quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Ai o défice (13): A maldição dos governos minoritários

1. O Governo tem toda a razão em denunciar a leviandade orçamental do PSD, com o aumento de despesa pública que as suas propostas orçamentais implicariam, tanto mais que elas têm toda a probabilidade de ser aprovadas, com o voto oportunista dos partidos de esquerda.

Mas, pela mesma medida, o Governo deveria revelar qual o aumento de despesa que importam as várias cedências feitas ao Bloco de Esquerda (enquanto esteve à mesa das negociações) e ao PCP, para obter a aprovação do orçamento

Infelizmente, apesar da retórica de Rui Rio, sob o ponto de vista orçamental, o PSD compete com a extrema-esquerda na exploração da vulnerabilidade parlamentar do Governo.

2. Um coisa é certa: o orçamento que está para ser aprovado vai ter o défice substancialmente agravado por via do aumento da despesa corrente. 

Mesmo que o Governo, através de cativações, venha o atenuar o défice na execução orçamental, a principal vítima será o investimento público, ao contrário do que devia suceder numa recessão económica, como aquela em que nos encontramos, que deprime o investimento privado.

3. É a maldição dos governos minoritários, condenados a aumentar a despesa pública corrente e a sacrificar o investimento público (o que, no caso de um governo de esquerda, constitui uma grave contradição política). 

Em tempos de "vacas gordas" orçamentais, quando a economia e o emprego "bombeiam" receita tributária, a despesa pública com proteção social se reduz e o investimento privado aumenta, é possível manter o défice sob controlo (ou até reduzi-lo) e a economia a crescer. Quando uma recessão chega, porém, tudo vira ao contrário. 

É então que os governos minoritários correm o risco de perder margem de manobra orçamental (e política).

Adenda
Um leitor argumenta que o Governo está à espera do "pote" de dinheiro grátis da UE para financiar o investimento público, podendo por isso gastar toda a receita ordinária em despesa corrente. Penso, porém, que a cornucópia da União - que foi desenhada especificamente para recuperar a economia dos estragos da COVID -19 - devia financiar investimento adicional, sem prejudicar o investimento normal financiado pelas receitas ordinárias.  Penso mesmo que, enquanto durar o programa da "bazuca" europeia, deveria haver separação entre o orçamento ordinário e o orçamento extraordinário financiado por aquela, a fim de tornar mais transparente a gestão desta.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Não dá para entender (22): O veto

Julguei que quando numa negociação com o Parlamento Europeu o Conselho dos Estados-membros assume um certo compromisso, a presidência do Conselho (neste caso, a presidência alemã) procedeu às necessárias consultas aos seus pares e obteve luz verde, assegurando a viabilidade do acordo entre as duas instituições, sobretudo quando se trata de decisões que exigem unanimidade no Conselho.

Estranhamente, tal não foi o caso no acordo sobre o orçamento da União, quanto à condicionalidade política (cláusula do Estado de Direito) dos fundos europeus atribuídos aos Estados-membros, incluindo o Fundo de Recuperação, pois aquele acaba de ser vetado pela Polónia e pela Hungria, que, aliás, nunca esconderam a sua oposição a tal condição.

Será que a presidência alemã tentou "forçar a mão" de polacos e húngaros, confiando em que eles desistiriam do veto, face ao elevado montante de que vão beneficiar do orçamento da União? Se foi isso, é muito mau, dado o grave impasse criado, sobretudo se os recalcitrantes acabarem por ser os vencedores.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Regionalização (4): Um pouco mais de rigor, sff

 

1. Como mostra a imagem junta, o Jornal de Notícias vai promovar mais um debate político sobre a descentralização territorial, especialmente centrado sobre a regionalização. No entanto, todo o programa está erradamente construído com base numa pretensa contraposição entre "descentralização ou regionalização" (tal é a rubrica do último painel do colóquio).

Ora, a regionalização É UMA FORMA DE DESCENTRALIZAÇÃO, pelo que não podem opor-se as duas noções. O que há é diversos níveis de descentralização territorial, a saber, as freguesias, os municípios e as regiões. Na sua configuração constitucional, as regiões são autarquias territoriais de nível supramunicipal. 

O que faz sentido é saber se os limites de escala da descentralização municipal não tornam obrigatória a descentralização regional, sob pena de continuar a manter nas mão do Estado central tarefas que bem podem e devem ser descentralizadas, ao abrigo do princípio constitucional da subsidiariedade do Estado.

2. É para evitar estas confusões conceptuais - que as posições antirregionalização cultivam -,  que há muito venho preconizando substituir a noção de "regionalização" pela de descentralização regional e a noção de "regiões administrativas" pela de autarquias regionais

Assim se acabam os equívocos atávicos, que em nada favorecem, pelo contrário, a luta pela descentralização regional. É estranho é que eles também sejam acriticamente perfilhados pelos adeptos da descentralização regional, incluindo, neste caso, por um jornal tradicionalmente apoiante da causa regional.

Ai, a dívida (19): Teses de política orçamental

1. Independentemente de saber se o Governador do Banco de Portugal se deve pronunciar publicamente sobre a política orçamental, penso que Mário Centeno tem toda a razão neste alerta, quando defende que:

    - «Os níveis de dívida [pública] tornam proibitivas intervenções massivas nos apoios sociais e à economia»; 
     - «Os apoios públicos devem ser temporários. Perante uma crise que não é estrutural, não devemos alterar as características fundamentais do nosso sistema de apoio social e económico»; 
    - «Os fundos públicos que forem devotados ao investimento devem dar prioridade aos projetos que já estão em curso e que mostram sustentabilidade, não apenas financeira, mas também ambiental»; 
    - «[Deveremos] procurar apoios ao emprego que promovam o emprego não nas mesmas empresas e setores, mas em novas contratações e na criação líquida de emprego».

2.  É evidente que a primeira tese, sobre o constrangimento que o nível elevado da dívida pública coloca à política orçamental, envolve uma crítica retroativa à política orçamental seguida pelo próprio Mário Centeno enquanto Ministro das Finanças, que não privilegiou suficientemente a redução do rácio da dívida, como aqui várias vezes se defendeu, o que teria agora proporcionado maior folga orçamental no apoio à economia e ao investimento público.

3. É claro que os partidos à esquerda do PS não gostam nada destas teses, visto que a sua única preocupação é aumentar sempre, sem prudência, a despesa pública corrente, fazendo crescer a dívida pública, manter a rigidez do mercado laboral e salvaguardar empregos mesmo em empresas inviáveis. 
Eles recusam-se a reconhecer que (i) mais dívida pública hoje significa mais impostos amanhã; (ii) que o bem-estar da geração de hoje à custa da dívida vai ser pago com juros elevados pelas gerações vindouras;e que (iii) o melhor meio de criar emprego e eliminar salários baixos é apostar na reconversão profissional e na eficiência e competitividade da economia.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Bicentenário da Revolução Liberal (21): Recordando um "vintista desalinhado"

Eis mais uma contribuição da minha coautoria com o Prof. José Domingues para a história da Revolução Liberal, na longa série de artigos que temos vindo a publicar desde 2017 na revista História do Jornal de Notícias. Desta vez (História, nº 28, de outubro, 2020), analisamos a contribuição de Xavier de Araújo (1777-181856). 

