segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

A impunidade dos jornalistas vista pelo Presidente do CDJ

Óscar Mascarenhas, presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDJ), enviou um extenso post (na verdade, cinco posts) sobre as questões abordadas por Vital Moreira e Jorge Wemans a propósito da impunidade dos jornalistas.
Nos seus posts, Óscar Mascarenhas, defende que "o Conselho não está silencioso - é, frequentemente, silenciado. Desde Dezembro de 2002 que o Sindicato toma posição de apelo moderador no caso Casa Pia (...)".
Manifestando-se contra a criação de uma eventual Ordem dos Jornalistas, o presidente do CDJ afirma que não é uma Ordem que faz falta, mas sim: "(...) Falta repor um órgão prestigiado que faça a crítica pública do que está errado, com força de publicação obrigatória no órgão de informação criticado. É uma ideia que nada tem de novo; o que importa é que não se invente à pressa (...)".
Clique AQUI para ler a versão completa dos textos de Óscar Mascarenhas.

O Presidente da República interpela a justiça

1. Uma grande comunicação
Em grande forma está sem dúvida o Presidente da República, a julgar pelo poderoso discurso na abertura do ano judicial hoje proferido. Palavras claras, conteúdo forte, propostas consistentes, desafios estimulantes. Um verdadeiro "safanão" no ambiente judicial (para utilizar um termo usado pelo PGR, na mesma sessão, a outro propósito), sobretudo no área da justiça penal, tirando a moralidade dos atropelos cometidos no caso Casa Pia (embora sem mencionar explicitamente este processo).
De destacar numa primeira impressão: a importância da formação dos operadores judiciais (juízes, ministério público e advogados), com a original proposta de uma fase de formação comum a todos eles; a importância da sensibilização dos juízes para os valores constitucionais; a defesa do escrutínio público da justiça; o direito dos arguidos a conhecer os factos que lhe são imputados; a aplicação do segredo de justiça aos jornalistas, nos termos da lei; o reforço da cadeia hierárquica no Ministério Público; a sugestão de controlo judicial da decisão de arquivamento de processos pelo MP; a sugestão de reconhecimento do chamado "recurso de amparo" para defesa de direitos fundamentais.
Em suma, recados cortantes em várias direcções: juízes, Ministério Público, comunicação social.

2. Segredo de justiça e jornalistas
Entre as mais importantes das posições presidenciais conta-se seguramente a insistência na subordinação dos jornalistas ao segredo de justiça, até que a acusação se torne definitiva. O Presidente não poupou argumentos na denúncia das posições que até agora têm permitido a situação de impunidade corrente, apesar da clareza da lei, mesmo perante situações em que órgãos de informação transcrevem expressamente peças de autos em segredo de justiça ou invocam ostensivamente os autos como fonte.
Na minha crónica de amanhã, 3ª feira, no "Público", escrita antes de conhecer o discurso presidencial [ver agora aqui], pronuncio-me também no sentido de que, sob pena de o segredo de justiça se tornar irrelevante, ele não pode deixar de se impor também aos jornalistas, desde que limitado ao mínimo necessário para salvaguardar os valores que o justificam.

3. "Recurso de amparo"
Entre as sugestões adiantadas pelo Presidente da República, neste caso a título interrogativo, conta-se a instituição do "recurso de amparo", ou "queixa constitucional" entre nós - ele existe por exemplo na Alemanha e na Espanha -, de modo a permitir a qualquer interessado recorrer para o Tribunal Constitucional, em última instância, de qualquer decisão ou acto público (incluindo de decisões judiciais) quando lesivo de direitos fundamentais. Hoje só se podem levar ao TC questões de constitucionalidade de normas aplicadas (ou não) pelos tribunais, não das decisões individuais em si mesmas.
A ideia é sem dúvida atraente, mas tem fortes contra-indicações: perigo de inundação do TC, alongamento dos processos judiciais, agudização da hostilidade dos tribunais comuns contra o TC, entre outras. São estas reservas que explicam a rejeição dessa figura até agora nas sucessivas revisões constitucionais em Portugal. Estes obstáculos podem ser atenuados, mas há remédios que podem matar se não forem administrados com cuidado...

Vital Moreira

A autodisciplina jornalística: desacordo continua

A réplica de Vital Moreira sobre o que fazer para garantir uma autodisciplina eficaz dos jornalistas não me convence. De acordo, só num ponto: não se tem visto o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDJ) intervir perante os desmandos deontológicos a que todos temos assistido. Mas, lá porque o órgão parece morto, não creio que seja líquido e imperioso realizar um implante. Defendo, isso sim, que é preciso curá-lo e revitalizá-lo.
Porquê?
1. Desde os anos 80 que o CDJ deixou de ser encarado como mero órgão do Sindicato. A sua eleição deixou de se fazer em bloco com a dos órgãos sociais do Sindicato. Tendencialmente caminhou-se para que a sua eleição ocorresse em momento diferente da destes e para que todos os jornalistas (não só os sindicalizados) fossem chamados a eleger o CDJ. Aprofundar este caminho aumentaria a legitimidade do CDJ. Mas nada o impede, desde já, de se pronunciar publicamente sobre a violação das regras deontológicas por parte de qualquer jornalista (sindicalizado, ou não).
2. Não vejo vantagem em fazer coincidir na mesma sede o juízo deontológico e o juízo sobre quem reúne condições para poder exercer a profissão. Pelo contrário, vejo inúmeras vantagens em separar as duas funções, atribuindo-as a órgãos distintos: o primeiro constituído apenas por jornalistas, o segundo formado por representantes destes, das entidades patronais e do público e presidido por um magistrado. Até porque não me parece que o objecto primeiro do juízo deontológico seja punir legalmente, mas sim o de prevenir práticas nocivas, se preciso recorrendo à condenação ética.
3. Por outro lado, quanto a "punição", recordo o aforismo. "Os médicos enterram os seus erros, os advogados enforcam-nos, os jornalistas... publicitam-nos". Quer dizer, não há nada mais público do que os erros dos jornalistas. A denúncia deontológica desses erros que toda a gente leu, ouviu ou viu, realizada por um órgão prestigiado dos próprios profissionais e tornada pública, não chega para arruinar o principal capital do jornalista: o seu nome?
4. Mas o enigma principal da actual situação é este: onde pára o CDJ, que ninguém sabe dele?

J. Wemans

Ainda a autodisciplina jornalística

Contestando um post meu sobre o tema em epígrafe, Jorge Wemans discorda fortemente da ideia de criar um organismo oficial de autodisciplina, com o argumento de que já existe um, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
Existem porém alguns problemas insuperáveis no mecanismo existente:
1º - Os sindicatos não possuem propriamente vocação para velar pela deontologia, tendo eles por missão constitucional e legal a defesa dos interesses profissionais dos seus associados, especialmente nas suas relações laborais (podendo mesmo questionar-se da legitimidade dos sindicatos para exercerem funções deontológicas...).
2º - Sendo o sindicato uma associação de inscrição livre, como impõe a liberdade sindical, os poderes de autodisciplina que ele assuma só valem em relação ao seus associados, deixando de fora os não sindicalizados, pelo que a sua "jurisdição" só abrange uma parte dos jornalistas.
3º - A generalidade das profissões reguladas com fortes implicações deontológicas têm organismos de autodisciplina com jurisdição universal, conferidos por lei, com poderes sancionatórios fortes, incluindo a suspensão e, em casos limite, a expulsão da profissão (obviamente com recurso para os tribunais).
4º - O esquema existente, independentemente da boa-vontade do CD do SJ, já provou à saciedade a sua incapacidade para apreciar e punir eficazmente as crescentes violações do Código Deontológico. No caso do processo Casa Pia, consultando o website do Sindicato dos Jornalistas só encontrei um comunicado genérico. Não há notícia de um único processo específico por infracção do Código Deontológico, isto apesar de o referido comunicado referir «persistentes violações destes princípios éticos». É manifestamente pouco.
É preciso pensar numa alternativa mais eficaz, a qual, como defendo há muitos anos, não tem de passar por uma ordem profissional , no sentido próprio do conceito, porque esta acumula as funções de auto-regulação com as funções de representação e de defesa dos interesses profissionais (no que, aliás, no caso de uma profissão onde predominam as relações de trabalho subordinado, tenderia a entrar em concorrência com o sindicato). Por exemplo, o Conselho da Carteira Profissional dos Jornalistas, que é um organismo de regulação interprofissional, dispõe de funções regulatórias (acesso à actividade) que em outras profissões são desempenhadas pelas ordens. Esse modelo poderia ser adaptado, num formato monoprofissional, também para as funções de supervisão deontológica.

