1. Marcelo Rebelo de Sousa persiste em pisar o risco dos poderes constitucionais do Presidente da República, desta vez pedindo contas diretamente aos ministros, como recentemente às Ministras da Saúde e da Justiça, chamadas pessoalmente a Belém, o que aliás, coincide com a intensificação das suas tomadas de posição públicas sobre políticas setoriais.
Ora, a Constituição é clara em que só o Primeiro-Ministro responde pelo Governo perante o PR, incluindo a obrigação de manter Belém informado da condução das políticas do Governo. Em contrapartida, os ministros só respondem perante o Primeiro-Ministro (e perante a AR) e nem se compreenderia que tivessem "dois senhores".
2. Há quem invoque uma suposta natureza "semipresidencialista" do sistema de governo para justificar esta invasão da esfera governativa pelo PR. Todavia, essa qualificação "semipresidencialista" do sistema de governo - que é uma invenção doutrinária - não consta da Constituição, nem uma tal qualificação doutrinária (aliás, infundada) pode servir para subverter o que a Constituição estabelece expressamente.
No sistema de governo constitucionalmente estabelecido, a função governativa cabe exclusivamente ao Governo, sob comando do primeiro-ministro e mediante a confiança política do parlamento. O Presidente não governa, nem cogoverna, nem o Governo depende da sua confiança política; nem responde pela política governamental perante o País. A ideia de uma "bicefalia governativa" entre Belém e São Bento afronta a Constituição.
3. Surpreende ver os comentadores da área do PS silenciosos perante este ensaio de "tutoria presidencial" sobre o Governo, que faz lembrar o eanismo - que, porém, nessa altura tinha cobertura na primeira versão da Constituição (1976-82) -, que o PS e Mário Soares tanto combateram.
Manifestamente, o apoio oficioso do PS à rencandidatura de MRS tem custos politicos e doutrinários - nomeadamente a abdicação do PS da sua luta de sempre contra a presidencialização do regime. Nada indica, pelo contrário, que no segundo mandato MRS vai ser mais contido.
Um leitor objeta que o PR tem um poder geral de supervisão do funcionamento do sistema político, o que implicitamente abrange intervenções como a referida. Mas não vejo em que é que esse "poder de supervisão" pode incluir um poder de tutela sobre o Governo, e em especial sobre os ministros, claramente à margem da Constituição. Não há "poderes implícitos" contra norma expressa.