Nascido em Arcos de Valdevez, jurista pela Universidade de Coimbra, membro do Sinédrio e da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino após a sublevação do Porto (1820-21), deputado às Cortes Constituintes (1821-22), exilado depois da contrarrevolução de 1823, deixou nas suas Revelações e Memórias (1846) um contributo importante para a história do Sinédrio e da Revolução.

Apesar de integrar o "núcleo duro" dos conspiradores e dirigentes revolucionários e de ter acompanhado as posições triunfantes quanto a quase todos os pontos importantes nas Cortes Constituintes, divergiu porém numa das mais controversas, tendo defendido um parlamento bicamaral, solução que haveria depois de vingar nas constituições portuguesas subsequentes

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

+ Europa (32): Recursos fiscais próprios da União

Tão importante como a decisão sem precedentes de a União emitir dívida pública para financiar a  recuperação económica dos Estados-membros é o acordo, agora concluído entre o Parlamento Europeu e o Conselho, segundo o qual esse empréstimo (juros e reembolso) virá a ser pago (entre 2028 e 2058) por novos recursos fiscais próprios da União, e não através dos recursos orçamentais existentes, assim mantendo o atual financiamento das despesas ordinárias da União.

O programa dos novos recursos tributários, a implementar nos próximos anos (ver gráfico junto, retirado de uma informação do PSD), inclui o imposto sobre embalagens plásticas descartáveis, a taxa de CO2 nas importações, o imposto sobre as grandes empresas digitais, o alargamento do mecanismo de comércio de emissões e taxa sobre transações financeiras. 

Ainda no plano das receitas foi decidido que as coimas (sanções pecuniárias) aplicadas pela Comissão Europeia, sobretudo no campo das infrações ao direito da concorrência, que representam um apreciável montante, passam também a ser receita própria da União.

A concretizar-se este programa, trata-se de um dos mais decisivos contributos para a integração federal europeia. As despesas da União passam a estar menos dependentes do que até agora das contribuições financeiras dos Estados-membros.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Não é bem a mesma coisa (2): Falsas equiparações

1. Há comentadores de direita que procuram desculpar a aliança do PSD e do Chega para apoio ao novo governo regional dos Açores, invocando o apoio negociado pelo PS com o PCP e o BE, em 2015, para formar o anterior governo do PS a nível nacional. Apesar de não ter apoiado a "Geringonça", entendo que as situações não são equiparáveis.

Evidentemente, o PCP e o BE são partidos de extrema-esquerda, assumidamente hostis à economia de mercado, à integração europeia e à disciplina orçamental, razão de sobra para tornar improvável uma aliança de governo com eles por parte do PS, por este estar comprometido doutrinariamente e politicamente com todos esses princípios. Em todo o caso, há que reconhecer que durante a legislatura esses partidos silenciaram as referidas posições, não deixando de ser curioso que tenha sido um Governo apoiado por ambos que conseguiu o primeiro excedente orçamental desde 1976!

2. Ora, apesar desse fosso em matéria de políticas económicas e financeiras, a verdade é que nenhum desses partidos tem propostas políticas manifestamente atentatórias dos direitos humanos e da dignidade humana, que estão na base da CRP de 1976, como as propostas do Chega de instituir penas físicas (como a castração) ou a pena de prisão perpétua, para além das suas posições claramente racistas e xenófobas, contra ciganos e imigrantes. 

Uma coisa são as divergências sobre o sistema económico e financeiro e sobre a integração europeia, por mais fundas que sejam, outra coisa são divergências essenciais quanto ao respeito pela dignidade humana. Ora, não consta que que o Chega vá colocar essas posições na gaveta enquanto durar a sua aliança nos Açores com o PSD. Rui Rio vai ter de se explicar sempre que elas sejam reiteradas

Não se misturem, portanto, alhos com bugalhos.

Adenda
Em entrevista ao Público, o vice-presidente do PSD, Morais Sarmento, argumenta que «o apoio às nossas propostas não se recusa». Mas o sofisma é óbvio: ninguém critica o PSD por não ter recusado o apoio do Chega nos Açores; o que se critica, sim, é que tenha procurado e negociado esse apoio com o Chega, fazendo as necessárias concessões

Adenda 2 (12/11)
Já combinam os tuits.  Entendimento perfeito!
[No Jornal de Notícias de hoje)

Altamente, comprometedor! Rio deveria esclarecer esta sintonia comunicativa.

Adenda (3)
Um leitor comenta que, se não fosse combinado, seria ainda pior: pensam o mesmo! Les mauvais esprits se rencontrent...

Adenda (4)
Um leitor do PSD protesta que «não existe nenhum acordo com o Chega a nível nacional». Mas não tem razão: (i) há o anúncio do Chega sobre os termos do "acordo nacional" (abaixo reproduzido), que o PSD não exigiu que fosse retirado; (ii) mesmo que houvesse somente o acordo a nível regional (cujo texto ainda se não conhece, não se sabe porquê...), é claro que ele teve o beneplácito de Rio.

Adenda (5) 
Convergindo com a minha tese: «Ao contrário da esquerda [BE e PCP], que, apesar de não gostar do capitalismo e da economia de mercado, foi aprendendo a conviver com a democracia e com as instituições, esta direita fez o caminho inverso e radicalizou-se. Retomou o culto da personalidade em torno de líderes únicos e demagogos, assenta a sua estratégia de afirmação política na estigmatização de etnias, no desprezo pela diversidade, na desconsideração das minorias, na desvalorização da ciência, na promoção da desinformação, no histerismo justiceiro e securitário e no discurso totalmente anti-instituições. Isto não é ser liberal nem conservador. É mero populismo.» (F. Proença de Carvalho, Aonde chega o PSD?).

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Praça da República (41): Contra as boas práticas políticas

1. O presidente cessante do governo regional dos Açores tem razão neste ponto: como partido mais votado nas eleições regionais, o PS devia ser convidado a formar novo governo, apesar do anúncio da aliança das direitas.

Na verdade, se há uma tradição sempre observada quer no plano nacional, quer no plano regional, é a de respeitar o direito do partido mais votado, mesmo sem maioria parlamentar (como é agora a regra...), a formar governo, sujeitando-se ao veredicto parlamentar. É certo que a "geringonça" de direita regional antecipava o "chumbo" de um governo minoritário do PS, pelo que este poderia não estar interessado em formar um governo condenado à nascença. Mas era uma opção sua, que não lhe devia ter sido expropriada.

Num sistema de governo essencialmente parlamentar é ao parlamento, e não à entidade competente para indigitar o governo, que cabe afastar da governação o partido que ganha eleições. 

