quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Discordo (5): Devem os votos brancos e nulos contar?

(Foto: Visão)
1. Esta proposta de reconhecimento e valorização de "votos contra" em eleições uninominais (ou por lista) não faz nenhum sentido.
Nas eleições vota-se, ou não, nos candidatos em liça, não a favor ou contra eles, como sucede nos plebiscitos pessoais, próprios de regimes autoritários e/ou populistas. Mesmo nos referendos vota-se sim ou não a certa solução política ou legislativa colocada à decisão dos cidadãos; não se vota em pessoas, nem a favor ou contra elas. Importa manter clara esta distinção.
Nas eleições, os modos de exprimir discordância ou rejeição política de todos os candidatos são o voto branco e o voto nulo, mas estes não contam para a eleição, ou não, do(s) candidatos, salvo se houver uma norma eleitoral que exija o voto favorável de uma certa percentagem mínima de votantes (ou até de eleitores). Na falta de tal norma expressa, numa eleição uninominal é eleito o candidato com mais votos (maioria relativa), independentemente da percentagem em relação ao número de votantes.
Numa eleição com um só candidato, por não se terem apresentado outros, é juridicamente indiferente o número de votos expressos válidos e o número de votos brancos e/ou nulos. O elevado número de votos brancos ou nulos pode afetar a legitimidade e autoridade política do eleito, não o resultado nem a validade da sua eleição. Os votos brancos não apagam outros tantos votos expressos, nem os votos nulos anulam outros tantos votos válidos.

2. Pela mesma razão, também discordo absolutamente da ideia, por vezes apresentada de modo pouco avisado, de reconhecer valor eleitoral aos votos brancos / ou nulos nas eleições parlamentares, deixando por atribuir um número de mandatos proporcional à taxa desses votos.
A democracia representativa visa representar quem participa na escolha dos seus representantes, não quem se recusa a tê-los, que muitas vezes é um voto contra a própria democracia representativa. Os "brancosos" e "nulosos" não devem ter "representação" virtual no parlamento, através de cadeiras vazias, justamente porque se recusam a participar na escolha de representantes.
Numa democracia liberal, quem não está satisfeito com a oferta eleitoral que lhe é apresentada deve promover o seu alargamento, sendo embora evidente que não pode haver tantos partidos quantas as preferências individuais privativas de cada eleitor, como por vezes parece ser a exigência. Mesmo num sistema, como o nosso, em que só os partidos políticos podem apresentar candidaturas, a verdade é que é relativamente fácil criar um novo partido (como, aliás, teria de ser, sob pena de excessiva restrição democrática), como tem mostrado a nossa história constitucional e é confirmado pelo registo de partidos no Tribunal Constitucional (neste momento, existem 22!).

Adenda
Um eleitor pergunta quantas vezes recorri ao voto branco ou nulo. A reposta é nunca, e também nunca me abstive. Mas se me exigisse a concordância com todas as propostas dos partidos/candidatos em que votei, nunca teria deixado de votar em branco! Suponho que se passa com muitos outros cidadãos: só concordaremos em absoluto com o nosso próprio partido uninominal! Mas isso não há...

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Observatório do comércio internacional (6): Algo está a mudar em Brasília e em Buenos Aires

1. Os países do Mercosul, nomeadamente o Brasil e Argentina, são tradicionalmente caracterizados por uma reduzida abertura ao comércio com terceiros países.
Para além de uma elevada tarifa externa média, o Mercosul praticamente não tem acordos de liberalização comercial com outros países fora da sua área de influência, o que contrasta com outros países latino-americanos, designadamente os da orla do Pacífico, que concluíram acordos comerciais com as principais economias (UE, EUA, Japão, etc.), abrindo assim acesso preferencial aos grandes mercados mundiais.
Mas nos últimos tempos, depois das mudanças políticas em Buenos Aires e em Brasília, as coisas parecem estar em vias de uma substancial mudança de orientação também no respeitante à política comercial externa. Como aqui já se assinalou, as negociações do acordo comercial com a UE, que se arrastavam há 20 anos sem perspetiva de conclusão, sofreram um notável avanço, estando perto de ser bem-sucedidas. E agora tem-se notícia de inicio de negociações com outras economias avançadas, designadamente o Canadá!

2. Não se pode deixar de sublinhar a importância desta entrada do bloco sul-americano na senda da liberalização das trocas comerciais por via de acordos bilaterais, quer pelo significativo peso conjunto das suas economias (mesmo descontando a Venezuela, não abrangida nestes acordos), quer pelo facto de se tratar de um bloco até agora muito "virado para dentro", com reduzida participação na globalização económica e nas cadeias de produção globais.
A concretizarem-se estes acordos, o Mercosul aumentará rapidamente a sua participação no comércio internacional, que é inferior ao seu peso na economia global, tal como vai subir a importância do comércio externo no PIB dos países que o integram. Trata-se de uma mudança tanto mais de assinalar quanto mais ela vai ao arrepio da deriva protecionista que se desenrola nos Estados Unidos, sinalizando o seu isolamento. Enquanto Washington abandona o seu protagonismo no alargamento da ordem comercial liberal, Brasília e Buenos Aires propõem-se aderir.
Sejam bem-vindos!

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Um pouco mais de rigor sff (66): "Portinglês"


É evidente que nesta notícia do Público a referência a "taxas" está rotundamente errada, devendo ler-se "impostos", que é coisa bem diversa em português. É o que faz traduzir notícias apressadamente do inglês, sem ter em conta os "falsos amigos", como sucede tantas vezes em Portugal, mesmo por parte de pessoas com educação superior. O "portinglês" está cada vez mais difundido!
Pode argumentar-se que um jornalista não tem de saber tudo, o que é verdade. Mas neste caso o tema dos impostos europeus (e não das "taxas europeias") tem estado no debate público há algumas semanas, pelo que não se justifica o referido lapso jornalístico.
Lamentavelmente, deixou de haver revisores nos jornais e o trabalho editorial sobre os títulos também desapareceu. A edição online direta tem um preço alto em termos de rigor linguístico. Mas um jornal com as responsabilidade do Público não pode incorrer em lapsos destes com a frequência com isso ocorre nas suas páginas.

