quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (18): Não podia ser mais claro

1. Nesta entrevista, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros e candidato a deputado, vem corroborar o que António Costa sempre fez questão de clarificar desde o início: estas eleições são para escolher, entre ele e Rui Rio, entre o PS e o PSD, quem deve governar o País. 

Pela primeira vez, porém, ASS vem admitir explicitamente que, em caso de vitória por maioria relativa (hipótese mais do que provável), a solução de estabilidade governativa pode estar num "acordo de cavalheiros" negociado entre PS e PSD, assegurando ao governo minoritário do outro condições para governar.

2. Isto só pode dizer uma coisa, que já resultava obviamente das palavras de Costa e do seu compromisso de se demitir da liderança do PS caso perdesse as eleições: o PS só equaciona ser governo se sair vencedor das eleições, mesmo na hipótese de uma maioria conjunta das esquerdas. Por conseguinte, as coisas não poderiam ser mais claras para os eleitores à esquerda: só haverá governo de esquerda com a vitória eleitoral do PS. 

Ao contrário das pretensões do Bloco e do espantalho político agitado por Rui Rio, o cenário da "Geringonça" de 2015 não está, nem nunca esteve, em cima da mesa nestas eleições - felizmente, direi eu.

Adenda
O que ainda nenhum dos dois partidos esclareceu é se só está disponível para viabilizar um governo minoritário do outro, se este não negociar o apoio parlamentar com outro(s) partido(s) da sua banda do espectro político, ou seja, se for um "acordo de exclusividade", o que quer dizer que o PS teria de escolher entre um acordo com o PSD ou com os partidos à sua esquerda e o PSD teria de optar entre um acordo com o PS ou com os partidos à sua direita.  É o que faz sentido político...

Adenda 2
Um leitor pergunta se tenho a certeza de que Rui Rio, mesmo perdendo as eleições, não cairia na tentação de repetir a "Geringonça" dos Açores, se houvesse maioria das direitas, tal é a sede de poder e o ódio anti-PS que se nota na direita política e doutrinária (vide Observador). Por um lado, penso que a hipótese de uma maioria das direitas sem vitória do PSD é ainda mais improvável do que vitória eleitoral deste. Segundo, uma tal solução implicaria necessarimente um acordo com o Chega, pelo menos de apoio parlamentar, o que Rio tem terminantemente negado. Por último, mesmo que resistíssemos a tomar por bons os compromissos dos líderes partidários, não se vê como é que o PSD poderia equacionar uma solução governativa que implicaria ficar refém do Chega

Adenda 3
Teoricamente, vencendo com maioria relativa, Costa tem aparentemente mais opções de governação do que teria Rui Rio - a saber: (a) negociar apoio parlamentar com os partidos à sua esquerda (+PAN); (b) negociar apoio parlamentar com o PSD; (c) governar à vista, com acordos pontuais à direita e à esquerda ("à Guterres" e à "Costa II") -, enquanto Rio só teria duas hipóteses, dada a exclusão do Chega da equação governativa. Todavia, como tenho argumentado várias vezes (por exemplo, AQUI), não vejo que haja condições para um acordo de legislatura entre o PS e os partidos à sua esquerda (mesmo que fizessem maioria), pelo que também o PS está realmente limitado às opções (b) e (c) acima referidas.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Pandemia (62): Vale a pena continuar (bis)?

Eis os números de hoje da pandemia: 65.578 novos casos (sempre a subir), o que eleva o número atual de infetados ativos detetados para cima de meio milhão, exatamente 515 962; entre eles há apenas 2 313 internados (número a diminuir), dos quais somente 154 em UCI (idem); o número de mortos nas últimas 24 horas foi 42.

Em percentagem sobre o número de infetados (provavelmente subestimado por causa das infeções não detetadas, por assintomáticas), os números de casualties dão 0,45% de internados (grande parte dos quais foram hospitalizados por outros motivos, só lhes sendo detetado o Covid, sem sintomas, no hospital); 0,03% em UCI; 0,008% de mortes. 

Ora, considerando este quadro de baixa agressividade da atual vaga do Covid, será que - insisto em perguntar - vale mesmo a pena manter mais de um milhão de pessoas isoladas (os infetados mais os contactos de risco), com o correspondente impacto negativo na liberdade individual e na economia ("baixas por doença"), quando esse isolamento maciço nem sequer afeta a transmissão desenfreada do vírus?

Adenda
Inteiramene de acordo com este especialista: "Relativamente aos confinamentos", Pedro Simas adiantou que, atualmente, "não são muito eficientes", até porque o país continua com uma taxa alta de infeções de SARS-CoV-2."Temos de assumir a nossa condição, e não estando o Serviço Nacional de Saúde em `stress´ (cuidados intensivos), não faz sentido isolar as crianças e famílias inteiras em casa, quando nem sequer é um confinamento absoluto", avançou.

Adenda 2
E a Dinamarca, que não tem propriamente um governo aventureiro, vai mais longe e abandona todas as restrições.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (17): O guru do Bloco

O guru doutrinário e político do Bloco, que o PS elevou a membro do Conselho de Estado e a consultor do Banco de Portugal no âmbito da "Geringonça", acha que é o próprio PS «que está a montar a recuperação da direita», pelo que, depois de ter cavilosamente "desejado" a crise política e a dissolução da AR (que o Bloco e o PCP efetivamente provocaram deliberadamente ao rejeitar liminarmente o orçamento), Costa seria também o culpado de sua eventual derrota eleitoral, que as sondagens agora não excluem, no meio de uma campanha eleitoral em que Bloco e PCP têm feito questão de priviligiar o ataque ao PS...

O que admira é que ainda haja no PS quem esteja disponível para aturar este cinismo e desconchavo político do Bloco e admita repetir com ele a malfadada parceria que a "esquerda da esquerda" apunhalou a frio em plena AR (Et tu, Brutus!?). Com "aliados" destes à sua esquerda, o PS não precisa de inimigos políticos... 

Adenda
Um leitor comenta ironicamente: "Sim, faz todo o sentido, AC quer ser derrotado propositadamente, para dar de frosques e ir para Bruxelas, sua grande ambição. O PS deve mudar de secretário-geral já, como operação de emergência, e submetê-lo a julgamento popular pela Geringonça, com Louçã a presidir ao julgamento." 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (16): Comprometedora leviandade

1. Chega a ser chocante é a extrema ligeireza com que, nesta entrevista à Antena 1, o líder do PSD e candidato a primeiro-ministro explica a inesperada proposta de abandonar a gratuitidade constitucional do SNS e tenta desvalorizar o seu alcance, como se fosse pequena coisa passar a exigir a quem tenha meios um pagamento maior ou menor pelos cuidados de saúde de que necessite, de valor deixado à discricionariedade da maioria de cada momento. 

É evidente que o pagamento dos cuidados afastaria muita gente do SNS, pondo em causa a sua universalidade, e afrontaria a valor primacial da igualdade dos portugueses perante a saúde, independentemente dos meios. Tal como no caso da escola pública, também no caso do SNS a gratuitidade é penhor da universalidade e da igualdade no acesso a um bem essencial numa sociedade decente.

