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domingo, 30 de março de 2025

O que o Presidente não deve fazer (55): A cumplicidade do silêncio

1. Se há uma marca do atual Presidente da República que vai ficar para a posteridade, é a de "Presidente-falante", tão nutrida tem sido sido a torrente das suas intervenções públicas, muitas delas de puro comentário político - papel que, porém, não integra as funções presidenciais -, em manifesto contraste com os seus antecessores, que nesse aspeto deixaram um registo geral entre a contida moderação (como Soares e Sampaio) e o austero recato (como Eanes e Cavaco Silva), o qual, a meu ver, é bastante mais conforme com o perfil constitucional de "poder neutro" e de "garante das instituições" do inquilino de Belém, como tenho defendido nos artigos desta série.

Há, todavia, situações em que a palavra presidencial se impõe, nomeadamente quando está em causa a infração pelo Governo das suas obrigações de conduta institucional, que não podem ser deixadas em silêncio pelo PR, sob pena de cumplicidade, por falha na sua missão constitucional de supervisão do funcionamento regular das instituições. Nessas situações, a loquacidade habitual de MRS torna esse silêncio ainda mais gritante.

2. Tal é o que sucede com o surpreendente silêncio presidencial sobre a notícia de que o Governo, demitido já há duas semanas, apresentou publicamente na sexta-feira passada, dia 28, às câmaras municipais de ambas as margens do Tejo em Lisboa um grandioso e pormenorizado projeto de investimento público de infraestruturas e de habitação, pomposamente chamado "Parque Cidades do Tejo", incluindo o investimento estimado para cada capítulo, no valor total de muitos milhares de milhões de euros.

Não está em causa aqui, obviamente, a crítica política do megalómano projeto de investimento público para a capital do País - que inclui uma nova travessia do rio, subaquática  - , em violação clara da obrigação constitucional de «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» (citando o art. 9º da CRP, sobre as "tarefas fundamentais do Estado"), confirmando o Governo Montenegro como Governo de Lisboa, e não do País, que deixa umas migalhas para a "província", sacrificando ostensivamente a "coesão territorial" (outro conceito constitucional, como se pode ler no art. 81º da CRP). 

Mas essa crítica política da ação governamental deve ser evidentemente assumida pela oposição, e não diretamente pelo PR, apesar da sua prática corrente de comentador político

3. O que é manifestamente do pelouro do PR é a ostensiva violação pelo Governo, com a referida iniciativa, de dois limites constitucionais claros, a saber: (i) a restrição de poderes dos governos demitidos, que só podem praticar os «atos estritamente necessários» à gestão dos negócios públicos (art. 186º, nº 5, da CRP) e (ii) a imparcialidade política das entidades públicas - incluindo, portanto, o Governo - na pendência de atos eleitorais (art. 113º da CRP).

Ora, não se vê porque é que aquele megaprojeto tinha de ser anunciado agora aos beneficiários e não podia esperar pelo novo Governo saído das eleições - até porque não pode avançar na sua concretização -, salvo obviamente para favorecer as candidaturas da AD nas eleições parlamentares de maio e nas eleições autárquicas do outono. Claro abuso de poder, portanto.

Que o Governo de Montenegro não tenha escrúpulos em sede de moral política, já nos vamos habituando, mas o PR não pode ser conivente com ele, quando está em causa também uma dupla violação das obrigações institucionais daquele -, o que, de resto, não é a primeira vez que denuncio. Por isso, MRS deve interromper o silêncio que se impôs como "comentador político", por causa das eleições, justamente porque há uma situação que reclama a sua intervenção a outro título bem mais importante, como garante do regular funcionamento das instituições

Adenda
Na sua página do Facebook, Neto Brandão, deputado por Aveiro (PS), protesta, com toda a razão, contra o facto de o próprio PM, que já anunciou a sua candidatura à AR por esse distrito, ir inaugurar hoje, dia 30, três USF nesse distrito, aliás já abertos há tempo, comentando ser óbvio que não se trata de nenhum ato "estritamente necessário" ao seu funcionamento e que, portanto, as cerimónias só podem ser entendidas por aquilo que são, ou seja, «como despudoradas ações de pré-campanha eleitoral». Com efeito, além do abuso de poder, é uma rasteira instrumentalização política do cargo para efeitos eleitorais!

terça-feira, 11 de março de 2025

O caso Montenegro (10): O PR não devia coonestar o golpe do Governo

Penso que o Presidente da República não devia dar seguimento ao golpe do Primeiro-Ministro e do seu Governo para fugirem ao escrutínio parlamentar acerca da ligação daquele à sua empresa e às respetivas avenças. Pelo contrário, o PR deveria fazer valer essa obrigação essencial de qualquer Governo numa democracia parlamentar (como mostrei em post anterior) e fazer respeitar as prerrogativas da AR e os direitos da oposição, que integram a sua missão presidencial de "poder moderador".

Por isso, julgo que, em vez de dissolver imediatamente a AR e convocar eleições, cancelando a CPI - que era o grande objetivo de Montenegro -, o Presidente deve suspender essa decisão e manter o Governo em gestão até a CPI concluir o seu trabalho, dentro de 90 dias, como proposto pelo PS

Só então as eleições devem ser convocadas, com o conhecimento público das conclusões do inquérito, confirmando, ou não, as acusações que têm sido formuladas contra Montenegro, e habilitando os cidadãos a um voto esclarecido, em vez de serem chamados, como pretende o PSD, a uma espécie de plebiscito sobre o PM, feito "vítima" da demissão, sem conhecimento dos factos que só o inquérito parlamentar pode proporcionar.

Adenda
Um leitor sugere maliciosamente que o PR poderia seguir esse caminho, se se tratasse de um PM e um Governo do PS, mas que não vai fazê-lo agora, «para não enterrar o líder do seu partido de origem».  Seria bom que o PR não desse motivo a tais sugestões, tratando-se, como se trata, de um "poder neutro", na formulação clássica de Benjamin Constant, que não deve mover-se por preferências ou animosidades partidárias...

Adenda 2
Um leitor comenta que o PS deveria ter considerado a «desesperada cedência do Governo, de última hora, quanto ao inquérito parlamentar». Compreendo o argumento (que, se fosse eu, não teria desprezado), mas depois de ter declarado a guerra à AR e ao PS (apesar de este ter inviabilizado duas moções de censura), com a provocatória moção de confiança (como mostrei AQUI), em reação à proposta de inquérito parlamentar do PS, Montenegro perdeu toda a credibilidade política junto do PS para tentar negociar a CPI, o que, aliás, deve ter feito contravontade, por provável pressão de Belém e do susto da sondagem de opinião publicada ontem de manhã no Diário de Notícias, que colocava o PS muito à frente do PSD. Na política, antes de fazer uma declaração de guerra, convém ponderar se o único modo de evitar uma provável derrota não é retirá-la sem condições. 

Adenda 3
Depois de ter avançado provocatoriamente com um moção de confiança, explicitamente destinada a provocar eleições, a declaração de Montenegro, depois de conseguir esse objetivo, de que «tentámos a todo custo evitar eleições», não tem a mínima credibilidade, não passando de uma tentativa desesperada de fugir à censura pública pela provocação de eleições para fugir ao escrutínio parlamentar. Assente a indisponilidade do PS em ceder à chantagem, o único modo de evitar eleições era retirar a provocatória moção, sem condições, o que o Governo se recusou a fazer. Há limites para a hipocrisia política.

domingo, 9 de março de 2025

O caso Montenegro (8): Um mau negócio para o PS

1. Tal como antes defendi que o PS não devia apresentar nem votar nenhuma moção de censura, para não derrubar o Governo, também agora defendo que não deve votar contra a moção de confiança apresentada por este, sendo preferível a abstenção, para evitar a fuga do Primeiro-Ministro ao escrutínio parlamentar sobre a sua comprometedora ligação à Spinumviva, o que é inaceitável. 

