sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Pandemia (41): Os hospitais não são lares sociais

Dada a pressão da pandemia sobre os internamentos hospitalares, foi necessário encontrar finalmente uma resposta social para as muitas centenas de pessoas que indevidamente continuam internadas sem necessidade, por vezes durante anos, por não terem para onde ir, sobrecarregando indevidamente o SNS, perante a incompreensível inércia dos ministérios da Saúde e da Segurança Social.

A seu tempo, não deixei de denunciar, entre os males do SNS, «a sobrecarga do SNS com pacientes hospitalizados que não têm alta por falta de cobertura da rede de cuidados continuados ou por falta de apoio familiar domiciliário». Sem eco, como se viu.

Eis como a pandemia pode ter efeitos colaterais positivos...

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Pandemia (40): Estado de emergência cautelar

[Fonte da imagem AQUI]

1. É original a declaração do novo estado de emergência pelo Presidente da República, pois não estabelece a suspensão de nenhum direito fundamental (com o pressupõe a Constituição), limitando-se a autorizar o Governo e as autoridades competentes a «limitar, restringir ou condicionar parcialmente o exercício» vários direitos (liberdade pessoal, liberdade de circulação, liberdade económica, direitos dos trabalhadores, direito ao desenvolvimento da personalidade).

Ou seja, o decreto presidencial cumpre a função típica das leis restritivas comuns, quer quando reitera medidas restritivas já autorizadas por leis existentes, mas que têm suscitado dúvidas (mesmo que infundadas) quanto à sua aplicação, quer quando supre o défice de previsão legislativa das medidas restritivas em caso de crise sanitária, como AQUI se assinalou anteriormente

2. Resta saber se, para além de comprometer politicamente o Presidente da República na tomada dessas medidas, a declaração do estado de emergência deve servir para socorrer supletivamente a inércia do legislador, com os riscos AQUI apontados.

Poderia dizer-se que a previsão dessas medidas na declaração de emergência afasta a dificuldade constitucional resultante de entre os referidos direitos estarem alguns, em relação aos quais a Constituição não prevê explicitamente a possibilidade de serem restringidos. Todavia, uma vez que tais restrições visam defender o direito à saúde, na sua vertente negativa (direito a não se ser infetado por terceiros), elas sempre poderiam ser constitucionalmente admissíveis, como meio de solucionar a colisão de direitos, como AQUI assinalei.

Em suma, este atípico estado de emergência só pode justificar-se em aras à segurança jurídica, que, aliás, o decreto presidencial invoca expressamente.

Adenda
Um leitor "menos complacente", como a si próprio se qualifica, argumenta que o decreto presidencial padece de "desvio de poder constitucional", por utilizar a declaração de estado de emergência para fim diverso do previsto constitucionalmente (a restrição de direitos, em vez da suspensão de direitos), e também de incompetência (por avocar poderes legislativos da AR), e ironisa que, embora invocando a "segurança jurídica", o decreto presidencial pode gerar ele mesmo uma maior insegurança jurídica, por causa da sua própria desconformidade constitucional. Eis um desafiante tema para um sofisticado debate académico...

Adenda (2)
Outro leitor contra-argumenta que, se é certo que a Constituição só permite a suspensão de direitos em estado de emergência, ela não exclui, porém, que este compreenda também a restrição de direitos, quando se trate restrições excecionais, mais severas que o normal, exigidas pela situação de emergência (como sucede agora). Parece-me um bom argumento, que aliás corresponde ao meu ensino desta matéria. Todavia, como mostra a Lei da Proteção Civil, nada impede e tudo aconselha que as leis gerais antecipem essas situações especiais, para dispensar a desnecessária declaração do estado de emergência, que, essa sim, deve ser excecional.

Adenda (3)
Um leitor sentencia: «quem pode o mais (suspender) pode o menos (restringir)». Mas não é bem assim, quando a competência para o mais e para o menos pertence a entidades diferentes.

Corporativismo (18): "Ultra vires"

1. A Ordem dos Advogados vai deliberar sobre a convocação de um referendo acerca do regime de segurança social dos advogados, nomeadamente quanto à opção entre manter o regime da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e mudar para o regime geral da segurança social.

Esta iniciativa enfrenta, porém, vários problemas
        - em primeiro lugar, a OA não pode colocar a referendo a modificação do regime da segurança social dos advogados, que está fixado na lei; só o Estado pode mudar a lei, pelo que só o Estado poderia convocar um referendo para esse efeito - que, aliás, não poderia restringir-se aos advogados; 
        - em  segundo lugar, a OA só pode convocar referendos sobre as questões da sua competência; ora, não vejo onde está o poder legal da OA para decidir, ou sequer pronunciar-se, sobre o regime de segurança social dos advogados, cuja definição cabe exclusivamente ao Estado;
       - por último, os referendos não servem para optar entre duas soluções alternativas, mas sim para respostas de sim ou não a uma medida a adotar por quem promove o referendo.   

Há aqui, portanto, barreiras jurídicas inultrapassáveis para a convocação do dito referendo pela OA.

2. No atual regime jurídico das ordens profissionais, diferentemente do que sucedia no regime corporativo do"Estado Novo", as ordens profissionais só têm funções de representação da profissão e de autorregulação e de autodisciplina profissional, pelo que deixaram de ter poderes quanto à segurança social dos seus membros (ou sobre relações laborais, como tinham antes). O artigo dos Estatutos da OA sobre o regime de segurança social é um resquício descabido de tempos idos há mais de 40 anos.

Por isso, se o Conselho de Jurisdição da Ordem não vetar a convocação do referendo, como se impõe, incumbe ao Ministério Público promover a pertinente ação judicial de anulação, antecedida da necessária medida cautelar de suspensão da sua execução.

Adenda
Na verdade, as coisas são mais complicadas, pois desde sempre defendo que o regime especial de segurança social dos advogados e solicitadores (CPAS) não tem base constitucional, quer por derrogar o princípio do sistema público único de segurança social constitucionalmente estabelecido, quer por atentar contra o princípio constitucional da igualdade, conferindo a essas duas profissões o privilégio de gerirem o seu próprio sistema privativo de segurança social.

