pode!

Adenda
García Bercero, um insigne ex-negociador de acordos comerciais da UE e agora colaborador de um importante think tank em Bruxelas - que conheci bem, quando fui presidente da Comissão parlamentar de Comércio Internaciuonal (INTA) do Parlamento Europeu -, vem dizer o tem de ser dito: «Com os Estados Unidos, estás perdido, se mostras fraqueza». Como acompanhei as negociações do TTIP com os Estados Unidos, concordo inteiramente - e isso é especialmente verdade com Trump.

Adenda 2
A França defende que, face ao protecionismo de Washington, a alternativa comercial da UE está noutras economias como a América Latina e a Índia. Muito bem, mas depois desta declaração, espero que a França abandone a oposição que tem manifestado ao importante acordo da UE com o Mercosul, que se torna ainda mais importante para ambos os lados, depois desta ofensiva geral de Trump. Haja coerência política!

sábado, 18 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (52): Uma condecoração indevida

Que merecimento especial no exercício do seu cargo ou que contribuição destacada à causa pública é que justifica a condecoração presidencial da ex-PGR, Lucília Gago

Eu sei que as condecorações - que a I República procurou inicialmente abolir - se tornaram um ritual crescentemente desvalorizado pela sua banalização, sendo atribuídas com grande prodigalidade, incluindo, desde logo, todos os titulares de certos cargos públicos, independentemente do mérito no seu desempenho. Mas no caso concreto, trata-se de premiar um mandato lamentável, em que a responsável máxima da PGR manteve a captura sindical-corporativa da instituição, deixou campear a violação sistemática do segredo de justiça na fase do inquérito e instrumentalizar a investigação criminal para efeitos de perseguição política e que culminou a sua atuação com o verdadeiro golpe de Estado que levou à demissão do Primeiro-Ministro, António Costa, dando ao PR um pretexto para dissolver a AR e virar o ciclo político. 

Por isso, correndo o risco de ser interpretada como um prémio por esse abuso qualificado de poder, esta condecoração não deveria ter sido atribuída.

Adenda
Um leitor observa ironicamente que o critério presidencial de condecorações não consta do meu «extenso catálogo do bom PR». Tem razão: é uma lacuna que vou suprir!... 

sábado, 4 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (51): Onde não é chamado

1. Ao consultar os demais membros do Conselho de Estado sobre o pedido do líder do Chega para uma reunião daquele órgão de consulta presidencial sobre questões de segurança, o PR admite explicitamente que tal reunião poderá vir a ter lugar, se uma maioria deles tal entender. Ora, para além de descartar a responsabilidade pela convocação (ou não) do seu órgão consultivo, não se vê qual pode ser o cabimento político e constitucional da intervenção do CE nessa matéria.

Segundo a Constituição, o Conselho de Estado, para além dos casos de convocação obrigatória, sobre o exercício de competências presidenciais de maior impacto político (como a dissolução parlamentar ou a demissão do Governo), pode ser chamado a «aconselhar o PR no exercício das suas funções», a seu pedido. Ora, que se saiba, o PR não exerce nenhuma função em relação à política de segurança, que é da exclusiva competência governamental, pela qual o Governo é responsável somente perante o parlamento.

2. Manifestamente, o PR insiste em instrumentalizar politicamente o Conselho de Estado (como ja anotei AQUI e AQUI e AQUI), transformando-o numa espécie de segunda câmara parlamentar, para se imiscuir onde não é chamado, ou seja, na condução da política nacional, que é do foro privativo do Governo, e para secundarizar o papel da AR no seu papel específico de escrutínio político da atividade governativa.

A questão que se coloca é a de saber se o PM e os deputados do Governo e da oposição que são membros do CE devem continuar a ser cúmplices, à sua custa, deste abuso de poder presidencial, à margem da separação constitucional de poderes e de repartição de responsabilidade política.

