1. Sem surpresa, o Presidente da República submeteu a fiscalização prévia de constitucionalidade a lei de despenalização da eutanásia recentemente aprovada na AR com ampla maioria e um apoio político transversal.
Penso que o Presidente fez bem: dadas as acusações de inconstitucionalidade de que tem sido alvo desde o início, é importante que uma lei como esta não entre em vigor sem clarificar a sua conformidadade constitucional. A provável luz verde do Tribunal Constitucional facilitará, aliás, a sua aplicação prática.
2. Não sem alguma surpresa, no seu requerimento ao Tribunal Constitucional, o Presidente, não argui de inconstitucionalidade a despenalizaçao da eutanásia em si mesma, como defendido pela direita conservadora e pela ortodoxia católica, por alegada violação do direito à vida - argumento que AQUI contestei.
Resta saber se o PR abdicou desse caminho por considerar não haver tal inconstitucionalidade ou por ter concluído pela inviabilidade dessa posição no TC. Seja como for, é de saudar essa posição.
3. Não impugnando a despenalização, o PR "limita-se"a levantar uma objecção "técnica" do regime definido na lei, que tem a ver com a ultilização de noções indeterminadas (como "sofrimento intolerável" e "gravidade extrema de acordo com o consenso científico"), cuja densificação é deixada aos médicos, o que, no entender de Belém, envolve uma "delegação" externa do poder legislativo da AR, que a Constituição proíbe.
Não considero convincente este argumento, pois as referidas noções não me parecem excessivamente vagas e os médicos são seguramente quem está em melhor situação para as densificar, não existindo, por isso, a alegada "delegação do poder legislativo". O direito, mesmo o direito penal, está cheio de conceitos relativamente indeterminados, a serem preenchidos pelo saber técnico especializado.
4. Mesmo na hipótese (a meu ver, improvável) de o TC dar seguimento a esta impugnação, nos termos em que é feita (pois o Tribunal não pode ir além do pedido), a lei voltaria à AR não para ser arquivada, por incompatível com a Constituição, mas sim para as obras de correção das falhas que o Tribunal Constitucional tenha censurado.
Em qualquer caso, portanto, tudo indica que a despenalização da eutánasia, nas condições exigentes definidas na lei, vai para a frente, proporcionando o direito a uma morte digna entre nós - um avanço civilizacional.