Adenda (2)
Um leitor sugere que o referendo poderia ser convocado somente a título consultivo, com o fim de permitir à OA defender junto do Governo a solução que vier a obter vencimento. Só que para isso seria necessário admitir que os referendos podem ser convocados por quem não tem poder para decidir a questão colocada a referendo e com efeitos meramente consultivos (em ambos os casos ao arrepio das pertinentes regras constitucionais) e que as ordens profissionais podem tomar posição sobre o regime de segurança social sobre os seus membros - o que eu contesto, pela simples razão de que isso não cabe nas suas atribuições legais. Se o Governo quiser equacionar (como deve) a extinção da CPAS e a integração dos advogados e solicitadores no regime geral, deve ouvir obviamente TODOS os interessados (e não somente os advogados) através da CPAS (e não através da OA).

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Livres e iguais (53): Orgulho europeu

1. Passam hoje 70 anos sobre a assinatura da Convenção Europeia de Direitos Humanos (Roma, 1950), a primeira convenção internacional de direitos humanos e a primeira a instituir um mecanismo de queixa dos cidadãos contra os seus próprios Estados e de condenação destes por violação da Convenção.

A CEDH não influenciou somente posteriores convenções internacionais regionais de direitos humanos (Américas, 1969, e África, 1981), mas também o catálogo de direitos fundamentais de várias constituições nacionais posteriores, nascidas da "terceira vaga da democratização", iniciada com a Revolução portuguesa de 1974 e a Constutuição de 1976.

Neste artigo de hoje no Expresso o anterior juiz nacional no TEDH e a atual juíza sublinham justamente o que Portugal deve à CEDH.

2. Por coincidência, passam também este ano, a 7 de dezembro, os 20 anos da proclamação da Carta de Direitos Fundamentais da UE, que estabeleceu um pilar essencial do Estado de direito constitucional da União, a que depois o Tratado de Lisboa (2007-2009) veio conferir força vinculativa.

Eis dois instrumentos transnacionais de direitos humanos que orgulham a Europa, pelo seu pioneirismo na proteção multinível dos direitos humanos e na efetividade em suprir as insuficiências ou lacunas da sua proteção constitucional ao nível nacional.

Pandemia (39): Inconstitucionalite aguda

1. Há quem pense que os constitucionalistas são tanto melhores quanto mais inconstitucionalidades descortinarem e, observando as acusações de inconstitucionalidade desde ao início da pandemia, é caso para dizer que nenhuma das medidas tomadas para a combater, fora do estado de emergência, escapou a essa acusação.

Também se dá erradamente por assente que, uma vez denunciada uma inconstitucionalidade, por menos evidente que seja, é ao legislador ou ao Governo que incumbe provar que ela não existe, como se lhes coubesse o "ónus da prova" da conformidade constitucional dos seus atos. Ora, não é assim. Os atos do poder público não são inconstitucionais enquanto não se provar concludentemente que o são. Portanto, quem invoca uma inconstitucionalidade é que tem de justificar convincentemente a sua tese. Não basta alegar que ela existe. Na dúvida, não prevalece a inconstitucionalidade.

2. A Ordem dos Advogados também resolveu entrar na liça, anunciando publicamente que apoia o recurso de uma advogada que, tendo pedido a suspensão judicial da aplicação da restrição da liberdade de circulação na semana passada e tendo perdido, resolveu recorrer da decisão do STA  para o Tribunal Constitucional.

Nada contra, obviamente. O problema é que, no seu apressado zelo, a OA invoca em seu apoio uma passagem da CRP Anotada de que sou coautor (junto com J. J. Gomes Canotilho), sobre a regra constitucional de que as restrições legais aos direitos fundamentais precisam de uma explícita credencial constitucional, o que não se verifica no caso da liberdade de circulação, "esquecendo", porém, de citar outra passagem da mesma obra, em que se explica que essa autorização constitucional de restrição de cada direito não é exigível quando se trate de situações de colisão de direitos fundamentais, em que necessariamente um deles ou ambos têm de sofrer alguma restrição, para defender o outro (como já expliquei anteriormente em adenda a este post).

Ora, como argumentou o Governo, a referida restrição da circulação, aliás muito mitigada pelas exceções estabelecidas, visou limitar o perigo de contaminação comunitária, assim defendendo o direito de todos a não verem lesada a sua saúde (e a sua vida!) por ação ou omissão de terceiros. Portanto, restrição de um direito fundamental para defender outro.

3. De resto, se essas "restrições não expressamente previstas", como são conhecidas, fossem constitucionalmente ilícitas, então seriam ilegítimas todas as demais restrições à liberdade de circulação ao abrigo da Lei da Proteção Civil, obrigando à declaração do estado de emergência, sempre que fosse necessário tomá-las. 

O mesmo sucederia, de resto, em muitas outras situações de colisão entre direitos fundamentais, para os quais a Constituição não prevê explicitamente a possibilidade de restrição legal. E são muitos.

White House 2020 (4): Trump again!?

[Fonte da imagem AQUI]

1. E o que parecia ainda mais improvável do que há quatro anos, pode voltar a acontecer: apesar de a contagem ainda não estar encerrada (10:30 da manhã em Portugal), a recondução de Trump na Casa Branca parece certa.

A confirmar-se esse infeliz desfecho, trata-se, antes de mais, da vitória da economia sobre a pandemia. A baixa taxa de mortalidade da segunda desvalorizou a importância eleitoral da luta contra ela; a falta de uma rede de proteção social e sanitária nos Estados Unidos contra o desemprego e a perda de rendimentos ajudou a primeira opção. Isso justifica a importante votação em Trump, não somente entre os trabalhadores brancos, mas também entre os latinos e os afro-descendentes, principais vítimas das recessões económicas.

A combatividade de Trump na campanha versus a temerosidade de Biden também ajudou. É evidente que a integridade de caráter e a decência política não são ativos eleitorais rendosos na América de hoje.

2. A vitória de Trump será também a vitória de todos os "demo-autocratas" nacionalistas por esse mundo fora, os Bolsonaro, os Putin, os Kaczinski, os Orbán e os seus seguidores, os Salvini, as Le Pen, os Ventura. 

Por outro lado, será uma séria derrota para a União Europeia, aprofundando o divórcio transatlântico. Além disso, também vai reforçar a resistência dos grupos que, em vários países europeus, lutam contra as medidas restritivas antipandemia, por vezes recorrendo à violência nas ruas.

3. Mais um mandato de Trump na Casa Branca iria igualmente multiplicar os estragos na ordem política e económica mundial e nas instituições multilaterais de governação global, desde as Nações Unidas à Organização Mundial do Comércio.

Se Trump continuar na Casa Branca, não serão propícios à paz e à estabilidade internacional os tempos que aí vêm. Preparemo-nos para o pior.