Por um lado, é por demais evidente que este desafio do PM à oposição para a sua demissão parlamentar constitui uma verdadeira provocação política (como defendi AQUI), que visa culpabilizar a oposição pela queda do Governo e, sobretudo, obter uma espécie de "amnistia" por via eleitoral para o que se afigura ser uma intolerável acumulação das funções de governante e de verdadeiro responsável e beneficiário de uma pseudoempresa familiar, criada para continuar a prestar os seus anteriores serviços de advogado aos mesmos clientes, em violação da regra da exclusividade e em conflito de interesses entre as duas atividades (como mostrei AQUI). 

Sem deixar de negar ao Governo a confiança que ele pede, para o que basta a abstenção, a prioridade do PS deveria ser impedir, em defesa da democracia parlamentar, esta fuga sem precedentes de um PM a essa forma qualificada de escrutínio político, por uma questão tão grave como essa.

2. Nem se diga que a realização de eleições e a nomeação de novo Governo não impede a retoma posterior do inquérito parlamentar, pois, para além de ser uma hipótese constitucionalmente muito problemática, não vejo que faça algum sentido uma investigação parlamentar sobre um anterior mandato de Primeiro-Ministro, quer ele se mantenha, quer não, como chefe do novo executivo depois das eleições. 

Se, apesar de tudo, o PSD, fazendo-se de vítima e invocando as boas condições económicas e sociais, ganhasse as eleições e formasse novo Governo, a retoma do inquérito parlamentar apareceria como uma manifestação de mau-perder do PS; caso fosse derrotado, e Montenegro deixasse de ser PM, o inquérito parlamentar surgiria como "chover no molhado". 

Ou seja, mesmo que fosse constitucionalmente admissível, o inquérito parlamentar no novo parlamento seria politicamente pouco convincente.

3. Acresce que, tanto quanto é possível antecipar neste momento, é pouco provável que as eleições tenham um resultado clarificador da situação política e proporcionem uma solução governativa evidente. Na melhor das hipóteses, o PSD poderá pensar numa sensível subida eleitoral, mas aquém de uma maioria absoluta, mesmo numa coligação alargada à IL; e quanto ao PS, mesmo que venha a vencer as eleições, igualmente sem maioria, o mais provável é que não tenha condições para formar um Governo politicamente sustentável, dada a óbvia improbabilidade de uma maioria à esquerda.

Avançar para eleições de resultado tão imprevisível, incorrendo nos respetivos custos financeiros e económicos e suspendendo a governação do País durante meses, pode fazer sentido para o PSD, porque consegue o seu objetivo essencial, que é a fuga ao escrutínio parlamentar de Montenegro, mas pode ser um mau negócio para o PS, que desiste do inquérito parlamentar e pode não obter nada em troca, podendo mesmo pôr em causa a sua liderança, em caso de derrota.

Adenda
Um militante socialista que concorda com este post manifesta a sua estranheza por o líder do PS «cair nesta emboscada do Governo, em nome de uma posição anunciada há meses, em abstrato, sem considerar a mudança substancial de circunstâncias, como é o interesse desesperado do primeiro-ministro em fugir do inquérito parlamentar que certamente o enterraria». Ao invocar a noção de "alteração das circunstâncias", o leitor deve ter formação jurídica, pois trata-se de uma situação que permite a modificação unilateral das obrigações contratuais, incluindo a rescisão; mas não é preciso ter conhecimentos jurídicos para recorrer a essa figura na vida política.

Adenda 2
É estranho que ninguém censure o Presidente da AR - que, aliás, deve a sua eleição a um acordo com o PS - por vir apelar publicamente às oposições para viabilizarem a moção de confiança ao Governo, para evitar a crise política, em vez de apelar ao seu próprio partido para a retirar, pois foi ela que a desencadeou.  Um amigo meu pergunta se o anterior Presidente da AR, Ferro Rodrigues, teria passado incólume a crítica de "falta de imparcialidade política", se, em 2021, tivesse pedido às oposições, à esquerda e a direita do PS, para viabilizarem o orçamento do 2º Governo de A. Costa, para evitar a dissolução parlamentar que o PR já tinha anunciado na eventualidade do chumbo, como veio a suceder. Tem razão: a dualidade do comentariado nos media é, por vezes, gritante.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (53): Os limites do Presidente-comentador

1. Segundo o Diário de Notícias de hoje, ontem, pouco depois de o Ministro da Defesa ter afirmado perante a comissão parlamentar respetiva que os EUA são aliados permanentes, «independentemente do que a administração Trump disser ou fizer», Marcelo Rebelo de Sousa veio declarar aos jornalistas que «temos de perceber se a NATO é para levar a sério ou não, porque se a América tem reservas, na prática, em relação ao seu envolvimento na Ucrânia (...)já se percebeu que está difícil de convencer os aliados, ou antigos aliados norte-americanos - nunca se percebe bem, com esta nova administração -, a participarem nesse esforço de segurança [da Europa]».

Se é inaceitável em geral que o PR faça comentários públicos sobre a política de defesa, que é da exclusiva competência do Governo, é inadmissível que contrarie publicamente as posições governamentais na matéria, por mais discutíveis que sejam -, mas isso é tarefa para a oposição e para os comentadores (como eu), não para o Presidente da República.

2. Além de estatuir que é ao Governo que compete «a condução da política geral do País» - respondendo politicamente por ela apenas perante a AR - , a única obrigação que Constituição impõe ao Primeiro-Ministro é a de «informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da potica interna e externa do Páis».

Mas, além dessa estrita obrigação de informação, é comummente aceite o entendimento constitucional de que, embora não tendo responsabilidades governativas, o PR pode aconselhar o Governo, desde que o faça diretamente e de forma discreta (ou seja, nunca por intermédio de jornalistas!), para respeitar a separação de poderes e a liberdade do Primeiro-Ministro na condução da política governamental. E, indo mais além, também parece consensual a ideia de que em matéria de política de defesa e de política externa existe mesmo um dever do PM de consultar antecipadamente o PR sobre a execução dessas políticas, dados os poderes presidenciais específicos nessas duas áreas (comandante supremo das Forças Armadas, presidente do Conselho Superior de Defesa Nacional, representante externo da República, nomeação de embaixadores). Aliás, ambas estas regras fazem parte, desde há muito, da prática política normal e incontroversa entre São Bento e Belém.

Por conseguinte, para respeitar o quadro constitucional das suas competências, quando perguntado pelos jornalistas sobre questões dessa natureza, o PR deveria responder simplesmente o seguinte: «Como sabem, trata-se de matéria da competêmcia do Governo, sobre a qual terei certamente a oportunidade de transmitir a minha opinião ao PM, mas compreendem que não possa adiantá-la publicamente.»

