sábado, 24 de janeiro de 2004

Cartas dos leitores

1. Vinculatividade dos referendos
«Concordando, em geral, com o seu post sobre o referendo [ver aqui], devo notar, no entanto, que há um pequeno lapso na opção portuguesa. Nalguns subsistemas alemães, a regra é que o referendo é vinculativo quando o número de votos da resposta vencedora seja igual ou superior a 25% (poderia ser menos, claro) dos eleitores inscritos. (Em rigor, não é bem este o sistema alemão, mas devia ser...) Assim se impede o vício grave, presente no sistema português, de poder ser racional para um votante abster-se, pois, votando, pode contribuir para a vinculatividade da opção contrária à sua. O sistema português contém, portanto, um convite à abstenção. Esta é uma conclusão matemática, tratada na teoria dos jogos. Seja como for, concordo que deve existir um limite à vinculatividade.
A posição de JVC [João Vasconcelos Costa] foi defendida aqui, com argumentos da teoria dos jogos, em si mesmos irrebatíveis, mas os autores desse texto pecaram por se considerar os sistemas actualmente existentes nalgum países e, a meu ver, formalizaram matematicamente a regra portuguesa de modo incorrecto!»
(AC)

2. Guterres
«(...) Não será que a forma como Ferro Rodrigues se pronunciou em relação a uma possível candidatura de Guterres à Presidência da República, demonstra uma certa orfandade do PS face à vontade de Guterres?
Por outro lado, não acha que afirmar que "os portugueses começam a fazer justiça" a Guterres, demonstra que o próprio Ferro Rodrigues admite que o PS "fugiu" do Governo, dando um sinal de fraqueza e minoridade política ao seu partido?»
(PP)

3. "Muita parra e pouca uva"
(...) Falando de hospitais, nomeadamente dos de gestão empresarial e feitos sociedades anónimas, alguma voz popular diz que, realmente, não têm listas de espera, nem custos por aí além - mas acrescenta-se que as listas existem mesmo mas atiradas para cima das unidades do serviço nacional de saúde que estão a jusante desses hospitais e quanto aos custos, esses hospitais evitam-nos mandando os doentes realizar exames vários nas unidades do serviço nacional de saúde.
Assim, e para se aferir das contas desses hospitais subitamente milagrosos, talvez não seja pior alguém inquirir da pressão que estão a mandar para cima dos recursos humanos, equipamentos e finanças [dos outros serviços] do serviço nacional de saúde.
Ou seja, tudo "muita parra e pouca uva"...»
(MT)

Porta giratória

No Abrupto, J. Pacheco Pereira pronuncia-se criticamente sobre a nomeação de uma magistrada judicial para a chefia dos serviços secretos.
«Independentemente do mérito da última escolha para presidir ao SIS, não se compreende por que razão o Governo (e a oposição) entendem que juízes e magistrados são escolhas óbvias para estarem à frente dos serviços de informações. (...) Este tipo de escolhas confunde o controlo da legalidade dos serviços com a sua direcção, sendo que o controlo, para ser eficaz, deve estar fora e não dentro dos serviços. (...)»
Não posso deixar de concordar. Desde há muito que censuro a nomeação de juízes de carreira para cargos públicos extrajudiciais, quaisquer que eles sejam. Há anos tomei posição forte contra a nomeação de juízes para Ministro da República nas regiões autónomas. Sob a capa de uma despropositada despolitização de certos cargos, o que se obtém é afinal a politização dos juízes. Os juízes de carreira são para estar nos tribunais, onde fazem falta, e não para desempenhar cargos políticos ou administrativos, cujos actos para mais estão sujeitos a controlo judicial, o qual pode ser afectado pelo facto de serem praticados por juízes, ainda que numa veste diferente. Com a eventual excepção dos organismos independentes, onde a lei o preveja, os juízes só devem desempenhar cargos públicos extrajudiciais se abandonarem a magistratura.
A separação entre a esfera da justiça e a esfera da política é essencial num Estado de Direito, não devendo haver portas giratórias (revolving doors) entre os dois territórios. A nomeação e a aceitação de cargos políticos ou de confiança política por parte de juízes de carreira pode afectar o conceito público da sua independência. É um risco que se não deve correr.