[revisto]

Adenda
Revelando mais uma vez a sua falta de escrúpulos políticos, Trump veio logo de manhã clamar vitória e exigir a cessação da contagem dos votos nos vários estados onde ainda decorria, e ainda não está encerrada. Puro golpismo político. Ora, embora a sua vitória continue a ser provável, ainda não está assegurada - e seria uma bela surpresa se o não fosse. Decididamente, não o merece.

Adenda (2) 5/11
Entretanto, a margem de vitória de Trump reduziu-se muito, tendo que ganhar necessariamente a Pensilvânia, a Carolina do Norte, a Geórgia e o Nevada ou o Arizona (e só vai à frente nos três primeiros); inversamente, Biden aumentou muito as suas chances, bastando-lhe ganhar a Pensilvânia ou dois dos outros estados ainda em disputa, sendo que vai à frente da contagem em quatro deles (Wisconsin, Michigan, Arizona e Nevada). Agora, parece estar à vista o fim da era Trump.


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Corporativismo (17): Monopólios profissionais

1. Merece atenção este artigo da Profª Maria de Lurdes Rodrigues, Reitora do ISCTE, sobre os malefícios dos monopólios profissionais normalmente associados à criação de ordens profissionais, neste caso da Ordem dos Assistentes Sociais, instituída pela AR em 2019.

Há muito tempo que venho denunciando, neste blogue e antes dele, a deriva política na criação de ordens profissionais, que tem levado à sua proliferação entre nós, sem paralelo em qualquer outra país de democracia liberal e de economia de mercado.

2. Se as ordens profissionais já são um problema em si mesmas, na medida em que conferem às profissões "ordenadas" o privilégio de um estatuto institucional público na representação e defesa das respetivas  profissões, pior são os monopólios profissionais que elas habitualmente proporcioname protegem, os quais, como todos os monopólios, tendem a favorecer os prestadores de serviços em prejuízo dos utentes e que, portanto, só se justificam em casos muito contados. 

Na verdade, os exclusivos profissionais vão em geral ao arrepio das recomendações da União Europeia e da OCDE, no sentido de garantir a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços profissionais, tanto ao nível doméstico quanto ao nível do mercado único da União. 

De resto, gozando a liberdade profissional de proteção constitucional, resta saber se muitos desses exclusivos não vão de encontro aos requisitos constitucionais da restrição de direitos fundamentais, nomeadamente quanto ao teste da proporcionalidade

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Pandemia (38): Estado de emergência "preventivo"?

 1. A ideia de um estado de emergência "preventivo" suscita-me várias reservas:

- Primeiramente, penso que o lógica constitucional do estado de emergência consiste em responder a calamidades atuais ou iminentes, não a situações a verificar num futuro mais ou menos indefinido;

- Em segundo lugar, entendo que é o decreto presidencial do estado de emergência que declara os direitos que ficam suspensos, em vez de autorizar o Governo fazê-lo quando o entender conveniente;

- Por último, julgo que o estado de emergência só é necessário para suspender o exercício de direitos (ou seja, para os tornar inoperativos), devendo evitar definir também restrições (por definição menos gravosas, por terem de respeitar o "núcleo essencial" dos direitos afetados), cuja competência cabe ao legislador e ao Governo / administração, sob pena de se criar a ideia incorreta de que também estas só podem ser estabelecidas em estado de emergência.

2. Na verdade, a declaração do estado de emergência confere ao Presidente da República um superpoder legislativo (embora com autorização parlamentar e com duração limitada), o qual, por ser uma derrogação do princípio da separação de poderes, só deve ser utilizado para os fins estritamente previstos na Constituição e não para fazer o Presidente da República compartilhar de poderes e responsabilidades que cabem ao Governo.

É que, ao contrário deste, que responde politicamente perante o Parlamento, com todas as consequências, o PR não é politicamente responsável pelo exercício dos seus poderes (a não ser de forma difusa, perante os eleitores).

Adenda
Não dá para perceber a declaração do Presidente da República onde se assume como o «maior responsável pelos erros da luta à covid-19». O Governo agradece, mas a declaração não é credível. Desde a declaração presidencial do estado de emergência em março e abril, que aliás foi bem-sucedido, toda a gestão do combate à pandemia desde então foi da competência e responsabilidade do Governo, sem que o Presidente pudesse interferir, salvo através de conselhos ou advertências, em que, de resto, tem sido pródigo. Não podendo haver responsabilidade sem poder, de onde vem, então, a pretensa responsabilidade presidencial?

Retratos de Portugal (3): Irresponsabilidade pública

Eis a entrada e o edifício do antigo Hospital Pedriático de Coimbra, abandonado há quase dez anos, quando o HPC mudou para novas instalações. 
Nestes dez anos, em que o edifício e o parques se degradaram inexoravelmente, nem o Estado nem o município (a quem parece que pertence o terreno) tiveram oportunidade de lhe dar nova serventia, nem de pensar na sua alienação a quem lha possa dar. Obviamente, quanto mais tempo passa, mais oneroso ficará o seu restauro e menos o edificio vale.
Revolta a irresponsabilidade do Estado com o património de todos nós.

Adenda
Numa pesquisa na Internet descobri esta impressionante reportagem de abandono e depredação do antigo HCP, realizada há três anos.

domingo, 1 de novembro de 2020

Este País não tem emenda (24): Detritos selvagens

A imagem mostra detritos de obras (incluindo louça sanitária) ilegalmente depositados junto de uma via pública nos campos do Mondego (a jusante de Coimbra). Há muitos outros casos destes na mesma zona, desfeiando a paisagem e poluindo o ambiente. Um verdadeiro retrato da irresponsabilidade cívica e da impunidade das práticas lesivas do ambiente entre nós.
Por outro lado, se estes atos de vandalismo da natureza não são evitáveis pelos serviços de controlo ambiental, já é menos compreensível que não haja a diligência necessária nos serviços competentes para remover estes detritos para os locais a isso destinados, em vez de os deixarem indefinidamente a exibir a sua fealdade.

sábado, 31 de outubro de 2020

Pandemia (37): Estado de emergência soft

1. É acertada a estratégia decidida pelo Governo de adotar medidas mais restritivas somente para os municípios com maiores índices de contaminação (o que, no entanto, vai abranger 70% da população), pois isso vai obrigar os respetivos moradores  e empresas a esforçarem-se por inverter a situação, ao mesmo tempo que incentiva os demais concelhos a manterem a sua situação controlada.