Adenda
Um leitor pergunta se há fundamento para a noção de "cooperação estratégica" entre o PR e o PM, utilizada pelo primeiro na sua mensagem de Ano Novo (que se pode ler AQUI). A meu ver, tal conceito não tem fundamento nenhum no nosso sistema político-constitucional, sendo obviamente destinado a dar cobertura à errada noção de uma condução política do País partilhada entre Belém e São Bento, como se o PR fosse cotitular do poder governamental, numa espécie de diarquia política, a la française. 

domingo, 15 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (3): As minhas condições de voto

 

1.  Considerando a Constituição da República - que os PR juram respeitar quando tomam posse do cargo - e as várias experiências presidenciais ao longo deste 50 anos, em especial a que está em final de mandato, entendo que nas próximas eleições só devo apoiar um candidato que se comprometa explicitamente a respeitar, cumulativamente, as seguintes condições:

     - suspender, para todos os efeitos, a filiação partidária que eventualmente tenha;
     - assumir-se como Presidente de todos os portugueses, independentemente do seu voto;
     - exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial;
     - respeitar os resultados eleitorais para a AR e a composição desta como única fonte da legitimidade dos governos; 
     - nunca esquecer que não lhe compete a função de governar, desde logo porque é politicamente irresponsável, a qual cabe ao Governo, responsável perante a AR, nem tampouco o papel de contrapoder, que cabe aos partidos de oposição;
     - não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição, não sendo parte no respetivo debate político;
     - não se arrogar o papel de comentador político, muito menos através de pseudoanónimas "fontes de Belém", junto de meios de comunicação seletos;
     - manter uma atitude de leal cooperação institucional com o Governo em funções e respeitar (e fazer respeitar) os direitos da oposição, pois nem um nem outra estão sob sua tutela política;
     - nunca esquecer que não lhe cabe a função legislativa, pelo que deve exercer o seu poder de veto legislativo a título excecional, especialmente quanto às leis da AR, que é o titular supremo do poder legislativo no sistema constitucional de separação de poderes;
     - não comentar publicamente as leis que promulga, como se o PR fosse colegislador, pois a promulgação presidencial é uma obrigação constitucional por omissão (salvo veto), que não precisa de ser justificada;
     - recorrer à dissolução parlamentar e à correspondente antecipação de eleições somente como solução de última instância - por se traduzir na interrupção do mandato conferido pelos eleitores -, e nunca por capricho político ou por desforço antigovernamental;
     - não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência; 
     - respeitar escrupulosamente o princípio constitucional da separação entre o Estado e a religião, não participando, na sua qualidade presidencial, em cerimónias ou eventos religiosos;
     - utilizar um critério exigente em matéria de condecorações oficiais, cuja atribuição deve ser sempre publicamente justificada, de modo a evitar a sua banalização;
     - defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial, da integração europeia, da cooperação lusófona e da paz e da segurança coletiva numa ordem internacional sujeita a regras. 

Num Estado de direito constitucional, não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República.

2. É evidente, para quem acompanha o Causa Nossa, que este desenho da magistratura presidencial está nos antípodas do desempenho do cargo pelo atual PR, Marcelo Rebelo de Sousa, que tenho criticado frequentemente na minha rubrica "O que o Presidente não deve fazer", que já vai no 50º episódio, onde defendi que ele se «arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial».

Na verdade, creio que as próximas eleições devem proporcionar ao País um PR que cumpra escrupulosamente o perfil constitucional de "poder moderador" e de garante do «regular funcionamento das instituições», que exclui todo e qualquer ativismo político presidencial, em competição com a AR e o Governo. 

Adenda
Um leitor observa que «nenhum dos anteriores Presidentes respeitou todas essas condições». Sim, mas uma coisa é infringir algumas delas ocasionalmente, outra é ignorar todas elas, ou quase todas, sistematicamente.

sábado, 5 de outubro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (50): Um modelo negativo

Finalmente, há outros constitucionalistas que não silenciam o seu desacordo sobre os excessos do intervencionismo político presidencial, à margem da Constituição. Welcome to the club!

Todavia, neste caso do ativismo de Belém acerca do orçamento, mais grave do que a sua loquacidade mediática foi, como assinalei antes, a instrumentalização do Conselho de Estado para esse efeito.

