sábado, 28 de dezembro de 2019

Não é bem assim (10): Poderes do Presidente

1. Na sua crónica de hoje no Expresso, Miguel Sousa Tavares escreve que «os nossos pais fundadores da Constituição de 76 quiseram um sistema semipresidencial que, não dando ao Presidente o papel principal, lhe deu, todavia, muito mais poderes dos que tinha anteriormente, na Constituição do Estado Novo de 1933».
Mas não é assim.
A Constituição de 1933 consagrava uma espécie de "presidencialismo governativo indireto", visto que o Governo, chefiado pelo Presidente do Conselho [de Ministros], retirava a sua legitimidade política do Presidente da República, que o nomeava e demitia livremente e que presidia ao Conselho de Ministros, ao contrário do que sucede na Constituição de 1976 (depois da revisão constitucional de 1982), em que o Governo só depende da confiança política da AR, e não do PR, e em que o PR não pode nomear livremente nem demitir livremente o Governo (pelo que, a meu ver, não faz sentido caracterizar o sistema de governo como "semipresidencialista").

2. É certo que, no sistema do "Estado Novo", a Constituição se transformou num instrumento puramente "semântico", sem comando sobre a "realidade constitucional", desde logo no que se refere ao sistema de governo, pois foi o chefe do Governo (Salazar e depois Caetano) que assumiu as rédeas do poder, à margem do PR (cujos titulares o primeiro escolheu livremente), esvaziado de poder, ao contrário do estabelecido na Constituição.
Mas se se trata de comparar poderes constitucionais, então o PR da Constituição de 1976 não tem nem de longe nem de perto os poderes que a Constituição de 1933 atribuía ao Chefe do Estado. Felizmente, direi eu...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

SNS, 40 anos (20): A ideologia custa dinheiro

«A produção de cuidados de saúde no âmbito da PPP do Hospital de Vila Franca de Xira permitiu ao Estado obter uma poupança estimada de 30 milhões de euros entre 2013 e 2017, face aos custos em que incorreria, em média, se aquela produção fosse realizada por hospitais do SNS de gestão pública, comparáveis, no mesmo período».
Esta frase consta do relatório de auditoria do Tribunal de Contas à gestão do hospital de Vila Franca de Xira, unidade do SNS em gestão privada (PPP), hoje referido no jornal Público. Todavia, apesar dessa poupança, esse regime vai ser descontinuado no final do contrato, em 2021, por decisão do Governo tomada na legislatura anterior, sob pressão do anátema ideológico do PCP e do BE contra as PPP no SNS.
Lementavelmente, continua a não se querer reconhecer a evidência de que uma dos principais falhas do SNS decorre da ineficiência da gestão pública, que onera os seus elevados custos. Assim, não há milhões de euros que cheguem para alimentar a voracidade da ideologia.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Praça da República (27): Sistema de governo

Costumo dizer aos meus alunos de ciência política que o melhor indicador para identificar os sistemas de governo nos países da UE é olhar para a composição do Conselho Europeu, que reúne os mais altos responsáveis internos pela política europeia.
Ora, é fácil ver que, com exceção de quatro países, todos os demais estão representados pelos seus primeiros-ministros (ou chefes de governo com outro nome), indesmentível indicador de um sistema de governo parlamentar. As citadas exceções são Chipre (sistema de governo presidencialista, onde é o Presidente que dirige o governo), mais a França, a Lituânia e a Roménia, países com diversos graus de "semipresidencialismo" (função governativa compartilhada entre o PR e o primeiro-ministro), onde o Presidente da República tem a seu cargo pelo menos a política externa e/ou as relações com a UE.
É óbvio que Portugal não se conta entre estes últimos países, porque entre nós o PR não exerce quaisquer funções governamentais, nem o Governo é responsável politicamente perante ele, não havendo, portanto, nenhum traço do chamado semipresidencilismo, apesar da opinião em contrário de muitos observadores.

Pobre língua (14): "Melhor" e "mais bem"

Na sua habitual coluna no Público de ontem (acesso limitado a assinantes), Vasco Pulido Valente insurge-se contra o frequente erro da substituição de "mais bem" por "melhor", a acompanhar particípios passados, no discurso público de jornalistas, comentadores e titulares de cargos públicos (por exemplo, "melhor preparado", "melhor construído", "melhor apresentado", etc.).
Infelizmente, trata-se somente de um exemplo entre muitos do estropiamento quotidiano da Língua, quer em termos gramaticais, quer de pronúncia, por quem tem a obrigação de a usar de forma culta e que nos meios de comunicação banaliza e torna aceitáveis tais erros. Já que, pelos vistos, a escola deixou de ensinar devidamente o Português, defendo há muito que quem tem acesso regular ao espaço público, a começar pelos jornalistas e comentadores, deveria passar por um teste de conhecimento da Língua...