2. Recorde-se que em 2015, quando Passo Coelho se prontificou a formar governo, por a coligação eleitoral do PSD com o CDS ter ganhado as eleições, embora sem maioria absoluta, e o PSD ter a maior bancada parlamentar, já se sabia do acordo entre as esquerdas para rejeitar tal governo e para formar um governo alternativo do PS. E, apesar disso, preferiu avançar e fazer-se rejeitar no Parlamento. Agora, nas mesmas circunstâncias, Vasco Cordeiro tinha o mesmo direito de submeter um novo governo ao parlamento regional e de deixar registo do seu efémero governo nos anais políticos (tal como Passos Coelho em 2015).

Resta saber se esta precipitada decisão do Representante da República nos Açores foi tomada por si autonomamente ou, como é mais provável, em acordo com o Presidente da República, que assim se torna corresponsável por esta violação das boas práticas políticas.

Adenda
Um leitor pergunta se também defendi esta tese em 2015. Evidentemente, sim: basta consultar AQUI e AQUI, por exemplo. Nesta matéria não fui eu que mudei de posição...

Adenda (2) (12/1)
Fica-se agora a saber que foi o próprio Presidente da República que forçou a solução. Para memória futura...

domingo, 8 de novembro de 2020

Praça da República (40): Há coisas que não mudam



1. Ao contrário do que eu antecipei AQUI, os vários partidos de direita, incluindo o Chega, chegaram a uma aliança de governo nos Açores, assim afastando o PS do poder, apesar de este ter ganhado as eleições, porém sem maioria. 

Como já se tinha verificado em 2015 no plano nacional e se confirma agora nos Açores, não basta ganhar eleições para governar. É assim numa democracia parlamentar, em que a legitimidade dos governos decorre da maioria no parlamento. A direita, que em 2015 acusou essa lógica de "antidemocrática", adotou-a agora sem tergiversar.

2. A fome de poder prevaleceu sobre as manifestas diferenças políticas na heteróclita aliança da direita. Não sendo ainda publicamente conhecidas as bases do acordo, não é possível fazer um juízo das cedências feitas pelo PSD, designadamente ao Chega, para obter o seu apoio.

Seja como for, em pouco mais de um ano, o Chega entra no Parlamento nacional e no parlamento regional dos Açores e, ato contínuo, entra no "arco da governação" regional. Um indiscutível feito político!

Não há nenhuma razão para crer que esta solução não seja de utilizar no plano nacional, se as condições se vierem a proporcionar. Tal como o PS recorreu ao PCP e ao BE, quebrando um tabu político de 40 anos, para forjar uma solução de governo contra a direita, o PSD mostra que não precisou de nenhum tempo, nem de excessivos escrúpulos políticos, para acolher o Chega como parceiro político contra a esquerda.

3. Não é difícil tirar a "moralidade política" destes desenvolvimentos. Tal como o PSD aprendeu em 2015 que só pode voltar ao Governo quando a direita vencer a esquerda, também o PS aprendeu agora que só se mantém no governo enquanto a esquerda superar a direita. Por isso, para qualquer deles, não pode haver pruridos políticos quanto às necessárias alianças. "Tudo o que vem à rede é peixe".

Continua, porém, a existir uma importante assimetria: enquanto o PSD mantém capacidade para forjar coligações de governo com outros partidos à sua direita, como já fez várias vezes no plano nacional e agora também nas regiões autónomas, o PS não se mostra capaz de atrair os partidos da esquerda-da-esquerda a governos de coligação, pois o máximo que conseguiu em 2015 foi um acordo parlamentar de sustentação do seu governo minoritário, solução esta que já não precisou de repetir em 2019, por o PS ter mais deputados do que a direita junta. 

No fundo, PCP e o BE continuam fora do "arco da governação", pelo que, ao contrário do PSD, o PS parece condenado a governos minoritários.

Adenda
Um leitor observa que a minha tese só está correta, excluindo à partida governos de "grande coligação", como na Alemanha. Assim é. Entre nós, ao longo destes 44 anos, desde a CRP de 1976, tem prevalecido a alternância entre PS e PSD no governo e na oposição, só tendo havido um efémero governo de coligação de ambos (1983-85) após a vitória eleitoral do PS sem maioria parlamentar em 1983, para responder à grave crise económico-financeira por que o País então passava. Conhecido, pejorativamente, como governo do "bloco central", tal solução não voltou a ser equacionada desde então. Em 2013, por iniciativa de Cavaco Silva, durante a intervenção financeira externa da troika, frustrou-se uma proposta de "governo de salvação nacional" entre PSD, PS e CDS, para substituir o Governo PSD-CDS então em funções, tendo essa solução sido rejeitada pelo PS. A decisão de António Costa, em 2015, de buscar uma aliança política à esquerda do PS visou explicitamente afastar o fantasma do "bloco central".

sábado, 7 de novembro de 2020

Presidenciais 2021 (5): A opção presidencial do PS

Nenhuma surpresa nesta decisão do PS de não apoiar nenhuma candidatura presidencial e de dar liberdade de voto aos seus membros nas eleições presidenciais de janeiro próximo. Foi o que defendi desde o início.

Também reitero a minha opinião de que esta posição e o possível apoio público de alguns dirigentes do PS podem melhorar as perspectivas eleitorais de Ana Gomes,  apesar do apoio de que o atual Presidente (e candidato favorito) colhe entre muitos socialistas. António Costa deu uma ajuda, ao dizer que a candidatura de AG contribui para «impor uma derrota clara à candidatura da extrema-direita xenófoba».

Nessa lógica, quanto maior vantagem a candidata socialista tiver sobre Ventura, melhor.

White House 2021 (5): O resgate democrático dos Estados Unidos

 

Celebremos na eleição do Presidente Biden o resgate democrático dos Estados Unidos e o regresso da decência política à Casa Branca, depois de um pesadelo político de quatro anos, para os Estados Unidos e para o Mundo. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Pandemia (41): Os hospitais não são lares sociais

Dada a pressão da pandemia sobre os internamentos hospitalares, foi necessário encontrar finalmente uma resposta social para as muitas centenas de pessoas que indevidamente continuam internadas sem necessidade, por vezes durante anos, por não terem para onde ir, sobrecarregando indevidamente o SNS, perante a incompreensível inércia dos ministérios da Saúde e da Segurança Social.

A seu tempo, não deixei de denunciar, entre os males do SNS, «a sobrecarga do SNS com pacientes hospitalizados que não têm alta por falta de cobertura da rede de cuidados continuados ou por falta de apoio familiar domiciliário». Sem eco, como se viu.

Eis como a pandemia pode ter efeitos colaterais positivos...