Geringonça (6): O "Governo do grande capital"

«Os desenvolvimentos entretanto verificados mostram que o PS e o seu Governo, no quadro da suas opções de classe ao serviço do grande capital, não perde oportunidade para convergir com o PSD e o CDS».
1. Esta passagem do editorial do último número do jornal oficial do PCP não deixa dúvidas de que na visão comunista o PS e o Governo representam o "inimigo de classe", uma das mais graves acusações políticas no jargão do PCP, condenação historicamente agravada pelo facto de o PS ousar reclamar-se da esquerda, da qual o PCP se arroga o monopólio ideológico.
É certo que o PCP sempre fez este juízo do PS, muitas vezes erigido em "inimigo principal", tendo sempre guerreado afincadamente todos os governos socialistas, sendo igualmente certo que o PS sempre considerou o PCP como expressão de uma esquerda antidemocrática. Só que desta vez, prodigiosamente, o atual Governo do PS só existe porque teve o apoio do PCP na sua formação, como o tem tido na sua sustentação. Como conciliar a histórica inimizade recíproca com a circunstância da atual aliança política de conveniência?

2. As questões que esta insólita (e anteriormente impensável) situação suscita são, essencialmente, duas: (i) saber até onde pode ir o cinismo político do PCP na sustentação política de um Governo que tanto despreza, bem como o do PS, ao fazer de conta que se trata de uma "solução natural" (se não mesmo "ideal") de governo; (ii) saber se, com esta reiterada marcação de fronteiras por parte do PCP, é possível equacionar a repetição da atual parceria partidária na próxima legislatura, fora das condições que ditaram a "Geringonça", como faz menção de querer o PS.
Seja como for, sabendo o preço político a pagar por uma crise de governo, ambos os lados lado estão condenados a engolir com boa cara a sua dose de "sapos políticos" até ao fim da legislatura. O bom momento da economia e as boas perspetivas eleitorais para 2019 ajudam a manter o atual arranjo político, por mais artificial e menos consensual que ele se apresente com o decorrer do tempo, à medida que os seus objetivos iniciais se vão esgotando.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Ai a dívida (15): Acrescentar dívida à dívida

1. É óbvio que, apesar do título enganador desta notícia, a dívida pública não "afundou" em 2017, antes aumentou em cerca de 1700 milhões de euros.
E mesmo considerando a sua percentagem no PIB, que é o que a notícia quer referir, o resultado não é de molde a festejar. De facto, a nova percentagem de 126,2%, embora melhor do que a modesta meta inicialmente estabelecida no orçamento de 2017 - que em devido tempo qualifiquei como pouco ambiciosa -, não se pode considerar um êxito, visto que aquela meta foi estabelecida para uma previsão de crescimento do PIB bem inferior ao que se veio a verificar (2,7%), o que quer dizer que este maior crescimento não se refletiu inteiramente, como seria de esperar, numa melhoria correspondente do rácio da dívida, tendo sido aproveitado, ao invés, para aumentar o endividamento inicialmente previsto!

2. Estando a economia num pico de crescimento sem paralelo há muitos anos - o que se traduz em substancial aumento da receita pública e em redução da despesa pública com encargos sociais (subsídio de desemprego e outros) -, não se compreende que se mantenha um significativo défice orçamental, que implica um aumento continuado do já elevadíssimo stock da dívida pública.
A meta deveria ser, pelo menos, congelar o atual montante da dívida, em vez de acrescentar mais dívida à montanha da dívida. Se com a economia a crescer 2,7% não conseguimos uma situação orçamental equilibrada (e um "défice estrutural" compatível com as regras da UE) e de nulo endividamento adicional, quando é que vamos consegui-lo?

3. Sendo de admitir que o ritmo do crescimento económico pode vir a abrandar já no corrente ano, como indicam todas as estimativas, e que a taxa de juro pode vir a aumentar dentro em breve, como preveem todos os observadores, Portugal continua sem se preparar adequadamente para enfrentar sem receios condições económicas e financeiras menos bonançosas do que as atuais.
A atual conjunção astral favorável - robusta retoma económica da zona euro e da economia global, pródiga política monetária do BCE, etc. - não vai durar indefinidamente. É quando faz sol que se reparam os telhados. E os nossos telhados financeiros continuam longe de estar à prova de novas tempestades...

Adenda
Como mostra este artigo, a redução do peso da dívida pública no PIB, que se iniciou apenas em 2015, para recair no ano seguinte e retomar em 2017, foi mais tardia e menos intensa do que a redução da dívida privada (dos particulares e das empresas), que começou ainda em 2013, ano de início da retoma económica, e que tem decaído a bom ritmo, embora com alguma travagem no ano passado. Este défice de redução do peso da dívida pública tem, portanto, impedido uma mais rápida "desalavancagem" do conjunto da economia, o que se impunha, tendo em conta o elevado crescimento económico que se verifica.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Direi mesmo mais: Municipalização da saúde e da educação

1. Segundo esta notícia, os municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto querem compartilhar da gestão dos centros de saúde e prolongar o seu horário de abertura.
Vou mais longe: defendo há muito que os centros de saúde deveriam ser integralmente transferidos para responsabilidade municipal, ou intermunicipal, e não apenas a gestão dos edifícios, como agora se propõe no processo de descentralização administrativa apresentado pelo Governo. O mesmo tenho proposto também quanto ao ensino básico, ficando o Estado somente com o ensino secundário e o ensino superior. Não vejo porque é que, ao abrigo do princípio constitucional da subsidiariedade, tais serviços continuam a cargo do Estado.

2. Infelizmente, nesta matéria, como noutras, os governos estão reféns da oposição dos sindicatos dos respetivos setores, que perderiam a sua capacidade de paralisar os sistemas públicos de saúde e de ensino com greves nacionais contra o Estado; e, além disso, o atual Governo está refém da oposição dos partidos da extrema-esquerda parlamentar, que se opõem a tal descentralização, pelo mesmo motivo.
"Externalidades" políticas da Geringonça!...

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Lisbon first (6): O caso de Coimbra

1. Para avaliar os privilégios de Lisboa em matéria de investimento público, onde ele nunca falta, mesmo quando não se devia tratar de responsabilidade do Estado (ver post precedente), basta referir o caso de Coimbra, onde investimentos prioritários esperam anos e anos sem execução, como é o caso das obras de recuperação da Escola Secundária José Falcão (na imagem), uma das principais da cidade, há anos em acentuada degradação.
Mas a este exemplo do "esquecimento" central podem acrescentar-se muitos outros, por vezes com atraso de décadas, como por exemplo:
- a construção de uma verdadeira estação ferroviária, substituindo o desconfortável "apeadeiro" existente;
- o "sistema de mobilidade do Mondego", em substituição da antiga linha férrea do ramal da Lousã, que foi desativada em troca de um prometido "metropolitano de superfície", nunca posto em obra, muitos anos e muitos projetos depois;
- a construção de um novo tribunal, há muito projetado, acabando com a dispersão dos vários tribunais por diferentes instalações da cidade;
- a solução da ligação em autoestrada entre Coimbra e Viseu, atualmente ligadas pelo acanhado e fatídico IP3, apesar das diferentes soluções já aventadas;
- a conclusão do acesso à cidade da A13 (autoestrada Tomar-Coimbra), abruptamente interrompida a  alguns quilómetro da cidade.
Coimbra conta-se seguramente entre as principais vítimas da persistente "austeridade orçamental" quanto a investimento público, longe de recuperar os níveis de antes da crise, apesar do nutrido aumento de receitas públicas geradas pela retoma económica.