Chegado ao último ano do seu mandato, será tarde para convencer Marcelo Rebelo de Sousa de que não é um comentador externo da vida política; mas, para impedir qualquer forma de "usucapião" de poderes nesta matéria, nunca é tarde para lembrar os estritos limites constitucionais dos seus limitados poderes em relação ao Governo.

Adenda
Comentando as muitas intervenções públicas de MRS, um leitor observa que ele «regressou, completamente, à sua posição pré-presidencial de comentador e explicador da vida política». Pois é, mas o que sustento é que a atividade de comentador político, sobretudo quando tem por objeto a política governamental ou as posições da oposição, não é compatível com o mandato presidencial, e não é para isso que elegemos o PR. 

Adenda 2
Não estou de acordo com o leitor que observa que «as pessoas já não ligam muito aos comentários de MRS e [que] daí não vem grande mal ao mundo». Na minha opinião, as frequentes declarações em modo de comentador banalizam a função presidencial, e a sua interferência na esfera própria do Governo e da AR subverte a separação constitucional de poderes e gera confusão entre os cidadãos sobre quem dirige a política nacional

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): Confusão de papéis

1. Procurando, comprensivelmente, preencher o longo período de tempo que vai até às eleições, em janeiro do próximo ano, o primeiro candidato a anunciar oficialmente a sua candidatura presidencial, Luís Marques Mendes, com o apoio do PSD (de que chegou a ser líder), anunciou a realização de uma iniciativa pública, para debater as suas "causas do Presidente" (iniciativa a que o Público chamou indevidamente "Estados gerais", uma noção que, desde há três décadas, pertence ao património político do PS) .

Tendo o candidato deixado o seu espaço dominical de comentário televisivo - o que é de louvar -, esta iniciativa é uma boa ideia, permitindo-lhe ocupar o espaço político e ganhar visibilidade como candidato, enquanto outros possíveis candidatos adiam o momento de "entrar em cena", designadamente o(s) candidato(s) da área socialista e o almirante Gouveia e Melo, que até agora tem os melhores índices nos inquéritos à opinião pública, apesar do (ou devido ao?) seu absoluto silêncio sobre o assunto.

Compreende-se, por isso, a preocupação de Marques Mendes, em ocupar o terreno, enquanto este está vago e não há concorrentes à vista.

2. Mais problemático é o tema da iniciativa, a saber, debater as "causas da Presidência", nada menos de doze, que o anúncio da iniciativa discrimina, desde a pobreza à ambição económica, o que em tudo faz lembrar um programa eleitoral partidário de candidatura à chefia do Governo. 

Ora, no nosso sistema político-constitucional, os candidatos presidenciais não são candidatos partidários, nem candidatos a governar (ao contrário do que sucede nas eleições parlamentares), pelo que não tem nenhum cabimento apresentarem um programa de governo ou algo de parecido. Da Constituição resultam, sem margem para dúvidas, duas coisas: (i) quem governa é o Governo, saído das eleições parlamentares, e não o Presidente; (ii) o Governo é responsável politicamente perante a AR, e não perante o PR.  

Por isso, é o Governo, e não o PR, que define as políticas públicas em todas as áreas e o modo de as realizar.

3. Daí decorre que, no nosso sistema constitucional, o PR não integra o "poder executivo" da clássica separação tripartida dos poderes e de órgãos do Estado, sendo um "quarto poder", o qual, ao contrário dos poderes legislativo e executivo -  que são poderes de origem e expressão partidária -, só pode ser um "poder neutro" (B. Constant), que está acima da dialética Governo-oposição, vocacionado para «assegurar o regular funciomento das instituições democráticas» (como diz a Constituição), desde logo o respeito pelas regras do jogo por parte dos atores políticos (AR, Governo, partidos). Nessa função de tipo arbitral, não cabe ao PR defender causas políticas, em concorrência, e portanto em potencial conflito, com quem é suposto tê-las, ou seja, justamente  o Governo e as oposições.

Neste quadro, não se vê que sentido faz o lançamento, por parte de um candidato presidencial, de um debate sobre políticas públicas que ele não tem poder para implementar, sob pena de conflitos com quem tem o poder de o fazer, ou seja, o Governo.

4. Sem dúvida, no exercício do seu mandato constitucional o PR tem obrigações explícitas, que pode abraçar como "causas".

Tais são, em primeira linha, as que resultam das suas competências constitucionais - que são sempre poderes-deveres -, tal como enunciadas no art. 120º da Constituição, a saber: representar a República, garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições e assumir o cargo de comandante supremo das Forças Armadas. Mas a estas tarefas devemos acrescentar o de «defender (...) e fazer cumprir a Constituição», como consta do seu juramento ao iniciar funções (art. 127º, nº 3), o que lhe permite promover, por meio dos poderes que tem, os demais valores constitucionais, desde o Estado de direito ao Estado social, desde a integração europeia à solidariedade lusófona, etc. etc. 

São essas "causas cosntitucionais" que justificam a generalidade dos poderes do PR, tanto os poderes próprios, como os poderes em relação aos outros dois órgãos políticos, a AR e o Governo, e que se traduzem em derrogações da autonomia destes, como a dissolução parlamentar, o veto legislativo, a recusa de nomeação de cargos públicos propostos pelo Governo, etc. Ora, é fácil verificar que quase nenhuma das doze propostas colocadas por Marques Mendes na agenda das suas "causas presidenciais" tem algo a ver diretamente com as referidas causas constitucionais.

5.  É certo que, embora o PR não tenha funções governantes, há uma obrigação constitucional do PM de o informar sobre a condução da atividade governativa, pelo que, mesmo sem norma expressa, há um consenso doutrinal de que ele pode aconselhar o Governo, e, na minha opinião, o Primeiro-Ministro tem mesmo o dever de o consultar sobre a condução da política externa e da política de defesa, devido às sua incumbências constitucionais de representação externa da República e de comandante supremo das Forças Armadas.

Todavia, tratando-se sempre de interferência, embora soft, no mandato governativo, essa função consultiva do PR deve ser exercida de modo discreto, nos encontros regulares com o PM, e não em público, o que configuraria uma ingerência óbvia na esfera governativa, suscetível de gerar conflitos entre os dois poderes, pondo em risco a estabilidade política e governativa. Afinal, mesmo quando tomados sob consulta do PR, a responsabilidade dos atos do Governo recai sempre exclusivamente sobre ele, até porque aquele não é politicamente responsável no exercício do seu mandato.

Por conseguinte, não se consegue vislumbrar qual é a lógica de os candidatos submeterem a debate público prévio as suas supostas "causas presidenciais" e de se vincularem publicamente a elas, para efeitos de uma atividade consultiva, que, além de não ter expressão pública, pode não ter qualquer consequência.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Free & fair trade (21): Como responder à cruzada protecionista dos EUA?

1. Em mais um salto na sua escalada protecionista - depois da aplicação de tarifas punitivas ao México e ao Canadá, entretanto suspensas mas não revogadas, e à China, e de uma taxa de 25% à importação de aço e alumínio, de qualquer país -, o Presidente Trump decretou agora a aplicação de "tarifas recíprocas" às importações de todos os países. 

Ora, as regras da OMC - de que os Estados Unidos são membro fundador e a cujas normas está obrigado -, estabelecem que: (i) a pauta aduaneira de cada país, que está depositada na OMC e teve o assentimento dos outros membros, proíbe que eles apliquem tarifas acima dessa pauta; (ii) cada membro da OMC tem uma pauta aduaneira única, não podendo discriminar entre os seus parceiros comerciais (chamada "cláusula da nação mais favorecida"). 

