1. Como escrevi anteriormente a propósito do projetado "fundo de recuperação" da União Europeia, há um problema constitucional quanto à admissibilidade de recurso ao endividamento para financiar o orçamento da União.
É certo que já há vários fundos especiais da UE, à margem do orçamento, que são financiados através da emissão de obrigações de dívida, incluindo o Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira (MEEF) e o recente SURE, para financiar o impacto negativo da pandemia sobre o trabalho. Todavia, todos eles se destinam a conceder empréstimos aos Estados-membros, que estes têm de pagar, incluindo os juros e o reembolso aos credores. A União limita-se a "emprestar" o seu rating AAA para obter o dinheiro nos mercados da dívida a taxas de juro muito baixas, permitindo aos Estados-membros ser financiados com menores custos do que se tivessem eles de ir ao mercado da dívida.
2. Mas até agora não existe nenhuma situação de financiamento de despesas orçamentais da própria União por meio de dívida. Tal como se lê no site da própria União, «EU borrowing is only permitted to finance loans to countries. The EU cannot borrow to finance its budget.». De resto, os Tratados da UE impõem que orçamento da União seja equilibrado e não incluem o recurso à dívida entre as receitas orçamentais.
Ora, no caso da proposta de Merkel / Macron, o recurso à dívida, no montante de meio bilião de euros, não se destina a emprestar dinheiro aos Estados-membros, mas sim a reforçar o orçamento da União, a fim de subvencionar programas de investimento dos Estados-membros, ficando a cargo do orçamento da União a pesada responsabilidade financeira do endividamento, ou seja, os juros e o futuro reembolso (para o que tem de reunir os necessários recursos orçamentais...).
3. Não tendo enquadramento jurídico na "Constituição orçamental" da União, esta medida de financiamento pela dívida poderá vir a ser fundadamente acusada de ser "ultra vires", ou seja, de ir para além das competências da União.
Por isso, não fica excluído o risco de, por exemplo na Alemanha, ser impugnada junto do respetivo Tribunal Constitucional a contribuição alemã para pagar os custos deste empréstimo da União. Se tal sucedesse, e o TC alemão suscitasse uma "questão prejudicial" junto do Tribunal de Justiça da União sobre o assunto, não vejo como é que este, apesar da sua tradicional visão integracionista, conseguiria enquadrar convincentemente tal endividamento no atual quadro constitucional do orçamento da União.