2. É verdade que o PSD nunca se deu muito bem com o SNS tal como previsto na Constituição, ou seja, universal e (tendencialmente) gratuito para todos, quanto aos cuidados recebidos. Votou contra na Assembleia Constituinte; revogou-o mal chegou ao poder, num Governo da AD, e só Tribunal Constitucional o resgatou desse "assasssinato" político a frio; muito mais tarde, Passos Coelho propôs numa revisão constitucional abolir a gratuitidade, salvo para quem não tivesse meios, sujeitando as pessoas a "teste de recursos". 

O que não deixa de supreender é que tal proposta - que vai bem com a lógica da direita liberal, de que "quem quer saúde paga-a", da "liberdade de escolha" e da redução de impostos - tenha sido levianamente recuperada por alguém que protesta "não ser de direita". Pelos vistos, entre a proclamação e a convicção vai uma longa distância.

A questão crucial suscitada por esta comprometedora proposta, que subverte um dos pilares do "Estado social" configurado na Constituição, é a de saber que confiança é que PSD pode inspirar quanto à manutenção dos outros pilares, como o ensino público e a segurança social pública.

Adenda
O problema - objeta um leitor - é que muitas pessoas das classes média e alta já pagam os seus cuidados de saúde através da ADSE e de seguros de saúde, pelo que entendem que não devem ser chamados a pagar com os seus impostos também a gratuitidade do SNS, mesmo para quem dispõe de meios para pagar os cuidados de saúde, no todo ou em parte. A este argumento respondo: (i) embora sendo pessoalmente financiador, beneficiário e copagador da ADSE, trata-se de uma opção pessoal, que a todo o tempo posso rever; (ii) por essa lógica, quem opta por escolas privadas também não deveria financiar a gratuitidade da escola pública - que deveria obedecer igualmente ao princípio do "utente-pagador" - e os lisboetas que pagam o uso do seu automóvel privado deveriam recusar-se a financiar com os seus impostos e taxas muncipais a gratuitidade dos transportes públicos que a CM do PSD vai instituir na capital. Haja coerência!


Pandemia (61): Vale a pena continuar?

1. Segundo o Público de hoje, há quase um milhão de pessoas confinadas por causa da Covid (cerca de 9% da população), entre infetados e pessoas com contactos de risco, número obviamente a subir todos os dias, dada a elevada transmissibilidade da variante Ómicron.

Considerando que esse confinamento maciço não está a conseguir travar a transmissão e que na esmagadora maioria dos casos a infeção com esta variante é assaz inofensiva (sem sintomas ou com sintomas ligeiros de um vulgar resfriado) em pessoas vacinadas sem outros problemas de saúde, a pergunta que se tem de começar a colocar é saber se vale a pena insistir nesta vasta limitação da liberdade de movimento pessoal e no pesado impacto negativo sobre a atividade económica, à luz de um princípio constitucional elementar, que é o princípio da proporcionalidade entre os encargos e sacrifícios públicos e os motivos e objetivos que as justificam.

2. Justifica-se seguramente continuar a apostar na vacinação (terceira dose e crianças), recuperando o indevido atraso nessa tarefa; proteger especialmente as pessoas mais vulneráveis (lares, centros de dia e hospitais); obrigar ao uso de máscara e reservar a vacinados e/ou testados o acesso a lugares mais atreitos à contaminação (restaurantes, bares, eventos); e, obviamente, apelar à responsabilidade individual e coletiva na prevenção da contaminação.

Mas há que questionar se se justifica manter uma estratégia de contenção, que foi traçada antes da vacinação maciça e para uma variante muito menos contagiosa e muito mais perigosa, na atual situação, em que aquela deixou de ser eficaz

Além do mais, é óbvio que o Estado não tem meios de controlar o respeito pelo confinamento - que depende, portanto, da autorresponsablidade dos próprios - e que ele próprio achou que não havia especial perigo na ida dos confinados às urnas no próximo domingo sem nenhma restrição especial. Ora, obrigações que que se não podem fazer cumprir, nem sequer censurar, não devem ser impostas.

Eleições parlamentares 2022 (15): As propostas eleitorais que não encontrei

1. Sem surpresa pessoal, na minha resposta ao inquérito "cego" do Público sobre um conjunto de propostas eleitorais dos partidos com representação parlamentar (mas não explicitamente identificadas com os respetivos partidos), confirmei que estou mais perto do PS e do PAN, por esta ordem, e mais afastado do Chega e do CDS (idem).

Infelizmente, para além de não fazer o pleno do programa de nenhum dos partidos de quem estou mais próximo, também não encontrei na lista várias propostas que há muito defendo, designadamente neste blogue, o que também me afasta de qualquer tentação de filiação partidária. 

2. Assim, por exemplo, quanto a propostas políticas substantivas, recordo as seguintes, sem ordem de precedência:

    - representação dos trabalhadores no conselho representativo (conselho de supervisão, conselho de administração) das grandes empresas, em termos a negociar na concertação social, e participação nos lucros das empresas, em função do aumento da respetiva produtividade;

    - restabelecimento do imposto de sucessões e doações sobre os beneficiários de elevados montantes e sua afetação ao financimento da segurança social;

    - avaliação de desempenho das carreiras especiais, incluindo assiduidade e produtividade, para efeitos de progressão (professores, polícias, Ministério Público, etc.);

   - fim do privilégio pensionístico de magistrados, embaixadores, etc., cujas pensões são sempre iguais à correspondente remuneração no ativo, aliás sustentadas pelas contribuições de todos os trabalhadores, sob o regime geral de pensões, sujeitas a uma "taxa de substituição" cada vez menor;

    - sujeição das prestações sociais não contributivas a "condição de recursos", de modo a beneficiarem somente quem delas efetivamente precisa;

     - pôr fim ao estacionamento automóvel gratuito, ressalvando a preferência dos moradores, a começar pelo proporcionado pelos serviços públicos aos seus funcionários e utentes, para pôr fim a privilégios indevidos e à ocupação privada do espaço público, assim incentivando o uso do transporte coletivo, em vez do automóvel individual;

      - cessar o financiamento do orçamento do Estado, alimentado pelos contribuintes de todo o País, ao metropolitano de Lisboa e do Porto, considerando a responsabilidade municipal ou intermunicipal pelos transportes públicos urbanos.

3. No que respeita a propostas de reforma política, seleciono as seguintes, também sem ordem de prioridade:

      - criar um círculo eleitoral nacional (elegendo cerca de 25 deputados) e redimensionar os atuais círculos territoriais, com um mínimo de 3-5 deputados e um máximo de 9 deputados e valorizar todos os votos, em qualquer parte do território nacional, e reduzir a assimetria entre círculos eleitorais; 

     - pôr as Regiões Autónomas a contribuir congruamente para o financiamento das "despesas gerais da República" (órgãos de soberania, desde o PR aos tribunais, forças armadas e forças de segurança, contribuição financeira para a UE e para organizações internacionais, etc.), não havendo nenhuma justificação para que elas sejam exclusivamente custeados pelso contribuintes do Continente;

   - constitucionalizar o limite ao défice orçamental e à dívida pública (embora deixando o critério preciso para a LEO), assim como limitar o crescimento da despesa corrente abaixo do crescimento da despesa orçamental total, para favorecer a despesa de investimento; 

   -  aumentar a remuneração dos membros do Governo, de modo a não afastar pessoas capazes que não estejam disponíveis para perder muito dinnheiro ao serviço do Estado, assim como o prémio de exlusividade dos deputados, para reduzir o número de deputados em acumulação;

    - estender o limite de mandatos políticos sucessivos a todos os titulares de cargos políticos, e não somente ao PR e aos presidentes de câmara municipal, como hoje.