Ao passar a aplicar tarifas de importação diferenciadas para os mesmos produtos, subindo-as até refletirem as tarifas correspondentes de cada um dos seus parceiros comerciais, os Estados Unidos, que têm tarifas em média muito baixas, rasgam descaradamente as duas referidas obrigações, com tarifas acima da sua pauta e tarifas discriminatórias

2. Obviamente, os países mais prejudicados vão ser os menos ricos, incluindo a Índia e o Brasil, que tendem a ter tarifas em média bem mais elevadas do que os EUA ou a UE.

Mas a própria União vai ser atingida, não somente na exportação daqueles produtos cujas tarifas de importação americanas são inferiores às europeias (por exemplo, os automóveis), e que, portanto, vão subir, mas também de muitos outros produtos, pois bizarramente Trump considera o IVA europeu como uma tarifa sobre as exportações americanas, quando é óbvio que os produtos importados de qualquer origem pagam na Europa o mesmo IVA que os produtos nacionais (aliás, ao abrigo da regra do "tratamento nacional" da OMC).

A aplicação deste absurdo critério pode vir a lesar profundamente muitas exportações para os Estados Unidos.

3. Há comentadores que defendem - por exemplo, Luís Aguiar-Conraria ontem no Expresso - que os países afetados, a começar pela UE, não devem retaliar com a subida das tarifas de importação dos produtos vindos dos EUA, quando elas são mais baixas do que as americanas, pois a subida de tarifas só iria prejudicar os consumidores e as empresas europeias, que passariam a pagá-los mais caras. Mas não estou de acordo, convergindo com a posição retaliatória prontamente anunciada pela Comissão Europeia.

Há três boas razões para isso: 1º - as violações graves, como estas, das regras da OMC não podem ficar impunes; 2º - se a ofensiva de Washington lesa obviamente as exportações europeias, o único modo de obrigar Trump a revogá-las é atingir na mesma medida as exportações norte-americanas (salvo nos casos em que não haja alternativa a elas); 3º - em resposta ao protecionismo de Trump, que ameaça não ficar por aqui, a UE deve aprofundar a sua política de comércio livre com outras geografias igualmente lesadas (aqui em concordância como referido autor).

O neoimperialismo económico norte-americano não pode deixar de ser combatido por quem o pode fazer. E no caso do comércio internacional, a UE pode!

Adenda
García Bercero, um insigne ex-negociador de acordos comerciais da UE e agora colaborador de um importante think tank em Bruxelas - que conheci bem, quando fui presidente da Comissão parlamentar de Comércio Internaciuonal (INTA) do Parlamento Europeu -, vem dizer o tem de ser dito: «Com os Estados Unidos, estás perdido, se mostras fraqueza». Como acompanhei as negociações do TTIP com os Estados Unidos, concordo inteiramente - e isso é especialmente verdade com Trump.

Adenda 2
A França defende que, face ao protecionismo de Washington, a alternativa comercial da UE está noutras economias como a América Latina e a Índia. Muito bem, mas depois desta declaração, espero que a França abandone a oposição que tem manifestado ao importante acordo da UE com o Mercosul, que se torna ainda mais importante para ambos os lados, depois desta ofensiva geral de Trump. Haja coerência política!

sábado, 18 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (52): Uma condecoração indevida

Que merecimento especial no exercício do seu cargo ou que contribuição destacada à causa pública é que justifica a condecoração presidencial da ex-PGR, Lucília Gago

Eu sei que as condecorações - que a I República procurou inicialmente abolir - se tornaram um ritual crescentemente desvalorizado pela sua banalização, sendo atribuídas com grande prodigalidade, incluindo, desde logo, todos os titulares de certos cargos públicos, independentemente do mérito no seu desempenho. Mas no caso concreto, trata-se de premiar um mandato lamentável, em que a responsável máxima da PGR manteve a captura sindical-corporativa da instituição, deixou campear a violação sistemática do segredo de justiça na fase do inquérito e instrumentalizar a investigação criminal para efeitos de perseguição política e que culminou a sua atuação com o verdadeiro golpe de Estado que levou à demissão do Primeiro-Ministro, António Costa, dando ao PR um pretexto para dissolver a AR e virar o ciclo político. 

Por isso, correndo o risco de ser interpretada como um prémio por esse abuso qualificado de poder, esta condecoração não deveria ter sido atribuída.

Adenda
Um leitor observa ironicamente que o critério presidencial de condecorações não consta do meu «extenso catálogo do bom PR». Tem razão: é uma lacuna que vou suprir!... 

sábado, 4 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (51): Onde não é chamado

1. Ao consultar os demais membros do Conselho de Estado sobre o pedido do líder do Chega para uma reunião daquele órgão de consulta presidencial sobre questões de segurança, o PR admite explicitamente que tal reunião poderá vir a ter lugar, se uma maioria deles tal entender. Ora, para além de descartar a responsabilidade pela convocação (ou não) do seu órgão consultivo, não se vê qual pode ser o cabimento político e constitucional da intervenção do CE nessa matéria.

Segundo a Constituição, o Conselho de Estado, para além dos casos de convocação obrigatória, sobre o exercício de competências presidenciais de maior impacto político (como a dissolução parlamentar ou a demissão do Governo), pode ser chamado a «aconselhar o PR no exercício das suas funções», a seu pedido. Ora, que se saiba, o PR não exerce nenhuma função em relação à política de segurança, que é da exclusiva competência governamental, pela qual o Governo é responsável somente perante o parlamento.

2. Manifestamente, o PR insiste em instrumentalizar politicamente o Conselho de Estado (como ja anotei AQUI e AQUI e AQUI), transformando-o numa espécie de segunda câmara parlamentar, para se imiscuir onde não é chamado, ou seja, na condução da política nacional, que é do foro privativo do Governo, e para secundarizar o papel da AR no seu papel específico de escrutínio político da atividade governativa.

A questão que se coloca é a de saber se o PM e os deputados do Governo e da oposição que são membros do CE devem continuar a ser cúmplices, à sua custa, deste abuso de poder presidencial, à margem da separação constitucional de poderes e de repartição de responsabilidade política.

Adenda
Um leitor pergunta se há fundamento para a noção de "cooperação estratégica" entre o PR e o PM, utilizada pelo primeiro na sua mensagem de Ano Novo (que se pode ler AQUI). A meu ver, tal conceito não tem fundamento nenhum no nosso sistema político-constitucional, sendo obviamente destinado a dar cobertura à errada noção de uma condução política do País partilhada entre Belém e São Bento, como se o PR fosse cotitular do poder governamental, numa espécie de diarquia política, a la française. 

domingo, 15 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (3): As minhas condições de voto

 

1.  Considerando a Constituição da República - que os PR juram respeitar quando tomam posse do cargo - e as várias experiências presidenciais ao longo deste 50 anos, em especial a que está em final de mandato, entendo que nas próximas eleições só devo apoiar um candidato que se comprometa explicitamente a respeitar, cumulativamente, as seguintes condições:

     - suspender, para todos os efeitos, a filiação partidária que eventualmente tenha;
     - assumir-se como Presidente de todos os portugueses, independentemente do seu voto;
     - exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial;
     - respeitar os resultados eleitorais para a AR e a composição desta como única fonte da legitimidade dos governos; 
     - nunca esquecer que não lhe compete a função de governar, desde logo porque é politicamente irresponsável, a qual cabe ao Governo, responsável perante a AR, nem tampouco o papel de contrapoder, que cabe aos partidos de oposição;
     - não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição, não sendo parte no respetivo debate político;
     - não se arrogar o papel de comentador político, muito menos através de pseudoanónimas "fontes de Belém", junto de meios de comunicação seletos;
     - manter uma atitude de leal cooperação institucional com o Governo em funções e respeitar (e fazer respeitar) os direitos da oposição, pois nem um nem outra estão sob sua tutela política;
     - nunca esquecer que não lhe cabe a função legislativa, pelo que deve exercer o seu poder de veto legislativo a título excecional, especialmente quanto às leis da AR, que é o titular supremo do poder legislativo no sistema constitucional de separação de poderes;
     - não comentar publicamente as leis que promulga, como se o PR fosse colegislador, pois a promulgação presidencial é uma obrigação constitucional por omissão (salvo veto), que não precisa de ser justificada;
     - recorrer à dissolução parlamentar e à correspondente antecipação de eleições somente como solução de última instância - por se traduzir na interrupção do mandato conferido pelos eleitores -, e nunca por capricho político ou por desforço antigovernamental;
     - não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência; 
     - respeitar escrupulosamente o princípio constitucional da separação entre o Estado e a religião, não participando, na sua qualidade presidencial, em cerimónias ou eventos religiosos;
     - utilizar um critério exigente em matéria de condecorações oficiais, cuja atribuição deve ser sempre publicamente justificada, de modo a evitar a sua banalização;
     - defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial, da integração europeia, da cooperação lusófona e da paz e da segurança coletiva numa ordem internacional sujeita a regras. 

Num Estado de direito constitucional, não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República.

2. É evidente, para quem acompanha o Causa Nossa, que este desenho da magistratura presidencial está nos antípodas do desempenho do cargo pelo atual PR, Marcelo Rebelo de Sousa, que tenho criticado frequentemente na minha rubrica "O que o Presidente não deve fazer", que já vai no 50º episódio, onde defendi que ele se «arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial».

Na verdade, creio que as próximas eleições devem proporcionar ao País um PR que cumpra escrupulosamente o perfil constitucional de "poder moderador" e de garante do «regular funcionamento das instituições», que exclui todo e qualquer ativismo político presidencial, em competição com a AR e o Governo. 

Adenda
Um leitor observa que «nenhum dos anteriores Presidentes respeitou todas essas condições». Sim, mas uma coisa é infringir algumas delas ocasionalmente, outra é ignorar todas elas, ou quase todas, sistematicamente.

sábado, 5 de outubro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (50): Um modelo negativo

Finalmente, há outros constitucionalistas que não silenciam o seu desacordo sobre os excessos do intervencionismo político presidencial, à margem da Constituição. Welcome to the club!

Todavia, neste caso do ativismo de Belém acerca do orçamento, mais grave do que a sua loquacidade mediática foi, como assinalei antes, a instrumentalização do Conselho de Estado para esse efeito.

Apesar da complacência dos partidos políticos, com algumas exceções, e do aplauso do comentariado nacional (et pour cause...), MRS arrisca-se a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (49): O PR governante

É certo que o erro começou no Primeiro-Ministro, ao convidar o PR para presidir a um Conselho de Ministros com agenda decisória, mas MRS devia ter declinado o convite.

No sistema de governo constitucionalmente definido, a atividade governativa é um exclusivo do Governo e não uma parceria entre São Bento e Belém. A Constituição admite que o PM convide o PR, mas essa eventualidade - que vem desde a origem da Constituiação - deve ser lida à luz da revisão constitucional de 1982,  a qual, além de sublinhar o exclusivo governamental, suprimiu a responsabilidade do Governo perante o PR, tornando-o exclusivamente responsável perante a AR. Além disso, a relação do PR com o Governo é necessariamente intermediada pelo PM, não tendo cabimento a sua integração no CM, compartilhando as suas decisões.

Por isso, o PM só deve poder convidar o PR para presidir a reuniões do CM de tipo protocolar, sem agenda decisória (como sucedeu nos governos de António Costa). O PR não é eleito para (co)governar nem pode ser chamado a prestar contas perante a AR. Ao ignorarem a separação de poderes estabelecida entre eles, ambos atuaram à margem da Constituição.

Adenda
Um leitor objeta que a Constituição «não estabelece nenhuns limites ao poder do PR de presidir ao CM, a convite do PM». Mas não tem razão. Se as normas constitucionais pudessesm ser entendidas dessa forma simplista, ao pé da letra, não havia necessidade de constitucionalistas. Uma das regras elementares que qualquer jurista aprende no início do curso é que as normas devem ser lidas no contexto sistemático em que se integram. O que sustento é que o preceito constitucional em causa deve ser entendida de forma congruente com o sistema constitucional de poderes e de responsabilidades políticas do PR e do Governo à luz da revisão constitucional de 1982, devendo portanto ser objeto de uma interpretação restritiva.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (48): Instrumentalizar o Conselho de Estado (bis)

1. Ao convocar o Conselho de Estado para «analisar a situação económica e financeira nacional e internacional», em pleno debate político sobre o próximo orçamento, o PR envereda mais uma vez por instrumentalizar o seu órgão consultivo para se imiscuir onde não é chamado, a saber, a política orçamental.

Como resulta da Constituição, o Conselho de Estado é um órgão de consulta do PR «no exercício das suas funções» - tal como estas decorrem daquela, bem entendido. Ora, entre as funções constitucionais do PR não consta qualquer competência para intervir na condução da política económica e financeira, que constituti poder exclusivo do Governo, sob controlo político da AR, ou seja, dos partidos da oposição.

Por conseguinte, submeter ao Conselho de Estado tais matérias e, eventualmente, suscitar um parecer daquele, só pode traduzir-se numa tentativa abusiva de constranger politicamente o Governo, os partidos da oposição, ou ambos.

2. Os partidos representados no Conselho de Estado, por via da AR, sejam do Governo ou da oposição, não deviam ser cúmplices neste processo de transformação do conselho consultivo presidencial numa espécie de 2ª câmara parlamentar, cooptando e secundarizando o exclusivo constitucional da AR no debate e aprovação da política orçamental.

É tempo de os partidos com voz própria no CE - em especial o PS, que nunca aceitou uma leitura presidencialista dos poderes do PR - significarem ao inquilino de Belém, pelos modos apropriados, que não estão dispostos a coonestar esta deriva presidencial, que subverte perigosamente a repartição constitucional de poderes.

Adenda
Um leitor pergunta se sugiro «que os partidos façam greve à reunião». Nem pensar! Sou contra a "acção direta" ou o caprichismo nas relações institucionais. Mas há muitas maneiras de os partidos significarem a sua discordância, quer diretamente ao PR, quer no próprio CE, incluindo intervindo em low key na reunião. O que defendo é que não devem conformar-se com a situação, tanto mais que esta já tem precedentes, como assinalei AQUI e AQUI.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Manifesto dos 50 (4): Contra a autogestão corporativa do Ministério Público

1. Uma das mais importantes propostas do Manifesto dos 50 para uma Reforma da Justiça, publicado na semana passada, consiste em «reconduzir o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o/a Procurador/a-Geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas».