Vital Moreira

domingo, 18 de janeiro de 2004

O mundo das crianças: Portugal entre os melhores

Foi revelado que Portugal é o sexto melhor país do mundo quanto a condições de vida para as crianças, entre elas a saúde infantil. Parabéns para os serviços de pediatria do SNS. Só conheço um de perto: o Hospital Pediátrico de Coimbra, que aliás goza de justificado prestígio. Por isso, não me admirou esta classificação. As instalações podem não ser as melhores, longe disso. Mas a dedicação de muitos dos seus profissionais é inexcedível e mesmo invulgar. Pelo tempo dedicado, pelo esforço de actualização, pelo empenho na inovação. Verdadeiro espírito de serviço público, como aquele de que falava Dahrendorf.
Contaram-me no outro dia que uma senhora islandesa, com dois filhos pequeninos, um dos quais com problemas de saúde, procurou na Internet a cidade melhor para viver com eles. Saiu-lhe Coimbra, e veio. Se utentes exigentes reconhecem a qualidade, que não a esqueça o Ministério!

Maria Manuel Leitão Marques

Ainda os hospitais SA

No Professorices Daniel Bonhorst («Doentes de primeira e de segunda (III)») volta à questão dos hospitais SA, revelando alguma informação preocupante sobre a nova gestão. Ainda bem que há quem esteja atento.
Quatro comentários às suas observações:
(1) Aplicar métodos de gestão empresarial não significa necessariamente sujeitar os serviços públicos a uma lógica lucrativa. A empresarialização - que aliás pode revestir diversas formas jurídico-institucionais -pode implicar tão só a racionalização de certos procedimentos, de modo a fomentar a eficiência e a responsabilização na gestão dos dinheiros públicos. Naturalmente, tem de ser compatibilizada com a lógica própria do serviço público em questão, sem esquecer a vertente da investigação e da formação nos hospitais onde ela existe;
(2) Também eu sou utente do SNS e também eu não o trocaria por nenhuma clínica privada. Mas isso não significa que não me tenha espantado, numa altura em que por lá andei, com serviços e equipamentos que são utilizados apenas umas horas (muito poucas) por dia, apesar das listas de espera. E, por favor, não me respondam que não há médicos ou enfermeiros para os ocupar por mais tempo. Mesmo que seja essa razão, não esqueçamos de quem é a responsabilidade. Há muito que no Senado da minha Universidade me indignei com o apertado "numerus clausus" existente na Faculdade de Medicina e lembro-me do que me responderam os seus professores então lá representados: que havia médicos suficientes, uma posição sempre secundada pela Ordem. Até os compreendo: defendem os seus interesses profissionais. O que eu nunca entendi foi a tolerância dos Reitores e dos Governos (até ao final da década de 90) perante tão descarado malthusianismo profissional. Agora, qualquer reforma de tipo empresarial vai ter de enfrentar esta grande dificuldade.
(3) Perfeitamente de acordo com a sua ideia de que antes de reformar é preciso saber se o serviço funciona mal (e critérios quantitativos não bastam para este efeito). Mas mais do que isso. Mesmo que a avaliação seja negativa, é preciso verificar se algumas correcções internas não podem resolver os problemas. E, por último, nos casos em que os cidadãos confiam no serviço (como parece ser o caso do SNS), evitar que reformas mais radicais afectem essa confiança. É que ela é muito fácil de destruir, mas muito difícil de recuperar.
(4) Até por isso, qualquer reforma, particularmente esta de serviços tão sensíveis (a saúde é a primeira prioridade dos portugueses em todos os inquéritos de opinião) deve ser avaliada e acompanhada por entidades independentes. A informação para esse efeito tem de ser disponibilizada de forma transparente, com escrutínio das fontes e dos métodos da sua recolha. Ora, não parece ser isso que está a acontecer. Ontem no Público, António Correia de Campos - que está longe de ser alguém com preconceitos contra a empresarialização -, desmontava os números pomposamente publicitados pelo Ministério da Saúde sobre o sucesso dos hospitais SA. Confesso que já desconfiava de tanta e tão dispendiosa publicidade! Espero que não tenha sido para justificar o generoso aumento de remunerações, com retroactivos, concedido aos seus gestores!
[Na imagem: John Lavery: Doentes num hospital de Londres, 1914]

Maria Manuel Leitão Marques

Mais "regiões"

Tenho recebido variados mails e comentários-posts sobre a malfadada matéria das regiões administrativas. Ainda bem que o tema suscita a inquietação dos cidadãos, bloguistas ou não, já que não podemos deixar que a organização administrativa do País nos passe ao lado sem discussão.

(1) Uma crítica

Do blog Liberdade de Expressão, de João Miranda, transcrevo uma opinião contrastante com a que aqui produzi na semana passada:

"No fundo, o que Luís Nazaré defende é que o melhor mapa é aquele que é planeado por técnicos qualificados e que torna possível uma administração racional.
O problema é que nenhum técnico, por mais competente que seja, dispõe da informação e capacidade de previsão necessárias para criar um bom mapa. O mapa das 5 regiões é um mapa que ignora completamente as afinidades das populações locais. Limita-se a satisfazer os interesses, o modo de pensar e os vícios dos tecnocratas.
A alternativa ao mapa planeado por burocratas é um mapa que resulta da evolução ao longo do tempo das relações entre entidades políticas mais pequenas. Se o mapa das 5 regiões é mesmo bom, então os municípios acabarão por descobrir isso mesmo. Mas se for mau, os municípios acabarão por descobrir um melhor.
(...)
É curioso que Luís Nazaré chame a este mapa um mapa administrativo. É que o que pode resultar de tudo isto não é um mapa administrativo. É um verdadeiro mapa político em que cada unidade é formada por municípios com afinidades e com interesses comuns. O que pode resultar de tudo isto é um verdadeiro autogoverno".

Em apoio da sua tese, João Miranda insere um conjunto de mapas, dos mais "racionalistas" - como o dos Estados Unidos (mas não o do Próximo Oriente, como supõe) - aos mais "históricos" - como o suiço. A este propósito, salienta que "O mais pequeno cantão suiço tem 37 km2. É mais pequeno que o concelho do Porto. Regiões demasiado pequenas é coisa que não existe. O tamanho ideal de uma região depende das suas condições locais, conhecidas apenas pelos habitantes."

(2) A minha resposta

Registo a posição, interessante e tonificante, de João Miranda. Infelizmente, não creio que o optimismo que revela quando afirma que "o que pode resultar de tudo isto é um verdadeiro autogoverno" conheça melhores dias do que os da ilusão auto-gestionária das décadas de 60 e 70. Do mesmo modo, recuso-me a aceitar a primazia da legitimidade e do conhecimento das populações locais sobre o interesse geral e a razão dos portugueses (todos os portugueses). Faltam-me provas da capacidade dos autarcas em ultrapassar, eles sim, constrangimentos paroquiais e conveniências duvidosas. Duvido das intenções de quem retalha o Norte em sete pedaços e o Alentejo em quatro, para não ir mais longe. No limite da boa-vontade, estaremos perante um puro exercício de reformulação das fronteiras distritais, inconsequente, despesista e gerador de mais confusão e burocracia.

Repare-se que não houve - nem se prevê que venha a haver - transferências de recursos e competências do poder central para as putativas "regiôes". Assim, cada uma não será mais que o menor múltiplo comum dos jogos inter-municipais, um patamar de eficiência duvidosa entre os (mesmos) poderes centrais e os dos municípios, um patamar a mais na já intrincada malha orgânica do Estado - CCRs, distritos, comarcas, associações de municípios, além das lógicas díspares de distribuição regional dos serviços centrais. É muito interessante delegar a construção de um edifício nos trolhas, mas nada se faz sem engenheiros e sem projectos. Que incentivos terão para disponibilizarem recursos e agregarem competências? Quem pagará? E que varinha de condão fará das novas sete (!) "Grandes Áreas Metropolitanas", desprovidas de recursos e de uma matriz orgânica comum - um desiderato provavelmente demasiado "tecnocrático"... -, um instrumento menos inútil que as actuais Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto? Ou que golpe de asa "basista" fará da "livre" organização dos municípios uma malha mais racional (lamento o termo, mas não me ocorre outro) do que a das actuais Regiões de Turismo, fruto da mesma lógica de conveniências bairrísticas?

Um último comentário para as referências cartográficas internacionais, especialmente a suíça. A Confederação Helvética sempre assentou num poder central ténue e numa forte diversidade de comunidades, largamente ditada pelas condições particulares do relevo. Além disso, possui uma assinalável heterogeneidade cultural e linguística, com quatro idiomas principais e uma infinidade de variantes dialectais, quase uma por cada comunidade de altitude. Razões suficientes para explicar a "inestética" repartição cantonal da Suíça. Mas não creio que o exemplo se possa comparar com qualquer outro da União Europeia. Atente-se na geometria de divisão regional de países como a Alemanha, o Reino Unido ou a França. Acima de tudo, comparem-se as regras e vejam-se as diferenças para este pobre exercício lusitano.