Adenda
Um leitor refere apropriadamente outros casos de erro recorrente, como a frequente troca de "ir ao encontro de" por "ir de encontro a", o uso de "término" em vez de "fim" ou "termo" (de um prazo). Outro leitor condena, com toda a razão, a invasão de anglicismos enganadores, como "evidência" (em vez de indício, prova), "santuário" (em vez de refúgio), "endereçar" um assunto (em vez de abordar, tratar de), "entregar" (em vez de cumprir, mostrar desempenho), "taxa" e "taxar" (em vez de imposto e de tributar), "realizar"  (em vez de aperceber-se de, dar conta de), entre muitos outros.
[revisto]

sábado, 14 de dezembro de 2019

Concordo (9): Poderes ocultos

Concordo com esta proposta do PAN sobre a declaração dos titulares de cargos públicos acerca da sua pertença a "instituições discretas" como a maçonaria e a Opus Dei, pela simples razão que desde há muito defendo essa ideia, como, por exemplo, neste post de 2014. É bom saber que tenho companhia...
Na verdade, penso que integração de "irmandades" com alto grau de solidariedade pessoal entre os seus membros constitui um risco sério para a isenção e a imparcialidade no exercício dos cargos públicos.

Não vale tudo (6): Achincalhar as instituições

Não tenho dúvidas de que numa democracia liberal o debate parlamentar é essencialmente irrestrito e insuscetível de censura, muito menos de sanção disciplinar dos deputados que se excedam verbalmente. Não é por acaso que as constituições estabelecem tradicionalmente a imunidade penal das opiniões dos deputados e que o direito à honra entre deputados se defende no próprio espaço parlamentar pelos próprios e não em sede judicial.
Mas uma coisa é o debate político entre deputados e entre partidos parlamentares, outra coisa é o vilipêndio das próprias instituições democráticas, que não deve ser consentido. Uma democracia parlamentar que consente o achincalhamento das instituições pelos próprios deputados socava a sua autoridade democrática.

Praça da República (26): "Estratégia contra a corrupção"

1. Conto-me entre os que pensam que a luta contra a corrupção não passa essencialmente por mexidas mais ou menos fundas no código penal e no processo penal, devendo ser priviligiados outros instrumentos, como a redução preventiva das situações corruptogéneas, a transparência na vida financeira dos titulares de cargos públicos, o regime de incompatibilidades e de conflitos de interesse, a obrigação de declaração de acréscimos de riqueza e a punição do seu incumprimento, etc.
Todavia, pode haver margem para aperfeiçoamentos na investigação e no processo penal relativos a esse crime, desde que excluídas algumas propostas facilitistas (e populistas) que não respeitam as "linhas vermelhas" próprias do nosso Estado de direito constitucional, entre as quais a "delação premiada", à maneira brasileira (negociada pelo Ministério Público na fase da investigação e isentando a delator de acusação e julgamento) e a criação de tribunais especiais.

2. Por isso, não me parecem de rejeitar à partida as ideias adiantadas pelo Ministério da Justiça para debate sobre o assunto, que me parecem prudentes e equilibradas, e que nem são simples "medidas de cosmética", como dizem alguns justicialistas mais exaltados, nem põem em causa as bases do nosso sistema constitucional-penal, como proclamam alguns puristas mais precipitados, que, por exemplo, veem erradamente nas ideias governamentais a porta aberta para a "delação premiada", quando a verdade é que a Ministra limitou explicitamente o "prémio de colaboração penal" à fase de julgamento (portanto, sem isenção de acusação e de julgamento e sob responsabilidade do juiz).

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Social-democracia (7): Fora de prazo

1. Além da esperada vitória dos Conservadores, renovando o seu mandato governativo com uma confortável maioria absoluta na Câmara dos Comuns (cortesia do sistema eleitoral maioritário britânico), o que mais impressiona nas eleições de ontem na Grã-Bretanha é a enorme derrota do Partido Trabalhista, que perde muitas dezenas de deputados não somente para os Conservadores mas também para os nacionalistas escoceses (que são o segundo grande vitorioso da noite eleitoral).
Esta nova derrota do Labour sob liderança de Corbyn confirma o insucesso da extemporânea opção esquerdista que ele imprimiu ao partido - como, de resto, aqui se antecipou na altura numa expressão daquilo a que já chamei a "doença serôdia da social-democracia".