4. Importa sublinhar que poucas destas reformas carecem de revisão constitucional, embora algumas delas necessitem de aprovação por maioria de 2/3, como, por exemplo, a dos círculos eleitorais, pelo que, num caso e noutro, só uma convergência entre o PS e o PSD pode permitir a sua aprovação.

Adenda
Perguntam-me quais destas propostas deviam ser perfilhadas pelo PS. A minha resposta é TODAS, mas entre as mais "socialistas" selecionaria as seguintes: a participação dos trabalhadores na gestão e nos resultados das grandes empresas; o imposto sobre sucessões e doações de elevado montante; o fim dos privilégios pensionístivos de alguns cargos públicos; criação der um círculo eleitoral nacional e redução da assimetria dos círculos eleitorais territoriais.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (14): E agora?

1. A confirmarem-se nas urnas daqui a uma semana os resultados eleitorais previstos em sondagens dos últimos dias, tratar-se-ia da mais inesperada derrota eleitoral de um Governo em funções e na mais surpreendente vitória eleitoral da oposição, desde a instauração do regime democrático em 1976. 

Com efeito, nunca um Governo perdeu eleições com a economia numa fase de crescimento robusta, sem paralelo há décadas, e com a taxa de desemprego a descer consistentemente, com o rendimento pessoal a crescer e uma inflação baixa, apesar da sua subida no resto da União, e com o "balanço social" favorável (pensões, prestações sociais, etc.) de que se pode ufanar. Se a isto somarmos o controlo da pandemia e a extraordinária margem de crescimento aberta pelo PRR, com os generosos fundos da UE, pode dizer-se, sem exagero, que Portugal não tem perspetivas tão favoráveis desde os anos imediatamente posteriores à entrada na então CEE, nos anos 80 do século passado

Como explicar então o improvável desenlace que agora se apresenta como possível e que aparentemente tem a ver sobretudo com a opção dos muitos eleitores inicialmente indecisos em desfavor do PS, desde o início dos debates eleitorais?

2. Estas situações não têm uma explicação única, mas penso que a principal tem a ver com uma inconvincente estratégia eleitoral do PS. Decidido a afastar a repetição de uma aliança à esquerda - por causa da "traição" na rejeição do orçamento, que desencadeou a crise política, e da crescente rejeição dessa solução no eleitorado centrista -, mas incapaz de assumir a opção de um entendimento político pós-eleitoral com o PSD em caso de vitória com maioria relativa - por oposição da ala esquerda do partido -, a liderança do PS optou pela "fuga para a frente" da aposta de cabeça numa improvável maioria absoluta.

Em contraste com a abertura de Rui Rio a um apoio negociado do PSD a um governo minoritário do PS, em troca de um compromisso recíproco dos socialistas, o PS optou incompreensivelmente por não encarar qualquer outra solução - salvo a de governo minoritário à vista, "à Guterres", solução claramente imprestável nas atuais circunstâncias -, preferindo refugiar-se num isolacionismo que contradiz o investimento inicial na estabilidade política e que afugenta muitos eleitores favoráveis a soluções negociadas ao centro, mesmo quando opostos a um governo de "bloco central".

3. Agora que a inconsequência da estratégia adotada parece estar à vista e que a miragem da maioria absoluta deve dar-se por devidamente enterrada, António Costa ainda está a tempo de infletir caminho, de resistir às "viúvas da Geringonça" internas e à chantagem da esquerda radical contra uma suposta "deriva à direita" do PS, tornando conhecido o seu "plano B", no caso de vencer as eleiçoes com maioria relativa, como aqui aventei há um mês

Coragem política, clareza na mensagem e respeito pelos eleitores precisam-se!

Adenda
Um leitor adiciona mais três fatores: a) a "novidade" da alternativa PSD, memo se em grande parte indefinida, contra o "já conhecido" da alternativa PS, como mostrou a exibição do orçamento rejeitado; b) a  a insistência do PS em atacar Rio por tudo e por nada, em vez de se dedicar a provar que a proposta política socialista é melhor; c) a linguagem mais terra-a-terra de Rio, em vez do discurso mais hermético de Costa para a eleitor comum. Tendo a concordar, mas não dispomos de dados que permitam aferir o peso de cada um destes fatores na equação.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Não concordo (28): Contra a "democracia paralela"

1. Não vejo como é que se pode apoiar esta abstrusa ideia de instituição uma "assembleia de cidadãos" de Lisboa, composta por sorteio dos cidadãos eleitores, por iniciativa do Presidente da Câmara Municipal, paralela e à margem da Assembleia Municipal recém-eleita, com caráter permanente e destinada a debater e a fazer recomendações sobre assuntos da gestão municipal não identificados.

É certo que nos últimos anos, em alguns países, como, por e exemplo, na Irlanda (na imagem) e na França, têm sido instituídas, a nível nacional, assembleias de cidadãos escolhidos aleatoriamente, de acordo com certos critérios de representação sociológica, para debater e fazer recomendações (ao parlamento e /ou ao governo) sobre certos temas específicos (por exemplo, revisão constitucional e igualdade de género na Irlanda, questão climática na França). Mas trata-se de iniciativas ad hoc, sem caráter permanente e destinadas a abordar temas pré-selecionados, e não de assembleias permanentes paralelas aos parlamentos nacionais, para se ocuparem de qualquer assunto. São diferenças essenciais em relação ao referido projeto de Lisboa.

2. As "assembleias de cidadãos" são instrumentos que visam alargar a participação cívica na vida política aos cidadãos comuns de todo o país, que normalmente não são mobilizados pelo ativismo das minorias urbanas que, em geral, protagonizam a chamada "democracia participativa". 

Mas continuam a ser mecanismos sem poderes decisórios, destinados a ajudar a formação da opinião pública acerca dos temas que lhes são confiados para estudar, organizar consultas e debates com especialistas e, no final, apresentar recomendações, sobre as quais os órgaos do poder político mantêm plena liberdade de decisão, como titulares exclusivos da representação política eletiva, única reconhecida como legítima pela Constituição.

Há quem defenda a representação política por sorteio contra a representação eleitoral e a democracia das assembleias de cidadãos contra a democracia de partidos. Mas as "assembleias de cidadãos" só podem ser admitidas como um instrumento adicional da democracia participativa, e não como arma de combate contra a democracia-representativa-de-partidos.

3. Como tem sucedido noutros países, nada impede que estas experiências de participação política alargada sejam estendidas ao poder local entre nós, enquanto forma de "aprofundamento da democracia participativa" (nos termos do art. 2º da CRP).  

Contudo, num Estado de direito constitucional, como o nosso, as entidades administrativas só dispõem dos poderes conferidos por lei, não havendo, porém, nenhuma lei a prever a instituição de tais assembleias por iniciativa oficial das câmaras municipais. Além disso, parece óbvio que o regulamento de instituição e funcionamento dessas assembleias só pode ser aprovado pela Assembleia Municipal, até porque precisa de orçamento.