Luís Nazaré

Onde se meteu o Conselho Deontológico dos Jornalistas?

Não, meu caro Vital, não é necessária uma Ordem dos Jornalistas. Sim, meu caro, é preciso acabar com a imunidade e a impunidade dos jornalistas que atropelam o Código Deontológico que livremente redigiram, votaram e que juram honrar. Não, meu caro Vital, não creio que precisemos de outro organismo de autodisciplina dos jornalistas. Não, meu caro, não me parece que tal organismo deva ter poderes para proceder à suspensão ou à cassação da carteira profissional e, assim, impedir um qualquer jornalista de exercer a profissão.
Porquê?
Porque já temos um órgão - o Conselho Deontológico dos Jornalistas (CDJ) - eleito para se pronunciar sobre estas matérias.
Porque é bom não confundir Deontologia e Direito. E só este é que pode impedir alguém de exercer a sua profissão. Para que o CDJ tivesse poderes para proceder à cassação da Carteira Profissional e assim retirar a alguém o seu direito a exercer a profissão, não poderia ser um órgão instituído pelos próprios jornalistas, teria de ter alguma delegação de poderes jurídicos, não? Ou seja, já estamos perto de uma Ordem... Mas disto sabes tu mais do que eu!...
Além disso, não me parece necessário complicar as coisas. Não chega que um órgão representando os jornalistas, prestigiado e competente, condene publicamente o comportamento profissional de um jornalista, de um editor ou de um Órgão de Comunicação Social? Assegurando que o próprio OCS publique a dita posição pública?
Não é isto mais eficaz do que um processo legal?
O que é espantoso é que o CDJ esteja tão calado e silencioso que nem se dá por ele! Ou estarei a cometer alguma injustiça? Onde se meteu o meu amigo Óscar Mascarenhas (Presidente do CDJ)? Vou fazer-lhe chegar o teu post e mais este, a ver se me (nos) responde…
Mas, para já, e mesmo perante o carnaval de atropelos deontológicos que grassa desde há meses, continuo a defender que prefiro cada macaco no seu galho: a Lei, administrada por quem de direito (e os Tribunais que julguem os atentados à honra e bom-nome dos cidadãos visados pelos jornalistas, e todos os demais abusos da Liberdade de Imprensa); a Deontologia, exercida pelos próprios jornalistas no âmbito dos órgãos por eles eleitos, tornando pública a condenação dos infractores.

J.W.

sábado, 17 de janeiro de 2004

A intratável questão do aborto

1. Contradição nos termos
Definitivamente a Direita não consegue lidar com a questão penal do aborto, acabando quase sempre por meter os pés pelas mãos. Mesmo a que se tem por mais pura e coerente incorre nas mais inesperadas contradições. Na sua nova coluna no "Expresso" (link indisponível) J. Pereira Coutinho insiste em defender o indefensável. Ele opõe-se à descriminalização mas não quer a condenação das mulheres que o fazem. Não se dá porém ao trabalho de mostrar como se podem ter as duas coisas simultaneamente. Ordenando ao Ministério Público para fechar sempre os olhos? Pedindo aos juízes para ignorarem o Código Penal? Mas se, afinal, os abortos não devem ser punidos, qual então a justificação (e eficácia) da criminalização?
Por isso, querer a criminalização sem punição ou não querer a punição mantendo a criminalização só pode relevar de uma «suprema hipocrisia» (para utilizar palavras de JPC) ou de um extremo cinismo.

2. Argumento ao contrário
O mesmo "Expresso" conta que o Primeiro-Ministro admite descriminalizar o aborto, mas somente a prazo (sempre depois de 2006), preferindo numa primeira fase privilegiar medidas preventivas, combatendo as causas que levam as mulheres a abortar (planeamento familiar, educação sexual, apoio à maternidade, etc.).
Ora, isto significa colocar as coisas de pernas para o ar. Se em Portugal se justifica especialmente a despenalização da IVG é justamente porque são intensas e generalizadas as tais causas de gravidez indesejada, as quais, de resto, demoram muito tempo e exigem muitos esforços para serem atenuadas, quanto mais eliminadas.
A luta contra as causas dos abortos e a sua despenalização só podem ir juntos. Para penalização já basta ter de fazê-los.

3. Sem margem para liberdade de voto
Contrariando essa aparente relativização da criminalização do aborto (já que se admite a despenalização no futuro), a verdade é que o PSD decretou a disciplina de voto parlamentar nesta matéria, contrariando a tradição que assegurava liberdade de voto aos deputados discordantes (tal como de resto o PS reconhece idêntica liberdade aos seus deputados contrários à despenalização). A disciplina de voto em questões de consciência típicas como esta - que constitui uma limitação grave da liberdade do exercício do mandato, constitucionalmente garantida - só se compreende se para o PSD a questão for de fundamental importância ideológica ou política, o que não deixa de ser uma novidade. O invocado compromisso eleitoral não chega como explicação, pois esse vincula a posição oficial do partido, não podendo justificar só por si a proibição de divergências de deputados individuais, que nem sequer poriam em causa o resultado da votação parlamentar. É evidente que aqui prevaleceu a posição do parceiro de coligação, o PP, esse, sim, fundamentalista na posição criminalizadora.
Dá para perguntar: que atitude adoptariam os deputados J. Pacheco Pereira e Rui Rio, por exemplo, se estivessem na Assembleia da República?

Vital Moreira

Nevoeiro sobre Belém

Esta coisa simples de um cidadão querer saber o que terá escrito o Presidente da República na sua mensagem à AR pode tornar-se um verdadeiro calvário! Por azar, não se ouviu lê-la em sotaque açoriano (suponho que algum canal televisivo e algumas rádios a tenham dado em directo e na íntegra) e pronto: está tudo estragado! Compram-se jornais (todos os diários ditos de referência e ainda outros), e nada: muitos comentários, dois ou três excertos e chega! Compram-se as revistas semanais, e é o mesmo deserto: muitas análises, muitos adjectivos, mas a tal de mensagem - zero!
Para quem (ainda) tiver alguma curiosidade pode encontrá-la na página da Presidência.
Fui ler. Tornaram-se-me espantosos os comentários que já tinha lido - à excepção do editorial do Miguel Coutinho no DE. Ou porque o estilo é redondo (mais directo só uma Moção de Censura, que não cabe ao Presidente), ou porque a receita é impraticável, ou porque sim, ou porque não, parece que Sampaio não escreveu nada de relevante. Apesar de «arrasar a política orçamental»...
Não é fumaça, é nevoeiro!
Se ainda falamos a mesma linguagem - se calhar o problema é este -, o que o PR escreve é assim: 1. A actual maioria não tem sido capaz de avançar na solução dos problemas estruturais das finanças públicas; 2. O Governo anda a disfarçar défices com recurso a expedientes; 3. O mesmo Governo adoptou uma política (errada, subentende-se) pró-cíclica; 4. O dito cujo não anda a controlar a despesa, mas sim a reprimi-la; 5. Esse tal corta sem critério, hipotecando o futuro e destruindo o pouco que «na segunda metade da década de 90» se construiu de Estado-Providência; 6. O arguido não conseguiu avançar no combate à fraude e à fuga ao fisco e não preparou a administração fiscal para poder ter um papel activo nesse combate; 7. É ainda o mesmo que fugiu aos compromisso assumidos na Resolução sobre a Revisão do Programa de Estabilidade e Crescimento 2003-2006, aprovada por larga maioria pela Assembleia da República em 9 de Janeiro de 2003.
Com este discurso de acusação Sampaio bem pode voltar aos tribunais, já não como advogado, mas como digníssimo representante do Ministério Público. Safa! Grande sova!
Este não é um "Governo dos sete costados", mas antes o "Governo dos sete pecados orçamentais". Todos eles capitais. Sobretudo porque, no entender do PR, algumas áreas da despesa pública têm mesmo de crescer, sob pena de caminharmos para becos sem saída. Para além das políticas sociais, é a própria economia portuguesa que não tem futuro sem investimentos públicos (sustentação estratégica), presença reguladora e estruturante do Estado.
Trocando por miúdos: é urgente mudar a política orçamental; sem essa mudança não há futuro!
Tá bem! O PR não disse nada!...