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Pandemia (40): Estado de emergência cautelar

[Fonte da imagem AQUI]

1. É original a declaração do novo estado de emergência pelo Presidente da República, pois não estabelece a suspensão de nenhum direito fundamental (com o pressupõe a Constituição), limitando-se a autorizar o Governo e as autoridades competentes a «limitar, restringir ou condicionar parcialmente o exercício» vários direitos (liberdade pessoal, liberdade de circulação, liberdade económica, direitos dos trabalhadores, direito ao desenvolvimento da personalidade).

Ou seja, o decreto presidencial cumpre a função típica das leis restritivas comuns, quer quando reitera medidas restritivas já autorizadas por leis existentes, mas que têm suscitado dúvidas (mesmo que infundadas) quanto à sua aplicação, quer quando supre o défice de previsão legislativa das medidas restritivas em caso de crise sanitária, como AQUI se assinalou anteriormente

2. Resta saber se, para além de comprometer politicamente o Presidente da República na tomada dessas medidas, a declaração do estado de emergência deve servir para socorrer supletivamente a inércia do legislador, com os riscos AQUI apontados.

Poderia dizer-se que a previsão dessas medidas na declaração de emergência afasta a dificuldade constitucional resultante de entre os referidos direitos estarem alguns, em relação aos quais a Constituição não prevê explicitamente a possibilidade de serem restringidos. Todavia, uma vez que tais restrições visam defender o direito à saúde, na sua vertente negativa (direito a não se ser infetado por terceiros), elas sempre poderiam ser constitucionalmente admissíveis, como meio de solucionar a colisão de direitos, como AQUI assinalei.

Em suma, este atípico estado de emergência só pode justificar-se em aras à segurança jurídica, que, aliás, o decreto presidencial invoca expressamente.

Adenda
Um leitor "menos complacente", como a si próprio se qualifica, argumenta que o decreto presidencial padece de "desvio de poder constitucional", por utilizar a declaração de estado de emergência para fim diverso do previsto constitucionalmente (a restrição de direitos, em vez da suspensão de direitos), e também de incompetência (por avocar poderes legislativos da AR), e ironisa que, embora invocando a "segurança jurídica", o decreto presidencial pode gerar ele mesmo uma maior insegurança jurídica, por causa da sua própria desconformidade constitucional. Eis um desafiante tema para um sofisticado debate académico...

Adenda (2)
Outro leitor contra-argumenta que, se é certo que a Constituição só permite a suspensão de direitos em estado de emergência, ela não exclui, porém, que este compreenda também a restrição de direitos, quando se trate restrições excecionais, mais severas que o normal, exigidas pela situação de emergência (como sucede agora). Parece-me um bom argumento, que aliás corresponde ao meu ensino desta matéria. Todavia, como mostra a Lei da Proteção Civil, nada impede e tudo aconselha que as leis gerais antecipem essas situações especiais, para dispensar a desnecessária declaração do estado de emergência, que, essa sim, deve ser excecional.

Adenda (3)
Um leitor sentencia: «quem pode o mais (suspender) pode o menos (restringir)». Mas não é bem assim, quando a competência para o mais e para o menos pertence a entidades diferentes.

Corporativismo (18): "Ultra vires"

1. A Ordem dos Advogados vai deliberar sobre a convocação de um referendo acerca do regime de segurança social dos advogados, nomeadamente quanto à opção entre manter o regime da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e mudar para o regime geral da segurança social.

Esta iniciativa enfrenta, porém, vários problemas
        - em primeiro lugar, a OA não pode colocar a referendo a modificação do regime da segurança social dos advogados, que está fixado na lei; só o Estado pode mudar a lei, pelo que só o Estado poderia convocar um referendo para esse efeito - que, aliás, não poderia restringir-se aos advogados; 
        - em  segundo lugar, a OA só pode convocar referendos sobre as questões da sua competência; ora, não vejo onde está o poder legal da OA para decidir, ou sequer pronunciar-se, sobre o regime de segurança social dos advogados, cuja definição cabe exclusivamente ao Estado;
       - por último, os referendos não servem para optar entre duas soluções alternativas, mas sim para respostas de sim ou não a uma medida a adotar por quem promove o referendo.   

Há aqui, portanto, barreiras jurídicas inultrapassáveis para a convocação do dito referendo pela OA.

2. No atual regime jurídico das ordens profissionais, diferentemente do que sucedia no regime corporativo do"Estado Novo", as ordens profissionais só têm funções de representação da profissão e de autorregulação e de autodisciplina profissional, pelo que deixaram de ter poderes quanto à segurança social dos seus membros (ou sobre relações laborais, como tinham antes). O artigo dos Estatutos da OA sobre o regime de segurança social é um resquício descabido de tempos idos há mais de 40 anos.

Por isso, se o Conselho de Jurisdição da Ordem não vetar a convocação do referendo, como se impõe, incumbe ao Ministério Público promover a pertinente ação judicial de anulação, antecedida da necessária medida cautelar de suspensão da sua execução.

Adenda
Na verdade, as coisas são mais complicadas, pois desde sempre defendo que o regime especial de segurança social dos advogados e solicitadores (CPAS) não tem base constitucional, quer por derrogar o princípio do sistema público único de segurança social constitucionalmente estabelecido, quer por atentar contra o princípio constitucional da igualdade, conferindo a essas duas profissões o privilégio de gerirem o seu próprio sistema privativo de segurança social.

Adenda (2)
Um leitor sugere que o referendo poderia ser convocado somente a título consultivo, com o fim de permitir à OA defender junto do Governo a solução que vier a obter vencimento. Só que para isso seria necessário admitir que os referendos podem ser convocados por quem não tem poder para decidir a questão colocada a referendo e com efeitos meramente consultivos (em ambos os casos ao arrepio das pertinentes regras constitucionais) e que as ordens profissionais podem tomar posição sobre o regime de segurança social sobre os seus membros - o que eu contesto, pela simples razão de que isso não cabe nas suas atribuições legais. Se o Governo quiser equacionar (como deve) a extinção da CPAS e a integração dos advogados e solicitadores no regime geral, deve ouvir obviamente TODOS os interessados (e não somente os advogados) através da CPAS (e não através da OA).

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Livres e iguais (53): Orgulho europeu

1. Passam hoje 70 anos sobre a assinatura da Convenção Europeia de Direitos Humanos (Roma, 1950), a primeira convenção internacional de direitos humanos e a primeira a instituir um mecanismo de queixa dos cidadãos contra os seus próprios Estados e de condenação destes por violação da Convenção.

A CEDH não influenciou somente posteriores convenções internacionais regionais de direitos humanos (Américas, 1969, e África, 1981), mas também o catálogo de direitos fundamentais de várias constituições nacionais posteriores, nascidas da "terceira vaga da democratização", iniciada com a Revolução portuguesa de 1974 e a Constutuição de 1976.

Neste artigo de hoje no Expresso o anterior juiz nacional no TEDH e a atual juíza sublinham justamente o que Portugal deve à CEDH.

2. Por coincidência, passam também este ano, a 7 de dezembro, os 20 anos da proclamação da Carta de Direitos Fundamentais da UE, que estabeleceu um pilar essencial do Estado de direito constitucional da União, a que depois o Tratado de Lisboa (2007-2009) veio conferir força vinculativa.