A meu ver (pronunciando-me aqui a título pessoal), tal desiderato passa essencialmente pelo fim da autogestão corporativa do Ministério Público, que secundariza o papel do/a Procurador/a-Geral e centraliza o poder no Conselho Superior, onde os próprios magistrados dominam a seu bel-prazer.

Do que se trata, portanto, é de conformar o Estatuto do Ministério Público com a Constuição e fazer prevalecer o modelo constitucional de uma instituição hierarquizada, em que o/a Procurador/a-Geral ocupa o vértice da pirâmide organizatória e detém os poderes correspondentes, respondendo externamente pela instituição.

2. Constitucionalmente, o/a Procurador/a-Geral é nomeado pelo Presidente da República sob proposta do PM, o que lhe confere indiretamente uma especial legimitidade e autoridade democrática, como órgão supremo do MP (a começar pela repressentação deste junto dos tribunais supremos), o qual não depende do Governo nem responde perante ele, na cadeia de responsabilidade democrática própria da demais Administração pública. 

Sucede, porém, que, apesar desse destaque constitucional, o Estatuto do Ministério Público e a prática da instituição esvaziaram tal cargo do efetivo poder de governo da instituição, que foi transferido para o CSMP, dando azo a que um antigo PGR, o Juiz-conselheiro F. Pinto Monteiro (que exerceu o cargo entre 2006 e 2012), se tenha queixado de não ter mais poderes do que a "rainha de Inglaterra"

Para isso, importa atribuir-lhe não somente um poder geral de emitir instruções e diretivas sobre o cumprimento das tarefas do MP, mas também o poder de direção quanto à gestão dos quadros da instituição, bem como quanto às inspeções e avaliação de desempenho e quanto ao poder disciplinar, poderes hoje indevidamente confiados, sem escrutínio externo, ao Conselho Superior.

Para exercer o seu poder hirerárquico e poder responder externamente pelo MP, o/a PGR tem de ser titular efetivo do governo da instituição.

3. Além de ver reduzidos os seus vastos poderes, para que não tem a necessária legitimidade, Conselho Superior, que foi tranformado uma megaestrutura todo-poderosa, deve ser descorporativizado, deixando de ser um mecanismo de autogestão da magistratura - de expressão sindical, como é notório.

Quanto aos seus poderes, além de poderes consultivos junto do/a Procurador/a-Geral, o CSMP deve limitar-se aos poderes de aprovação do orçamento e do relatório anual do MP, sob proposta daquele/a,e eventualmente de órgão de recurso das sanções disciplinares mais graves.

Quanto à sua composição, deve ser reduzida a representação dos magistrados, de 11 para 5 membros (os mesmos que designados pela AR) e deve prever-se a inclusão de alguns membros externos por inerência de funções, nomeadamente o Provedor de Justiça, o bastonário da Ordem dos Advogados e o presidente da comissão parlamentar de justiça.

O atual autogoverno corporativo-sindical do MP não é compatível com uma instituição pública de estrutura hierárquica e que não pode deixar de estar sujeita a escrútinio externo, que só o/a PGR pode assegurar, e não o presidente do sindicato dos magistrados, como hoje ocorre.

Adenda
Novos desenvolvimentos do Manifesto: mais 50 subscritores e pedido de audiência do PR. E é para continuar!

Adenda 2
Até agora, as críticas ao Manifesto, designadamente as de origem sindical, como esta, assentam num equívoco: não questionamos a independência dos tribunais nem a autonomia do Ministério Público (que, aliás, não são a mesma coisa...), nem, muito menos, defendemos qualquer "controlo político da justiça". Se é por aí que vão, inventam fantasmas. O que combatemos é o "controlo sindical" da justiça.

terça-feira, 30 de abril de 2024

O que outros pensam (7): "O pior Presidente de todos"

A opinião de J. M. Júdice:

«Agora, com pena o digo, não tenho qualquer dúvida que [Marcelo Rebelo de Sousa] vai ficar na História como o pior presidente de todos».

Como mostra a minha série aqui no Causa Nossa sobre "O que o Presidente não deve fazer" - que vai em quase 50 episódios -, tenho sido, desde o início, um crítico persistente, mas durante muito tempo desacompanhado, do (mau) desempenho presidencial de MRS e das suas posições impróprias da função presidencial. 

Agora que os críticos de MRS se multiplicam, mesmo entre aliados e amigos, e que a degradação da sua cotação pessoal assume foros de irrecuperável, é caso para dizer: "eu bem fui avisando!".

Adenda
Entre as várias apreciações muito críticas do PR publicadas nestes últimos dias, é de destacar também a de J. Matos Correia no Expresso, «Há dias maus», pela qualidade do autor e por ser muito bem fundada. Acontece que, no caso de MRS, este dia particularmente mau não foi exceção.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O que o Presidente não deve fazer (47): O dever de reserva institucional

1. As insólitas considerações do PR acerca da personalidade do anterior Primeiro-Ministro e do atual , nomeadamente a qualificação de Montenegro como "rural" e de Costa como "oriental", são manifestamente descabidas no discurso presidencial, por pelo menos três motivos: (i) porque violam manifestamente um elementar dever de respeito e reserva institucional do chefe do Estado; (ii) porque, embora de índole supostamente psicossocial, elas refletem os preconceitos típicos da elite lisboeta contra os políticos que vêm da "província" (caso de Montenegro) ou os que têm origem étnica exótica (caso de Costa); e (iii) porque foram proferidas perante a imprensa estrangeira, onde se impunha ainda mais discrição e prudência institucional do PR no seu juízo sobre os chefes de Governo.   

Uma conduta condenável, sem desculpas nem atenuantes.

2. Mais uma vez, e aqui de forma especialmente grave, MRS esqueceu duas distinções que são essenciais num Presidente da República, como representante de toda a coletividade: a distinção entre aquilo que ele pensa e o que pode dizer e a distinção entre aquilo que ele pode dizer numa tertúlia de amigos de confiança e o que pode dizer publicamente.  

É afinal a distinção entre um político de verbo incontinente e um PR que respeita a dignidade do seu cargo e a personalidade dos demais servidores da República com quem interage.

quarta-feira, 13 de março de 2024

O que o Presidente não deve fazer (45): O árbitro não deve tomar partido

1. O PAN tem razão quando defende que as audiências presidenciais aos partidos com vista à formação de novo Governo não deviam ter lugar antes de os resultados eleitorais estarem inteiramente apurados, para o que ainda falta escrutinar os votos do exterior, os quais podem alterar os dados relativos ao território nacional, nomeadamente quanto ao número de deputados eleitos por cada partido.

Ora, havendo neste momento um empate entre o PSD e o PS, os resultados que faltam podem desfazer esse empate a favor de qualquer do dois principais partidos, sendo evidente que isso está longe de ser politicamente irrelevante (como mostrei AQUI).

2. Acresce que, desta vez MRS convocou também as coligações junto com os partidos políticos que concorreram isoladamente, ao contrário do que fez em 2019, como se pode ver na imagem abaixo, que me foi remetida por um leitor. Ora, não faz sentido convocar as coligações eleitorais, não somente por elas se extinguirem automaticamente com o apuramento dos resultados eleitorais, mas também por os mandatos parlamentares serem atribuídos aos partidos, e não às coligações.

Tendo em conta que estas audições têm a ver com as diligências preparatórias para a nomeação do novo Governo, que é matéria do foro dos partidos, e não das coligações, não se compreende a convocação das segundas.