Jorge Wemans

Alhos & bugalhos

No "Natureza do Mal" pergunta-se se a minha argumentação contra novas universidades públicas (nomeadamente em Viseu, mas não só) na presente situação não vale também contra a criação de novos cursos de medicina em universidades privadas (nomeadamente em Coimbra, mas não só).
A minha resposta é negativa. Primeiro, criar um curso novo em universidades existentes não é o mesmo que criar de raiz uma nova universidade (que aliás não pode ter só um curso...), desde logo quanto à diferença de meios envolvidos. Segundo, e sobretudo, não existe nenhum paralelo a este respeito entre as universidades públicas (que, como todo o investimento público, são financiadas essencialmente pelo erário público e carecem de uma justificação de interesse público) e as universidades privadas, que decorrem da liberdade de criação de estabelecimentos de ensino superior privado e que não envolvem uma obrigação de financiamento público (sendo tendencialmente pagas pelos seus utentes), cabendo ao Estado essencialmente uma função de verificação dos requisitos legais para a sua criação e de controlo da respectiva qualidade, ainda que no caso dos cursos de medicina (únicos que continuam administrativamente reservados ao sector público) essas tarefas tenham de ser seguramente bem mais exigentes do que na generalidade dos outros cursos.
Mas não devemos misturar alhos com bugalhos.

Vital Moreira

A honra democrática da Itália

O Tribunal Constitucional italiano acaba de tomar uma decisão que contribui decisivamente para salvar a honra democrática da Itália, ao declarar inconstitucional uma lei aprovada pela maioria governamental destinada especificamente a conferir imunidade penal ao chefe do Governo, Berlusconi, incluindo efeitos retroactivos, abrangendo crimes estranhos ao exercício de funções e livrando-o de ser julgado num processo em que ele já tinha sido acusado, por corrupção de juízes e falsificação de contas num caso de privatização de empresas públicas. Com o mesmo fundamento e no mesmo caso um colaborador chegado de Berlusconi foi entretanto condenado a cinco anos de prisão.
A reacção da imprensa italiana e europeia não deixou de celebrar justamente a salvaguarda da democracia italiana, apesar da erosão do actual governo de direita.
O Repubblica, que conduziu uma frontal oposição à lei podia rejubilar:
«Abbiamo assistito a qualcosa di inconcepibile in Occidente. Un imputato per reati gravissimi compiuti prima della sua stagione politica, mentre il processo è alla vigilia della sentenza, usa strumentalmente la maggioranza parlamentare che guida come premier, e si crea un salvacondotto ad effetto immediato per sfuggire ai suoi giudici.»
Para depois tirar a moral da história: «Le regole fondamentali della Repubblica tornano dunque a valere nel nostro Paese, dopo la strappo ad personam di Silvio Berlusconi».
O Financial Times escreveu:
«Silvio Berlusconi has found again this week, to his dismay, that Italy's system of checks and balances is still in good working order. Upholding the basic principle of equality before the law, the constitutional court has just struck down the recent law giving the prime minister immunity from prosecution while he holds office.(...)»
E o Sueddeutschezeitung, observando que os políticos italianos "perderam o sentido do Estado de Direito em que se movem», titulava o seu comentário assim: «Ainda há juízes em Roma».
É para isso, felizmente, que servem os tribunais constitucionais.

Vital Moreira

sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

A Ministra que joga para trás

Embora com atraso, foi com espanto que li a entrevista da Senhora Ministra da Ciência e Ensino Superior ao Expresso de sábado passado (link indisponível) sobre a suposta falta de avaliação dos projectos e centros de investigação e de concurso para os "laboratórios associados", insinuando que mais ou menos tudo era decidido pessoalmente pelo Ministro do Governo anterior (o resto o leitor que deduza).
Francamente, não era a Ministra investigadora do Instituto Superior Técnico antes de ir para o Governo? Ou terá estado em trabalho de campo fora do país, lá para o interior de África, onde não chegam o correio nem jornais?
É que pertencendo eu a um laboratório associado e tendo submetido projectos de investigação à FCT, não sei como pode dizer-se que não houve avaliação, muito em especial nos últimos anos. Talvez o ex-Ministro José Mariano Gago possa ser responsável por outras coisas (o rigor da avaliação dos projectos tornou a decisão, por vezes, demasiado lenta; o concurso para os laboratórios associados foi muito pesado nas exigências feitas), mas da falta de avaliação, Senhora Ministra, só o poderá acusar quem andou mais por lá do que por cá, ou quem joga para trás por que não sabe jogar para a frente.
Devo, aliás, acrescentar que, mesmo sendo «vítima» desse sistema, sempre o achei exemplar e desejei fortemente que fosse estendido a outros domínios da administração pública. Uma avaliação independente, incluindo nas respectivas comissões cientistas estrangeiros, uma avaliação penalizante, sem deixar de ser pedagógica (como ela é feita periodicamente, quantas vezes passamos os intervalos a pensar como vamos superar os defeitos apontados na avaliação anterior); enfim, uma avaliação cujos resultados se repercutem no financiamento só nos pode fazer bem.
Por isso, francamente, não sei do que está a falar. Se é para fazer notícia, mais valia ser sincera e, em vez de arranjar desculpas, confessar que há menos dinheiro para a investigação e para continuar a obra do governo anterior neste domínio. Olhe que isso até poderemos entender ou, pelo menos, aceitar discutir. Desde que, obviamente, não venha entretanto criar mais uma Universidade em Viseu ou algures, sem que seja conhecida qualquer avaliação (aí sim) que justifique a sua necessidade e os gastos nela envolvidos.

Maria Manuel Leitão Marques

É precisa uma ordem dos jornalistas ?

Nestes dias voltou à baila a velha ideia da criação de uma ordem dos jornalistas, que teve o seu auge há mais de 10 anos, até ser inequivocamente "chumbada" num referendo da classe.
O que veio reavivar subitamente a questão da ordem dos jornalistas foi seguramente o tratamento dado por alguns órgãos de comunicação social ao processo Casa Pia, espezinhando todos os limites deontológicos da profissão, incluindo a violação de alguns deveres básicos decorrentes directamente da lei, como a identificação de vítimas de abuso sexual de menores, a invasão infrene da privacidade de pessoas alegadamente implicadas, para não falar da sistemática violação do segredo de justiça - mesmo quando nenhum interesse público poderia justificá-lo - e do direito das pessoas ao bom nome e reputação. Jornais como o 24 Horas e televisões como a TVI (par citar somente os casos mais flagrantes) tornaram-se sérios candidatos ao prémio do "jornalismo de sarjeta", de que falava há anos o presidente do órgão deontológico do sindicato dos jornalistas.
Também penso que hoje se torna muito mais defensável a criação de um organismo de autodisciplina oficial dos jornalistas, composto essencialmente por jornalistas, com poderes oficiais sobre todos os profissionais, com capacidade para aprovar e fazer respeitar o código deontológico e com poderes sancionatórios fortes, incluindo a suspensão ou cassação da carteira profissional. Mas, como se mostra noutros países, não tem de ser uma "ordem", que mistura essas funções de autodisciplina com a função "corporativa" de representação e defesa dos interesses profissionais, a qual muitas vezes só prejudica a primeira função (ver o caso paradigmático da Ordem dos Médicos entre nós). Na Europa uma ordem de jornalistas, se não estou em erro, só existe na Itália (ver o respectivo website).
Seja como for, o que não deve continuar é a situação existente de gravíssimas infracções dos deveres deontológicos, que permanecem impunes, abusando da liberdade de imprensa e dos direitos de terceiros. Como diz Estrela Serrano, a prestigiada provedora do leitor no Diário de Notícias, numa entrevista dado ao semanário Independente desta semana, «é confrangedor verificar que as regras básicas que deram legitimidade ao jornalismo estão muitas vezes a ser deitadas para o lixo, e isso é dramático".