2. Tendo já anunciado a sua saída da liderança, Corbyn pretende, porém, manter-se transitoriamente à frente do Partido e gerir o "processo de reflexão" e de transição para nova liderança.
Todavia, face à sua derrota histórica, Corbyn deveria deixar imediatamente o campo desimpedido para o debate necessário à reconstrução do Partido, sem o tentar influenciar. Como afirmou um dos deputados do Labour, o período de reflexão de Corbyn para a sua saída não deveria exceder os 10 minutos...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Um pouco mais de rigor sff (69): Legitimidade democrática da UE

1. Perguntado pelo Jornal de Negócios sobre se a imposição de restrições orçamentais pelos Tratados da UE aos Estados-membros não limita as democracias nacionais, o Prof. Ginsburg, coordenador de uma obra "Constituições em tempos de crise", recentemente publicada, respondeu assim:
«Esse é um dos aspetos focados no livro. Normalmente, os governos são legitimados democraticamente pela escolha dos eleitores. O governo da União Europeia retira a sua legitimidade do funcionalismo, da tecnocracia. As pessoas ficam naturalmente insatisfeitas em serem governadas por tecnocratas que lhes dizem que não há alternativa, que a via para resolver os problemas é uma via única. Vimos o efeito que esse discurso teve na Grécia, onde as pessoas ficaram efetivamente zangadas. [sublinhado acrescentado]».
2. Esta reposta é um disparate. Os Tratados da União, bem como o chamado Tratado Orçamental, foram negociados, aprovados e ratificados respetivamente pelos governos, parlamentos e chefes de Estado nacionais, gozando, portanto,de plena legitimidade democrática interna. Também tiveram o apoio do Parlamento Europeu, que é diretamente eleito pelos cidadãos europeus. Ao contrário da afirmação sublinhada, o Governo da União assenta na dupla legitimidade democrática das eleições nacionais, que elegem os governos ancionais (que integram o Conselho da União e o Conselho Europeu), e das eleições europeias, que elegem o Parlamento Europeu.
Por sua vez, a Comissão Europeia, que é o "governo da União", e que implementa os referidos Tratados, é nomeada pelo Conselho da União, com a aprovação do PE; além disso, está sujeita às orientações definidas pelo Conselho Europeu, e à responsabilidade política permanente perante o Parlamento Europeu.

3. A democracia da UE pede meças a muitas democracias nacionais, por exemplo quanto ao controlo da Comissão pelo PE ou quanto à condução da política comercial externa.
Um pouco de conhecimento sobre a constituição da União não faria mal a um especialista de direito constitucional comparado, mesmo americano...

domingo, 8 de dezembro de 2019

Big Ben (5): Eleições decisivas

1. Todas as sondagens de opinião sobre as eleições britânicas do próximo dia 12 dão uma confortável vitória ao Partido Conservador, com cerca de 10pp de vantagem sobre o Partido Trabalhista. Tendo-se a campanha eleitoral polarizado à volta do Brexit, os conservadores foram capazes de agregar o apoio da maior parte dos "leavers", enquanto o voto dos "remainers" se divide entre os trabalhistas, os liberais-democratas e os nacionalistas escoceses.
Se a isso somarmos a apreciação muito negativa do líder dos trabalhistas na opinião pública e o programa demasiadamente esquerdista do Labour, fica desenhado o quadro das preferências eleitorais dos britânicos.

2. Poucas eleições britânicas tiveram consequências tão profundas como estas.
Com a anunciada vitória, Johnson fica de mãos livres para avançar para a aprovação do acordo do Brexit com a UE, com saída prevista para 31 de janeiro. Termina assim uma atribulada viagem de mais de três anos, desde o referendo que ditou a saída.
Mas as consequências da vitória conservadora e da consumação da saída da UE não ficam por aqui.
Por um lado, somando mais uma derrota eleitoral (maior do que a anterior, em 2017), o mais provável é a contestação da liderança de Corbyn no Labour.
Por sua vez, na Escócia, onde o Partido Nacionalista se prepara para averbar uma convincente vitória, aumenta, as probabilidades de um novo referendo da independência, para permitir o reingresso na União Europeia.
Decididamente, o Reino Unido não voltará a ser o que era...