Em segundo lugar, uma eventual "assembleia de cidadãos" de Lisboa não pode ser instituída como «[entidade] permanente e representativa da população lisboeta», nem com funções em aberto, como representação alternativa dos cidadãos da capital, o que é verdadeiramente descabido e um contrassenso democrático.

Num município como Lisboa, onde o executivo não goza de maioria na Assembleia Municipal, pode ser tentador intrumentalizar a "assembleia de cidadãos" como instituição permanente de contraposição entre uma pseudomaioria sociológica e a maioria política da Assembleia Municipal. Mas é uma tentação que afronta o modelo de democracia representativa constitucionalmente instituído e subverte a noção de partipação democrática e que, por isso, deve ser atalhada à partida, se necessário, em última instância, no Tribunal Constitucional.

[revisto]

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (13): Tiro sobre o PS

Passado o equívoco da "Geringonça", em que fingiram assumir-se como parte da solução de governo, Bloco e PCP regressam ao seu terreno familiar, ou seja, zurzir o PS como principal alvo político, como nunca verdadeiramente deixou de ser, acrescentando à agressividade política a hipocrisia de se dizerem dispostos para reeditar a parceria que friamente assassinaram em outubro, de mãos dadas com a direita, desencadeando a crise política que provocou estas eleições. Não há segundo casamento com parceiros inconfiáveis.

Compreende-se a sua patética combatividade contra um enventual governo de maioria do PS. Do mal, o menos: se tiverem de aturar mais um Governo do PS, que seja um governo que eles possam derrubar, como fizeram ao Governo cessante. Para eles só há dois governos do PS bons: os que sejam reféns deles e os governos por eles derrubados. 

Adenda (22/1)
Um leitor observa que, caso o PS perca as eleições, como as sondagens agora aventam, as relações entre os socialistas e a esquerda radical, cuja irresponsável rejeição do orçamento terá entregado o poder à direita, vão passar inevitavelemnte por uma nova era de relações belicosas, sem paralelo desde os tempos da Revolução. Justificadamente, direi eu. A equívocada parceria da Gerigonça não podia apagar o fosso político-ideológico que permanece entre um partido social-democrata e os partidos que continuam fiéis ao legado leninista e troskista.

Eleições parlamentares 2022 (12): Não vale tudo numa campanha eleitoral

Mesmo no diminutivo, acoimar de "nazizinho" a um adversário político é muito grave, ultrapassando as marcas da contenda eleitoral, particularmente quando visa alguém que não deu nenhum motivo para isso. 

Que António Costa se tenha logo demarcado do insulto, é de aplaudir, mas, tendo em conta a notoriedade da sua apoiante que o proferiu, justificava-se também que censurasse a lamentável atitude.

Adenda
Um leitor comenta que este tipo de ataques pessoais só favorece Rio e prejudica o PS. Concordo!

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Concordo (20): Emagrecer o espectro partidário

Sufrago esta proposta do Prof. J. A. Maltez, no sentido de "sanear" a chusma de micropartidos (ou pseudopartidos) formalmente registados que ocupam abusivamente o espaço de debate político, as campanhas eleitorais, os boletins de voto e o apuramento eleitoral, quanto não representam politicamente nada e degradam o espaço político e a imagem e reputação dos partidos em geral, como mostrou o recente debate na televisão entre os partidos sem representação parlamentar. Na verdade, só servem de megafone das propostas políticas do seus líderes e de pretexto para faltas ao trabalho dos seus candidatos durante a campanha eleitoral.

Ora, bastaria extinguir oficiosamente os partidos que obtenham menos de 0,25% dos votos a nível nacional em duas eleições consecutivas da AR - requisito mínimo dos mínimos para "prova de vida"-, para fazer desaparecer uma meia dúzia desses de partidos, despoluindo o espectro partidário...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (10): Solução sensata

1. É razoável a solução adotada pelo Governo, com base num parecer do conselho consultivo da PGR, de permitir a saída das pessoas isoladas, por causa da pandemia, no dia 30, para irem votar, em condições que minoram a possibilidade de infetarem outras pessoas, nomeadamente a previsão de um slot horário específico e requisitos de proteção especial para os membros das mesas de voto.

Havendo uma óbvia colisão de direitos, entre o direito a votar de uns e o direito a não ser contaminado de outros, nada permite sacrificar integralmente um deles em benefício do outro, quanto seja possível uma solução de compromisso que permita a coabitação de ambos, com restrições recíprocas, desde que cabíveis na margem de aplicação da lei eleitoral (que obviamente não podia ser alterada nesta altura). 

A solução de compromissso é agora facilitada pela vacinação maciça e pela menor agressividade do vírus, tornando a infeção muito menos perigosa para a vida e a saúde do que sucedia há um ano, quando uma solução destas teria sido inadmissível.

2. Nesse sentido, admito que o slot horário não fosse, como é proposto, uma simples "recomendação" aos dois grupos. Nenhum direito é absoluto, pelo que seria possivel limitar efetivamente a esse intervalo horário o exercício do direito de voto dos confinados e vedar aos demais eleitores a votação nessa mesma hora, de modo a estabeler uma separação estrita. A lei estabelece o horário das assembleias de voto (das 8:00 às 19:00), mas, a meu ver, não impede que em casos excecionais, por razões de saúde ou de segurança, haja limitação do horário de votação para categorias específicas de eleitores, desde que necessárias e proporcionais ao motivo que as justifica.

Claramente, ao enveredar pela solução soft da "recomendsção", a PGR e o Governo, pretenderam evitar possíveis impugnações gratuitas das eleiçoes, por alegada denegação do direito de voto. Resta esperar que os visados não abusem desse soft law e que os demais eleitores não se inibam de ir votar por receio de serem infetados por algum prevaricador fora da sua hora.

Adenda 
Há quem, como Rui Rio, precipitadamente, venha defender que a solução consiste em ter mesas de voto separadas para as pessoas em isolamento. Mas não se vê como é que poderiam ser elaborados com a devida antecedência os cadernos eleitorais para tais eleitores, retirando-os das mesas a que pertenceriam pela normal ordem alfabética. Solução impraticável, portanto.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

O que o Presidente não deve fazer (28): Usurpação de poderes

 

A que propósito é que esta manhã coube ao PR, com o Primeiro-Ministro atrás, fazer o prolongado briefing sobre a reunião no Infarmed sobre a pandemia, respondendo aos jornalistas sobre as questões técnicas e políticas levantadas?

Parece óbvio que se trata de questões do foro exclusivamente governamental - pois não há nenhum estado de emergência declarada -, que por isso deveriam ser publicamente apresentadas pelo Primeiro-ministro ou pela Ministra da Saúde, não pelo Presidente da República, à margem das suas competências constitucionais. 

Aparentemente, MRS entende, erradamente, que não pode deixar de ser protagonista em todos os palcos onde está. Só que, no caso concreto, ele encontrava-se em casa alheia, como convidado do Governo, não podendo apropriar-se dos poderes próprios deste. 

Eleições parlamentares 2022 (9): Propostas inviáveis

1. Como se dizia no tempo da I República, as campanhas eleitorais são propícias às promessas de "bacalhau a pataco". Passado um século, parece que a tentação se mantém e que não poupa sequer os principais partidos políticos, que a ela deveriam ser imunes.