2. A preferência dos investimentos públicos por Lisboa não tem a ver somente com o seu maior peso político, com o facto de quase todos os decisores políticos lá viverem e com a visibilidade que os problemas da capital têm nos média nacionais, para quem qualquer problema local de Lisboa assume foros de questão nacional, enquanto qualquer caso da "província" constitui sempre uma questão local, indigna de ser mencionada, por mais interesse nacional que assuma (imagine-se só que a escola José Falcão de situava em Lisboa...).
Penso que para essa desconsideração do resto do Pais em matéria de investimento público conta também a inércia e a falta de capacidade e de vontade reivindicativa das suas instituições do poder local, bem como dos deputados e dirigentes locais dos partidos do poder, que raramente fazem ouvir os interesses das suas regiões nas sedes do poder, porventura inibidos pela fácil acusação de darem expressão a "interesses localistas".
O Porto e as regiões autónomas há muito mostraram, porém, que quem não reivindica de forma audível tende a ser esquecido nas prioridades orçamentais. Lisbon first!...
[revisto]

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Voltar ao mesmo (16): O crédito hipotecário

1. Um dos fatores que mais contribuíram para a grande penosidade social da crise de 2011 foi o sobre-endividamento dos particulares, sobretudo com o crédito à habitação, que o laxismo do Governos e do Banco de Portugal tinha deixado disparar.
O resultado da crise (subida dos juros, redução de rendimentos ou desemprego de muitos devedores) foi a perda de muitas casas por execução da hipoteca, sem que em muitos casos os bancos recuperassem todo o dinheiro emprestado, por efeito da desvalorização do imobiliário durante a crise. Todos perderam.
Todavia, como mostra o quadro acima (colhido aqui), o crédito à habitação, que sofreu uma drástica redução no auge das recessão, começou a recuperar logo em 2014, com o início da retoma económica, e tem acelerado desde então, por efeito dos juros extremamente baixos, tendo atingido no ano passado o máximo desde 2011, nas vésperas da crise, apesar de o PIB ainda não ter recuperado o nível de antes da crise.

2. Face ao nível extremamente baixo de poupança interna, este disparo do crédito hipotecário não pode deixar de ser preocupante, sobretudo tendo em conta que a taxa de juro há de voltar a aumentar algures num futuro próximo, sobrecarregando os orçamentos familiares dos endividados.
São por isso de aplaudir as orientações agora estabelecidas pelo Banco de Portugal para morigerar a concessão de crédito à habitação pelos bancos. O que se pode questionar é saber se não se trata de medidas demasiado tímidas, desde logo por não serem vinculativas e algumas não serem aplicáveis imediatamente (como o limite de 30 anos à longevidade dos empréstimos).
Claramente, no seu papel de regulador prudencial , o BdP só teve em conta o risco para a estabilidade do sistema bancário, tendo de tomar em consideração a decisiva importância do crédito à habitação para a recuperação da rentabilidade dos bancos.
Pela mesma razão, o tema do excesso de endividamento dos particulares tem estado também fora da agenda governamental, desde logo para não estragar a narrativa do "virar de página da austeridade". Mas, como ensinam os economistas, é quando a economia aquece e o crédito dispara que importa tomar medidas de contenção do endividamento.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Lisbon first (5): Metropolitano de Lisboa contra a ferrovia nacional

Sem surpresa, dados os antecedentes, enquanto não falta dinheiro para o metropolitano de Lisboa (e o mesmo se diga do do Porto) - que nem sequer deveria ser uma responsabilidade do Estado, mais sim dos municípios interessados, sendo um serviço de transporte urbano -, fica-se a saber que do plano ferroviário nacional só está em execução 15% do plano que devia estar em obra.
É certo que, apesar do crescimento exponencial das receitas fiscais e outras (mercê da robusta retoma económica), o orçamento do investimento público tem sido substancialmente sacrificado, em homenagem ao aumento da despesa com salários e  pensões do setor público. Mas, então, isso constitui mais uma razão para dar prioridade às obras de infraestruturas de interesse nacional, como a ferrovia, que são responsabilidade primeira do Estado e que têm a ver com as ligações internacionais do País (valorização das linhas do Minho, da Beira Alta e da Beira Baixa e a nova linha Évora-Caia) e não de obras que deviam ser da responsabilidade municipal, de interesse local.
Como tenho defendido várias vezes, não existe nenhuma razão para que os contribuintes do resto do país sustentem com os seus impostos os transportes urbanos de Lisboa e do Porto, para mais sacrificando obras de interesse nacional!

Adenda
Mais investimento estatal na expansão do metro de Lisboa e do Porto. Prodigalidade eleitoral.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

+ Europa (8): Não há omeletes sem ovos

1. Parece que agora se tornou natural, em Bruxelas e entre nós, defender sem pruridos a criação de impostos da União Europeia, e o Primeiro-Ministro fez bem em manifestar o apoio de Portugal a essa via de reforço da sustentabilidade orçamental da União, secundando a posição da Comissão Europeia nesta matéria em relação ao próximo Quadro Financeiro Multianual para 2020-2027.
Não era assim em 1999, quando Mário Soares ousou propor isso, nem sequer em 2009, quando eu próprio me atrevi a defender o mesmo, na minha candidatura ao Parlamento Europeu desse ano. Pouco faltou para ser politicamente crucificado pela imprensa e pelos meus concorrentes (e com o próprio PS a demarcar-se da ideia!).
Como era de esperar, antes e agora, essa iniciativa defronta a oposição das forças antieuropeístas, à esquerda e à direita, em nome da "soberania fiscal" dos Estados, como se a União não fosse no seu cerne um exercício de partilha e de cedência comum de soberania (legislação, poder judicial, política monetária e cambial, política comercial comum, etc. etc.). O que não explicam é a quadratura do círculo de quererem mais dinheiro e mais ação da União sem lhe proporcionarem mais receita, pelo menos para compensar a que é perdida com a saída do Reino Unido.