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Privilégios (14): Os pensionistas não são todos iguais

Esperar três meses ou mais pela atribuição da pensão a que se tem direito é inaceitável, nem se compreende tal atraso, tendo em conta o aumento da despesa pública e do número de funcionários nos últimos anos. Embora os atrasos estejam a ser reduzidos, verifica-se, mais uma vez, que nem todos os pensionistas são iguais, pois os do regime geral continuam a demorar muito mais do que os funcionários públicos (mais de cinco meses).
Como se não bastassem os demais privilégios que os funcionários públicos já têm!...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Praça Schuman (9): Contra as ameaças de Trump

Começa bem a nova Comissão Europeia, quando, através do Comissário da Economia, Gentilloni, reitera que a União retomará o projeto de tributação sobre as multinacionais tecnológicas, se não forem bem-sucedidas as negociações em curso sob a égide da OCDE para uma solução global , inesperadamente  ameadas de boicote pelos Estados Unidos.
Recentemente, aliás, Trump, assumindo a defesa dos intereses dos GAFA, ameaçou penalizar diversas importações francesas com novas tarifas aduaneiras, justamente por causa da lei francesa que criou tal imposto. Como é evidente, um tal abuso de sanções comerciais, à margem das regras da OMC, não deixaria de desencadear apropriadas medidas de retaliação da União Europeia. Decididamente, Trump tornou-se um inimigo qualificado da ordem económica internacional vigente e das soluções  multilaterais.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Ai a dívida (19): É desta?

Ao contrário do título desta notícia, Portugal não tem "reduzido muito a dívida pública" (nem muito nem pouco, aliás). Pelo contrário, a dívida não tem cessado de aumentar, por causa dos contínuos défices orçamentais, apesar do sustentado crescimento económico desde 2014, que fez disparar as receitas, e da baixa histórica dos juros, que corta substancialmente nos custos da dívida.
O que tem baixado é o rácio da dívida em relação ao PIB, mercê do crescimento deste, mesmo assim num rimo claramente insatisfatório, como agora vem lembrar mais uma vez a Comissão Europeia.
Há vários anos, desde que a economia cresce à volta de 2% ao ano, que venho defendendo que Portugal deveria manter saldos orçamentais positivos, de modo a reduzir efetivamente o montante da dívida e acelerar a redução do rácio da divida no PIB, a caminho dos padrões europeus, a fim de reduzir a vulnerabilidade do País a choques externos. Estará esse objetivo finalmente próximo de ser alcançado ou, mais uma vez, vai o despesismo consumir o encaixe acrescido de receita pública?

Ainda bem (5): Contra os privilégios territoriais

Ainda bem que o PS "deixa cair eleição directa dos presidentes das áreas metropolitanas", a que me opus sempre.
Na verdade, acrescentar o autogoverno, mediante eleições diretas, às atribuições próprias que elas já têm, tornaria as áreas metropolitanas em autarquias locais supramunicipais, o que, além de ser constitucionalmente problemático, implicaria uma espécie de "regionalização privativa" para Lisboa e o Porto, à margem do resto do País. Privilégios territoriais, já bastam os que existem!

Laicidade (8): As universidades públicas não têm religião

Eis o correio eletrónico que enviei ao Reitor da Universidade de Coimbra:
Senhor Reitor, venho mais uma vez protestar contra o convite feito por V. Excia, em parceria com o capelão da Universidade, para uma missa em honra da “padroeira da Universidade”. Como universidade pública de um Estado laico, a UC não em religião, nem, portanto, “padroeira” enquanto instituição, muito menos pode mandar celebrar cerimónias religiosas ou participar nelas. Estas devem ficar a cargo e a expensas das associações de professores ou estudantes católicos, a que o Reitor se pode associar a titulo pessoal, nunca na sua qualidade institucional. Ao assumir e ao endereçar o convite, o Reitor toma partido numa questão a que constitucionalmente tem de ser alheio 
Com os meus melhores cumprimentos 
Vital Moreira

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Programa do Governo (VI): Uma inovação de risco

1. Uma das mais ousadas inovações políticas do Programa do Governo - que estranhamente a imprensa não comentou -, é a proposta de debate dos ministros com as comissões parlamentares competentes no âmbito do debate parlamentar sobre aquele, estipulado na Constituição, que até agora decorre exclusivamente no plenário do parlamento.
Nascidas no âmbito do sistema federal dos Estados Unidos, as audições prévias do membros do Governo (e outros titulares de cargos públicos) competem ao Senado, que representa os estados federados, e não à câmara representativa dos cidadãos, visando uma participação dos estados federados, através da sua câmara representativa própria, na nomeação do governo federal. Por isso, a transferência dessa figura parlamentar para outras geografias políticas, como a União Europeia, onde se institucionalizou a audição pública dos comissários indigitados no Parlamento Europeu, implica uma clara mudança de sentido político.