Entre as "linhas gerais e prioridades" do programa eleitoral do PS conta-se a «a ponderação de aplicabilidade em diferentes setores de modelos assentes em experiências como a semana de quatro dias». Apesar da formulação propositadamente perifrástica, considero tal proposta politicamente pouco ponderada, imprópria de um partido de vocação governamental como PS. 

Num país incluído no escalão mais baixo do ranking da riqueza per capita na União Europeia, em grande parte devido à baixa produtividade do trabalho, como é que se considera económica e politicamente viável reduzir o tempo de trabalho para as 32 horas semanais? 

2. Na verdade, quanto ao impacto económico da redução do tempo de trabalho, de duas, uma: ou ela é compensada pela redução correspondente dos salários ou pelo subsídio público às empresas, para impedir a sua falência, transferindo o encargo para os contribuintes (como se tem feito com o aumento do salário mínimo). Entre ambas as soluções, venho o diabo e escolha.

O mais provável será limitar essa redução à função pública, sem corte de salários, tal como se verificou com as 35 horas, e com os mesmos efeitos nocivos: aumento substancial da despesa com pessoal, pressionando o orçamento, e estabelecimento de nova discriminação entre o setor público e o setor privado, privilegiando aquele.

Em nenhum caso a medida é recomendável na atual situação económica do País. Mas a sua enunciação no programa eleitoral do PS - que a esquerda radical se vai apressar a cooptar -, vai obviamente aumentar as reivindicações sindicais e as acusações políticas de incumprimento. Um tiro no pé, portanto.

Pandemia (63): Histeria injustificada

Este gráfico, retirado DAQUI, mostra que a variante Omicron "ladra muito, mas morde pouco", quando se compara a subida em flecha de novas infeções na União Europeia com a estabilidade das hospitalizações. Por outro lado, "o que depressa arde, rapidamente se extingue", tendo a África do Sul já indicado que pode ter sido ultrapassado o pico da vaga, pouco mais de um mês depois do seu início.

Não se vê, portanto, nenhuma razão para a histeria diária dos média a abrir noticiários com os "records" de infetados, quando a maior parte deles não têm senão infeções ligeiras.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (8): Insistir no erro

1. Foi obviamente por engano que recebi um pedido para subscrever este manifesto a favor da reedição de uma aliança do PS com o BE e o PCP para fins governativos a seguir às próximas eleições

É sabido que discordei dessa solução governativa desde o início em 2015 e que ao longo dos seis anos da sua vigência fui registando regularmente as suas duas principais consequências negativas, a saber: (i) o excessivo aumento da despesa pública corrente, sacrificando o investimento público e a redução da dívida pública, assim como o risco de crise orçamental no caso de ocorrência de crise económica e / ou de subida acentuada os juros da dívida; (ii) a paralisação de qualquer reforma institucional (sistema eleitoral, SNS, sistema de justiça, sistema fiscal, etc.), por causa do veto político de um daqueles partidos ou de ambos.

A esses fatores impeditivos da repetição da experiência soma-se a circunstância de esses partidos terem friamente provocado a queda do Governo do PS, com a irresponsável rejeição do orçamento para 2022, em "coligação" negativa com a direita parlamentar. O PS não pode permitir-se ficar de novo refém de parceiros inconfiáveis.

2. A verdade é que a tentativa de chamar o PCP e o BE para dentro do "arco da governação" através de um acordo de governo com o PS estará sempre destinada a falhar, enquanto subsistir o fosso político e doutrinário entre a esquerda moderada do PS e a esquerda radical daqueles partidos. 

Para além de alguma convergência sobre o Estado social (direitos do trabalhadores, proteção social, SNS, escola pública), é manifesto que a "esquerda da esquerda" não compartilha dos valores do PS quanto à economia de mercado e ao papel do Estado na economia, à democracia liberal, à integração europeia, à disciplina orçamental, ao comércio internacional, às alianças estratégicas.

Entre o PS e os partidos à sua esquerda não pode haver mais do que entendimentos pontuais e conjunturais. Insistir em que a união das esquerdas é solução para um governo estável constitui um equívoco, que a morte da chamada "Geringonça" não aconselha a repetir.

Adenda 
Julgo, aliás, que manifestos destes não ajudam à vitória do PS, pois podem afastar o voto daqueles eleitores que, embora preferindo um Governo do PS, afastam, porém, a hipótese de ressuscitar a "geringonça" de esquerda. Surpreende-me por isso ver alguns militantes socialistas entre os subscritores de um manifesto que, a meu ver, só dá força ao PCP e ao BE.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (7): Lamentável

Não dá para entender como é que, no debate com André Ventura, Rui Rio não tenha excluído liminarmente a eventualidade de instituir a prisão perpétua entre nós, acabando mesmo por deixar a questão em aberto. 

Se, ao arrepio de quase meio século de enfática proibição constitucional de tal pena e da tradição de humanismo penal do PSD, Rio é capaz de fazer uma concessão desse jaez ao pedestre populismo do Chega, que outras não estará ele disponível para fazer, a fim de disputar o eleitorado daquele? E que barreira resta para impedir um acordo de governo entre os dois partidos!?

É com posições levianas como esta, pondo em causa um dos mais arraigados consensos democráticos e constitucionais entre nós, que o líder do PSD vai criando dúvidas sobre a solidez e confiabilidade das suas posições políticas

Disgusting!

Adenda 
Um leitor argumenta que a prisão perpétua existe em quase todos os países europeus, o que é verdade (embora muitos admitam a sua interrupção mediante liberdade condicional). O que não faz sentido é restaurá-la num país em que ela foi abolida há quase 140 anos, ainda na monarquia liberal, sem que nem a ditadura do chamado "Estado Novo" tenha ousado ressuscitá-la. Que Ventura queira ultrapassar o "Estado Novo" pela direita, já é elucidativo; que Rio não exclua tal ideia à partida, é deveras comprometedor.

Adenda 2
Outro leitor junta um argumento importante: não é por terem, e eventualmente aplicarem, a pena de prisão perpétua que esses países têm taxas de criminalidade menos elevadas do que Portugal -, o que não sucede, em muitos casos.

Adenda 3 (5/1)
Um leitor pergunta o que quero dizer com a "tradição de humanismo penal do PSD"? Refiro-me designadamente às posições de eminentes militantes do PSD, desde a Assembleia Constituinte até à academia, como os professores J. Figueiredo Dias e M. da Costa Andrade.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Não com os meus impostos (6): Dar benesses com dinheiro dos outros é fácil

1. O semanário Expresso anuncia hoje (acesso exclusivo para assinantes) que, em cumprimento de uma promessa eleitoral, o Presidente da Câmara Muncipial de Lisboa apresentou à edilidade a sua proposta de tornar gratuitos os transportes públicos urbanos em Lisboa para crianças e seniores.

Não sendo munícipe de Lisboa, nada tenho a objetar contra essa medida social, que, aliás, avalio de modo positivo e que considero que deveria ser adotada em outros municípios com a necessária capacidade financeira, incluindo o meu.

2. Sucede, porém, que, se a Carris é hoje uma empresa municipal, outro tanto não acontece com o metropolitano, que continua a ser uma empresa do Estado, sendo os seus investimentos e défices de exploração suportados pelos contribuintes de todo o País, incluindo aqueles que moram onde os transportes coletivos, quando existem, são exclusivamente municipais e não concedem tais benesses sociais.