Eis dois instrumentos transnacionais de direitos humanos que orgulham a Europa, pelo seu pioneirismo na proteção multinível dos direitos humanos e na efetividade em suprir as insuficiências ou lacunas da sua proteção constitucional ao nível nacional.

Pandemia (39): Inconstitucionalite aguda

1. Há quem pense que os constitucionalistas são tanto melhores quanto mais inconstitucionalidades descortinarem e, observando as acusações de inconstitucionalidade desde ao início da pandemia, é caso para dizer que nenhuma das medidas tomadas para a combater, fora do estado de emergência, escapou a essa acusação.

Também se dá erradamente por assente que, uma vez denunciada uma inconstitucionalidade, por menos evidente que seja, é ao legislador ou ao Governo que incumbe provar que ela não existe, como se lhes coubesse o "ónus da prova" da conformidade constitucional dos seus atos. Ora, não é assim. Os atos do poder público não são inconstitucionais enquanto não se provar concludentemente que o são. Portanto, quem invoca uma inconstitucionalidade é que tem de justificar convincentemente a sua tese. Não basta alegar que ela existe. Na dúvida, não prevalece a inconstitucionalidade.

2. A Ordem dos Advogados também resolveu entrar na liça, anunciando publicamente que apoia o recurso de uma advogada que, tendo pedido a suspensão judicial da aplicação da restrição da liberdade de circulação na semana passada e tendo perdido, resolveu recorrer da decisão do STA  para o Tribunal Constitucional.

Nada contra, obviamente. O problema é que, no seu apressado zelo, a OA invoca em seu apoio uma passagem da CRP Anotada de que sou coautor (junto com J. J. Gomes Canotilho), sobre a regra constitucional de que as restrições legais aos direitos fundamentais precisam de uma explícita credencial constitucional, o que não se verifica no caso da liberdade de circulação, "esquecendo", porém, de citar outra passagem da mesma obra, em que se explica que essa autorização constitucional de restrição de cada direito não é exigível quando se trate de situações de colisão de direitos fundamentais, em que necessariamente um deles ou ambos têm de sofrer alguma restrição, para defender o outro (como já expliquei anteriormente em adenda a este post).

Ora, como argumentou o Governo, a referida restrição da circulação, aliás muito mitigada pelas exceções estabelecidas, visou limitar o perigo de contaminação comunitária, assim defendendo o direito de todos a não verem lesada a sua saúde (e a sua vida!) por ação ou omissão de terceiros. Portanto, restrição de um direito fundamental para defender outro.

3. De resto, se essas "restrições não expressamente previstas", como são conhecidas, fossem constitucionalmente ilícitas, então seriam ilegítimas todas as demais restrições à liberdade de circulação ao abrigo da Lei da Proteção Civil, obrigando à declaração do estado de emergência, sempre que fosse necessário tomá-las. 

O mesmo sucederia, de resto, em muitas outras situações de colisão entre direitos fundamentais, para os quais a Constituição não prevê explicitamente a possibilidade de restrição legal. E são muitos.

White House 2020 (4): Trump again!?

[Fonte da imagem AQUI]

1. E o que parecia ainda mais improvável do que há quatro anos, pode voltar a acontecer: apesar de a contagem ainda não estar encerrada (10:30 da manhã em Portugal), a recondução de Trump na Casa Branca parece certa.

A confirmar-se esse infeliz desfecho, trata-se, antes de mais, da vitória da economia sobre a pandemia. A baixa taxa de mortalidade da segunda desvalorizou a importância eleitoral da luta contra ela; a falta de uma rede de proteção social e sanitária nos Estados Unidos contra o desemprego e a perda de rendimentos ajudou a primeira opção. Isso justifica a importante votação em Trump, não somente entre os trabalhadores brancos, mas também entre os latinos e os afro-descendentes, principais vítimas das recessões económicas.

A combatividade de Trump na campanha versus a temerosidade de Biden também ajudou. É evidente que a integridade de caráter e a decência política não são ativos eleitorais rendosos na América de hoje.

2. A vitória de Trump será também a vitória de todos os "demo-autocratas" nacionalistas por esse mundo fora, os Bolsonaro, os Putin, os Kaczinski, os Orbán e os seus seguidores, os Salvini, as Le Pen, os Ventura. 

Por outro lado, será uma séria derrota para a União Europeia, aprofundando o divórcio transatlântico. Além disso, também vai reforçar a resistência dos grupos que, em vários países europeus, lutam contra as medidas restritivas antipandemia, por vezes recorrendo à violência nas ruas.

3. Mais um mandato de Trump na Casa Branca iria igualmente multiplicar os estragos na ordem política e económica mundial e nas instituições multilaterais de governação global, desde as Nações Unidas à Organização Mundial do Comércio.

Se Trump continuar na Casa Branca, não serão propícios à paz e à estabilidade internacional os tempos que aí vêm. Preparemo-nos para o pior.

[revisto]

Adenda
Revelando mais uma vez a sua falta de escrúpulos políticos, Trump veio logo de manhã clamar vitória e exigir a cessação da contagem dos votos nos vários estados onde ainda decorria, e ainda não está encerrada. Puro golpismo político. Ora, embora a sua vitória continue a ser provável, ainda não está assegurada - e seria uma bela surpresa se o não fosse. Decididamente, não o merece.

Adenda (2) 5/11
Entretanto, a margem de vitória de Trump reduziu-se muito, tendo que ganhar necessariamente a Pensilvânia, a Carolina do Norte, a Geórgia e o Nevada ou o Arizona (e só vai à frente nos três primeiros); inversamente, Biden aumentou muito as suas chances, bastando-lhe ganhar a Pensilvânia ou dois dos outros estados ainda em disputa, sendo que vai à frente da contagem em quatro deles (Wisconsin, Michigan, Arizona e Nevada). Agora, parece estar à vista o fim da era Trump.


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Corporativismo (17): Monopólios profissionais

1. Merece atenção este artigo da Profª Maria de Lurdes Rodrigues, Reitora do ISCTE, sobre os malefícios dos monopólios profissionais normalmente associados à criação de ordens profissionais, neste caso da Ordem dos Assistentes Sociais, instituída pela AR em 2019.

Há muito tempo que venho denunciando, neste blogue e antes dele, a deriva política na criação de ordens profissionais, que tem levado à sua proliferação entre nós, sem paralelo em qualquer outra país de democracia liberal e de economia de mercado.

2. Se as ordens profissionais já são um problema em si mesmas, na medida em que conferem às profissões "ordenadas" o privilégio de um estatuto institucional público na representação e defesa das respetivas  profissões, pior são os monopólios profissionais que elas habitualmente proporcioname protegem, os quais, como todos os monopólios, tendem a favorecer os prestadores de serviços em prejuízo dos utentes e que, portanto, só se justificam em casos muito contados. 