2. O risco da iniciativa agora tomada pelo Governo - que se espera entre em funcionamento já no próprio debate parlamentar deste programa do Governo -, é o de o encontro dos ministros com as comissões parlamentares se vir a transformar num verdadeiro exame sobre a personalidade, o currículo e a capacidade política dos ministros e menos sobre o seu programa governativo, levando a um processo de ingerência política do Parlamento na composição individual do Governo, que é constitucionalmente da responsabilidade exclusiva do Primeiro-Ministro.
Se vier a institucionalizar-se, mesmo sem revisão constitucional, uma espécie de exame parlamentar prévio dos ministros - acabando eventualmente na possibilidade de veto político -, tratar-se-á de uma mudança substancial do nosso sistema de governo.

Programa do Governo (V): Sim ao investimento na cidadania

Aplauso para as propostas relativas à literacia democrática e à cidadania, nomeadamente a aprovação de um  Plano Nacional de Literacia Democrática, liderado por um comissariado nacional, e a inclusão do estudo da Constituição em todos os níveis de ensino, com crescente grau de profundidade.
Há décadas que ando a labutar por estes objetivos. Não é admissível o grau de desconhecimento crasso da generalidade dos portugueses, mesmo os que têm graus académicos, sobre aos direitos e obrigações cívicas e sobre o funcionamento do sistema constitucional. Não há cidadãos responsáveis sem educação para a cidadania.

Programa do Governo (IV): Boas notícias nos transportes urbanos

1. O Programa do Governo traz duas boas propostas no âmbito dos transportes públicos urbanos.
Quanto ao Programa de Apoio à Redução do Tarifário dos Transportes Públicos (PART), lançado em 2018 e financiado pelo Estado, o Governo propõe-se definir um novo mecanismo para o seu financiamento, assente numa nova receita própria das áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais, tendo em vista assegurar a estabilidade desta política.
Desde o princípio deveria ter sido assim, como aqui defendi na altura própria.

2. Quanto aos próprios transportes públicos urbanos, o Governo propõe-se transferir a sua propriedade e gestão para responsabilidade autárquica (áreas metropolitanas, CIMs e municípios), como desde sempre deveria ter sido, acabando, portanto, com o envolvimento do Estado nessa área, como defendo há décadas, em homenagem à descentralização territorial.
Resta saber quanto tempo vai demorar esta mudança e se o Estado vai manter alguma responsabilidade no financiamento dos metropolitanos de Lisboa e do Porto, como vem sucedendo até aqui, tornando a emenda pior do que o soneto.

domingo, 27 de outubro de 2019

Programa do Governo (III): Privilégios territoriais

Enquanto mantém um gritante silêncio sobre a questão da descentralização regional ("regionalização"), apesar de o relatório da Comissão oficial nomeada para o efeito ter sido publicado em julho, o programa do Governo retoma a proposta da legislatura passada, de transformar as atuais "áreas metropolitanas" (Lisboa e Porto) em autarquias regionais, com órgãos eletivos e atribuições próprias.
Só que, não havendo regionalização do País, a criação das autarquias metropolitanas em Lisboa e no Porto traduz-se num intolerável privilégio territorial, dotando as duas principais cidades de uma autarquia supramunicipal de que o resto do país não beneficia, com o risco de as duas metrópoles deixarem de se interessar pela regionalização geral ao país (o que já sucede hoje em relação a Lisboa...)
De resto, no caso de a regionalização acabar por avançar (apesar de todos os escolhos), Lisboa e  Porto teriam nada menos do que quatro níveis territoriais de poder público infranacional (freguesias, municípios, autarquias metropolitanas e autarquias regionais), o que é manifestamente um exagero institucional.

Programa de Governo (II): A barbárie tauromáquica vai continuar

O Programa do Governo inclui um compromisso de elevar a idade de assistência a touradas, que hoje está aberta a crianças. Resta saber se essa pequena concessão serve para "domesticar" a oposição do PAN - o que seria uma barata "compra" - ou se este vai pelo menos exigir as seguintes reclamações mínimas do programa antitouradas:
    - proibição de todos os apoios oficiais às touradas;
    - fim da transmissão das touradas na RTP;
    - poder aos municípios de proibirem touradas nos seus territórios.