As novas medidas são relativamente pouco intrusivas, quando comparadas com as do primeiro surto da pandemia, na primavera, e quando comparadas com as tomadas noutros países por estes dias, não se incluindo nelas, por exemplo, o recolher obrigatório à noite, que vários outros países decretaram (visando travar os eventos sociais noturnos e o seu elevado potencial de contaminação).

2. Poucas das novas medidas se traduzem verdadeiramente em suspensão de direitos - como será a proibição de mercados de levante e a obrigação de teletrabalho -, pelo que exigem a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República. 

As demais medidas são restrições mais ou menos severas a várias liberdades (liberdade de estabelecimento, liberdade de reunião, etc.), sem porém as afetarem no seu núcleo essencial, pelo que poderiam ser estabelecidas ou autorizadas por lei fora de estado de emergência. Mas a declaração deste, para além de comprometer o Presidente da República na sua adoção, afasta eventuais dúvidas sobre a sua constitucionalidade, como as que foram (infundadamente) suscitadas a propósito da restrição da liberdade de deslocação entre municípios no corrente fim de semana.

3. Torna-se evidente, porém, que o novo estado de emergência que aí vem fica bem longe da amplitude da suspensão de direitos fundamentais do estado de emergência em março e abril, que suspendeu várias liberdades, como a liberdade de deslocação (confinamento geral), a liberdade de estabelecimento em várias atividades (cafés, restaurantes, etc.), a liberdade de culto, etc.

Esperemos que não se tenha de ir mais além nas próximas semanas.

Adenda
Para se ter uma ideia da moderação das medidas agora tomadas em Portugal, basta comparar com as que ontem foram tomadas na Bélgica, que incluem encerramento de todos os estabelcimentos não essenciais (incluido resaurantes e cafés)e a limitação das visitas em casa a uma ou duas, etc., a somar ao recolher obrigatório, que já estava em vigor há dias.

Aplauso (18): Ilegitimidade judicial do Chega

1. Merece aplauso a decisão do Supremo Tribunal Administrativo que rejeitou a providência cautelar interposta pelo Chega contra a restrição da liberdade de deslocação (entre concelhos) neste fim de semana, em razão da ilegitimidade do requerente, pois os partidos políticos não são titulares de nenhum dos direitos alegadamente violados pela referida medida, que são direitos eminentemente individuais

Ora, se o Chega não tinha legitimidade para impugnar judicialmente a legalidade da Resolução do Conselho de Ministros em causa, também não tinha legitimidade para pedir a suspensão da sua execução.

2. Fica assim clarificado que, ao contrário de algumas associações representativas de certas categorias sociais, como os sindicatos, a quem lei confere legitimidade para a defesa dos interesses dos seus membros em juízo, tal não sucede com os partidos políticos, pelo que eles só podem defender em juízo os seus próprios interesses institucionais, o que não era o caso. 

Com esta clarificação judicial, corta-se cerce a tentativa que se desenhava, de certos partidos políticos instrumentalizarem a justiça ao serviço do seu combate político.

Só é pena que, assim, o STA não tenha podido conhecer do fundo da questão, a saber, sobre a alegada inconstitucionalidade de tal medida --, que, a meu ver, não existe.

Adenda
Porque é que a decisão ainda não está disponível no website do STA? É evidente que a decisão não interessa somente às partes nesse processo!

Adenda 2
Um leitor invoca um comunicado do Conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados que defende a inconstitucionalidade da medida. Não é única opinião nesse sentido, o que a não torna procedente. O que é lamentável é que a Ordem dos Advogados tenha emprestado o seu peso institucional a tal opinião.

Adenda 3
A grande novidade de hoje é que noutro processo suscitado por uma advogada sobre o mesmo assunto (PROC.º Nº 122/20.1BALSB), o STA conheceu do fundo da questão e indeferiu a suspensão da execução da medida, rejeitando todos os argumentos de inconstitucionalidade, desde a alegada falta de fundamento legal à invocada falta de proporcionalidade. Ficam assim validados todos os meus argumentos neste post sobre o assunto (incluindo o lamentável comunicado do Conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados referido na Adenda anterior)!

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

White House 2020 (3): Anti-Trump coalition

 

Of course!

«In this election America faces a fateful choice. At stake is the nature of its democracy. One path leads to a fractious, personalised rule, dominated by a head of state who scorns decency and truth. The other leads to something better—something truer to what this newspaper sees as the values that originally made America an inspiration around the world.»

Saber quem vai ocupar a Casa Branca também interessa deste lado do Atlântico. E é notório que, pelo voto dos europeus, Trump não chegaria aos 30%!

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Lisbon first (24): Até o "Público"?!

Não é só o Estado que dá primazia a Lisboa. Na sua edição de hoje, o Público traz uma peça sobre o enquadramento jurídico das medidas antiCovid, tendo ouvido cinco constitucionalistas. Não por acaso, todos são de universidades de Lisboa.

Sucede que não se trata de um caso isolado, mas de uma prática arreigada, com que até um jornal como o Público alinha, como se não houvesse juristas nas Universidades do Minho, do Porto ou de Coimbra, só para citar as escolas públicas.

Decididamente, o atavismo centralista e o "lisboacentrismo" contaminam tudo e todos!

Pandemia (36): "Estado de crise sanitária"

[Fonte da Imagem AQUI]

1. Em relação ao post anterior, um leitor bem informado pergunta se não é «excessivo recorrer ao estado de emergência constitucional para decretar o recolher obrigatório», visto tratar-se ainda de uma restrição da liberdade de movimentos (durante a noite) e não da sua suspensão, como sucedeu na primavera, com o confinamento geral, pelo que bastaria uma lei geral a autorizar tal restrição.

Poupar-se-ia assim a intervenção do Presidente da República e o pesado e demorado procedimento de declaração do estado de emergência, dando ao Governo maior flexibilidade no recurso a restrições aos direitos fundamentais afetados. 

O problema é que tal lei não existe. Quando as leis gerais existentes não chegam (como a Lei de Bases da Proteção Civil ou a Lei de Vigilância em Saúde Pública), o Governo e a AR têm preferido recorrer a soluções legislativas ad hoc, como a recente lei sobre o uso obrigatório de máscaras. 

2. Sufrago, porém, a ideia sugerida desde o início por alguns observadores e constitucionalistas (e hoje reiterada no Público) de que a melhor solução seria introduzir na atual LVSP a figura do estado de crise sanitária (expressão que prefiro à de "estado de emergência, ou de calamidade, sanitária", como alguns propõem, que se presta a confusão com figuras já existentes).