Na verdade, os exclusivos profissionais vão em geral ao arrepio das recomendações da União Europeia e da OCDE, no sentido de garantir a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços profissionais, tanto ao nível doméstico quanto ao nível do mercado único da União. 

De resto, gozando a liberdade profissional de proteção constitucional, resta saber se muitos desses exclusivos não vão de encontro aos requisitos constitucionais da restrição de direitos fundamentais, nomeadamente quanto ao teste da proporcionalidade

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Pandemia (38): Estado de emergência "preventivo"?

 1. A ideia de um estado de emergência "preventivo" suscita-me várias reservas:

- Primeiramente, penso que o lógica constitucional do estado de emergência consiste em responder a calamidades atuais ou iminentes, não a situações a verificar num futuro mais ou menos indefinido;

- Em segundo lugar, entendo que é o decreto presidencial do estado de emergência que declara os direitos que ficam suspensos, em vez de autorizar o Governo fazê-lo quando o entender conveniente;

- Por último, julgo que o estado de emergência só é necessário para suspender o exercício de direitos (ou seja, para os tornar inoperativos), devendo evitar definir também restrições (por definição menos gravosas, por terem de respeitar o "núcleo essencial" dos direitos afetados), cuja competência cabe ao legislador e ao Governo / administração, sob pena de se criar a ideia incorreta de que também estas só podem ser estabelecidas em estado de emergência.

2. Na verdade, a declaração do estado de emergência confere ao Presidente da República um superpoder legislativo (embora com autorização parlamentar e com duração limitada), o qual, por ser uma derrogação do princípio da separação de poderes, só deve ser utilizado para os fins estritamente previstos na Constituição e não para fazer o Presidente da República compartilhar de poderes e responsabilidades que cabem ao Governo.

É que, ao contrário deste, que responde politicamente perante o Parlamento, com todas as consequências, o PR não é politicamente responsável pelo exercício dos seus poderes (a não ser de forma difusa, perante os eleitores).

Adenda
Não dá para perceber a declaração do Presidente da República onde se assume como o «maior responsável pelos erros da luta à covid-19». O Governo agradece, mas a declaração não é credível. Desde a declaração presidencial do estado de emergência em março e abril, que aliás foi bem-sucedido, toda a gestão do combate à pandemia desde então foi da competência e responsabilidade do Governo, sem que o Presidente pudesse interferir, salvo através de conselhos ou advertências, em que, de resto, tem sido pródigo. Não podendo haver responsabilidade sem poder, de onde vem, então, a pretensa responsabilidade presidencial?

Retratos de Portugal (3): Irresponsabilidade pública

Eis a entrada e o edifício do antigo Hospital Pedriático de Coimbra, abandonado há quase dez anos, quando o HPC mudou para novas instalações. 
Nestes dez anos, em que o edifício e o parques se degradaram inexoravelmente, nem o Estado nem o município (a quem parece que pertence o terreno) tiveram oportunidade de lhe dar nova serventia, nem de pensar na sua alienação a quem lha possa dar. Obviamente, quanto mais tempo passa, mais oneroso ficará o seu restauro e menos o edificio vale.
Revolta a irresponsabilidade do Estado com o património de todos nós.

Adenda
Numa pesquisa na Internet descobri esta impressionante reportagem de abandono e depredação do antigo HCP, realizada há três anos.

domingo, 1 de novembro de 2020

Este País não tem emenda (24): Detritos selvagens

A imagem mostra detritos de obras (incluindo louça sanitária) ilegalmente depositados junto de uma via pública nos campos do Mondego (a jusante de Coimbra). Há muitos outros casos destes na mesma zona, desfeiando a paisagem e poluindo o ambiente. Um verdadeiro retrato da irresponsabilidade cívica e da impunidade das práticas lesivas do ambiente entre nós.
Por outro lado, se estes atos de vandalismo da natureza não são evitáveis pelos serviços de controlo ambiental, já é menos compreensível que não haja a diligência necessária nos serviços competentes para remover estes detritos para os locais a isso destinados, em vez de os deixarem indefinidamente a exibir a sua fealdade.

sábado, 31 de outubro de 2020

Pandemia (37): Estado de emergência soft

1. É acertada a estratégia decidida pelo Governo de adotar medidas mais restritivas somente para os municípios com maiores índices de contaminação (o que, no entanto, vai abranger 70% da população), pois isso vai obrigar os respetivos moradores  e empresas a esforçarem-se por inverter a situação, ao mesmo tempo que incentiva os demais concelhos a manterem a sua situação controlada.

As novas medidas são relativamente pouco intrusivas, quando comparadas com as do primeiro surto da pandemia, na primavera, e quando comparadas com as tomadas noutros países por estes dias, não se incluindo nelas, por exemplo, o recolher obrigatório à noite, que vários outros países decretaram (visando travar os eventos sociais noturnos e o seu elevado potencial de contaminação).

2. Poucas das novas medidas se traduzem verdadeiramente em suspensão de direitos - como será a proibição de mercados de levante e a obrigação de teletrabalho -, pelo que exigem a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República. 

As demais medidas são restrições mais ou menos severas a várias liberdades (liberdade de estabelecimento, liberdade de reunião, etc.), sem porém as afetarem no seu núcleo essencial, pelo que poderiam ser estabelecidas ou autorizadas por lei fora de estado de emergência. Mas a declaração deste, para além de comprometer o Presidente da República na sua adoção, afasta eventuais dúvidas sobre a sua constitucionalidade, como as que foram (infundadamente) suscitadas a propósito da restrição da liberdade de deslocação entre municípios no corrente fim de semana.

3. Torna-se evidente, porém, que o novo estado de emergência que aí vem fica bem longe da amplitude da suspensão de direitos fundamentais do estado de emergência em março e abril, que suspendeu várias liberdades, como a liberdade de deslocação (confinamento geral), a liberdade de estabelecimento em várias atividades (cafés, restaurantes, etc.), a liberdade de culto, etc.

Esperemos que não se tenha de ir mais além nas próximas semanas.

Adenda
Para se ter uma ideia da moderação das medidas agora tomadas em Portugal, basta comparar com as que ontem foram tomadas na Bélgica, que incluem encerramento de todos os estabelcimentos não essenciais (incluido resaurantes e cafés)e a limitação das visitas em casa a uma ou duas, etc., a somar ao recolher obrigatório, que já estava em vigor há dias.

Aplauso (18): Ilegitimidade judicial do Chega

1. Merece aplauso a decisão do Supremo Tribunal Administrativo que rejeitou a providência cautelar interposta pelo Chega contra a restrição da liberdade de deslocação (entre concelhos) neste fim de semana, em razão da ilegitimidade do requerente, pois os partidos políticos não são titulares de nenhum dos direitos alegadamente violados pela referida medida, que são direitos eminentemente individuais

Ora, se o Chega não tinha legitimidade para impugnar judicialmente a legalidade da Resolução do Conselho de Ministros em causa, também não tinha legitimidade para pedir a suspensão da sua execução.