Vital Moreira

quinta-feira, 15 de janeiro de 2004

A palavra dos leitores

1. «A Madeira não é do Jardim»
«Quando me apercebi daquele pequeno pormenor («o continente agradecia») [cfr. o meu post em causa], a minha estupefacção e indignação foi tamanha, que me obrigou a mostrar o meu desagrado pela forma como critica Alberto João Jardim, sem se lembrar que, ao contrário do que muitos pensam, a Madeira NÃO É DO Jardim, nem é O Jardim! (...) Portugal não tem dono, a Madeira não tem dono!
(...) Por isso, se me permite, gostaria de lhe fazer ver que, apesar de sermos liderados (nós, madeirenses) por Alberto João Jardim, há vida para além das palavras de um homem! Os madeirenses são, orgulhosamente, PORTUGUESES! Não queremos a independência, não fazemos parte de outra civilização... Reparei que um qualquer fascista dirigiu-lhe alguns impropérios. Se o Dr. fosse estrangeiro, por verificar que há um fascista em Portugal, arriscar-se-ia a deduzir que Portugal está impregnado de fascistas? Não lhe passaria pela cabeça, pois não?
Infelizmente, o sistema democrático não é perfeito. O povo escolhe um líder, e esse líder ganha o privilégio de falar em nome de milhares (ou milhões) de pessoas, mesmo quando esses mesmos milhares (ou milhões) que o elegeram, nas ruas, manifestam o seu desacordo perante as opções políticas seguidas. Aquando da intervenção anglo-americana no Iraque, não suportava ouvir o nosso primeiro-ministro a afirmar que "Portugal apoia a intervenção". Eu faço parte de Portugal, sou cidadão de plenos direitos, mas não me revejo nas palavras do homem que, pelos portugueses como eu e o Dr., o colocaram ao leme da nação. Como proceder?
(...) Dr. Vital Moreira, como madeirense e português, agradecia que revisse a sua posição isolacionista, no que toca à minha terra. Se quer criticar o presidente que os (outros) madeirenses escolheram, faça-o mas não se iguale àquele que contesta. Qual a diferença entre um assassino e um homem que vinga a morte -com a morte? De uma vez por todas, deixem de ver a Madeira como o quintal do Dr. Jardim!»
[VS]

2. «Malhas que os imperialismos tecem...»
«(...) Isto a propósito (ou despropósito...) do excelente texto de Clara Ferreira Alves publicado no "Única" do Expresso de 3 do corrente.
Guantanamo só episodicamente nos belisca a sensibilidade. 680 homens e crianças detidos há ano e meio, sem culpa formada, sem direito a defesa, deslocados para milhares de quilómetros das suas terras, sujeitos a humilhações de toda a ordem (...)
No século XXI já não existem os fornos crematórios para destruir os corpos, mas há técnicas refinadas para destruir o espírito. Mesmo assim já se suicidaram 37 prisioneiros.
À margem desta história há uma singularidade, ou talvez o não seja. Os EU não instalaram o campo de concentração no seu território mas no da sua arqui-inimiga Cuba que, oficialmente, só no passado mês de Dezembro se insurgiu contra o mesmo.
Coincidência ou não, muitos ou pelo menos alguns dos fedayns detidos combateram as tropas de Moscovo, aliado de Cuba, com armas e dinheiro então fornecidos pelos EU às milícias talibans. Malhas que os imperialismos tecem...
As referências ao que se passa dentro do campo de Guantanamo são escassas. Já foram demitidos e/ou castigados vários oficiais e funcionários por revelações feitas e mesmo os poucos advogados de presos europeus e australianos que os visitaram não tiveram acesso às instalações dos prisioneiros.
Mas cá como lá os segredos de justiça ou militares têm sempre um preço...
As fotos (...) tiradas durante um voo de mais de 12 horas do Afeganistão para Cuba mostram bem as condições infra-humanas do transporte. Na UE as directivas para o transporte de gado para o matadouro não o permitiriam. Mas a verdade é que estamos na "velha" Europa do Snr. Rumsfeld...»
[MS]

Impressões de quinta-feira

1. Universidade na minha rua
Na minha crónica desta terça-feira no "Público" critiquei o projecto de criação de mais uma universidade pública (em Viseu), quando o parque do ensino superior público se apresenta já manifestamente excedentário e está razoavelmente repartido sob o ponto de vista territorial.
Ontem e hoje cresceram as vozes contra essa iniciativa governamental, com a oposição do reitor da Universidade Coimbra, do presidente do conselho nacional dos institutos politécnicos e do presidente do CRUP (reitor da Universidade do Algarve) (ver o "Público" de hoje, sem link disponível). Os argumentos são em geral coincidentes.
Vale a pena citar por exemplo o Professor Adriano Pimpão:
«Não existe, neste momento, nenhuma justificação para mais uma instituição de ensino superior, pública ou privada, e os políticos sabem disso.»

2. Prémio "assobiar para o ar"
Este galardão eventual vai seguramente para a reacção do PSD e do Governo em relação à mensagem parlamentar do Presidente da República de ontem sobre as finanças públicas. Para ver nela uma crítica à oposição, em vez da censura ao Governo que ela é, é preciso ter muita "lata", realmente.
Ainda por cima o Presidente foi desta vez muito claro e excepcionalmente crítico da política governamental nesta área. Trata-se de uma verdadeiro libelo, que leva ao limite a "magistratura crítica" do PR em relação ao Governo, correndo o risco de ser acusado de apadrinhar as críticas da oposição. Mas, para além de constatações irrefutáveis sobre o insucesso da política orçamental na correcção do défice das finanças públicas (descontadas as medidas de emergência, por definição efémeras), o Presidente faz suas algumas propostas assaz consensuais de muitos financistas e economistas independentes sobre a gestão das finanças públicas à margem de simples preocupações conjunturais, bem como sobre a insustentabilidade dos níveis de evasão e fraude fiscal entre nós, tanto de um posto de vista financeiro como de justiça social (visto que essa situação beneficia sobretudo de quem mais deveria pagar).
De registar a diversidade de reacções na imprensa, desde a crítica política de José Manuel Fernandes, no Público (link hoje indisponível) até ao aplauso do editorialista do Diário de Notícias, passando pela compreensão dos diários económicos, tanto do "Jornal de Negócios" como do "Diário Económico".
Citando Miguel Coutinho (Diário Económico):
«A mensagem que o Presidente da República enviou aos deputados, apesar do intrigante momento em que o faz, é um retrato fiel e verdadeiro da sucessão de nós górdios em que se transformaram as finanças públicas em Portugal.
O que Jorge Sampaio diz é de uma clareza cortante. Diz, no que é uma crítica frontal ao Governo, que a consolidação orçamental tem assentado, sobretudo, em dois vértices frágeis: medidas de contenção da despesa corrente de natureza transitória e receitas extraordinárias.»

3. "Malditas regiões"
Na sua crónica semanal no "Jornal de Negócios", Luís Nazaré, companheiro de aventura aqui no "Causa Nossa", volta a atirar-se ao mapa territorial do País que vai resultar da criação das novas figuras intermunicipais, neste momento em curso em Portugal, reeditando no essencial a condenação que já tinha expresso aqui no CN. O seu diagnóstico não podia ser mais severo e merece reflexão.
Como o tema é de grande importância e pode comportar outras perspectivas, vale a pena voltar ao tema. Numa próxima oportunidade.

Vital Moreira

terça-feira, 13 de janeiro de 2004

Regionalização barata?

Referindo o Causa Nossa, no Estaleiro Bruno Rocha junta-se ao Luís Nazaré, na crítica ao mapa regional. «Agora, através das Áreas Metropolitanas, entrega-se a formação do mapa administrativo do país a casamentos autárquicos motivados previsivelmente por relações e conveniências políticas! (...). É uma forma aparentemente barata de "regionalização". Mas eu sempre ouvi dizer que o é barato sai caro».
MMLM

Daniel Oliveira

Numa polémica ao retardador, pequena polémica que tinha levantado a propósito de alguns dos mais ilustres habitantes da blogosfera terem um discurso que criticavam a outros fora do espaço virtual, um dos mais temidos polemistas respondeu-me dizendo que o que me preocupava era aquilo que as pessoas pensavam do documentário e livro que realizei e escrevi sobre o meu pai.
O Daniel Oliveira, no seu subversivo e excelente Barnabé, num texto de Novembro a que deu o título de A Arte da Manipulação, escreveu vários considerandos sobre o público e o privado, considerandos esmagadores sobre moral, ética e deontologia.
Sei que gostar de uma pessoa passa por aceitar os defeitos e as virtudes, sobretudo porque as virtudes e os defeitos são feitos de material relativo, coisa que acontece com quase tudo o que nos faz ser assim e não de outra forma. Conheço e gosto do Daniel há muitos anos, desde as batalhas políticas pela conquista da associação do Liceu Pedro Nunes. Depois trabalhámos juntos e com resultados óptimos. Sempre lhe cobicei a rapidez de raciocínio e a muito inteligente ironia. Recordo até de o ver como um modelo... Tinha uns 16 anos e o Daniel era estagiário no velho Século. Pensava que o jovem revolucionário, apesar de execrar as gravatas, seria aquilo que quisesse ser no futuro... Aliás, alguns anos passados continuo a pensar exactamente o mesmo. Mas talvez seja tempo, deixo-te esse conselho, de retirares A Superioridade Moral dos Comunistas da tua mesa de cabeceira. Tira-o da mesa de cabeceira e depois tenta-o exorcizar de dentro de ti... Não és superior a ninguém e o contrário também é verdadeiro. Quando o perceberes as coisas serão muito mais simples. E repara: não te estou a dizer para viveres de acordo com outros padrões morais. Apenas a pedir-te para não impores o teu silício moral aos outros.