Além de afastar as dúvidas de constitucionalidade suscitadas contra a aplicação extensiva da LBPC a estas situações de proteção sanitária, uma tal solução permitiria (i) definir mais rigorosamente essa nova figura, (ii) regular o modo e o procedimento da declaração do estado de crise (pareceres prévios, etc.), a sua duração e renovação e, sobretudo, (iii) definir o catálogo de medidas restritivas aplicáveis, incluindo restrições à liberdade de circulação, de reunião e de manifestação, cercas sanitárias, recolher obrigatório, restrição a atividades económicas, restrição à greve em serviços de saúde, vacinação obrigatória e obrigação de tratamento, uso obrigatório de meios de proteção, etc.

A segurança sanitária não se dá bem com insegurança jurídica.

É altura de equacionar essa solução, pois, com a segunda vaga, impõem-se medidas mais severas de proteção. E, como parece evidente, a pandemia veio para ficar e também não promete ser a última crise sanitária.

Adenda
Um leitor acrescenta que é necessária uma resposta integrada, e não medidas fragmentárias, ad hoc. «Fica a ideia de que os meses de verão foram perdidos sem fazer o planeamento do outono/inverno.»

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Pandemia (35): Degradação célere da situação

(Origem: Expresso)
1. É de esperar que desta reunião governamental extraordinária saiam novas medidas capazes de enfrentar a segunda vaga da pandemia, que em poucas semanas disparou, em número de infeções, de internamentos e de mortos (gráfico acima), voltando a instalar um clima de medo e de ansiedade nos setores da população mais vulneráveis.
Não vejo como é que se pode adiar muito tempo uma nova declaração de estado de emergência, para permitir, como noutros países, declarar o recolher obrigatório em algumas zonas e restrições mais duras aos ajuntamentos, à abertura de estabelecimentos e à liberdade de deslocação.
Como já escrevi noutra altura, onde a disciplina e a responsabilidade cívica falecem, resta o arrocho da proibição ou da imposição legal.

2. O SNS começa a dar sinais de esgotamento em alguns hospitais e não é a contratação apressada de mais pessoal, como pretendia o BE, que vai resolver a situação, tanto mais que as baixas por doença (real ou fictícia) estão a aumentar desmesuradamente, sem que, aliás, ninguém indague porquê. Entretanto, acumula-se o adiamento de consultas, de exames e de cirurgias relativamente a outras doenças, incluindo as mais graves, como as do foro oncológico.
É evidente que o SNS não está, nem poderia estar preparado, para picos excecionais de procura desta natureza, que tornam mais evidente o seu conhecido défice de eficiência e de produtividade, que a falta de avaliação de desempenho do pessoal, dos serviços e da gestão alimenta. A lamentável redução do horário de trabalho para as 35 horas há quatro anos, o persistente mathusianismo profissional na formação de médicos e a acumualção e conflitos de interesse entre o público e o privado, sempre em prejuízo daquele, só agravam as desvantagens do SNS.
E não é so a despejar dinheiro sobre ele que as coisas melhoram.

Adenda
No post seguinte defendo uma alternativa ao estado de emergência.

Bloquices (13): O fim de uma perigosa ilusão

O cinismo oportunista com que o Bloco decidiu votar contra o orçamento, apesar de todas as importantes concessões que obtivera do Governo do PS, não revela somente a incontornável leviandade política da agremiação esquerdista. Ao mostrar que não é "tábua de sustentar prego" e que pode convergir friamente com a direita num momento difícil do governo socialista (e do País), o Bloco desfaz num momento a ilusão, que muitos alimentaram, em 2015, do advento de uma nova era de alianças privilegiadas do PS com as forças à sua esquerda no parlamento, para além do tradicional "arco da governação".

Tudo indica que o namoro de quatro anos, em tempos de "vacas gordas", deu em divórcio litigioso e insidioso, quando a crise começou a morder a sério. Aos que, como o autor destas linhas, nunca acreditaram na metamorfose do Bloco em força política de vocação governamental, por incompatível com o seu ADN hostil à economia de mercado e à responsabilidade orçamental, só lhes resta comentar: «está-lhe na massa do sangue». QED!

Adenda
Um leitor pergunta se, tendo o Bloco rejeitado qualquer acordo para viabilizar o orçamento e tendo mesmo decidido votar contra, não se impõe que o Governo retire do orçamento todas as concessões que tinha feito aos bloquistas, sob pena de benefício ao infrator. Tem, toda a razão!

Adenda (2)
Um leitor benévolo diz que ainda resta a «atitude responsável e [a] seriedade negocial» do PCP. É certo, mas há que observar que (i) os comunistas já declararam reiteradamente que excluem qualquer acordo de legislatura com os socialistas; (ii) não basta a sua abstenção para sustentar o Governo, como se verifica nesta ocorrência da votação do orçamento; e, sobretudo (iii), o PCP parece ter entrado numa fase mais acentuada de declínio, como mostra a perda do seu deputado no parlamento dos Açores e a minúscula previsão de votação no seu candidato nas eleições presidenciais. Para piorar o panorama, há indícios de que o PCP pode perder a sua posição no ranking partidário para o Chega, o que seria uma humilhação... 

Adenda (3)
Outro leitor, referindo-se à primeira adenda, acima, diz que seria uma «birra do PS», se este retirasse as concessões que já tinha feito ao BE e que até já constam da proposta de orçamento apresentada à AR. Discordo: se uma parte oferece certas vantagens a outra para chegar a um acordo e a segunda não aceita o acordo, então a primeira tem todo o direito de retirar a sua oferta. A meu ver, se o acordo proposto já era mau, manter as concessões sem acordo é péssimo.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Praça da República (39): Razões para inquietação

Parece evidente que as coisas não correm pelo melhor ao PS nos tempos políticos que correm. 

Há, desde logo, o novo surto descontrolado da pandemia e a dificuldade do Governo em responder eficazmente, fazendo ampliar o sentimento de insegurança na opinião pública; veio depois o rompimento belicoso do BE na questão do orçamento, parecendo pôr um fim precipitado ao ensaio de aliança política que durava desde 2015, no que pode ser o dobre de finados pela aposta do PS em acordos à sua esquerda; soma-se, por último, o revés eleitoral dos Açores (apesar dos 39% de votos), que pode levar à perda do poder para um governo de "geringonça" à direita, interrompendo um quarto de século de hegemonia socialista nas ilhas. 

A resiliência dos grandes partidos (e das suas lideranças) testa-se nas conjunturas difíceis. Vamos a ver como é que o PS, e António Costa, dão a volta por cima...