Programa do Governo (I): Mistério

Apesar de desta vez não ter havido acordo governativo com o BE e o PCP, o Governo voltou a não incluir no seu programa as propostas do programa eleitoral do PS sobre revisão do sistema eleitoral e do sistema de governo das autarquais locais, que assim são mais uma vez adiadas por mais uma legislatura.
Sabendo-se que, em qualquer caso, tais reformas só poderiam avançar com um acordo entre o PS e o PSD, por exigirem 2/3, o recuo do PS traduz-se numa submissão ao poder de veto da extrema-esquerda parlamentar e numa rejeição liminar de acordos com o PSD, mesmo lá onde as coisas só podem avançar com este partido. Resta saber se esta expedita retratação político do PS em duas importantes reformas constitui uma renúncia unilateral, tornando-se refém dos seus aliados da legislatura passada, ou se ele implica contrapartidas côngruas da parte dos beneficiários...

Adenda
Pela mesma razão, por implicar um entendimento com o PSD, o PS parece estar a rejeitar também qualquer revisão cosntitucional que não tenha o acordo do PCP e do BE, por mais necessária que seja, como, por exemplo, para admitir o acesso dos serviços secretos a dados de comunicações privadas, ou para permitir a partipação das forças armadas em tarefas de segurança interna -, para referir somente dois temas atuais que carecem de emenda cosntitucional. Ora, até agora, nunca o PS tinha condicionado a revisão da Constituição ao assentimentoto da exterma-esquerda. Quantum mutato ab illo!

sábado, 12 de outubro de 2019

Costa II (1): Os riscos dos governos minoritários

1. Não compartilho da opinião de São José Almeida no Público de hoje, segundo a qual, com o bom resultado eleitoral que obteve, o PS não precisa de acordos prévios com outros partidos para governar sem grandes problemas.
Há duas objeções. Primeiro, se Geringonça morreu não foi somente por o PS já não precisar dela para ser governo, como era o caso em 2015, mas também porque o PCP se colocou logo de fora e o BE colocou condições incomportáveis -, o que não augura uma oposição fácil desse lado. Segundo, porque, se não é provável que a extrema-esquerda parlamentar se una à direita para derrubar o Governo socialista, através de uma moção de censura (nunca tal sucedeu), já é menos inverosímil que haja convergência dos dois lados do parlamento para aprovar leis contra o Governo, ou para reprovar as propostas de lei do Governo, ou, pior do que isso, para aprovar aumentos incomportáveis de despesa pública, quer na lei do orçamento quer à margem dela, infernizando a vida do Governo.

2. Lembremos os governos de Guterres, que, aliás, tinha resultados eleitorais mais robustos.
O primeiro Governo (1995-1999) só se aguentou durante quatro anos mercê de abstenção do PSD na votação dos orçamentos (em troca da cedência no PS no lamentável negócio dos referendos à regionalização e ao aborto) e à custa de um substancial aumento da despesa pública, que foi "comprando" a oposição de esquerda. O segundo Governo (1999-2001) só perdurou enquanto teve o apoio de um deputado do CDS na votação dos orçamentos (os do "queijo limiano") e enquanto a recessão económica e a consequente perda de receita pública não ditaram um défice orçamental incompatível com as regras comunitárias logo em 2000, prelúdio da derrota eleitoral nas autárquicas de 2001 e o pedido de demissão de Guterres.
Os precedentes não são, portanto, auspiciosos.

3. Não deve haver nenhumas dúvidas sérias de que o principal risco para a estabilidade de um governo minoritário não provém de uma coligação negativa para derrubar o Governo, mas sim dos constrangimentos financeiros resultantes da fatal tendência despesista das oposições e dos "grupos de interesse". Já se imaginou o episódio do tempo de serviço do professores repetido, mesmo em doses menos dramáticas, noutros casos?
Enquanto Centeno permanecer no Governo, é evidente que há limites para o aumento da despesa pública, que não pode continuar a crescer a um ritmo acima do PIB, como sucedeu no últimos anos. As "vacas gordas" orçamentais não duram sempre.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Vontade popular (10): Maus augúrios?