Por isso, de duas uma: (i) ou o município de Lisboa indemniza o Estado pelo perda de receita decorrente da gratuitidade; (ii) ou o município de Lisboa propõe ao Estado a transferência do metro para a esfera local (munipal ou intermunicipal), como há muito defendo, em nome dos princípios constitucionais da descentralização territorial e da subsidiariedade, manifestamente ignorados neste caso.

3. O que não faz nenhum sentido é pôr os contribuintes do resto do país, incluindo os das regiões mais pobres (que nem transportes coletivos locais têm), a subsidiar as regalias sociais de Lisboa, que devem ser pagas pelo respetivo orçamento municipal. Para iniquidade territorial já basta terem de pagar o metro de Lisboa tal como está.

Pôr as regiões pobres a subsidiar os privilégios da capital é um contrassenso.

Adenda
Sem surpresa, embora anote que o metropolitano de Lisboa pertence ao Estado, a notícia do Expresso não manifesta nenhuma estranheza por o município da capital decretar o seu uso gratuito, como se fosse propriedade municipal. Pelos vistos, em Lisboa toda a gente considera natural ser o Estado a suportar os serviços públicos locais da capital com o dinheiro dos contribuintes em geral. Assim vai o atavismo centralista!...

Adenda 2
Carlos Moedas já veio declarar, como se impunha, que o município indemnizará as empresas de transportes pela perda de receitas, pelo que o problema suscitado no post acima está resolvido. No entanto, quanto ao metropolitano, não há até agora nenhum esclarecimento nem da empresa nem do ministro da tutela. E é pena não se aproveitar esta oportunidade para tranferir finalmente para o município (ou entidade intermunicipal) a titularidade e a responsabilidade por esse serviço público de transporte da capital.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Pandemia (62): Irresponsabilidade moral

1. Sendo evidente que os não-vacinados são, de longe, os que mais precisam de hospitalização e que mais contam no número de vítimas mortais do Covid - por exemplo AQUI e AQUI -, não se percebe porque é que o Governo não explora diariamente esses dados para pressionar as pessoas a vacinarem-se.

Comprovada que está a eficácia da vacina, assim como a ausência geral de efeitos colaterais, sou pessoalmente favorável a torná-la obrigatória, salvo contra indicação médica, pelo menos para as pessoas cuja funções as colocam em contacto frequente com outras (pessoal de saúde e do ensino, polícias, taxistas, empregados de lojas, cabeleireiros e restaurantes, caixas em supermercados, etc.), quer pelo facto de os não-vacinados contaminarem mais, pondo mais em causa a saúde alheia, quer porque sobrecarregam os serviços de saúde, pagos por todos, obrigando a desviar recursos do tratamento de outras doenças

2. A liberdade de não se vacinar ou o direito a morrer na pandemia não podem prevalecer sobre o direito à vida e à saúde dos outros. Como ensinaram os clássicos do liberalismo, a liberdade de uns termina onde começa a liberdade alheia.

Mas se o Governo e os partidos entendem que não há condições políticas para sancionar a recusa da vacinação (com coimas, inibições, etc.), nada justifica que não se "massacre" diariamente os não-vacinados com a evidência da sua irresponsabilidade moral e do abuso provocatório da sua suposta liberdade individual.

Adenda
Penso que, em vez dos atuais esforços e gastos infrutíferos para travar a fulgurante difusão do Omicron - afinal relativamente inofensivo para pessoas vacinadas -, o Governo deveria empenhar todos os recursos e toda a determinação na vacinação. Se, como tudo indica, todos vamos acabar por ser infetados, que todos estejam devidamente protegidos quando calhar a sua vez.

Adenda 2 (29/12)
Segundo este estudo do Prof. Valadares Tavares (reservado a assinantes), «o risco de ser internado no hospital devido à COVID 19 dos não vacinados é cerca de 21 vezes superior ao risco suportado pelos vacinados». É fácil fazer uma ideia dos enormes recursos que o SNS tem de dedicar à irresponsabilidade dos não-vacinados.

Adenda 3 (29/12)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (7): E o plano B do PS?

1. Fica agora claro que o PS assume explicitamente o objetivo de alcançar uma maioria parlamentar nas próximas eleições, como condição para um governo estável e para realizar o programa político apresentado aos eleitores. Mas, obviamente, o PS não vai ser poupado à pergunta sobre o que vai fazer se ganhar as eleições sem maioria absoluta, que é a hipótese mais provável segundo as sondagens de opinião. 

Não podendo António Costa furtar-se a responder a essa questão, entendo que deve afastar tanto um governo de coligação (seja à esquerda seja à direita) como um governo minoritário sem garantias minimas de estabilidade e que, portanto, deve defender um acordo parlamentar de viabilização do Governo por quatro anos com o partidos ou partidos que estejam disponíveis para tal acordo, sem preferências nem exclusões prévias, optando pela alternativa que que ofereça melhores condições quanto a três fatores: (i) a viabilização dos orçamentos, de acordo com metas pré-estabelecidas quanto à redução do défice e da dívida pública, (ii) os critérios de seleção dos titulares de cargos de nomeação política e (iii) o menor sacrifício do programa eleitoral do PS.

2. Ao mesmo tempo que entrega aos eleitores a questão fundamental da fórmula governativa (governo de maioria ou governo minoritário), esta opção transfere para os outros partidos elegíveis para possíveis acordos de viabilização parlamentar a escolha das possíveis fórmulas de aliança parlamentar. 

Ou seja, tratar-se-ia de uma espécie de "concurso público" limitado, aberto simultaneamente ao PAN, ao PCP e/ou ao BE e ao PSD, "ganhando" a melhor oferta quanto aos três indicadores acima referidos. A escolha final deveria ser publicamente explicada e deveria ser vertida em compromisso escrito entre as partes envolvidas, a fim de permitir a verificação da sua execução pelos cidadãos.

Adenda
Um leitor pergunta se o PS não deve exluir à partida a hipótese de formar Governo se não ganhar as eleições, mas houver maioria da esquerda na AR, recorrendo ao apoio do BE e do PCP, como sucedeu em 2015 (a verdadeira e própria "Geringonça"). Penso que Costa já respondeu explicitamente a essa questão, ao proclamar que desta vez a questão eleitoral consiste em saber qual dos candidatos a primeiro-ministro (ele ou Rio) ganha as eleiçoes - o que só admite um Governo chefiado por quem as vencer. 
O que resta por saber é se, na hipótese pouco provável de ser o PSD a ganhar, Costa (caso se mantivesse à frente do PS) estaria aberto a um acordo parlamentar para viabilizar um Governo minoritário do PSD para a legislatura (mediante as devidas contrapartidas) ou se "forçaria" Rio a buscar o apoio da demais direita parlamentar.

Adenda 2
Outro leitor pergunta qual seria a solução governativa mais provável, caso o PS vença sem maioria parlamentar. Como já escrevi várias vezes, penso que uma aliança parlamentar à esquerda provou ser demasiado onerosa orçamentalmente e implica o veto de qualquer reforma do sistema político. Além disso, não vejo como é que o PCP ou o BE poderiam algum vez assumir um compromisso político de apoio, por quatro anos, a uma política orçamental apostada na redução do défice e da dívida pública. Neste quadro, afigura-se ser pouco provável um acordo de governo à esquerda. 