[O título foi substituído]

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Vontade popular (11): Equação governativa complicada

1. As eleições para o parlamento regional dos Açores de ontem traduziram-se numa vitória por maioria relativa do PS (menos de 40%), o que é um revés eleitoral, pois tem menos cinco deputados e perdeu a maioria absoluta que tinha. Aliás, também não há hipótese de uma coligação maioritária à esquerda, pois a soma do BE não atinge os 29 deputados necessários, nem com uma eventual ajuda do PAN.

Já o conjunto da direita (PSD+CDS+CHEGA+PPM+IL) perfaz uma maioria parlamentar (e mais 6pp nos votos do que as esquerdas!), a qual, porém, não se deve concretizar numa coligação de governo, dada a sua inconsistência, nomeadamente por causa do Chega.

2. Em todo o caso, estas eleições resultaram numa acentuada fragmentação do parlamento açoriano, que, apesar da saída da CDU (outro revés), passa a ter nada menos de oito partidos representados, com três novos partidos a entrar nas bancadas do parlamento da Horta (Chega, PAN e IL). 

Com efeito, dois partidos conseguem representação parlamentar com menos de 2% dos votos (PAN e IL) e outro partido (PPM) consegue dois deputados (ou seja 3,5%) com menos de 2,5% dois votos, o que não deixa de ser extraordinário em termos de "majoração" eleitoral às avessas
[Revisto]

Adenda
Um leitor pergunta se, tendo sido o PS a ganhar as eleições, o representante da República pode nomear um eventual Governo do PSD com o apoio de todas as direitas. Como sempre defendi numa situação semelhante, ao contrário (em 2015), o partido que ganhou as eleições (o PS) deve ser chamado a constituir governo, mas se este for rejeitado no parlamento regional pela união das direitas, então deve ser o PSD chamado a formar governo, se conseguir o apoio parlamentar de todas as direitas. É assim que funciona a democracia parlamentar: quem ganha eleições sem maioria, arrisca-se a ir para a oposição. Divertido vai ser ver os partidos que anatemizaram a solução de 2015 como "usurpação do poder" recorrerem agora a ela.

Adenda (2)
O atual sistema eleitoral açoriano apresenta duas características que facilitam a fragmentação parlamentar e dificultam a governabilidade: (i) círculos eleitorais muitos pequenos (como o Corvo e as Flores), que permitem eleger deputados com um número de votos ínfimo e (ii) excessiva proporcionalidade permitida pelo "círculo de compensação".

Adenda (3)
Um leitor acrescenta, com razão, que também seria divertido ver agora o PS a atacar, em nome da "ilegitimidade" política, uma solução de governo de que beneficiou em 2015. Mas espero que isso não suceda...

Adenda (4)
É claro que o PSD não pode aceitar estas condições do Chega para viabilizar uma "geringonça" de Direita nos Açores. Sendo assim, se a direita votasse a rejeição de um governo minoritário do PS e depois também não conseguisse formar governo, só restaria o recurso a novas eleições. O problema é que também nos Açores existe o impedimento de dissolução do parlamento regional nos seis meses seguintes à sua eleição e não faz sentido manter o atual governo em funções de gestão durante esse tempo todo...

domingo, 25 de outubro de 2020

Pobre Língua (21): Mudar para o erro

Num programa de TV hoje sobre as eleições açorianas, uma comentadora, obviamente com educação superior, depois de ter dito, corretamente, que certo partido "teria elegido" deputados, pediu desculpa e mudou, erradamente, para "teria eleito"!

A senhora esqueceu obviamente que quando um verbo tem duas formas de particípio passado, se deve usar a forma regular ("elegido") com o verbo ter (como era o caso) e a forma irregular ("eleito") com o verbo ser.

Se as pessoas da elite falam assim, tão desmazeladamente, só resta esperar o pior..

Barbárie tauromáquica (10): É desta?


É hoje que vários partidos políticos, entre os quais o PAN, vão anunciar as suas posições quanto ao orçamento do Estado para 2021.
Tornou-se prática política, no caso de governos minoritários, como é o caso, os partidos da oposição colocarem condições para votarem a favor orçamento (ou não o rejeitarem), não somente de natureza financeira, mas também outras condições políticas. E não há nada de ilícito nisso.
Eu, se fosse o PAN, insistia desta vez na expressa proibição das transmissão de touradas em horário diurno pelas televisões de sinal aberto, fazendo aplicar explicitamente ao caso a norma geral da lei da televisão, que só admite «a emissão televisiva de quaisquer (...) programas suscetíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade de crianças e jovens» entre as 24:00 e as 6:00, exigindo também que as emissões sejam acompanhadas «da difusão permanente de um identificativo visual apropriado»
Será desta que acaba a transmissão ao vivo, urbi et orbi, desse infame espetáculo?

Adenda
Um leitor argumenta que a lei do orçamento não deve ser um "albergue espanhol", em que tudo cabe, incluindo normas que nada têm a ver com o orçamento, ou seja, com as receitas e despesas do Estado. Não posso concordar mais, podendo dizer que discordo dos chamados "cavaleiros orçamentais" desde o início, há décadas, e lamento que o Tribunal Constitucional não tenha posto cobro a esse abuso inconstitucional da lei do orçamento. Mas isso em nada prejudica a "condicionalidade política" da votação do orçamento por parte dos partidos da oposição, forçando compromissos políticos precisos e calendarizados do Governo.

Pandemia (34): É inconstitucional a proibição de circulação transmunicipal?

1. Não sufrago a opinião daqueles que entendem ser inconstitucional a proibição de circulação para além dos limites do concelho de cada um no próximo fim de semana, medida destinada a evitar os grandes movimentos e ajuntamentos do "dia de finados". 
Que a restrição da liberdade de deslocação existe, é óbvio. Já não me parece que ela seja constitucionalmente inadmissível.