3. Além disso, tendo covocado duas coligações, a AD e a CDU (apesar de os Verdes não terem elegido nenhum deputado), Belém "esqueceu-se" de uma 3ª coligação, a "Madeira Primeiro", constituída pelo PSD e pelo CDS naquele círculo eleitoral, que não pode ser integrada na AD, porque tem uma composição partidária diferente, pelo que os resultados daquela, em votos e em deputados eleitos, não podem ser imputados à AD (como os media estão a fazer indevidamente).

Não se percebe, portanto, o critério de seleção das coligações...

4. Ao contrário do que sucede nos sistemas presidencialistas e afins (como o francês), em que os presidentes da República são titulares ou cotitulares das funções executivas (governo) e, por isso, são eleitos numa base partidária, nenhuma dessas condições se verifica entre nós, onde o PR exerce uma função de supervisão do sistema político, como árbitro independente e imparcial.

Nessa condição, no exercício dos seus poderes, o Presidente não tem partido nem pode pode orientar-se por razões de preferência ou de animosidade partidária. Não pode, nem deve dar a impressão de que o faz...

Adenda
Embora continue a contabilizar os deputados pelas coligações, não os desagregando pelos partidos que as constituem, a página oficial da Comissão Nacional de Eleições sobre os resultados eleitorais distingue claramente, como tem de ser, a coligação PSD+CDS+PPM (AD), da coligação PSD+CDS (Madeira Primeiro), por se tratar de duas candidaturas diferentes (e, por isso, coloca o PS em 1º lugar, por ter mais votos e mais deputados do que a AD).

Adenda 2
Um leitor argumenta que, uma vez que «o PS já decidiu passar à oposição, sem esperar pelo apuramento final das eleições, não há razão para Marcelo [Rebelo de Sousa] não iniciar as audiências necessárias para a formação de novo Governo». Sim, não tenho dúvidas que o PS não quer formar Governo, mesmo que venha a ser o maior partido parlamentar, pelas razões que expus AQUI (posição reafirmada no jornal oficial do PS), mas isso não dispensa o PR de respeitar as regras aplicáveis, a saber: (i) a formação do Governo diz respeito aos partidos, não às coligações eleitorais, que se extinguem com as eleições; (ii) as audiências com os partidos devem iniciar-se somente depois de conhecido o novo quadro parlamentar, que depende do apuramento final das eleições. Não há nenhuma razão válida para não respeitar tais regras.

Adenda 3
Contestanto a tese de que o PR deve ser imparcial no exercício das suas funções, um leitor sustenta que «não há nenhuma lei que diga isso [e que] nada na lei proíbe o Presidente de fazer parte de um partido nem de favorecer um partido, de qualquer forma que lhe apraza, desde que no respeito da Constituição». Mas não tem razão. A neutralidade partidária do PR goza de um largo sufrágio entre os constitucionalistas, tendo em conta não somente a origem doutrinária do "poder moderador" do Presidente (que Constant designou justamente como "poder neutro"), mas sobretudo o seu estatuto constitucional: não ser candidato partidário, ser o representante da República (ou seja, de toda a coletividade, e não de uma parte dela), e estar fora da dialética Governo v. oposição. Os juízes também podem ter partido, e os árbitos deportivos podem ter o seu clube, mas no exercício das suaa funções têm de os colocar "entre parêntesis".

domingo, 28 de janeiro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (44): Um pouco mais de coerência, sff

1. Têm razão os que apontam a incoerência do PR, entre a solução dada à crise política aberta com a demissão do PM, em novembro passado, e a que agora se aventa para crise política decorrente da demissão do presidente do governo regional da Madeira. 

Enquanto no 1º caso, MRS se recusou de pronto a nomear um novo Governo do PS, como proposto por este, no quadro da maioria parlamentar existente, preferindo anunciar imediatamente a dissolução parlamentar e a convocação de eleições antecipadas e obrigando o Governo cessante a manter-se em funções de gestão, no caso da Madeira, porém, parece admitir a nomeação de novo Governo liderado pelo PSD regional sem novas eleições

Parece manifesta a disparidade de soluções.

2. Nem se invoque o facto, verdadeiro, de o parlamento regional não poder ser dissolvido antes de passados seis meses desde a sua eleição, que somente se completam em 24 de março, pelo que o governo regional demitido se teria de manter em funções de gestão até a nomeação de novo governo, de acordo com a composição do novo parlamento madeirense. 

Mas, se o PR não pode dissolver, nada o impede de anunciar o propósito de o fazer logo que possa, daqui a menos de dois meses. De facto, também no caso nacional, a AR só veio a ser efetivamente dissolvida em janeiro, dois meses depois do anúncio político antecipado da dissolução, em novembro, mantendo-se o Governo de A. Costa em funções durante mais tempo ainda, entre a demissão e a provável substituição.

Não se vê porque é que o que é válido em Lisboa deixa de servir no Funchal.

3. As consequências políticas desta disparidade são óbvias

Enquanto a nível nacional o PS teve de preparar-se à pressa para enfrentar eleições com que não contava e com o handicap político de um PM cessante sujeito a um inquérito penal (não se sabe ainda por que suspeita de crime...), na Madeira, se for chamado a formar novo governo, mesmo que a título transitório, o PSD poderá libertar-se rapidamente do fardo político de um presidente cessante arguido criminalmente (incluindo por crimes de corrupção), retomando o governo regional em plenitude de funções, sem o incómodo de ter de prestar contas em eleições, em relação ao Governo cessante. 

O que importa saber é porque é que uns partidos, após demissão de um Governo seu, têm o privilégio político de formar novo Governo sem ir a eleições, e outros não.

Adenda
Aproveitando a aparente "luz verde" presidencial, o PSD madeirense apressa-se a descartar o "ativo tóxico" (Albuquerque) e prepara sem demora a sua substituição, como se já tivesse sido convidado a formar novo Governo. Recorde-se que, em outubro, em Lisboa, o PSD foi pressuroso a exigir eleições antecipadas (e o PAN também). Agora, não lhes convém...

Adenda 2
Um leitor objeta que nas regiões autónomas quem tem competência para nomear os governos regionais é o respetivo Representante da República, e não o PR. Trata-se, porém, de um puro sofisma político: não cabe na cabeça de ninguém, que depois da demissão de um governo, o RR avance com o procedimento de formação de novo executivo, sem saber se o PR não opta pela dissolução parlamentar. Portanto, a "chave" da crise política madeirense está em Belém, e não no Palácio de São Lourenço, no Funchal.

Adenda 3 (29/1)
Não faz nenhum sentido a posição defendida no editorial de hoje do Público. Primeiro, como mostrei, não há nenhuma inconstitucionalidade em anunciar politicamente a dissolução do parlamento madeirense, para ser acionada daqui a dois meses; segundo, se optar por nomear novo governo regional agora, na base da mesma maioria parlamentar, o PR deixa de ter qualquer motivo para uma dissolução parlamentar posterior, enquanto ela se mantiver. O poder de dissolução parlamentar não pode ser arbitrário.

Adenda 4 
A habitual "ventríloqua" de Belém no Expresso «sabe [que] a saída para a crise política na Madeira passará pela convocação de eleições antecipadas, ainda que tenha de haver uma solução transitória pelo meio». Ora, excluída a abstrusa nomeação de um novo governo para dois meses, que nada justifica, a única solução transitória cabível é manter o atual governo em funções até depois das eleições.