2. Nas atuais circunstâncias, a criação de recursos fiscais próprios da União, constitui o único meio de responder à perda da importante contribuição britânica e ao aumento das tarefas da União (imigração, defesa, investigação e inovação, etc.), sem ter de cortar excessivamente nos programas tradicionais e sem ter de aumentar as contribuições financeiras diretas dos Estados-membros, o que é tabu para alguns deles (e que inviabiliza essa solução).
Ao contrário destas, as receitas fiscais próprias não constituem despesa orçamental dos Estados-membros (por isso, não contam para o seu próprio saldo orçamental) e diluem a lógica perversa da distinção entre países "contribuintes líquidos" e países "beneficiários líquidos" do orçamento da União.

3. Penso, porém, que em caso de não haver reforço das receitas próprias da União nem das contribuições financeiras dos Estados-Membros, as poupanças a efetuar nos programas tradicionais não podem deixar de atingir em primeira linha a Política Agrícola Comum.
Primeiro, não se justifica que a União continue a gastar mais de um terço do seu orçamento num só dos seus programas, que aliás beneficia uma pequena parte dos agricultores europeus, já de si uma pequena minoria. Em segundo lugar, não faz muito sentido continuar a subsidiar maciçamente a agricultura europeia, quando os consumidores podem ter acesso a produtos agrícolas mais baratos provindos de terceiros países, nomeadamente o Brasil e os Estados Unidos, se for reduzida a elvada proteção pautal dessas importações (obtendo em troca um acesso preferencial ao mercado desses países para outros produtos e serviços europeus).
Os europeus pagam duas vezes o protecionismo agrícola da União: primeiro, sustentam o enorme envelope orçamental dos subsídios; depois, pagam preços mais caros pelos mesmos produtos, por causa da proteção aduaneira.
É tempo de de acabar com este contrassenso!

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Voltar ao mesmo (15): Reversão permanente

1. Não contentes com a reversão das medidas de austeridade orçamental - que, aliás, só foi possível porque esta foi bem-sucedida e cumpriu os seus objetivos no plano orçamental e económico! -, os partidos "juniores" da Geringonça reclamam agora a reversão de duas das mais importantes reformas do programa de assistência financeira externa, nomeadamente a reforma da lei do arrendamento e a da lei laboral.
É de esperar que o Governo resista desta vez a tais pretensões. Primeiro, porque essas reformas tiveram o apoio do PS na negociação do acordo de assistência em 2011; segundo, porque tal reversão não consta do programa eleitoral do PS nem do programa do Governo em 2015; terceiro, porque essas reformas contribuíram decisivamente para êxito do programa de assistência externa, nomeadamente quanto à retoma económica e do emprego e quanto ao dinamismo do mercado habitacional e da reabilitação urbana em curso.

2. Que a Geringonça justifique a não adoção de novas reformas no campo das políticas económica e social, por causa do veto dos parceiros da protocoligação governamental, pode compreender-se: não há apoios políticos grátis.
Mas que ela justifique a reversão de reformas que estão na base da recuperação da economia e do emprego - que, importa lembrar, começou ainda em 2013, bem antes da reversão da austeridade orçamental - seria um insensato contrassenso político.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Ai, o défice ! (3)

1. Pelo segundo ano consecutivo, verificou-se em 2017 um aumento do défice da balança comercial de mercadorias, com as exportações a ficarem bem abaixo das importações, sendo o maior défice desde 2011 (como mostra a tabela do INE acima). Para isso terá contribuído, apesar de um assinalável incremento das exportações, um ainda maior crescimento das importações, mercê do aumento do investimento (importação de matérias primas e de equipamentos) e do consumo interno, alimentado pelo aumento do poder de compra e do crédito ao consumo.
Só o confortável excedente no comércio externo de serviços (cortesia da vaga turística) permite manter um saldo positivo da balança comercial geral, mesmo assim provavelmente inferior ao do ano anterior (como aqui se antecipou há meses).

2. A manter-se esta tendência, o País pode vir a experimentar de novo um défice comercial geral dentro de algum tempo, situação de que somente saiu há poucos anos, durante o período de assistência financeira externa, em grande parte devido à forte contração da procura interna (e consequentemente das importações), por causa da crise económica e da situação de austeridade orçamental.
Caso se confirme essa involução, tal mostra que o problema da competitividade externa da economia portuguesa continua por resolver de forma sustentável.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Ainda bem! (2)

1. O Parlamento Europeu voltou a defender a apresentação de candidatos a presidente da Comissão Europeia nas eleições europeias (conhecidos pelo termo alemão "Spitzenkandidaten"), abrindo caminho à designação para essa posição do candidato do partido vencedor nas eleições.
Defendo essa ideia desde 2009, e apoiei-a no Parlamento Europeu, tendo ela sido posta em prática pela primeira vez nas eleições de 2014, que levaram à designação de Juncquer como presidente da atual Comissão, por ter sido o candidato do PPE, o partido mais votado nessas eleições. Isso mudou decididamente o modo de seleção do presidente da Comissão, até aí efetuada pelos chefes de governo dos Estados-membros em negociação de bastidores, por vezes ao arrepio dos próprios resultados eleitorais.

2. Ao contrário da lista transnacional, agora justamente rejeitada, a apresentação prévia de candidatos a presidente da Comissão pelos partidos europeus constitui uma real mais-valia para a democracia na UE, valorizando o voto dos cidadãos europeus e as próprias eleições europeias, dando visibilidade aos partidos políticos paneuropeus e combatendo a tradicional "nacionalização" das eleições e, por último (mas não menos importante), conferindo mais legitimidade e autoridade ao chefe de executivo da União.
É lícito esperar que a repetição, nas eleições do ano que vem, da bem-sucedida experiência de 2014 vai consolidar definitivamente essa inovativa prática constitucional, a caminho de uma genuína democracia parlamentar na UE.

Ainda bem!

O Parlamento Europeu rejeitou a proposta de criar um círculo eleitoral transnacional nas eleições europeias.
Pelas razões aqui expostas contra essa proposta, ainda bem! Prevaleceram os príncipios e o bom-senso político.

Observatório do comércio internacional (4): A imparável ascensão comercial da China

«Em 2014, as exportações de mercadorias da UE representaram 15,0 % do total mundial. Pela primeira vez desde a criação da UE, as exportações europeias foram ultrapassadas pelas da China (15,5 %), mas mantiveram-se à frente das dos Estados Unidos (12,2 %), cuja parte das importações mundiais (15,9 %) excedeu quer a da UE (14,8 %) quer a da China (12,9 %).»
1. Apesar de se manter como a maior economia mundial, a UE passou a ser apenas a segunda potência comercial no que respeita ao comércio mundial de mercadorias, tanto nas exportações, agora lideradas pela China, como nas importações, com os Estados Unidos à cabeça (tabela A7 abaixo, segundo a OMC). Todavia, a União mantém uma folgada liderança mundial no comércio de serviços, como mostra a tabela A9 abaixo, o que continua a assegurar-lhe a liderança nas exportações em geral (mercadorias + serviços).