2. Em primeiro lugar, a medida governamental tem cobertura legal na Lei da Proteção Civil, na interpretação ampla que dela tem prevalecido, quando estabelece que o "estado de calamidade" pode abranger a «fixação, por razões de segurança dos próprios (...), de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, (...) ou veículos»;
Em segundo lugar, a medida não parece descabida nem desproporcionada. Por um lado, não se trata da "suspensão" da liberdade de circulação (o que impediria adotá-la fora do caso de estado de exceção constitucional), visto que a restrição não é absoluta, abrangendo somente as saídas para fora do município e estando em vigor num curto período de tempo. Por outro lado, face ao ressurgimento da vaga de infeções em curso, parece-me que se justifica a medida, sendo apropriada para tentar travar aquilo que um especialista já qualificou como «uma transmissão descontrolada do vírus na comunidade»

3. Os valores constitucionais que estão em causa - controlar o risco acrescido para saúde pública e para a vida das pessoas - é muito mais importante do que o incómodo da restrição limitada e temporária da liberdade de deslocação.
É claro que a medida poderia ser mais moderada, admitindo, por exemplo, a deslocação a concelhos limítrofes. Mas é muito provável que o seu alcance ficasse assaz enfraquecido, reduzindo o seu impacto positivo.
Em situações de incerteza como as da pandemia, tem de admitir-se uma maior margem de liberdade dos decisores políticos quanto à ponderação dos bens e valores constitucionais em causa na restrição de direitos fundamentais, que os tribunais, a começar pelo Tribunal Constitucional, devem respeitar.

Adenda
Um leitor argumenta que, na falta de autorização constitucional explícita para restrição da liberdade de circulação, as restrições legais serão inconstitucionais, salvo em estado de emergência. Penso, porém, de acordo com a doutrina constitucional prevalecente (perfilhada na Constituição Anotada de que sou coautor, na nota VII ao art. 18º da CRP), que essa regra deve ser objeto de interpretação restritiva e que a autorização constitucional de restrição não pode ser exigível quando se trate de gerir conflitos entre direitos fundamentais (como neste caso entre a liberdade de circulação e o direito à saúde de outros), que só podem ser dirimidos pela restrição de um deles ou de ambos. De resto, é frequente essa situação de colisão entre direitos, como, por exemplo, entre o direito ao bom nome e reputação e a liberdade de informação e de imprensa, em relação aos quais a Constituição não prevê restrições, mas que têm de ser admitidas para solucionar o litígio entre eles.

sábado, 24 de outubro de 2020

Ai, Portugal (6): O desastre da justiça administrativa

1. O recente Relatório da Comissão de Justiça do Conselho da Europa, revela que os tribunais em Portugal apresentam agora tempos de decisão processual próximos da mediana do conjunto dos países europeus na justiça cível e penal, sendo, porém, escandalosamente mais morosos no caso da justiça administrativa

De facto, em Portugal os processos nos tribunais administrativos demoram na 1ª instância uma média de 927 dias (mais de dois anos e meio!), o que compara miseravelmente com a mediana europeia de 240 dias (mais 380%). A diferença é ainda maior no caso da 2ª instância (1015 dias contra 209!). 

Na realidade, o panorama é ainda mais preocupante do que esses números indicam, pois em Portugal, (i) uma parte dos casos do contencioso administrativo corre nos tribunais judiciais (por exemplo, as questões de regulação económica e de concorrência) e (ii) muitos casos são desviados para a arbitragem administrativa, dada justamente a demora dos tribunais.

2. Torna-se  evidente que em Portugal os cidadãos e as empresas não têm assegurado o seu direito a uma justiça em tempo útil nas suas pendências contra o Estado, com a injustiça e os custos inerentes!

A verdade é que a justiça administrativa nunca recuperou da sobrecarga trazida pela reforma dos tribunais e do processo administrativo de 2002, que aumentou os mecanismos processuais de (hiper)proteção dos particulares contra a Administração, fazendo crescer a litigância e congestionando os tribunais.

Todavia, como se vê, a proteção processual acrescida redunda em proteção judicial reduzida, levando os interessados com mais posses a optar pela arbitragem dos seus litígios administrativos, apesar da sua maior onerosidade.

Adenda
Outros dados do Relatório: Portugal tem muito mais advogados em função da população do que os demais países; as custas são muita mais elevadas; os juízes e o MP têm melhores remunerações, sobretudo nos escalões superiores; o recurso a meios de ICT está entre os melhores.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Lisbon first (22): Eles comem tudo!

1. Eis a manchete do Jornal de Notícias de ontem: dois mil milhões de euros do plano nacional de investimentos só para os metropolitanos de Lisboa e do Porto, mais para o primeiro do que para o segundo.

O Estado insiste em fazer o País todo pagar os transportes urbanos das duas principais cidades, que deviam ser de responsabilidade municipal ou intermunicipal, segundo um elementar princípio de descentralização territorial e de "federalismo fiscal". Num Estado territorialmente descentralizado, aliás por imposição constitucional,  não faz sentido que seja o Governo central a gerir e a financiar linhas de metropolitano.

Mas é evidente que é nessas duas cidades que se concentram os eleitores (somente à sua conta, elegem mais do que 80 deputados) e que no próximo ano vai haver eleições municipais.

2. Enquanto a cornucópia do orçamento despeja investimento público do Estado nas duas principais cidades em tarefas que deviam ser responsabilidade local, Coimbra, por exemplo, continua a ver adiados alguns investimentos estruturais, da responsabilidade do Estado, em alguns casos com décadasde atraso, como a nova estação ferroviária, a nova Maternidade, a nova Penitenciária e o novo tribunal. O que abunda para as cidades favoritas do poder escasseia para as demais.

O que surpreende é o gritante silêncio dos deputados por Coimbra e do próprio município de Coimbra perante esta iniquidade na repartição territorial do investimento público do Estado. A solidariedade partidária não pode justificar tudo.

[revisto]

Adenda
Um leitor argumenta que Coimbra também beneficia do financiamento do Estado para o Metrobus.  Mas não é a mesma coisa. O "Sistema de Mobilidade do Mondego" consiste essencialmente no reaproveitamento do antigo ramal ferroviário da Lousã, que era uma responsabilidade do Estado, tal como as demais linhas férreas. O unico acréscimo, que representa uma pequena fração do investimento, é uma ligação dessa linha aos Hospitais da Universidade, que, a meu ver, deveria ser financiada pela município de Coimbra, por se tratar de transporte urbano de âmbito local. Nada de comum, portanto, com o gigantesco financiamento da rede do metropolitano de Lisboa e do Porto pelo Estado.

Adenda (2) 
Um leitor menos benévolo diz que não é somente o peso eleitoral dos Lisboa e do Porto que justifica os seus privilegios quanto ao investimento público, mas também o facto de os ministros e restantes membros do Governo serem quase exclusivamente oriundos dessas duas cidades. 

Adenda (3) 
Comentário de um leitor:«O nosso País já está de facto regionalizado. O país DE PRIMEIRA tem duas regiões, a área metropolitana de Lisboa e a área metropolitana do Porto, e depois há uma terceira região, que pode designar-se apropriadamente O RESTO do país 
 Nem mais!