Ps: E já agora... O texto que escrevi não era directa ou indirectamente sobre o meu pai. Era uma forma de explicares o teu título?

Um abraço do
Luís Osório

Luís Borges

Querido Luís Filipe Borges. Li com espanto que vais deixar de escrever no teu Desejo Casar. Quero dizer-te apenas duas ou três coisas que possa partilhar com outros e que sejam pessoais ao mesmo tempo.
Trabalhámos durante algum tempo e, já o reconheci algumas vezes, foste um dos melhores profissionais com quem tive o prazer de privar. Depois, num qualquer dia disseste-me que estavas a pensar aceitar um convite do Nuno Artur Silva e das suas Produções Fictícias. Lembras-te do que me disseste? Que só trocarias o Benfica pelo Real Madrid e que as Produções eram para ti a encarnação do Santiago Barnabéu. Fiquei contente por ti e vagamente preocupado. Vagamente porque sempre entendi que a tua mais valia passava pela inquietude e que nessa sofreguidão do espírito acabarias sempre por encontrar o antídoto para as tentações que se adivinhavam. O dinheiro que tens ganho a escrever coisas que talvez te preencham pouco não te deve fazer desistir do que tens dentro. Por isso a minha surpresa. Quando tiveste de desistir de alguma coisa escolheste riscar o que verdadeiramente gostavas de fazer. As tuas opiniões, divagações e tudo o resto foram postas de lado porque tens muito trabalho? Não desistas assim meu querido amigo. Ainda não é tempo. Pelo menos não desistas assim.
Luís Osório

Os meus votos

Durante uns dias estive ausente de todos os sítios possíveis. Não me acontece muitas vezes, mas o princípio do ano pediu-me silêncio e resolvi obedecer. É estranho: o silêncio e a ausência, mesmo que seja uma ausência de dias, não tem um peso sequer semelhante a qualquer outro tempo. Hoje, qualquer fuga é paga com um enorme sentimento de culpa... E cada vez nos sentimos mais culpados por coisas que não estão ao alcance do nosso entendimento. Somos culpados de quê? Somos escravos do quê?
Por outro lado, ainda bem que estou de volta. Nos meus sítios possíveis sentiram a ausência e o silêncio. Não me acontece muitas vezes, mas o princípio do ano ofereceu-me um certo apaziguamento. Excelente forma de tudo (re)começar.
Luís Osório

Serviço público ou mercantilização?

1. Uma carta
Ainda a propósito da reforma dos hospitais públiccos, recebi o seguinte comentário de um leitor:

«Li atentamente a sua nota "o espírito do serviço público"; concordo no essencial com a sua reflexão. No entanto, a actual "reforma dos hospitais" tem como principais objectivos: criar condições para que os Hospitais SA aumentem o seu capital inicial à custa do seu património (terrenos, instalações), permitindo-lhes recorrer a empréstimos bancários para colmatar as dívidas contraídas e assim ajudando o governo de uma forma habilidosa a manter o défice; que os Hospitais SA vão buscar novos financiamentos aos seguros e subsistemas, criando utentes de 1.ª e de 2ª.
Basta conhecer os contratos programa para perceber que os Hospitais SA são penalizados se ultrapassarem a produção contratada para os utentes do SNS, tendo uma folga para contratar doentes dos subsistemas e seguradoras. O que está em causa é a mercantilização do sistema e não o espírito do serviço público.»
[Rui Lourenço]

2. E a minha resposta
Obrigada pelo seu comentário. É pelas razões que invoca e por outras, ainda mais graves, que podem surgir, que me parece que a discussão é importante e que a regulação, acompanhamento e avaliação, públicas e transparentes, são indispensáveis (ver o Editorial de Amílcar Correia no "Público" - A vocação dos hospitais).
Não sou contra os novos métodos de gestão dos hospitais, se eles melhorarem o serviço público prestado (e para isso é indispensável conservar o espírito de serviço público, referido por Dahrendorf). Mas qualquer reforma não pode também esquecer um pressuposto básico: o de que os recursos financeiros para qualquer serviço público (saúde, justiça, educação) não são ilimitados, devendo ser usados da forma mais eficiente. Por isso, verifiquei com agrado que a experiência pioneira do Hospital de Santa Maria da Feira tinha tido resultados positivos. É cedo para tirar conclusões sobre o pacote dos hospitais SA, mas não para estar atento ao que está a acontecer. Vejo, com agrado, que esse é o seu caso
Maria Manuel Leitão Marques

Carta de um (autoqualificado) fascista

1. «De cara ao sol e braço ao alto»
Não resisto a publicar, por inteiro (omitindo só o nome do autor), o seguinte e-mail que há pouco recebi:

«Exmo Sr. Dr.,
Li no blogue onde escrevinha, a sua resposta à carta do Tenente-Coronel piloto-aviador Brandão Ferreira [ver aqui o meu post] e juro-lhe que não queria acreditar no que estava a ler!!!
De facto como diz um grande amigo meu "quem sabe nunca esquece". Então o senhor pelo facto de não concordar com a prosa do Sr. Tenente-Coronel, ATREVE-SE a qualificar o texto do mesmo de "despautério", "discurso revoltante", "inacreditável", e mais grave do que toda esta adjectivação, é o facto do senhor perguntar-se como é que este texto "PODE ser escrito e publicado".
Eu digo-lhe porque é que este texto pode ser escrito e publicado, é porque graças a bons portugueses, entre os quais evidentemente não se incluem nem o senhor nem os seus companheiros de blogue, as vossas doutrinas marxistóides não triunfaram neste rectângulo à beira mar plantado.
O facto do senhor e outros como você terem abandonado o PCP pode enganar os incautos ou os distraídos, mas a pessoas como eu não engana o Sr. Dr.
Vossa Exe. continua a ser o que sempre foi, um marxistóide revoltado, autoritário e arrogante que como todo o lixo oriundo dessas paragens não admite que o contrariem. Nos bons velhos tempos talvez metendo uma "cunha" ao camarada Cunhal ainda conseguisse que o Tenente-coronel Brandão Ferreira fosse passar uma temporada nalguma "estância de férias" siberiana, como infelizmente para si os tempos mudaram agora até já é obrigado a ler artigos de "fascistas" em jornais de referência, é de facto inacreditável, ai, que saudades do Zé dos bigodes!!!!
Pois meu caro Doutor vá-se habituando, e desde já lhe digo, que por muitos "saltos de indignação-e de revolta" que o senhor e o seu amigo Joãozinho dêem, vão ter mesmo que levar connosco, os fascistas.
Apesar da constituição nojenta e vergonhosa que temos, e que proíbe os fascistas de serem cidadãos, a nós ninguém nos cala, desde 1945 que tentam e nós ainda cá andamos, altivos e orgulhosos, de cara ao sol e braço ao alto!!!
Passar mal [sic],»
[RP]

2. A liberdade dos fascistas em regime democrático
Além do mais, que é obvio, há duas outras coisas que me distinguem do autor desta carta: 1ª - eu não ataco nem insulto pessoas, critico e refuto ideias ou argumentos; 2º - eu não condenei o facto de o texto citado ter sido publicado, mas sim o facto de isso ter sucedido num jornal como o "Público", que a meu ver não surgiu propriamente para dar guarida a ideias fascistas ou afins.
A CRP proíbe organizações fascistas mas não proíbe ideias fascistas nem a sua expressão pública. Esteja portanto descansado o autor da missiva e os seus correlegionários. No regime democrático não existe censura para proibir os seus escritos, nem Pide para os prender pelas ideias, nem tribunais plenários para os condenarem por isso à prisão e à interdição profissional. E tudo isto está garantido na tal odienta Constituição que deputados constituintes como eu aprovámos em 1976.
Sinta-se portanto o autor da carta livre para ser e se comportar verbalmente como fascista, como nesta sua carta, desde que não passe aos actos... Isso de termos de "levar" com eles já fia mais fino. Alto aí! O regime democrático pode ser condescendente, mas não pode ser tolo!

Vital Moreira

Perguntas maliciosas

1. "Civilizações diferentes"
Mais uma pérola do inefável Alberto João Jardim. Segundo o "Expresso", ele declarou, a despropósito da situação da justiça: «Estou cada vez com menos pachorra para aturar este Estado e por isso quero uma autonomia mais avançada, para os senhores de lá não se incomodarem connosco e nós não nos incomodarmos com eles», avançou Jardim, concluindo: «são duas civilizações diferentes».
Pergunta: Por que espera Jardim para declarar a independência da Madeira, para ficar com uma autonomia ainda mais avançada?
(Aparte: O continente agradecia!...)