Esta ultrapassagem da UE no comércio de mercadorias é justificada pelo maior dinamismo do crescimento económico da China e dos Estados Unidos, sendo o primeiro voltado especialmente para as exportações, enquanto o aumento da procura nos Estados Unidos faz crescer as importações e agravar o enorme défice comercial do País, que a deriva protecionista de Trump ainda não conseguiu inverter.

2. A elevação da China como principal potência exportadora mundial de mercadorias (e já em 3º lugar no comércio de serviços), apenas quinze anos depois do seu acesso à OMC, testemunha sem margem para dúvida a sua imparável ascensão económica.
Se, em termos económicos, o séc. XIX foi o século britânico e o séc. XX o século norte-americano, o séc. XXI está em vias de ser o século chinês. Não admira por isso que Pequim se tenha tornado um campeão do comércio livre, enquanto Washington recua para posições protecionistas. Trata-se de uma dramática transformação geo-económica.
Como é bom de ver, o Brexit vai acentuar a perda de liderança da UE no comércio internacional em favor da China, dado o importante peso britânico no atual comércio externo da União.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Gostaria de ter escrito isto (20): A contaminação populista

«Populists do not need to win elections to enact their policies and spread their style of politics. They can do so through the very mainstream parties whose votes they threaten to take; infecting them and living off their political blood. “Eventually,” warns Mr Bale, “the parasite may end up consuming the host.”».
(Do The Economist, desta semana


Quando a fortuna sorri a todos, de pouco vale reinvidicar louros próprios

1. Nos últimos meses todos os governos dos países da UE festejam e atribuem a mérito próprio o robusto crescimento económico, acompanhado de quebra do desemprego, do aumento do rendimento disponível e do consumo e do investimento, da subida das bolsas, etc. Os tempos da recessão e da contenção orçamental estão para trás, quase uma década depois. A economia europeia cresce ao ritmo mais elevado desde a crise (até a Grécia e a Itália alinham...). O mesmo sucede um pouco por todo o mundo, aliás.
Ora, sendo comum a todos os países, o bom estado da economia em cada um deles não pode obvimente ser devido primordialmente a nenhuma política económia nacional em particular, tanto mais que na UE há governos de várias orientações políticas (conservadores, centro-direita, liberais, social-democratas e mais à esquerda) com desempenhos semelhantes. De resto, com a crescente integração económica europeia e a cada vez maior abertura económica de todos os países ao exterior, as políticas económicas nacionais contam cada vez menos. O mérito tem de ser creditado sobretudo às instituições europeias, e sobretudo ao BCE, pela sua determinação na defesa da moeda comum e numa política monetária ultra-expansionista, que reduziu substancialmente os custos da financimento público, das empresas e dos consumidores.

2. Por conseguinte, os referidos resultados económicos em cada país seriam conseguidos, sem grandes variações, com qualquer outro governo. Sorte de quem está no poder para beneficiar da boa onda...
A única distinção importante, e não despicienda, é quiçá o que cada país faz com a prosperidade que a retoma económica europeia e mundial trouxe. Há quem mantenha a cabeça fria e tome precauções para o futuro, sabendo que os períodos de crescimento não duram sempre, e há quem entre em euforia autocongratulatória e volte às velhas pechas do "chapa ganha, chapa gasta", confiando levianamente em que desta vez a bem-aventurança económica e financeira veio para ficar indefinidamente.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Discordo (4) - Contra a reabertura do mapa das freguesias

A extemporânea reabertura do processo de reordenamento territorial das freguesias, efetuado pelo Governo do PSD/CDS em execução de uma imposição do programa de assistência financeira (que, aliás, se referia às autarquias em geral e não somente às freguesias....), só pode resultar na pressão de toda a gente, incluindo dentro do PS, para a reversão integral da reforma e a reconstituição de todas as freguesias extintas, o que é um grave erro. Vai sobrar a algazarra populista à custa da racionalidade técnica, financeira... e política.
Quando uma das propostas de descentralização territorial é o reforço das competências das freguesias, não se compreende a reconstituição de freguesias sem população suficiente e sem a massa crítica necessária para cumprir essas competências. Face ao despovoamento de grandes áreas do país - quer do país rural, quer dos centros da cidades -, não faz sentido voltar à fragmentação das freguesias. Em vez de reverter a reforma efetuada - quando ela funciona sem grandes problemas, como mostraram as eleições autárquicas -, melhor seria apostar na desconcentração dos serviços das freguesias, de modo a cobrir adequadamente todo o seu território. 
É ilusório pensar que há soluções ótimas para as questões de ordenamento territorial das autarquias locais. Nesta questão da geografia das freguesias era importante seguir a prudência observada na pequena emenda da reordenação judicial. Mas dificilmente a demagogia política vai permitir tal contenção.

Irreversível o declínio da social-democracia?


1. Os números do quadro acima - retirado daqui - não enganam: é evidente o declínio eleitoral dos partidos social-democratas europeus nas últimas duas décadas, traduzido em pesadas perdas nas eleições parlamentares desde 2000 em muitos países, algumas delas devastadoras (Grécia, França), com apenas duas exceções (Bulgária  e Noruega). E em vários países do Leste europeu, a social-democracia praticamente não existe
Perdendo apoio eleitoral e representação parlamentar a social-democracia perde naturalmente poder governamental. Há vinte anos, os governos socialistas detinham a maioria no Conselho da União Europeia; hoje estão em reduzida  minoria. As próximas eleições italianas podem trazer mais uma perda.
As perdas eleitorais dos partidos social-democratas têm beneficiado não somente os partidos à sua esquerda mas também os partidos populistas, incluindo a direita nacionalista.

2. Entre as razões geralmente apontadas - na já vasta literatura sobre o declínio da social-democracia - contam-se a recomposição económica social no países europeus, com redução acentuada do trabalho manual e da filiação sindical, base social tradicional dos principais partidos social-democratas, e a incapacidade da social-democracia tradicional para captar o apoio das novas classes médias (profissionais liberais, quadros médios e técnicos, etc.).
Há talvez outro fator não menos importante. A social-democracia cresceu politicamente na fase da luta pela edificação do Estado social na Europa (direitos dos trabalhadores e direitos sociais gerais, nomeadamente o direito à saúde, à educação, e a segurança e proteção social), de que foi protagonista. Hoje o Estado social está na defensiva, sob o desafio da sua sustentabilidade financeira. Por isso, os partidos social-democratas, quando no Governo, são levados a restringir os níveis de satisfação dos direitos sociais, contrariando a sua herança política e ideológica, o que provoca o afastamento do seu eleitorado tradicional, cativado pelo ativismo protestatário das esquerdas alternativas ou pelas ilusões salvíficas das forças populistas.
Não admira que algumas da maiores perdas foram registadas pelos partidos social-democratas que tiveram de gerir programas de austeridade ou de contenção financeira a seguir à crise da dívida pública de 2009 (Grécia, Espanha, Irlanda), como aqui se assinalou, ou que levaram a cabo reformas a favor da flexibilidade laboral e da competitividade económica (caso da Alemanha).