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Praça da República (38): Onde a democracia falha em Portugal

1. No debate em que ontem participei com Alexandre Quintanilha e com Paulo Trigo Pereira, a propósito do livro do último sobre a democracia em Portugal (um livro de leitura obrigatória para quem se interesse pelo presente e futuro do regime democrático em Portugal), defendi que, embora Portugal se encontre muito bem posicionado nos rankings internacionais de qualidade da democracia (como os do Economist e da V-Democracy), há várias falhas que importa enfrentar, porque afetam o seu futuro. 
Entre esses falhas - défice de participação política (abstenção eleitoral, pouca intervenção nos mecanismos de democracia participativa), défice de cultura cívica e política (iliteracia cívica e irresponsabilidade política) e mau desempenho económico -, sublinhei a gravidade da última, pois, a não ser enfrentada, ela põe em causa a capacidade de sustentação do Estado social e, em última instância, a estabilidade da democracia liberal.

2. Com efeito, Portugal padece de uma prolongada situação de crescimento económico medíocre, resultado de baixa eficiência económica (produtividade) e insuficiente competitividade externa, que se reflete em desemprego elevado e emprego de baixa qualidade, baixos sálarios, fraco crescimento do rendimento pessoal, insuficiência de recursos fiscais (apesar dos impostos elevados), carência no financiamento dos serviços públicos, reduzido nível de investimento privado e público, elevado endividamento público, desequilíbrio e endividamento externo,.
Não admira, portanto, que Portugal vá descendo continuamente no ranking económico dos países da União Europeia, sendo regularmente ultrapassado pelos países do Leste, que, quando entraram na União, há menos de duas décadas, estavam bastante atrás de Portugal. 
Vamos caindo, irresponsavelmente, para o fundo da tabela.

3. Este mau desempenho económico estrutural tem a ver antes de mais com políticas públicas erradas (nomeadamente políticas económicas, orçamentais e fiscais), facilitadas por fatores políticos adversos (governos minoritários, partidos politicamente inconsistentes, incapacidade de negociação e de coligação interpartidária, falta de consenso sobre estratégia de longo prazo para o país), para os quais não tem havido a necessária resposta institucional e cultural.
Mas também contam muitos as falhas culturais ao nível individual e coletivo, por exemplo na preferência do gasto sobre a poupança, do endividamento sobre a prudência financeira, do consumo sobre o investimento, do imediato sobre o futuro, da dependência do Estado sobre a iniciativa e responsabilidade individual. 
Assim não vamos lá!

Pobre Língua (20): Portenglish

Já tínhamos o StayawayCovid, agora temos o IVAucher (jogando com a sigla IVA e o palavra inglesa voucher). O Estado junta-se assim, oficialmente, à tendência de jornalistas, economistas, etc. na adoção de termos ingleses ou de anglicismos, mesmo quando eles nada acrescentam à compreensão das iniciativas públicas em causa, salvo pretensiosismo.

Infelizmente, hoje em dia, há muita gente nas elites cosmopolitas que cuida mais do seu Inglês do que do Português. Mas o Estado, esse, não tem o direito de desconsiderar a Língua.

+Europa (31): Soberania económica da União

Obrigatório ler este relatório do European Council for Foreign Relations sobre a necessidade de defender a soberania económica da UE contra ações agressivas de outras potências económicas, nomeadamente os Estados Unidos e a China.

Definitivamente adquirido o conceito de soberania da União, introduzido pelo Presidente Macron e logo adotado pela Chancelerina Merkel, ele é especialmente útil no esfera da relações económicas internacionais, quer pelo facto de a União ser uma efetiva potência económica, quer por a economia da União depender muito do comércio internacional e do investimento direto estrangeiro.

Por isso, a União tem não apenas de adotar políticas assertivas nas suas relações económicas internacionais, mas também de se munir dos meios de defender, se necessário agressivamente, os seus interesses económicos no confronto com atitudes hostis de outras potências económicas

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Retratos de Portugal (2): Onde está a inspeção?

 

Estes dois contentores permanecem há anos abandonados, deixados nas obras de construção ou reparação da ponte sob a qual se encontram (sobre o Rio Cértima, no limite entre os concelhos de Águeda e de Oliveira do Bairro).

Obviamente, faltou inspeção final à obra antes da sua entrega, ou a inspeção "esqueceu-se" de ver o que ficava para trás. É um dos cancros do País: a inexistência ou ineficácia das inspeções de obras públicas.

Adenda
Ainda recentemente tive de protestar duas vezes junto da CM de Coimbra, por causa da obra de remodelação dos passeios da minha rua, cujos trabalhos tinham ficado inacabados ou com manifestas deficiências. A inspeção não tinha passado por lá.

Adenda 2
Comentário de um leitor:«O problema é que não poucas vezes a inspeção é comprada pelos empreiteiros para não ir ou não ver...». Pois, por isso é que convém fazer regularmente avaliação externa dos serviços de inspeção, o que, infelizmente, não está nos nossos hábitos administrativos. De resto, o problema não se coloca somente na inspeção de obras públicas, mas sim em todos os tipos de inspeção (obras particulares, tributária, ambiental, transportes, etc.).

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Debaixo do tapete (1): As carreiras especiais na função pública

Na sua entrevista ao Jornal de Negócios de hoje (acesso reservado a assinantes), a Ministra da Reforma do Estado anunciou a intenção de tornar mais céleres as progressões nas carreiras do regime geral da função pública, que dependem de avaliação de desempenho. O que não disse (nem sequer foi perguntada pelos jornalistas!) foi o que pretende fazer com as carreiras especiais, em que as progressões são feitas essencialmente pelo decurso do tempo, o que, além de um privilégio injustificável dentro da função pública, é insustentável a prazo em termos orçamentais, por causa do grande volume de funcionários em causa.

Mas é assim: é fatal a nossa disponibilidade para colocar debaixo do tapete as questões difíceis e de empurrá-las para diante, indefinidamente

Praça da República (37): O risco de declínio da democracia e os meios de o conjurar

 

Vai ser publicamente lançado amanhã o livro de Paulo Trigo Pereira intitulado «Democracia em Portugal: Como evitar o seu declinio»

O autor, conhecido professor universitário e militante de várias causas cívicas, reflete sobre a sua recente experiência como deputado à Assembleia da República e procura tirar lições quer quanto ao desempenho da democracia parlamentar, quer quanto aos remédios para o melhorar.

A convite do autor, vou ter o gosto de apresentar o referido livro. É amanha, no ISEG em Lisboa.