Vital Moreira

Há três anos a ECORDEP

Esta estranha sigla pode não dizer nada a muita gente. Era a "Estrutura de Coordenação da Despesa Pública", um grupo de trabalho que funcionou no Ministério das Finanças em 2001, no tempo de Pina Moura, e que foi empossada justamente há três anos, para elaborar um programa de disciplina das despesas públicas. O Diário Económico recorda hoje esse evento com uma entrevista do então Ministro, e o mesmo sucede com o Jornal de Negócios, juntando também o então Secretário de Estado do Orçamentou, Fernando Pacheco, que foi a alma da iniciativa. Fiz parte dessa Comissão, juntamente com especialistas do gabarito de Teodora Cardoso, Rui Carp, Orlando Caliço e outros. Pessoalmente, foi uma experiência muito gratificante e estimulante.
Tinham passado os tempos dourados de 1995-2000, em que uma alta taxa de crescimento económico acompanhado de baixa de juros permitiu a Portugal cumprir com inesperada facilidade os critérios de adesão ao Euro, num clima de forte expansão das despesas públicas, suportada por um confortável aumento da receita fiscal. Quanto a economia começou a arrefecer e o crescimento das receitas públicas abrandou, sem que a despesa pública desacelerasse correspondentemente, tornou-se evidente que as finanças públicas estavam em dificuldades para cumprir a disciplina orçamental da zona Euro.
Os trabalhos da Ecordep, embora louvados depois à esquerda e à direita, não foram bem fadados. Apesar da aprovação do plano geral de contenção da despesa pública pelo Governo em Junho de 2001, Pina Moura foi afastado na remodelação ministerial menos de um mês depois. O relatório final da Ecordep só seria concluído em Setembro do mesmo ano, quando aquele programa já tinha sido deliberadamente enjeitado pela nova equipa ministerial.
O relatório nem sequer viria a ser oficialmente publicado, mesmo se desde então continua a ser recordado como uma referência pelos interessados pelas finanças públicas. O Jornal de Negócios anunciava ontem a sua publicação no seu próprio website. Mas até ao momento não se encontra disponível.

Vital Moreira

sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

Da ciência à ficção

A uma Ministra da Ciência exige-se algum rigor. A forma de fazer política terá que ser com ele compatível, para que se torne credível junto dos seus destinatários privilegiados. Eu sei que não é fácil. O tempo da política é muito exigente em resultados e não se compadece com o escrutínio rigoroso que se exige aos cientistas. A tentação para resvalar é, por isso, muito grande. Mas sem credibilidade, também não há política que resista.
Vem esta reflexão a propósito das verbas para a investigação científica, anunciadas no princípio da semana, que afinal, em grande parte, não eram de todo novas e estavam já programadas.
Não era necessária esta incursão na ficção, que, aliás, foi de curta duração. Por mim - e creio não estar sozinha - já bastava que não fosse interrompida a política do Governo anterior neste domínio.
Nestas coisas, raramente há unanimidade e ainda bem. Uns serão mais críticos de uns aspectos do que outros. Mas suponho que, na comunidade científica, serão poucos aqueles que não reconhecem o valor acrescentado trazido à investigação científica em Portugal pelo ex-Ministro José Mariano Gago e por aqueles que com ele trabalharam mais de perto.
Os cá de baixo, em que me incluo, se não o sabiam já, tiveram de aprender depressa a gerir os seus centros com rigor e a apresentar os seus projectos de acordo com critérios exigentes de validade internacional. Portugal passou a ter informação credível que lhe permitiu negociar em Bruxelas e figurar de outro modo em variadas instâncias e publicações internacionais. (Limito-me, apenas, a referir alguns dos aspectos que observei mais de perto).
Lembro-me também de ver então aqueles "sobe e desce" sobre o melhor e o pior ministro. Raramente o José Mariano Gago foi colocado entre os melhores. Discreto e numa área em que os resultados para o público são a prazo, isso seria quase inevitável. Mas, felizmente, isso nunca o tentou a passar da ciência à ficção. Ainda bem.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