2. Governadores civis
Numa recepção aos governadores civis, o Primeiro-ministro «sublinhou a importância dos governadores civis como interlocutores do Governo junto das populações dos respectivos distritos», disse fonte do gabinete de Durão Barroso à agência Lusa (ver aqui).
Pergunta: Não é verdade que, tal como anunciado durante a campanha eleitoral para as legislativas de 2002, o programa político do PSD inclui a extinção do cargo de governador civil, seguramente por ele se considerar desnecessário? Ou tratou-se de uma saudação piedosa para um despedimento colectivo anunciado?

3. "Legal e transparente"
A maioria governamental rejeitou a proposta de inquérito parlamentar apresentando pela oposição sobre o caso da transformação da entidade instituidora da Universidade Lusíada em fundação, contra-argumentando que se tratou de um processo "legal e transparente" (ver aqui).
Perguntas:
a) Se foi tudo "legal", por que é que foi preciso um acto legislativo individual para "legalizar" a operação?
b) E se foi transparente, por que é que foi decidido por um Governo com vários membros ligados à dita Universidade, em manifesto conflito de interesses?

4. Imunidades
O director-geral dos impostos determinou a isenção dos carros do Estado quanto ao pagamento de multas municipais «quando se encontrem em serviço».
Perguntas:
a) Pela mesma ordem de razões não seria de isentar o Estado de todas as contribuições, taxas coimas locais, libertando-o do horrendo despotismo municipal a que ele se encontra sujeito?
b) E por aplicação de um princípio de reciprocidade, não seria de isentar os municípios de todos os impostos, taxas e sanções estaduais, tudo como revolucionária medida de descentralização e autonomia municipal?

5. E se fossem eles?
Vários analistas desvalorizaram a gravidade da existência no processo Casa Pia de cartas anónimas e depoimentos avulsos a denunciar altas personalidades políticas, criticando mesmo o Presidente da República por ter ligado excessiva importância ao caso.
Pergunta: E se fossem elas mesmas as pessoas mencionadas nos tais depoimentos e cartas, continuariam elas a achar isso irrelevante?

6. A China "socialista"
Dizem as agências que o Governo chinês anunciou na semana passada que vai despedir mais de nove milhões de trabalhadores até 2006, no âmbito da última fase de reestruturação do sector público. «A pressão do desemprego sobre a economia chinesa manter-se-á durante os próximos 20 ou 30 anos», afirmou Zhang Silin, ministro do Trabalho.
Pergunta: O PCP, que anunciou uma visita próxima ao PC Chinês, ainda continua a considerar a China como um "país socialista"?
(Aparte: Bizarro "socialismo", esse!).

Vital Moreira

Blogposts nocturnos (5)

1. Favoritismo (I)
Ficou agora a saber-se que, sem qualquer anúncio público, pela calada dos acordos discretos, o Ministro Pedro Lynce tinha ampliado o privilégio da concessão do serviço público à Universidade Católica de Viseu, de modo a contemplar o curso de Medicina Dentária, que antes não estava abrangido. Deste modo, o Estado passa a suportar o diferencial entre as empoladas propinas da UC e as propinas do ensino público (resta saber se tendo em conta o montante mínimo ou máximo legal destas...).
Trata-se de um acto singular de privilégio e uma evidente operação de favoritismo dessa universidade, que obviamente voltou a "capturar" em seu proveito o departamento do ensino superior. Resta saber o que fazem o Tribunal de Contas e a PGR, os quais, recorde-se, têm a seu cargo a defesa da legalidade financeira e administrativa (embora a segunda pratique pouco).
Note-se que o acordo é tão reservado que não se encontra sequer mencionado nem no website da UCP nem no do Ministério do Ensino Superior.

2. Favoritismo (II)
Um parecer oficial do Conselho Consultivo da PGR - que se pode ver aqui -veio confirmar o que toda a gente sabia, ou seja, a ilegalidade do despacho de Pedro Lynce que permitia a entrada da filha do Ministro dos Negócios Estrangeiros no curso de Medicina, ao abrigo de um esquema excepcional cujos requisitos ela não preenchia. Esse acto custou a demissão dos dois ministros, que pagaram assim politicamente a leviandade do favorecimento. Mas o director-geral do ensino superior, que agenciou o tratamento de favor e elaborou o frustrado parecer em que se fundou o acto ilegal, continua em funções. Nem teve a hombridade de se demitir com o ministro cuja queda causou nem foi demitido pelo sucessor daquele (trata-se de um cargo de livre nomeação e exoneração). Há alguma moralidade nisso? Cesteiro que faz um cesto...

3. A honra perdida da ministra das Finanças
O cambalacho da isenção retroactiva do "pagamento especial por conta" (PEC) dos taxistas constitui um fundo golpe na imagem de rigor da Ministra das Finanças. Na verdade, é uma verdadeira imoralidade. Uma vez que aquela medida visava introduzir alguma moralidade em sectores onde quase ninguém paga impostos (e tal é o caso dos táxis), a endrómina que acabou na sua isenção dessa obrigação, incluindo a devolução das importâncias já pagas, destroça qualquer ideia de coerência financeira e de igualdade dos contribuintes. Como é que os demais sectores, não beneficiários da generosidade governamental, podem ficar quietos?
É evidente a cedência à força desestabilizadora dos taxistas. O Governo teve medo e desarmou a contestação à custa do erário público, da igualdade entre os cidadãos e da honra da Ministra das Finanças. Tudo indica que não foi uma boa troca...

Vital Moreira

segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

A catedral da Câmara Municipal de Lisboa

Sob a manchete «Niemeyer vai desenhar nova catedral de Lisboa» na 1ª página do semanário "Expresso" de sábado passado, a peça jornalística começa assim: «Pedro Santana Lopes vai convidar o arquitecto brasileiro Óscar Niemeyer para projectar a nova catedral de Lisboa».
Esfreguei os olhos de incredulidade. Como? Num Estado constitucionalmente laico é o presidente de um município que se encarrega de contratar o arquitecto de um templo? Depois, lá mais para o interior do artigo, sempre se diz que a decisão cabe, como não podia deixar de ser, ao patriarcado de Lisboa, que é o "dono da obra". Afinal a revelação inicial sobre o convite não passa talvez de uma operação de propaganda pessoal do presidente da CML, com a prestimosa cooperação do "Expresso".
Mas, bem vistas as coisas, a questão não é tão inocente como isso. A simples admissão, sem escândalo público, de que o Estado ou os municípios possam assumir responsabilidades na construção de uma catedral (ou templo de qualquer religião) testemunha a degradação do respeito pelo princípio da separação entre o Estado e as igrejas no nosso país. De facto, os templos e demais edifícios religiosos devem ser um assunto das respectivas igrejas. Não compete ao Estado nem aos municípios nenhum papel nesse âmbito, salvo as comuns funções municipais em matéria urbanística. Não se imiscua portanto o presidente da CML em assunto estranho às atribuições municipais.
Já bastam as violações correntes do princípio da separação (exibição oficial de símbolos religiosos nas escolas públicas, cerimónias religiosas encomendados por organismos oficiais, ensino religioso a cargo e a expensas do Estado, lugar protocolar especial dos dignitários da Igreja Católica, etc., etc.). Só nos faltava que os poderes públicos se encarregassem de construir igrejas. A poucos anos do centenário da implantação da República, corremos o risco de o celebrar sobre os escombros de uma das suas mais eminentes conquistas civilizacionais.

Vital Moreira

O espírito do serviço público

Empresarializar ou não a gestão de alguns serviços públicos, como os hospitais, tem suscitado, por um lado, as críticas mais radicais, sem qualquer abertura para eventuais vantagens desta reforma, e, por outro, a adesão sem restrições às opções tomadas pelo Ministro da Saúde, sem concessão aos seus riscos.
Creio que qualquer das posições pode ser perigosa. A primeira, porque ignora que há um problema a resolver, o da eficiência da gestão pública. E a segunda, porque corre o risco de desvalorizar que é preciso avaliar a bondade da solução. Ambas as posições partem de dogmas e preconceitos que é preciso ultrapassar. Fazê-lo significa admitir que a gestão pública, nos formatos tradicionais, nem sempre tem constituído a forma mais conveniente de organizar a prestação de serviços públicos e que o seu custo é por vezes desproporcionado em relação à qualidade do serviço prestado. E, ao mesmo tempo, implica não esquecer que a gestão empresarial não é uma receita mágica, económica e eficiente por definição, e que pode não ser sempre a solução mais adequada aos objectivos dos serviços públicos.
Mas para além disso, reformar ou não os serviços públicos, escolhendo um modelo empresarial ou qualquer outra solução, implica previamente responder a uma questão básica - mais difícil do que se pensa -, que é a de saber: «quando é que os serviços públicos estão a funcionar mal?»
No Público de ontem Ralph Dahrendorf tocava no essencial desta questão. O conhecido sociólogo germano-britânico refere que há serviços públicos, como a saúde ou a educação, que devem ser «avaliados de forma mais complexa do que através da obtenção de objectivos mensuráveis» e sublinha a importância da avaliação por parte dos interessados, feita por associações de utentes, mesmo que «fracas e vistas como maçadoras pelos profissionais». O retorno ao espírito de serviço público - a qualidade e o espírito dos que gerem e trabalham nos serviços públicos, não apenas por «interesse próprio ou por caridade», como se ensinava nas grandes escolas francesas - também é sustentado pelo autor.
Eis uma excelente proposta para ser discutida. Afinal, a reforma dos hospitais é somente um exemplo de um paradigma que já foi experimentado em outros serviços públicos (alguns institutos, no final dos anos oitenta) e irá provadamente ser ensaiado em outros casos.