3. Vítima da recomposição social e da crise do Estado social, a social-democracia tarda em adaptar o seu discurso e prática política a um nova configuração social (pluriclassismo e mobilidade social) e a novas agendas políticas socialmente transversais, onde sofre a competição de outras forças políticas (ambiente e mudanças climáticas, segurança alimentar, igualdade de género, mobilidade e qualidade de vida urbana, imigração e multiculturalismo, globalização e sua regulação, etc.).
Vivemos durante muitas décadas no pressuposto de que a social-democracia era a alternativa de governo natural à direita. Hoje, porém, em muitos países, a social-democracia está inexoravelmente afastada da luta pelo poder e da governação. Ponto é saber se esse declínio é reversível...

Adenda
A posição do PS português é relativamente singular. Embora também tenha reduzido o seu score eleitoral no período assinalado, o PS foi poupado à ordália política de ter de gerir o programa de assistência financeira externa que o seu próprio Governo negociou em 2011 (cortesia da coligação entre a direita e a extrema-esquerda que o afastou do poder pouco antes...), tendo depois voltado ao governo em 2015 já com o programa de austeridade orçamental concluído e com a retoma económica iniciada e o desemprego a diminuir, apoiada no dinamismo da economia da União e em especial dos nosso principais parceiros comerciais. Eis uma conjunção astral favorável de que nenhum outro partido da família socialista beneficiou.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Observatório do comércio internacional (3): Protecionismo à moda da Trump

1. Em vias de se transformar no campeão do protecionismo comercial entre as economias desenvolvidas, Trump anunciou "medidas de salvaguarda comercial" contra a importação de painéis solares e de máquinas de lavar roupa, o que vai prejudicar sobretudo as exportações chinesas e coreanas, respetivamente, mas atinge também todos os demais países exportadores desses produtos, que ficam sujeitos a uma tarifa suplementar na sua importação para os Estados Unidos.
Embora esta medida de proteção de emergência das indústrias nacionais esteja prevista nas regras da OMC, a verdade é que a sua aplicação está sujeita a requisitos muito exigentes, o que as torna excecionais.

2. Com esta iniciativa, os Estados Unidos passam a ser a único país desenvolvido a pôr em vigor "medidas de salvaguarda". De facto, dos 18 países que as têm em vigor (apenas 10% dos membros da OMC), nenhum integra o grupo das economias desenvolvidas, como mostra o quadro abaixo (retirado daqui). Agora passam a ter a surpreendente companhia da segunda maior economia mundial, até há pouco líder do comércio livre.
Como era de esperar, esta iniciativa protecionista suscitou uma ampla crítica, mesmo nos Estados Unidos.  E a Coreia já anunciou que vai contestar essa medida na OMC, não devendo ficar sozinha. Mais um argumento para a guerra de Trump contra a OMC!

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Para ficar na gaveta

1. Tem-se aqui notícia de mais uma proposta de reforma do sistema eleitoral, apresentada pela Associação para uma Democracia de Qualidade, dinamizada pelo antigo deputado e presidente do CDS, Ribeiro e Castro.
Embora não sejam conhecidos os pormenores, visto que a proposta não se encontra disponível online, a informação vinda a público deixa entender que se trata de uma adaptação do sistema eleitoral alemão, sendo uma nova versão da proposta apresentada à AR em 1998, por iniciativa do Governo Socialista, integrando dentro do sistema proporcional a eleição de cerca de metade dos deputados em círculos uninominais, que depois são imputados à quota que cabe ao respetivo partido na repartição proporcional dos mandatos nos círculos plurinominais.

2. O sistema alemão constitui uma das alternativas destinadas a estabelecer a chamada personalização do voto em sistemas proporcionais, dando aos eleitores a possibilidade de votarem em candidatos e não somente em partidos.
As dificuldades da importação de tal sistema entre nós consistem na tarefa de desenhar círculos uninominais de dimensão populacional aproximada - que correm o risco de ser assaz artificiais, sem identidade territorial própria - e a impossibilidade de solução para o eventual caso de um partido conseguir eleger um candidato num dos círculos uninominais mas depois não ter votos suficientes para conseguir o respetivo mandato nem no circulo territorial plurinominal correspondente nem no circulo nacional de compensação.

3. Seja como for, a perspetiva de sucesso de tal iniciativa é pouco ou nada favorável, visto que os dois principais partidos cujo voto é necessário para aprovar reformas eleitorais, o PS e o PSD, não compartilham o mesmo ponto de vista sobre a solução adotar (o PSD prefere agora o "voto preferencial" dentro das listas plurinominais, à maneira belga, por exemplo).
Além disso, enquanto houver governos de coligação ou acordos de governo à direita ou à esquerda, é impossível qualquer reforma eleitoral como a agora reequacionada, visto que os partidos mais pequenos temem que os círculos uninominais sejam (quase) todos ganhos pelos dois grandes partidos (o que é provável) e que o voto dos eleitores nessa eleição contamine o seu voto nas listas plurinominais, que atribuem os mandatos, favorecendo os mesmos partidos (o que é menos provável).
Enquanto forem necessários para formar ou apoiar soluções de governo, os pequenos partidos têm poder de veto nessa matéria, impossibilitando qualquer entendimento entre os dois grandes partidos, pelo que a reforma eleitoral vai continuar fora da agenda política, como tem estado nos últimos 20 anos.

Adenda
J. Ribeiro e Castro enviou-me um email, que agradeço, a indicar que a proposta se encontra disponível online, aqui:
https://drive.google.com/file/d/1ZrQUKDgFJYmt58YVFqu5WFAdOXQXhOiN/view

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Pobre Língua (12)

«Sérgio Sousa Pinto falou em "vestais" e não em "vegetais", como inicialmente foi entendido pela comunicação social dada a semelhança na fonética da palavra. Pelo erro, pedimos desculpa.»
Ora, a confusão de "vestais" com "vegetais" só é possível no pronúncia de Lisboa, o que revela que a versão lisboeta da Língua, cada vez mais dominante no País, mesmo na fala de pessoas cultas, por efeito da televisão e da rádio, está a estropiar a norma fonética erudita tradicional.