Adenda 5
Um leitor observa, com razão, que o PR foi apanhado, sem contar, com a sua própria «malfeitoria contra o PS», ao recusar-se a nomear novo Governo nacional em outubro. Com efeito se tivesse optado pela continuidade governativa nessa altura, como era devido, não teria agora o problema que tem entre mãos. É o custo que a imprudência tem de pagar à coerência...

Adenda 6
Albuquerque adiou a escolha do sucessor, que estava prevista para hoje, mas não adiou a apresentação da sua demissão ao RR, que efetivou. Ora, nos termos do Estatuto Político-Administrativo, isso parece implicar a demissão imediata do Governo, sem sequer necessidade de aceitação - ao contrário do que se diz nesta notícia. Um "berbicacho" político e constitucional, aparentemente inadvertido (?!), que arrasta a caducidade da proposta de orçamento regional, pendente de aprovação. Resta a eventual possibilidade de uma interpretação (corretiva) do Estatuto regional "em conformidade com a Constituição"...

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (43): Pseudónimos de Belém

1. Não satisfeito com bater, de longe, todos os recordes de declarações públicas de todos os PR precedentes, Marcelo Rebelo de Sousa recorre ainda a outros canais menos ortodoxos de comunicação com o público, como é o caso de alguns jornalistas que se dispõem a funcionar como seus "ventríloquos", atribuindo as suas declarações - citadas entre aspas, para não deixar dúvidas -  a «fontes de Belém», à «Presidência», a «assessores» ou «conselheiros» anónimos ou, mesmo, aos «corredores» do Palácio! É caso para dizer: "rabo escondido com o gato de fora"...

Tal é o caso (não único, aliás), da jornalista Ângela (Rebelo de Sousa) Silva no Expresso, como se pode verificar nesta peça da edição do fim de semana passado do semanário (link reservado a assinantes).

Nenhum deles sai bem deste exercício: o Presidente, porque dá tratamento privilegiado aos jornalistas e aos jornais que se prestam a tal jogo e porque não assume a responsabilidade pessoal pelas opiniões veiculadas por tais pseudónimos; a jornalista, porque se deixa instrumentalizar como simples megafone de Belém e porque viola um dos mais importantes deveres deontológicos do jornalismo, que é a identificação das fontes de opiniões.

2. Acresce que, a coberto de tais pseudónimos, o Presidente permite-se produzir comentários políticos que dificilmente ele poderia fazer em nome próprio, como é o caso da peça citada, incluindo a denúncia de uma suposta «campanha do PS» contra ele, juízos sobre o Primeiro-Ministro ainda em funções ou sobre o novo líder do PS, ou opiniões sobre a estratégia eleitoral mais desejável para a oposição.

Ora, nada disso é compatível com o estatuto de neutralidade político-partidária que é inerente ao "poder moderador" que a Constituição lhe confere, não sendo por acaso que Constant, o inventor desse "quarto poder", há dois séculos, o designou justamente como poder neutro.

Se, entre nós, o PR não é eleito para governar ou cogovernar, nem para exercer tutela sobre o Governo, tampouco é eleito para se imiscuir no combate político-partidário, muito menos em período eleitoral, o que torna ilegítima qualquer tomada de partido por parte de Belém.

Adenda
Um leitor pergunta se era a estas situações que António Costa se queria referir, quando «mencionou os "heterónimos" de Marcelo [Rebelo de Sousa]» (link AQUI). Suponho que sim, mas julgo que essa noção pessoana não convém a esta situação, pois os heterónimos têm personalidade própria, independente do seu criador, enquanto aqui os tais jornalistas não passam de veículos, arautos, da "voz do dono".

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (42): Instrumentalização do poder de veto

1. Depois de ter suscitado a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei-quadro da reforma das ordens profissionais - que o Tribunal Constitucional, porém, veio convalidar, sem problemas -, o PR decidiu entrar agora numa verdadeira caça aos estatutos de cada uma das muitas ordens, vetando políticamente grande parte deles, incluindo os das mais importantes, como a dos advogados e a dos médicos.

Sucede que, tal como na contestação preventiva da constitucionalidade da lei-quadro, o PR fundamenta ostensivamente os sucessivos vetos com recurso às objeções das próprias ordens, cujos bastonários fez questão de ouvir antes de decidir (mas não ouvindo a Autoridade da Concorrência, principal inspiradora da reforma). 

Provavelmente, para além da banalização daquilo que deveria ser excecional (por efeito da separação de poderes), não há precedente entre nós de um caso de lobbying político tão bem-sucedido como este das corporações profissionais, em que o decisor político faz suas por inteiro as posições destas.

2. Ora,  depois de ter promulgado a lei-quadro - de que os estatutos de cada ordem são pouco mais do que uma concretização -, não se vê como é que o PR pode apostar convincentemente nos mesmos argumentos, ou afins.

De facto, os fundamentos mais relevantes dos vetos, ou põem em causa a própria razão-de-ser política, liberalizadora e pró-conconrrencial, da reforma (como é o caso das objeções relativas à duração dos estágios ou aos "atos exclusivos" de cada profissão) ou recuperam o argumento de um suposto direito à "autorregulação" das ordens, que o Tribunal Cosntitucional se encarregou de denegar.

Além de baseado em argumentos inconsistentes, o recurso maciço ao veto das leis da AR também é politicamente inconsequente, pois não pode duvidar-se de que a mesma maioria parlamentar que aprovou a referida legislação a vai confirmar de plano, sem qualquer reconsideração, antes da dissolução da AR, obrigando o PR a promulgá-la, assim  completando a reforma, quanto mais não seja porque sem ela ficaria em causa o desembolso do PRR da UE. 

Por isso, para além de uma enventual "vingança" da desfeita sofrida quanto à lei-quadro, a que justifica então este insólito massacre legislativo de Belém?

3. Inventariadas as possíveis explicações para este "frete" político às corporações profissionais, vejo três hipóteses, aliás cumulativas: (i) dar às ordens mais umas semanas de "justa luta" pública contra a revisão; (ii) reivindicar para o Presidente o prémio de melhor e mais persistente "amigo das ordens", na  luta destas pela defesa dos seus privilégios corporativos, postos em causa pela reforma; (iii) alimentar a esperança das ordens numa futura revisão/reversão da reforma, caso haja mudança de maioria parlamentar nas próximas eleições.

Resta saber se tais motivações bastam para justificar a abrangente ofensiva presidencial contra o poder legislativo da AR, numa imprescindível reforma estrutural do mercado de serviços profissionais entre nós (ainda que assaz moderada), ou se não estamos perante um caso qualificado de "desvio do poder" presidencial, instrumentalizando o poder de veto para fins alheios à sua justificação constitucional.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Causa Nossa, 20-anos-20 (II) - Top five

Ao longo destes 20 anos, o Causa Nossa teve mais de 5,3 milhões de visualizações, o que dá uma média diária de 730. 

E entre os numerosos posts publicados há muitos que alcançaram milhares de visualizações, à cabeça dos quais estão os cinco indicados no quadro acima, que constituem uma boa amostra da liberdade crítica e do estilo do Causa Nossa, e que podem ser relidos aqui: 

- Ai Portugal (13): O Ministério Público é intocável?

- Corporativismo (3): Ordem ou sindicato oficial?

- Populismo judicial

- O que o Presidente da República não deve fazer (13): Um veto problemático

- Geringonça (10): Uma história afeiçoada