2. Fica assim clarificado que, ao contrário de algumas associações representativas de certas categorias sociais, como os sindicatos, a quem lei confere legitimidade para a defesa dos interesses dos seus membros em juízo, tal não sucede com os partidos políticos, pelo que eles só podem defender em juízo os seus próprios interesses institucionais, o que não era o caso. 

Com esta clarificação judicial, corta-se cerce a tentativa que se desenhava, de certos partidos políticos instrumentalizarem a justiça ao serviço do seu combate político.

Só é pena que, assim, o STA não tenha podido conhecer do fundo da questão, a saber, sobre a alegada inconstitucionalidade de tal medida --, que, a meu ver, não existe.

Adenda
Porque é que a decisão ainda não está disponível no website do STA? É evidente que a decisão não interessa somente às partes nesse processo!

Adenda 2
Um leitor invoca um comunicado do Conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados que defende a inconstitucionalidade da medida. Não é única opinião nesse sentido, o que a não torna procedente. O que é lamentável é que a Ordem dos Advogados tenha emprestado o seu peso institucional a tal opinião.

Adenda 3
A grande novidade de hoje é que noutro processo suscitado por uma advogada sobre o mesmo assunto (PROC.º Nº 122/20.1BALSB), o STA conheceu do fundo da questão e indeferiu a suspensão da execução da medida, rejeitando todos os argumentos de inconstitucionalidade, desde a alegada falta de fundamento legal à invocada falta de proporcionalidade. Ficam assim validados todos os meus argumentos neste post sobre o assunto (incluindo o lamentável comunicado do Conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados referido na Adenda anterior)!

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

White House 2020 (3): Anti-Trump coalition

 

Of course!

«In this election America faces a fateful choice. At stake is the nature of its democracy. One path leads to a fractious, personalised rule, dominated by a head of state who scorns decency and truth. The other leads to something better—something truer to what this newspaper sees as the values that originally made America an inspiration around the world.»

Saber quem vai ocupar a Casa Branca também interessa deste lado do Atlântico. E é notório que, pelo voto dos europeus, Trump não chegaria aos 30%!

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Lisbon first (24): Até o "Público"?!

Não é só o Estado que dá primazia a Lisboa. Na sua edição de hoje, o Público traz uma peça sobre o enquadramento jurídico das medidas antiCovid, tendo ouvido cinco constitucionalistas. Não por acaso, todos são de universidades de Lisboa.

Sucede que não se trata de um caso isolado, mas de uma prática arreigada, com que até um jornal como o Público alinha, como se não houvesse juristas nas Universidades do Minho, do Porto ou de Coimbra, só para citar as escolas públicas.

Decididamente, o atavismo centralista e o "lisboacentrismo" contaminam tudo e todos!

Pandemia (36): "Estado de crise sanitária"

[Fonte da Imagem AQUI]

1. Em relação ao post anterior, um leitor bem informado pergunta se não é «excessivo recorrer ao estado de emergência constitucional para decretar o recolher obrigatório», visto tratar-se ainda de uma restrição da liberdade de movimentos (durante a noite) e não da sua suspensão, como sucedeu na primavera, com o confinamento geral, pelo que bastaria uma lei geral a autorizar tal restrição.

Poupar-se-ia assim a intervenção do Presidente da República e o pesado e demorado procedimento de declaração do estado de emergência, dando ao Governo maior flexibilidade no recurso a restrições aos direitos fundamentais afetados. 

O problema é que tal lei não existe. Quando as leis gerais existentes não chegam (como a Lei de Bases da Proteção Civil ou a Lei de Vigilância em Saúde Pública), o Governo e a AR têm preferido recorrer a soluções legislativas ad hoc, como a recente lei sobre o uso obrigatório de máscaras. 

2. Sufrago, porém, a ideia sugerida desde o início por alguns observadores e constitucionalistas (e hoje reiterada no Público) de que a melhor solução seria introduzir na atual LVSP a figura do estado de crise sanitária (expressão que prefiro à de "estado de emergência, ou de calamidade, sanitária", como alguns propõem, que se presta a confusão com figuras já existentes).

Além de afastar as dúvidas de constitucionalidade suscitadas contra a aplicação extensiva da LBPC a estas situações de proteção sanitária, uma tal solução permitiria (i) definir mais rigorosamente essa nova figura, (ii) regular o modo e o procedimento da declaração do estado de crise (pareceres prévios, etc.), a sua duração e renovação e, sobretudo, (iii) definir o catálogo de medidas restritivas aplicáveis, incluindo restrições à liberdade de circulação, de reunião e de manifestação, cercas sanitárias, recolher obrigatório, restrição a atividades económicas, restrição à greve em serviços de saúde, vacinação obrigatória e obrigação de tratamento, uso obrigatório de meios de proteção, etc.

A segurança sanitária não se dá bem com insegurança jurídica.

É altura de equacionar essa solução, pois, com a segunda vaga, impõem-se medidas mais severas de proteção. E, como parece evidente, a pandemia veio para ficar e também não promete ser a última crise sanitária.

Adenda
Um leitor acrescenta que é necessária uma resposta integrada, e não medidas fragmentárias, ad hoc. «Fica a ideia de que os meses de verão foram perdidos sem fazer o planeamento do outono/inverno.»

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Pandemia (35): Degradação célere da situação

(Origem: Expresso)
1. É de esperar que desta reunião governamental extraordinária saiam novas medidas capazes de enfrentar a segunda vaga da pandemia, que em poucas semanas disparou, em número de infeções, de internamentos e de mortos (gráfico acima), voltando a instalar um clima de medo e de ansiedade nos setores da população mais vulneráveis.
Não vejo como é que se pode adiar muito tempo uma nova declaração de estado de emergência, para permitir, como noutros países, declarar o recolher obrigatório em algumas zonas e restrições mais duras aos ajuntamentos, à abertura de estabelecimentos e à liberdade de deslocação.
Como já escrevi noutra altura, onde a disciplina e a responsabilidade cívica falecem, resta o arrocho da proibição ou da imposição legal.

2. O SNS começa a dar sinais de esgotamento em alguns hospitais e não é a contratação apressada de mais pessoal, como pretendia o BE, que vai resolver a situação, tanto mais que as baixas por doença (real ou fictícia) estão a aumentar desmesuradamente, sem que, aliás, ninguém indague porquê. Entretanto, acumula-se o adiamento de consultas, de exames e de cirurgias relativamente a outras doenças, incluindo as mais graves, como as do foro oncológico.
É evidente que o SNS não está, nem poderia estar preparado, para picos excecionais de procura desta natureza, que tornam mais evidente o seu conhecido défice de eficiência e de produtividade, que a falta de avaliação de desempenho do pessoal, dos serviços e da gestão alimenta. A lamentável redução do horário de trabalho para as 35 horas há quatro anos, o persistente mathusianismo profissional na formação de médicos e a acumualção e conflitos de interesse entre o público e o privado, sempre em prejuízo daquele, só agravam as desvantagens do SNS.
E não é so a despejar dinheiro sobre ele que as coisas melhoram.