"Business and human rights" (1)

1. Desde há muito que a União Europeia condiciona as vantagens comerciais que concede a outros países (nomeadamente a entrada das suas exportações sem tarifas ou com tarifas reduzidas no enorme mercado da União) ao reconhecimento e efetivação dos chamados "core labour standards" da OIT por parte dos países beneficiários, nomeadamente proibição de trabalho forçado e infantil, liberdade sindical e contratação coletiva e não discriminação no trabalho e no emprego.
Sucede, porém, que, ao contrário dos Estados Unidos, a União não estabelece sanções para o incumprimento dessa obrigação nos seus acordos comerciais, pelo que a chamada "cláusula laboral" fica "sem dentes".
Critiquei fundadamente esta posição de fraqueza da União no meu livro Trabalho Digno para Todos: A Cláusula Laboral no Comércio Externo da União Europeia (2014) e propus a revisão desta posição. Mas até agora a Comissão Europeia - a quem compete negociar os acordos comerciais da União - não avançou com essa necessária revisão.

2. O problema volta a ser suscitado agora com o acordo comercial com o Vietname, dada a desproteção dos direitos laborais mais elementares nesse país (supostamente comunista), que se tornou um forte exportador não somente de têxteis mas também de dispositivos electrónicos, incluindo smartphones, em grande parte à custa desse baixo nível de proteção dos direitos laborais.
Na falta de uma cláusula laboral dotada de sanções no tratado já concluído, a posição do Parlamento Europeu - a quem cabe aprovar o acordo -, deve ser, como defendi no referido livro, a de recusar essa aprovação enquanto o país em causa não tomar medidas corretivas. Tal é também a posição do presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu (o social-democrata Bernd Lange, meu sucessor nesse cargo), que é a de reter a aprovação do acordo enquanto o Vietname não proceder à revisão do Código Laboral.
A União não pode continuar a conceder acesso privilegiado ao mercado europeu a produtos fabricados com violação dos mais elementares direitos laborais, em concorrência desleal não somente com produtos europeus mas também com produtos oriundos de outros países que os cumprem.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Qualidade da democracia (III)

Uma das medidas do pacote da transparência que pode vir a ser aprovada consiste em criminalizar o incumprimento da obrigação de declaração património e de rendimentos dos titulares de cargos políticos e equiparados, que passará a constituir crime de desobediência qualificada.
Discordo. Há entre nós um notório abuso de tal crime para punir o incumprimento de obrigações legais ou administrativas. E não funciona. Entendo que é desnecessário e inconveniente usar meios penais nestes casos, devendo aqueles ser reservados para a violação de valores fundamentais da coletividade. Penso que na maior parte destes casos, incluindo na nova situação que se pretende criar, os melhores instrumentos punitivos seriam uma sanção pecuniária compulsória (uma "multa" por cada dia de atraso na entrega da declaração) e a perda do mandato em causa, ambas muito mais céleres e eficazes.

Qualidade da democracia (II)

No prestigiado índice democrático do The Economist, relativo a 2016 - cujo ranking é encabeçado pelos países escandinavos -, Portugal ocupa um modesto 28º lugar, abaixo de países como Cabo Verde e Costa Rica, por causa da baixa classificação em três dos cinco indicadores utilizados na classificação (funcionamento do Estado, participação política e cultura política).
Há que melhorar estes indicadores. Entre outras medidas, o pacote da transparência referido em post anterior, pode aumentar a confiança nas instituições políticas e o funcionamento do sistema político. Mais uma razão par a sua aprovação e implementação tão depressa quanto antes.

Qualidade da democracia

1. Tão importante como a democracia em si mesma é a sua qualidade.
Hoje em dia as democracias liberais distinguem-se, entre outros fatores, pela transparência no exercício da função política e pelas medidas adotadas para prevenir os conflitos de interesses e a corrupção, o que influencia enormemente a credibilidade e a confiança que as instituições inspiram nos cidadãos.
Por isso, só peca por por tardia a aprovação do conjunto de iniciativas legislativas sobre o assunto em curso na Assembleia da República e que estão na agenda das jornadas parlamentares do PS que hoje decorrem em Coimbra.

2. A regulação da atividade de representação e defesa de interesses junto dos decisores políticos (conhecido vulgarmente por lobbying) constitui um instrumento fundamental de transparência e de integridade da atividade política, devendo abranger todos os níveis de poder e todos os decisores, desde os legisladores aos dirigentes dos institutos e agências públicos, passando obviamente pelo Governo.
Alem do registo oficial dos profissionais dessa atividade, a regulação deve incluir o registo público de todas as suas interações com todos os decisores políticos. Pretender excluir os deputados dessa obrigação de registo e de reporte, como alguns pretendem, é um contrassenso. Além do mais, estabelecer exceções injustificáveis ao cumprimento de obrigações públicas em beneficio próprio é muito feio.

3. As incompatibilidades são o meio institucional de prevenção de conflitos de interesse, impedindo a contaminação da função política pelos interesses privados dos decisores públicos. Por isso, devem abranger todas as situações susceptíveis de inquinar a confiança pública na dedicação exclusiva à causa pública.
No caso dos advogados, cuja incompatibilidade com a função parlamentar há muito defendo, há outro motivo para a justificar, que é a separação de poderes. Os advogados participam na função judicial de aplicação das leis (tal como prevê, aliás, a Constituição) e podem ter obviamente interesse em alterar ou manter legislação em função dos interesses do seus clientes. Ficou célebre a história de deputados que alegadamente promoveram e defenderam a aprovação de amnistias para beneficiar clientes seus.
Ora, como demonstraram os pais fundadores da teoria da separação de poderes (de Locke a Montesquieu), é essencial que quem faz as leis não participe na sua execução, e vice-versa. Os advogados-deputados infringem claramente essa regra essencial da teoria constitucional.

4. Nunca defendi a exclusividade ou a profissionalização integral da função parlamentar, por a considerar excessiva (embora sempre tenha estado em dedicação exclusiva no meus vários mandatos parlamentares). Mas entendo que hoje em dia os parlamentos ganham em qualidade e capacidade de desempenho, se tiverem o maior número possível de deputados em dedicação exclusiva, dada a enorme exigência da função parlamentar na atualidade.
Por isso, penso que deveria haver uma clara distinção remuneratória entre a dedicação exclusiva e o tempo parcial (o qual, aliás, só beneficia quem exerce outra atividade em Lisboa ou nos arredores). O atual diferencial de 10% é puramente ridículo; deveria ser de pelo menos o triplo, premiando a dedicação exclusiva e dissuadindo o tempo parcial.