Maria Manuel Leitão Marques

domingo, 11 de janeiro de 2004

O horror regional

Só este fim-de semana me dei verdadeiramente conta do que os novos poderes estavam a tramar em matéria de organização administrativa do país. O mapa que o Expresso publica sobre a "nova regionalização", fruto dos arranjos inter-comunitários da nova lei sobre o ordenamento do território, é profundamente inquietante. Já suspeitava que esta legislação, inspirada pela clarividente cabeça do ex-ministro Isaltino, iria resultar num desastre. Mas ninguém imaginaria que o horror pudesse atingir as proporções que se desenham, perante o mais estranho dos silêncios da classe pensante, o desconhecimento do povo e a inacreditável complacência informativa dos media.
Os mesmos que combateram o projecto de regionalização e que animaram os espantalhos do caciquismo e do despesismo regional deveriam agora dizer o que pensam desse novo mapa que Durão Barroso se prepara para inaugurar, já amanhã, com a nóvel Comunidade Urbana do Vale do Sousa (soa bem, não soa?). Em vez das cinco regiões que a direita, as elites urbanas e o povo chumbaram em referendo, teremos mais de vinte, contra os actuais dezoito distritos e a desejável lógica de racionalização administrativa que os tempos recomendam.
Por ora, deliciemo-nos com o futuro mapa. O Algarve, como sempre, mantém a sua lógica própria. As áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mais concelho menos concelho, serão o que já eram. Mas o que dizer do esquartejamento do resto do país, onde o Minho vai ser partido em três regiões, o Douro Litoral noutras tantas, o vale do Tejo em Oeste, Lezíria e Médio Tejo (além de Lisboa), o Alentejo cindido em quatro pedaços e os sobrios distritos de Coimbra, Leiria (embora com o território reduzido pela independência do Oeste) e Aveiro promovidos à ridícula condição novo-rica e enganatória de "grandes áreas metropolitanas"?
E ninguém nos pergunta nada? Nem ninguém contesta a irracionalidade e a falta de estética do futuro mapa administrativo da nação? Ou estamo-nos todos nas tintas?

Luís Nazaré

Distinguir o que é distinto

Uma coisa são os factos que são notícia - porque são significativos e de relevante interesse público. É o caso da anexação ao processo da Casa Pia de cartas anónimas visando o Presidente da República e o comissário Vitorino. É também o caso da apresentação às testemunhas de fotografias de importantes figuras do Estado e da Igreja. Nenhum segredo de justiça justifica, por razões técnicas ou outras, a ocultação destes factos e abusos judiciais. Todos temos o direito de conhecê-los.

Outra coisa, porém, é o aproveitamento alarve e eivado do sensacionalismo mais inqualificável - como é prática habitual nos noticiários da TVI - de declarações de testemunhas, com a descrição pormenorizada de actos sexuais que teriam sido praticados por alguns dos acusados no processo. Qualquer mente minimamente esclarecida, sabe distinguir perfeitamente as duas coisas e não confunde aquilo que é notícia com aquilo que é mero vómito informativo, sem qualquer relevância e interesse público.

É óbvio que aos novos aspirantes a censores não convém fazer a destrinça entre uma coisa e outra, no que são acompanhados, naturalmente, pelos produtores dos vómitos informativos. As recentes declarações de José Eduardo Moniz, director da TVI, em defesa da liberdade de informação são, por isso, de uma revoltante hipocrisia. Mais: são um nojo equiparável ao nojo que ele faz passar nos seus noticiários, em busca de audiências.

Combater a deriva do sensacionalismo nos media não passa por um qualquer aparelho censório. Sabe-se onde começa a censura mas não se sabe onde é que acaba. Aqui impõe-se, pelo contrário, a existência de uma entidade reguladora com poderes eficazes e transparentes (como não é o caso da actual Alta Autoridade para a Comunicação Social). E impõe-se, como é evidente, uma celeridade maior na aplicação das leis existentes - uma vez que se trata de crimes abrangidos também pela legislação geral. Se essas leis forem aplicadas com a severidade indispensável, os exploradores do lixo televisivo e impresso encontrariam motivos para pensarem duas vezes. Uma vez que, como está definitivamente comprovado, nenhuma auto-regulação será praticada por quem vive do exercício impune da desregulação selvagem.

Vicente Jorge Silva

O sono dos justos e os monstros da razão

O processo da Casa Pia está a ter efeitos demolidores não só no sistema de justiça e no estado de direito, mas no próprio bom senso e na sanidade mental de muita gente responsável. À confusão de valores juntou-se a confusão sobre a natureza das coisas, mesmo quando elas são completamente distintas. E como a liberdade é o mais precioso dos bens mas também o mais vulnerável, começou já atacar-se a liberdade a pretexto de defender o segredo de justiça. Sintoma revelador: a tentação censória tomou de assalto alguns espíritos até aqui insuspeitos de inclinações autoritárias.

Veja-se o artigo (oportunamente desmontado por Vital Moreira e Miguel Sousa Tavares) em que Pacheco Pereira leva as suas velhas obsessões conspirativas a um ponto delirante e de manifesta má-fé intelectual. Veja-se a recente intervenção parlamentar de Assunção Esteves, presidente da comissão de Assuntos Constitucionais, visando a restrição da liberdade de imprensa. Mas veja-se, sobretudo, porque o assunto foi menos falado, o convite explícito que o bastonário da Ordem dos Advogados dirigiu aos jornalistas no sentido de estes se "censurarem" (sic). A propósito: já se reparou como José Miguel Júdice fala cada vez mais e parece perdido na lógica e coerência das suas sucessivas declarações?

Como o processo da Casa Pia entrou em rédea solta e atingiu um grau de puro surrealismo judicial (vide os episódios das cartas anónimas e do álbum de fotografias apresentado às testemunhas), a lucidez das mentes parece também ter já sido contaminada pelo vírus da surrealidade e pelo pânico desta corrida para o abismo. Que é que está em causa, afinal? Os factos ou as notícias sobre os factos? Protegidos pelo segredo de justiça, os factos deixariam de sê-lo - ou só passariam a sê-lo quando o processo se tornasse público? E então? A solução (bem provisória e ilusória) será esconder os factos - e factos de uma gravidade inusitada - em nome do segredo de justiça (que, aliás, não tem aqui qualquer relevância) e permitir a ocultação de situações de inexplicável e absurdo arbítrio judicial?

Como já foi lembrado, antes punha-se o acento tónico na necessidade de rever os prazos do segredo de justiça, de modo a contrariar a manipulação das fugas de informação. Agora,
defende-se o contrário. Antes, pretendia-se a transparência total, agora quer-se tapar o sol com a peneira. Será que dormiremos o sono dos justos enquanto o sono da razão judicial vai gerando novos monstros?

Vicente Jorge Silva

sábado, 10 de janeiro de 2004

"Quadratura do círculo" (bis)

Respondendo às minhas observações sobre o desequilíbrio da composição do programa de debate político agora rebaptizado com o nome em epígrafe, J. Pacheco Pereira recorre à história do Flasback para mostrar que ele teve uma composição política variável, sem ligação orgânica ao trio PP-PSD-PS. Penso que isso é assim para uma primeira fase do programa, mas que as coisas mudaram desde que a susbtituição de Nogueria de Brito por Lobo Xavier tornou claro que se tinha consolidado a lógica da representação "oficiosa" de certas áreas políticas. Tudo indica que a mesma lógica se imporia necessariamente, se porventura algum dos outros intervenientes deixasse o programa. E factos são factos: há dois representantes da direita e somente um da esquerda (o que entre outras coisas confere a JPP o privilegiado lugar central...). De resto, não encontro razão para concordar com JPP quando ele duvida «que, se o Flashback tivesse a preocupação de assegurar uma representação ao espelho do parlamento, conseguisse a variabilidade de posições e discussões que por lá passaram.» O senso comum levaria a esperar o contrário.

Vital Moreira