Adenda 3
Ao contrário do que me acusa um crítico, não defendo, nem às escondidas nem à descarada, o "bloco central". Na sua versão histórica (1983-85), um governo de bloco central implica um governo de coligação entre o PS e o PSD, com programa comum e posições convergentes em todos os dossiers governamentais e parlamentares. Não defendo nada disso. Nem bloco central nem bloco das esquerdas.


Estado social (10): O tabu nacional

1. Acaba de ser publicado em França um importante estudo sobre o imposto de sucessões, que mostra a inconsequência do atual regime do imposto nesse país, o qual, além de abranger uma muito pequena minoria das sucessões, deixa um série de isenções em aberto, que favorece as maiores heranças.

Curiosamente, enquanto os candidatos de direita às próximas eleições presidenciais propõem uma redução do imposto, embora sem avançarem para a sua abolição, os demais candidatos, incluindo o favorito Macron e com a exceção do candidato da extrema-esquerda, Melenchon, são omissos sobre o assunto.

Tudo indica, portanto, que em França o topo da pirâmide económica vai continuar a tornar-se, cada vez mais, uma "elite de herdeiros".

2. Em Portugal, a questão tornou-se uma espécie de tabu, depois da abolição do imposto pelo Governo de Durão Barroso (PSDS-CDS). No programa eleitoral de 2015 o PS propunha o restabelecimento do imposto para as sucessões de elevado montante, mas a proposta desapareceu no programa de Governo e não voltaria à agenda em 2019. Não há indicação nenhuma de que a ideia regresse nas próximas eleições.

E eis como, num país que mantém uma elevada carga fiscal para financiar um Estado social orçamentalmente exigente, nem a esquerda defende uma das mais justas peças do cardápio tributário.

Adenda 
Um leitor argumenta que na maior parte dos casos as grandes fortunas são usualmente constituídas por empresas ou conglomerados de empresas, que os herdeiros não podem vender facilmente, e sem prejuízo para as próprias empresas. Trata-se porém, de um pseudoargumento. Está provado que as grandes fortunas não são constituídas somente por empresas, mas também por prédios, aplicações financeiras (ações, obrigações, etc.), joias, quadros, etc. E qual é o problema de vender uma pequena parte da herança por 1 milhão (ou pedir um empréstimo desse montante) para receber 10 milhões. É óbvio que esse pseudoargumento não impede a existência do imposto sucessório em tantos países, incluindo os EUA, onde a taxa é de 40% para heranças acima de 12 milhões de dólares.

Adenda 2
Outro leitor pergunta qual seria a minha proposta de imposto sucessório. Se fosse legislador defenderia a aplicação do imposto não à massa hereditária global, mas sim à quota hereditária de cada herdeiro (pois são estes que vão pagar o imposto); o imposto seria progressivo: ficariam isentas do imposto as heranças inferiores a 250 000 euros; o imposto começaria por uma taxa de 5% até meio milhão, que aumentaria para 10% para o excedente até um milhão, e assim sucessivamente a cada acréscimo de meio milhão, até atingir uma taxa limite de 25% (acréscimos acima de 2 000 milhões). Note-se que os prémios de lotaria estão sujeitos a um imposto autónomo de 30%, independentemente do seu valor; as mais-valias mobiliárias pagam uma "taxa liberatória" de 28% e as mais-valias imobiliárias estão sujeitas a englobamento no IRS por metade do seu valor.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

No bicentenário da Revolução Liberal (36): A consulta de 1820 sobre as Cortes Constituintes

1. Eis mais um produto da minha coautoria com o Prof. José Domingues na investigação da Revolução Liberal de há dois séculos. 

Baseado em documentos em grande parte inéditos, trata-se do estudo de uma consulta pública, até agora pouco conhecida, realizada em outubro de 1820, sobre o tipo e o modo de eleição das Cortes Constituintes, que eram, desde o início, o principal objetivo da Revolução. Mostramos que, ao contrário do que até agora se pensava, considerando os poucos pareceres publicados na época, a opinião dominante nessa consulta se mostrou favorável à convocação de Cortes de novo tipo, em representação unitária da Nação, e não das antigas Cortes, que davam representação privativa ao clero e à nobreza, a par do "terceiro estado".

2. Essa consulta veio, portanto, sufragar a natural opção dos revolucionários liberais pelo modelo de assembleia constituinte seguido na vizinha Espanha em 1810-12, que gerou a Constituição de Cádis (1812) e que se viria a concretizar entre nós nas eleições constituintes de dezembro de 1820.

Um momento singular na nossa história política e constitucional.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Não vale tudo (8): Os réprobos

Discordo de todo em todo deste ataque à eventual candidatura de Edite Estrela a presidente da Assembleia da República, de que aliás já é vice-presidente.  

Em primeiro lugar, o facto de ter colaborado politicamente com José Sócrates ou de ter tido uma relação de amizade com ele não a torna politicamente réproba, como suposta coautora ou cúmplice das malfeitorias de que ele veio depois a ser acusado (e por que tarda a ser julgado, para vergonha do sistema judicial). Em segundo lugar, não vejo quem possa ombrear com o seu brilhante currículo político de autarca, de deputada, de eurodeputada, de vice-presidente da AR e de membro da assembleia parlamentar do Conselho da Europa, aliando competência, seriedade, empenho e integridade no exercício de todos esses cargos públicos, como é geralmente reconhecido.

A AR merece uma presidente assim.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Sim, mas (7): Voluntarismo oneroso

1. Sendo desde há muito um firme defensor, incluindo por razões ambientais, do resgate da ferrovia de décadas de abandono político, entendo, porém, que num país que não abunda em recursos financeiros todos os investimentos públicos têm de obedecer a parâmetros de racionalidade económica em termos de custos e benefícios coletivos, não podendo ser o resultado de volutarismo orçamentalmente irresponsável.

É por isso que não pode deixar de supreender o anúncio, que a Ministra da Coesão Territorial acaba de fazer, do restabelecimento da linha do Douro no troço Pocinho -Barca de Alva, há muito abandonado, sem invocar e sem, muito menos, disponiblizar os estudos que mostram a viabilidade financeira desse pesado investimento.

Eis algumas perguntas que têm de ser respondidas pelo Ministro das Infraestruturas: Essa ligação quanto custará? E serviria para transportar quantas pessoas por dia? E qual seria o défice de exploração?

2. Se se acha que faz sentido restaurar um troço ferroviário em território de baixa densidade populacional, encerrado há anos por falta de procura, será que igual reivindicação não vai surgir em relação a outras linhas encerradas, como os vários ramais do Douro, a linha do Vouga, o ramal Viseu-Santa Comba Dão, o troço da linha da Beira Alta entre Pampilhosa e Figueira da Foz, as várias linhas do Alentejo? 

E se só aquela linha é restaurada, qual o fundamento para o privilégio?