Portucaliptal (27) - Interesses intocáveis

1. Só posso apoiar a nova estratégia florestal de diversificação das espécies e de aposta nas espécies autóctones e de crescimento mais lento e mais resistente aos fogos. Não tem sido outro o objectivo da minha longa luta contra a eucaliptização galopante do País.
Foi preciso um ano de catástrofes de incêndios florestais, com perdas de muitas vidas e enormes prejuízos materiais, para tornar evidente o barril de pólvora que criámos ao longo dos anos com a florestação extensiva e desordenada de montes e vales, assente no pinheiro e cada vez mais no eucalipto. Ainda há menos de um ano eram anunciados nutridos subsídios públicos à plantação florestal que incluíam o pinheiro e o eucalipto. Um absurdo, como aqui assinalei!

2. O que mantenho, porém, é que não basta subsidiar e investir dinheiros públicos na plantação dessas espécies. Torna-se necessário reverter a atual extensão do eucaliptal e fazê-lo pagar as "externalidades negativas" que a coletividade até agora tem pago - em termos de fogos, de degradação da paisagem, de predação de recursos hídricos, de perda de biodiversidade -, através de meios fiscais apropriados, como já propus antes (aqui e aqui).
O preço do eucalipto deve refletir por via fiscal todos os seus custos, incluindo os custos sociais, contribuindo para pagar o enorme investimento exigido pela expansão dos sobreirais, carvalhais, etc. Mas pelos vistos, tal medida continua fora da agenda política. Os interesses da fileira agro-industrial da celulose acabam sempre por prevalecer...

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Este País não tem emenda (18): O império do automóvel

«(...) a velocidade mínima na autoestrada portuguesa parece ser 140 km/h, a velocidade média de 160 km/h e a velocidade máxima o que o carro permite.»
Tilo Wagner, Diário de Noticias de 18/1/2018.
1. O cronista tem inteira razão. Nas autoestradas portuguesas, o limite legal de 120 km/h é fictício, sendo ignorado pela generalidade dos automobilistas, muitos dos quais se dão ao gozo de viajar a 180 km/h ou mais, pondo em causa a segurança rodoviária e aumentando os níveis de poluição sonora e ambiental (por causa do maior consumo de combustível).
Este incumprimento generalizado não revela somente o típico défice de civismo nacional mas também a falta de fiscalização e de punição. Pelo que se sabe, o risco de serem apanhados é baixo (por falta de fiscalização) e a possibilidade de fuga ao pagamento da coima é elevado (por deficiência do sistema de aplicação e de cobrança). A impunidade geral convida à infração.
Pode considerar-se que o atual limite é demasiado baixo, mas a verdade é que, mesmo se fosse mais alto (como defendo), não deixaria por isso de haver a mesma violação maciça que hoje existe, se não houve mudança de atitude e de fiscalização.

2. O incumprimento generalizado dos limites de velocidade (e não somente nas autoestradas!) é apenas uma vertente do império do automóvel entre nós, também caracterizado pelo estacionamento caótico (invadindo passeios e lugares reservados às paragens de transportes urbanos), pelos crescentes engarrafamentos urbanos e pela reivindicação de um pretenso direito ao aparcamento gratuito no espaço público.
Entretanto, as cidades e o país geral continuam a ser invadidos por cada vez mais automóveis, para além de todos os limites de sustentabilidade, sem que os poderes públicos revelem a mínima intenção de penalizar o uso do automóvel privado e de investirem a sério no transporte público.
O direito universal à mobilidade não equivale à universalização do transporte automóvel particular, pelo contrário!

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Impostos virtuosos

Acaba de ser criada, por iniciativa da Fundação Bloomberg, uma task force sobre a "política tributária para a saúde", advogando a aplicação de impostos elevados sobre produtos especialmente prejudiciais à saúde, nomeadamente o tabaco, o álcool e os produtos com excesso de açúcar. O New York Times saúda a iniciativa.
Por minha parte, não é a primeira vez que apoio estes impostos entre nós. Por isso, a saúdo também.

Adenda
Ver também o artigo de Lawrence Summers (que é um dos promotores das iniciativa) no Financial Times: «Para melhorar a saúde global é preciso tributar as coisas que nos estão a matar». Segundo os dados por ele invocados, o tabaco é responsável por 7 milhões de mortes anualmente, a obesidade por 4 milhões e o álcool por 3,3 milhões!
É um massacre! E o impacto estimados das doenças que causam estas mortes sobre as despesas dos sistemas de saúde é gigantesco. Tal como sucede com a poluição, os responsáveis diretos por estes custos devem dar a sua própria contribuição financeira para custear essa despesa adicional, para não sobrecarregar excessivamente os demais contribuintes. É uma questão de justiça tributária!

sábado, 13 de janeiro de 2018

Não concordo (3): Decisão precipitada

1. Sempre me opus à ideia de criação de uma círculo eleitoral transnacional nas eleições para o Parlamento Europeu (por exemplo, aqui), por várias razões:
  - primeiro, os lugares atribuídos a tal lista transnacional seriam retirados aos círculos nacionais, implicando portanto uma redução do número de deputados eleitos em cada país, incluindo em Portugal;
  - segundo, a lista transnacional favoreceria naturalmente a posição dos países mais populosos, nomeadamente Alemanha e a França, reforçando a sua representação parlamentar;
  - terceiro, passaria a haver duas categorias de deputados, a saber os eleitos a nível da União e os eleitos a nível nacional, com o perigo de uma perda de status político dos segundos face aos primeiros.

2. Sucede, aliás, que essa solução nem sequer se pode defender sob um ponto de vista da construção federal da UE, de que aliás compartilho, pois ela não existe na generalidade dos Estados federais (como os Estados Unidos ou o Brasil). Acresce que as listas de base nacional já dispõem, elas mesmas, de natureza "transnacional", visto que nelas votam e podem ser eleitos cidadãos de qualquer outro Estado-membro da União que seja residente noutro país.
Por isso não se compreende como é que a recente cimeira dos governos dos países do sul da União, entre os quais Portugal, acordou em apoiar tal ideia (ponto 9 do comunicado final), quando ela nem sequer está na agenda do debate político, muito menos do debate parlamentar, pelo menos entre nós. O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma posição precipitada e inadvertida sobre uma questão de perigosas consequências, que se impõe seja reconsiderada.

Adenda
Já depois deste post Rui Tavares veio defender a lista supranacional e atacar os seus críticos (onde não me inclui), deixando entender que os opositores se situam à direita e temem a "democratização da UE". Sucede que eu não sou de direita, tenho defendido o aprofundamento democrático da UE e até sou confessadamente federalista. Nada disso me leva a concordar com tal ideia. Entretanto, outras vozes na área socialista, como Manuel Alegre, vieram juntar-se à crítica à lista supranacional. Decididamente, está lançado o debate público que faltava. Mas ainda não chegou ao Parlamento, seu lugar natural.