Embora ganhando folgadamente as eleições, com quase 9 pp de vantagem sobre o PSD, o PS ficou  longe da maioria absoluta (que, aliás, nunca exigiu) e abaixo da generalidade das sondagens dos últimos meses. A polémica de Tancos em plena campanha eleitoral cobrou o seu preço.
Tendo vencido em todos os grandes círculos eleitorais (Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro), em nenhum deles o score se aproximou dos 40%, o que inviabilizou uma vitória eleitoral mais volumosa.
Esta é a sétima vitória do PS em eleições parlamentares desde o início da atual era constitucional, com números ligeiramente acima dos de 1976 (34,9%), 1983 (36,1%), e 2009 (36,6%), mas bem abaixo das vitórias de 1995 (43,8%), 1999 (44,1%) e 2005 (45%). Trata-se da terceira vez que o PS ganha as eleições sendo Governo, repetindo o feito de 1999 e de 2009. Em nenhum desses casos o novo governo do PS completou a legislatura. Maus augúrios?

Vontade popular (9) - Contra a fragmentação parlamentar

Contra a corrente, não acompanho o aplauso de muitos comentadores pelo facto de haver mais três partidos com representação parlamentar, que passam a ser 10! Penso que a fragmentação parlamentar não aumenta a qualidade da democracia parlamentar, pelo contrário, dado o aumento da "cacofonia política" e dos "custos de transação" parlamentar que aquela gera, para além de abrir a porta e dar eco a forças extremistas.
Há muito que defendo a divisão dos maiores círculos eleitorais, nomeadamente Lisboa e Porto, que, aliás, têm vindo a aumentar o número de deputados a eleger, por causa das deslocações demográficas para os grandes centros, à custa dos círculos eleitorais do interior. Com isso vai diminuindo o limiar de votação para eleger um deputado em Lisboa e no Porto e vai-se tornando cada vez mais imprevisível a formação de maiorias parlamentares, em prejuízo da estabilidade política e da consistência governativa.

Antologia do nonsense político (12): Transformar derrotas em vitórias

O prémio de nonsense político da noite vai seguramente para Rui Rio, que conseguiu transformar a severa derrota do PSD - uma das maiores da sua história em eleições parlamentares, com menos de 28% dos votos - numa quase vitória, perante os aplausos dos seus apoiantes. Faz lembrar aquela história de alguém que fica contente por ter partido uma perna, com o argumento de que poderia ter partido ambas!...
Rio conseguiu argumentar que o PSD teria tido "resultados próximo dos de 2015", uma vez descontados os votos imputáveis ao CDS na coligação PàF (mas esquecendo-se de contabilizar a votação do PSD nos Açores e na Madeira, onde concorreu separadamente e onde somou 1,5%). Ora, se o PSD fica agora com menos uma dúzia de deputados, como pode o líder do PSD sustentar a peregrina tese de que não perdeu em relação a 2015?!

Geringonça (21): RIP

E pronto, a Geringonça, chega ao fim, concluída a sua missão.
O PCP, que "pagou as favas" eleitorais, apressou-se a declarar que não está disponível para repetir a fórmula política que o penalizou. Por sua vez, o BE, que também desceu eleitoralmente, diz que se mantém disponível para um acordo de legislatura, mas algumas das condições que coloca são financeiramente incomportáveis (sem contar com o veto que exigiria a certas propostas do programa eleitoral do PS, como, por exemplo, a reforma do sistema eleitoral, como sucedeu em 2015); e de qualquer modo, será difícil o PS fazer um acordo unicamente com o Bloco, deixando o PCP de fora.
Resta saber se, afastada a solução de 2015 com o BE e o PCP, há margem para uma fórmula semelhante com outros protagonistas, nomeadamente o PAN e o Livre (mas não chega para a maioria parlamentar).
[revisto]

Adenda
Respondendo ao comentário de um leitor, penso que uma das razões para o PS se felicitar pela expressiva vitória eleitoral (embora aquém do esperado...) é o facto de ter deixado de estar refém do aventureirismo do BE para governar, como sucedeu nestes quatro anos. Tem mais deputados do que a direita somada e não está sujeito a nenhum veto do Bloco.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Vontade popular (8): Instabilidade política no horizonte?

1. As sondagens de opinião sobre as eleições de domingo que vem são convergentes sobre três coisas:
    - Uma folgada vitória  do PS, porém sem maioria absoluta (que a questão de Tancos inviabilizou...);
    - Uma substancial vantagem do PS sobre o PSD e sobre o conjunto da direita (o que sempre aconteceu quando o PS ganhou as eleições, mesmo sem maioria absoluta);
    - A possibilidade aritmética de o PS formar maioria parlamentar com mais do que um dos outros partidos, nomeadamente à sua esquerda, e talvez até com o novel PAN, não ficando refém de nenhum deles, como sucedeu na legislatura cessante.
A confirmarem-se estas previsões, o PS ganha em todos os tabuleiros.