Adenda
No post seguinte defendo uma alternativa ao estado de emergência.

Bloquices (13): O fim de uma perigosa ilusão

O cinismo oportunista com que o Bloco decidiu votar contra o orçamento, apesar de todas as importantes concessões que obtivera do Governo do PS, não revela somente a incontornável leviandade política da agremiação esquerdista. Ao mostrar que não é "tábua de sustentar prego" e que pode convergir friamente com a direita num momento difícil do governo socialista (e do País), o Bloco desfaz num momento a ilusão, que muitos alimentaram, em 2015, do advento de uma nova era de alianças privilegiadas do PS com as forças à sua esquerda no parlamento, para além do tradicional "arco da governação".

Tudo indica que o namoro de quatro anos, em tempos de "vacas gordas", deu em divórcio litigioso e insidioso, quando a crise começou a morder a sério. Aos que, como o autor destas linhas, nunca acreditaram na metamorfose do Bloco em força política de vocação governamental, por incompatível com o seu ADN hostil à economia de mercado e à responsabilidade orçamental, só lhes resta comentar: «está-lhe na massa do sangue». QED!

Adenda
Um leitor pergunta se, tendo o Bloco rejeitado qualquer acordo para viabilizar o orçamento e tendo mesmo decidido votar contra, não se impõe que o Governo retire do orçamento todas as concessões que tinha feito aos bloquistas, sob pena de benefício ao infrator. Tem, toda a razão!

Adenda (2)
Um leitor benévolo diz que ainda resta a «atitude responsável e [a] seriedade negocial» do PCP. É certo, mas há que observar que (i) os comunistas já declararam reiteradamente que excluem qualquer acordo de legislatura com os socialistas; (ii) não basta a sua abstenção para sustentar o Governo, como se verifica nesta ocorrência da votação do orçamento; e, sobretudo (iii), o PCP parece ter entrado numa fase mais acentuada de declínio, como mostra a perda do seu deputado no parlamento dos Açores e a minúscula previsão de votação no seu candidato nas eleições presidenciais. Para piorar o panorama, há indícios de que o PCP pode perder a sua posição no ranking partidário para o Chega, o que seria uma humilhação... 

Adenda (3)
Outro leitor, referindo-se à primeira adenda, acima, diz que seria uma «birra do PS», se este retirasse as concessões que já tinha feito ao BE e que até já constam da proposta de orçamento apresentada à AR. Discordo: se uma parte oferece certas vantagens a outra para chegar a um acordo e a segunda não aceita o acordo, então a primeira tem todo o direito de retirar a sua oferta. A meu ver, se o acordo proposto já era mau, manter as concessões sem acordo é péssimo.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Praça da República (39): Razões para inquietação

Parece evidente que as coisas não correm pelo melhor ao PS nos tempos políticos que correm. 

Há, desde logo, o novo surto descontrolado da pandemia e a dificuldade do Governo em responder eficazmente, fazendo ampliar o sentimento de insegurança na opinião pública; veio depois o rompimento belicoso do BE na questão do orçamento, parecendo pôr um fim precipitado ao ensaio de aliança política que durava desde 2015, no que pode ser o dobre de finados pela aposta do PS em acordos à sua esquerda; soma-se, por último, o revés eleitoral dos Açores (apesar dos 39% de votos), que pode levar à perda do poder para um governo de "geringonça" à direita, interrompendo um quarto de século de hegemonia socialista nas ilhas. 

A resiliência dos grandes partidos (e das suas lideranças) testa-se nas conjunturas difíceis. Vamos a ver como é que o PS, e António Costa, dão a volta por cima...

[O título foi substituído]

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Vontade popular (11): Equação governativa complicada

1. As eleições para o parlamento regional dos Açores de ontem traduziram-se numa vitória por maioria relativa do PS (menos de 40%), o que é um revés eleitoral, pois tem menos cinco deputados e perdeu a maioria absoluta que tinha. Aliás, também não há hipótese de uma coligação maioritária à esquerda, pois a soma do BE não atinge os 29 deputados necessários, nem com uma eventual ajuda do PAN.

Já o conjunto da direita (PSD+CDS+CHEGA+PPM+IL) perfaz uma maioria parlamentar (e mais 6pp nos votos do que as esquerdas!), a qual, porém, não se deve concretizar numa coligação de governo, dada a sua inconsistência, nomeadamente por causa do Chega.

2. Em todo o caso, estas eleições resultaram numa acentuada fragmentação do parlamento açoriano, que, apesar da saída da CDU (outro revés), passa a ter nada menos de oito partidos representados, com três novos partidos a entrar nas bancadas do parlamento da Horta (Chega, PAN e IL). 

Com efeito, dois partidos conseguem representação parlamentar com menos de 2% dos votos (PAN e IL) e outro partido (PPM) consegue dois deputados (ou seja 3,5%) com menos de 2,5% dois votos, o que não deixa de ser extraordinário em termos de "majoração" eleitoral às avessas
[Revisto]

Adenda
Um leitor pergunta se, tendo sido o PS a ganhar as eleições, o representante da República pode nomear um eventual Governo do PSD com o apoio de todas as direitas. Como sempre defendi numa situação semelhante, ao contrário (em 2015), o partido que ganhou as eleições (o PS) deve ser chamado a constituir governo, mas se este for rejeitado no parlamento regional pela união das direitas, então deve ser o PSD chamado a formar governo, se conseguir o apoio parlamentar de todas as direitas. É assim que funciona a democracia parlamentar: quem ganha eleições sem maioria, arrisca-se a ir para a oposição. Divertido vai ser ver os partidos que anatemizaram a solução de 2015 como "usurpação do poder" recorrerem agora a ela.

Adenda (2)
O atual sistema eleitoral açoriano apresenta duas características que facilitam a fragmentação parlamentar e dificultam a governabilidade: (i) círculos eleitorais muitos pequenos (como o Corvo e as Flores), que permitem eleger deputados com um número de votos ínfimo e (ii) excessiva proporcionalidade permitida pelo "círculo de compensação".

Adenda (3)
Um leitor acrescenta, com razão, que também seria divertido ver agora o PS a atacar, em nome da "ilegitimidade" política, uma solução de governo de que beneficiou em 2015. Mas espero que isso não suceda...

Adenda (4)
É claro que o PSD não pode aceitar estas condições do Chega para viabilizar uma "geringonça" de Direita nos Açores. Sendo assim, se a direita votasse a rejeição de um governo minoritário do PS e depois também não conseguisse formar governo, só restaria o recurso a novas eleições. O problema é que também nos Açores existe o impedimento de dissolução do parlamento regional nos seis meses seguintes à sua eleição e não faz sentido manter o atual governo em funções de gestão durante esse tempo todo...