Denunciando há muito tempo o défice de investimento público em Portugal, há, porém, uma coisa que tenho por certa: pior que a falta de investimento público é o investimento público ruinoso, delapidando os escassos recursos existentes.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (7): O PSD dividido

1. Convencidos de que os ventos sopravam a seu favor e de que, apostando em Rangel, podiam afastar Rui Rio nas eleições diretas e modelar em seu proveito as listas eleitorais do PSD e o próximo grupo parlamentar, os seus opositores foram surpreendidos com a vitória convincente do Presidente do partido, que, ato contínuo, não hesitou em "limpá-los" das listas, aproveitando a legitimidade reforçada que os adversários internos lhe proporcionaram.

É o que se chama "ir à ã e vir tosquiado".

2. Embora legítima e, porventura justificada nas circunstâncias, a operação de "depuração" política das listas eleitorais do PSD levanta, porém dois problemas, um de teoria política e outro mais prático: (i) até onde é que, num partido de vocação governamental, não ideológico, como o PSD (ou o PS), o grupo parlamentar há de ser composto apenas por seguidores do líder do momento, inorando a diversidade política interna, com o risco adicional de grave disfunção política interna, se vier a haver mudança de líder no decurso da legislatura; (ii) se é possível realizar uma campanha eleitoral bem-sucedida, defrontado o ressabiamento, se não a a hostilidade, de muitas estruturas distritais e locais e dos seus seguidores.

Pode um general ganhar batalhas, dispensando uma parte das suas tropas?

sábado, 4 de dezembro de 2021

Campos Elíseos (5): Boas perspetivas para Macron

Definido o quadro de candidaturas às eleições presidenciais francesas de abril do ano que vem - com as "primárias" deste fim-de-semana dos Republicanos, que deram a vitória a Valérie Pécresse -, as sondagens indicam que o Presidente Macron tem boas hipóteses de renovar o seu mandato por mais cinco anos, batendo mais uma vez a candidatura da extrema-direita (Le Pen), visto que a dos Republicanos (Pécresse) não parece ter fôlego para ir à segunda-volta, onde poderia eventualmente fazer melhor do que aquela, federando toda a direta. Sem surpresa, as candidaturas da esquerda somadas não excedem os 20%!

A confirmar-se a reeleição de Macron, uma boa notícia para a França e para a União Europeia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Estado social (9): Receita para o desastre

Este relatório do Conselho de Finanças Públicas vem suscitar mais uma vez a questão da sustentabilidade do Estado social, em especial o sistema de segurança social, mostrando a gravidade do problema num futuro não muito longínquo, face ao envelhecimento da população e redução da população ativa, por um aldo, e ao insuficiente crescimento da produtividade e do crescimento económico, por outro lado. 
O risco óbvio consiste em não termos economia bastante para o nível de Estado social existente, pelo que as contínuas propostas de reforço deste sem assegurar um melhor desempenho daquela constituem uma receita para o desastre.
Era bom que este tema fosse incluído na agenda do debate político da próxima campanha eleitoral, em vez de ser remetido mais uma vez para debaixo do tapete, como é típico entre nós.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ai o défice (15): Degradação da balança comercial

Além do défice das contas públicas (excesso da despesa sobre a receita), que gera aumento da dívida pública, há também o défice da balança comercial (menos exportações do que importações), que gera aumento do endividamento externo. Ora, a pandemia também trouxe a degradação do défice comercial

Há dois fatores que explicam, pelo menos em parte, esta degradação: do lado das importações, a subida da cotação internacional do petróleo e do gás; do lado das exportações, a quebra do turismo, uma das principais exportações nacionais. A presente retoma do crescimento económico interno, estimulada sobretudo pelo consumo, pode também estar a ajudar ao crescimento das importações e à travagem das exportações.

Vai ser preciso esperar pela superação da crise económica provocada pela pandemia e pelo regresso da economia aos níveis de 2019 - o que se espera venha a ocorrer na primeira metade do ano que vem -, para saber se o agravamento de défice comercial externo não se deve somente a esses fatores conjunturais, mas também, como é de recear, a uma continuada degradação estrutural da competitividade externa da economia portuguesa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (6): A economia "vota" PS

As previsões favoráveis da OCDE para o crescimento económico em Portugal para o corrente ano e para o ano que vem não podiam ser mais lisonjeiras para o Governo do PS. 

Além de permitir superar a recessão económica da pandemia, o robusto crescimento económico previsto, sem paralelo há muito tempo, significa mais emprego, mais receita pública, menos despesa social, menos défice, menor endividamento público -, tudo isto com o bónus de uma taxa de inflação contida, longe do nível que está a atingir noutros países europeus

Cereja em cima do bolo, o relatório não deixa de mencionar o êxito na vacinação anti-Covid entre os fatores adjuvantes deste bom desempenho económico.

Não se podia ter melhor cartão de apresentação para a disputa eleitoral que se aproxima!

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Não concordo (27): Sobre o veto presidencial da despenalização da eutanásia

1. Embora lamentando o veto presidencial do novo diploma da despenalização da morte medicamente assistida (abreviadamente conhecida como eutanásia), não consigo acompanhar os protestos contra ele. Na verdade, ainda que se possa discutir se as razões invocadas pelo PR (aliás, nem todas pertinentes) bastam para justificar o veto legislativo, ele tem, porém, razão quanto à inconsistência conceptual do diploma

De facto, apesar de o art. 2º conter supostamente a definição das noções depois utilizadas, assim não sucede, todavia. O preceito-chave do diploma, que é o art. 3º, despenaliza a morte medicamente assistida, a pedido do interessado quando «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal» [negrito acrescentado]. Ora, o conceito de "doença incurável e fatal" não consta do art. 2º  (que define o conceito de "doença grave ou incurável", o que não é a mesma coisa). Acima de tudo, não faz sentido na intenção do diploma o requisito de "doença fatal", quando tal não se requere no caso de "lesão definitiva de gravidade extrema"; de resto, no nº 3 do mesmo artigo já se prescinde do requisito da "doença fatal". Em que ficamos?

Não dá para entender esta falha de rigor num diploma destes, já em segunda edição.

2. É certo que estas incongruências conceptuais poderiam não resistir a uma cuidada tarefa de interpretação jurídica e judiciária, pelo que o PR as utilizou como pretexto para um veto político, de fundo claramente ideológico, indo ao encontro da direita mais conservadora e travando a despenalização da eutanásia durante mais algum tempo.

Mas não deixa de ser igualmente evidente que os deputados que reformularam o diploma depois do juízo de inconstitucionalidade do TC deveriam saber que não podiam deixar margem ou pretexto a Belém para se prevalecer ostentatoriamente do poder de veto (que o atual Presidente tem exercido de forma assaz discricionária). Pouco cuidadosos foram e só de si mesmos se podem queixar.

Adenda
Um leitor pergunta o que vai a AR fazer do veto. Embora teoricamente o parlamento pudesse superar o veto, confirmando a lei por maioria absoluta, entendo que, dadas as razões do veto, se impõe a correção do diploma, aprovando uma terceira versão. Tudo depende evidentemente de se manter uma maioria favorável às despenalização da eutanásia no próximo parlamento -, o que nada faz temer que não aconteça.

Adenda 2
Saúde-se a reação da bancada parlamentar do PS, a dar a mão à palmatória presidencial.

Adenda 3 (1/12)
No seu editorial do Público de hoje, Manuel Carvalho destaca no veto a "astúcia" do PR; eu preferiria destacar a imperdoável incúria dos deputados.