2. Até agora, António Costa tem rejeitado a hipótese de governo de coligação, admitindo, porém, a renovação de acordos parlamentares de incidência governamental com os partidos à sua esquerda.
Resta saber se o PS está disponível para suportar de novo o alto preço que teve de pagar nesta legislatura por esses acordos, em termos financeiros e de constrangimento da agenda política, por a formação e manutenção do Governo terem dependido do apoio daqueles partidos, visto que o PS nem sequer era o partido mais votado.
O mais provável, por isso, é a formação de um governo minoritário clássico (como foram os de Mário Soares I, Guterres I e II e Sócrates II), com coligações parlamentares ad hoc de geometria variável, incluindo com o PSD, conforme as matérias em causa no parlamento.

3. Um tal solução governativa, embora possa ser derrubada por uma coligação negativa dos demais partidos (como sucedeu com Mário Soares I e Sócrates II), tem a vantagem da flexibilidade e de não obrigar o PS a renunciar à partida a partes do seu programa eleitoral, como sucedeu em 2015.
O problema maior tem a ver obviamente com questão orçamental, já que essa solução governativa permite que os demais partidos se unam para aumentar a despesa e diminuir a receita, nomeadamente na votação do orçamento, colocando em risco a estabilidade financeira do país e a sua credibilidade externa, o que o PS não pode consentir.
Não é necessário sublinhar o potencial de litigiosidade política, e eventualmente de crise política, que tais situações podem gerar...

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Vontade popular (7): Um grande equívoco

1. Não tem nenhum fundamento a tese desde artigo, de que as eleições parlamentares são "ilegímias", por alegadamente não respeitarem o princípio constitucional da proporcionalidade. Trata-se de um manifesto equívoco.
Com efeito, a Constituição não determina que a repartição de mandatos se faça a nível nacional; pelo contrário, estabelece que os deputados são eleitos em círculos subnacionais (que sempre foram os distritos), pelo que é aí que se efetua a distribuição proporcional dos correspondentes mandatos. Nada de "ilegítimo" nem de "inconstitucional".
De resto, considero que um sistema eleitoral que apresenta um círculo de 48 mandatos (Lisboa), onde basta menos de 2% para eleger um deputado, e que resulta num parlamento com sete partidos representados (com tendência para aumentar) não padece de défice de proporcionalidade. Ao contrário!

2. Desde 1989, a Constituição admite a criação de um círculo nacional sobreposto aos círculos subnacionais, mas não impõe tal solução, deixando também em aberto o número de mandatos a atribuir-lhe e o modo de os eleger.
Sem dúvida, um círculo nacional permitiria que todos os votos, onde quer que ocorram, contem para a aleição de deputados, mas nada impõe nem aconselha que tal círculo (caso seja criado) seja de compensação ou de aproveitamento dos votos "sobrantes" dos círculos subnacionais (à maneira açoreana).

3. Pessoalmente, tenho defendido as seguintes alterações do sistema eleitoral:
    - instituição do "voto preferencial", dando aos eleitores a possibilidade de selecionarem um candidato dentro dos candidatos do partido em que votam;
    - divisão dos círculos eleitorais maiores, de modo a permitir aos eleitores conhecer os candidatos e a permitir boletins de voto com os nomes de todos os candidatos;
    - criação de um círculo nacional, elegendo 1/10 dos deputados (23), contando o voto dos eleitores em todo o país.
Estas mudanças não visam obviamente aumentar a proporcionalidade geral do sistema eleitoral, mas sim valorizar o papel dos eleitores, que me parece ser a principal defeito do atual sistema.

"Free and fair trade" (11): À margem da OMC?

Os Estados Unidos e o Japão fecharam um acordo comercial de redução tarifária limitado a algumas exportações agrícolas americanas e algumas exportações industriais japonesas, bem como ao comércio digital.
Ora, segundo o GATT, os Estados mebros da OMC só podem estabelecer entre si acordos preferenciais, em derrogação da cláusuala de igual tratamento de outros países, se o acordo instituir uma zona de comércio livre entre eles, abolindo as barreiras aduaneiras em relação a "substancialmente todo o comércio" entre as partes, o que não é obviamente o caso, sendo evidente o âmbito limitado do referido acordo.
Que os Estados Unidos de Trump não façam caso da OMC, não surpreende; que o Japão alinhe nessa violação da "constituição comercial internacional", já é menos compreensível. Sinal dos tempos: a "rules-based global order" já não é o que era...