Apesar da complacência dos partidos políticos, com algumas exceções, e do aplauso do comentariado nacional (et pour cause...), MRS arrisca-se a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (49): O PR governante

É certo que o erro começou no Primeiro-Ministro, ao convidar o PR para presidir a um Conselho de Ministros com agenda decisória, mas MRS devia ter declinado o convite.

No sistema de governo constitucionalmente definido, a atividade governativa é um exclusivo do Governo e não uma parceria entre São Bento e Belém. A Constituição admite que o PM convide o PR, mas essa eventualidade - que vem desde a origem da Constituiação - deve ser lida à luz da revisão constitucional de 1982,  a qual, além de sublinhar o exclusivo governamental, suprimiu a responsabilidade do Governo perante o PR, tornando-o exclusivamente responsável perante a AR. Além disso, a relação do PR com o Governo é necessariamente intermediada pelo PM, não tendo cabimento a sua integração no CM, compartilhando as suas decisões.

Por isso, o PM só deve poder convidar o PR para presidir a reuniões do CM de tipo protocolar, sem agenda decisória (como sucedeu nos governos de António Costa). O PR não é eleito para (co)governar nem pode ser chamado a prestar contas perante a AR. Ao ignorarem a separação de poderes estabelecida entre eles, ambos atuaram à margem da Constituição.

Adenda
Um leitor objeta que a Constituição «não estabelece nenhuns limites ao poder do PR de presidir ao CM, a convite do PM». Mas não tem razão. Se as normas constitucionais pudessesm ser entendidas dessa forma simplista, ao pé da letra, não havia necessidade de constitucionalistas. Uma das regras elementares que qualquer jurista aprende no início do curso é que as normas devem ser lidas no contexto sistemático em que se integram. O que sustento é que o preceito constitucional em causa deve ser entendida de forma congruente com o sistema constitucional de poderes e de responsabilidades políticas do PR e do Governo à luz da revisão constitucional de 1982, devendo portanto ser objeto de uma interpretação restritiva.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (48): Instrumentalizar o Conselho de Estado (bis)

1. Ao convocar o Conselho de Estado para «analisar a situação económica e financeira nacional e internacional», em pleno debate político sobre o próximo orçamento, o PR envereda mais uma vez por instrumentalizar o seu órgão consultivo para se imiscuir onde não é chamado, a saber, a política orçamental.

Como resulta da Constituição, o Conselho de Estado é um órgão de consulta do PR «no exercício das suas funções» - tal como estas decorrem daquela, bem entendido. Ora, entre as funções constitucionais do PR não consta qualquer competência para intervir na condução da política económica e financeira, que constituti poder exclusivo do Governo, sob controlo político da AR, ou seja, dos partidos da oposição.

Por conseguinte, submeter ao Conselho de Estado tais matérias e, eventualmente, suscitar um parecer daquele, só pode traduzir-se numa tentativa abusiva de constranger politicamente o Governo, os partidos da oposição, ou ambos.

2. Os partidos representados no Conselho de Estado, por via da AR, sejam do Governo ou da oposição, não deviam ser cúmplices neste processo de transformação do conselho consultivo presidencial numa espécie de 2ª câmara parlamentar, cooptando e secundarizando o exclusivo constitucional da AR no debate e aprovação da política orçamental.

É tempo de os partidos com voz própria no CE - em especial o PS, que nunca aceitou uma leitura presidencialista dos poderes do PR - significarem ao inquilino de Belém, pelos modos apropriados, que não estão dispostos a coonestar esta deriva presidencial, que subverte perigosamente a repartição constitucional de poderes.

Adenda
Um leitor pergunta se sugiro «que os partidos façam greve à reunião». Nem pensar! Sou contra a "acção direta" ou o caprichismo nas relações institucionais. Mas há muitas maneiras de os partidos significarem a sua discordância, quer diretamente ao PR, quer no próprio CE, incluindo intervindo em low key na reunião. O que defendo é que não devem conformar-se com a situação, tanto mais que esta já tem precedentes, como assinalei AQUI e AQUI.