A inevitabilidade

A inevitabilidade das coisas que têm de ser provoca-me sempre enormes reticências. Na vida política, regra geral, as soluções inevitáveis são tantas vezes as menos criativas e mais preocupadas com o médio denominador comum. Num certo sentido, ser de esquerda é muito mais saber ousar e encontrar soluções criativas do que limitar o risco para não pôr em causa o se vai pensando ser o essencial. Em política, cada vez mais, o que achamos ser o essencial muda todas as semanas. Assim, talvez valesse a pena fazer um pequeno exercício em que não se julgue a inevitabilidade do que tem de ser. Podemos dar de barato que é fundamental para a esquerda ganhar as eleições, mas a candidatura natural de António Guterres à Presidência não será a prova de uma certa falência identitária?
Luís Osório

"Volta Guterres..."?

Em entrevista à SIC Notícias, Ferro Rodrigues considerou que o antigo primeiro-ministro António Guterres seria «um grande candidato para os socialistas», embora ressalvando que a decisão de avançar para a Presidência da República «depende em primeiro lugar dele». É evidente que a declaração de Ferro não podia ter sido dita sem ter sido pensada, pelo que ela só pode significar um apoio antecipado à eventual candidatura do antigo primeiro-ministro. Na sua opinião, «os portugueses começam a fazer justiça» ao antigo chefe do Governo.
Curiosamente no programa matinal de debate da TSF, sobre os aumentos dos preços dos transportes urbanos, um interveniente mais exaltado não hesitou em proclamar: «Volta Guterres, estás perdoado!». Coincidência simbólica?
Significa isto que, enquanto na direita se instalou uma "guerra civil fria" sobre o candidato presidencial, na área socialista a escolha está antecipadamente resolvida sem escaramuças com a inevitabilidade das coisas-que-têm-de-ser (desde logo porque não existe alternativa à vista)?

Vital Moreira

Qual o âmbito do segredo de justiça?

1. Uma carta discordante
«Não concordo, de modo nenhum, com a sua opinião [sobre a vinculação dos jornalistas pelo segredo de justiça], e vou dizer-lhe porquê:
1.º - A guarda de um segredo compete ao guardião e não ao jornalista. Se o guardião for incompetente ou vender ou facultar indevidamente segredos que tem à sua guarda, é ele, e só ele, o responsável; (...)
2.º - Se o jornalista tiver recorrido a processo ilícito, tipo Watergate, por exemplo, aí sim, o jornalista cai sob a alçada da justiça. Mas para isso já há leis.
Deste modo, penso que não tem qualquer sentido esta sua afirmação: "sob pena de o segredo de justiça se tornar irrelevante, ele não pode deixar de se impor também aos jornalistas, desde que limitado ao mínimo necessário para salvaguardar os valores que o justificam."
Por que razão se hão-de obrigar os jornalistas a salvaguardar algo que não está à sua guarda?
(...) Resta-nos, em meu entender, batalhar pela consciencialização social sobre a necessidade de se cumprirem - com rigor - as leis existentes. É que, infelizmente, a parte da justiça que se executa com maior rigor neste país é a que respeita ao arquivamento de processos, sobretudo de fraudes.»
[AG]

2. Comentário
Há aqui um equívoco e um preconceito. O segredo de justiça visa garantir que os dados por ele protegidos não sejam de conhecimento público, enquanto ele perdurar. É uma protecção objectiva, sendo irrelevante quem infrinja essa reserva. Logo, tem de impor-se aos jornalistas, por maioria de razão. Não existe nenhuma lógica em ele valer somente para as pessoas em contacto com o processo. Tal como um preso que consegue evadir-se com a cumplicidade dos guardas não ganha com isso alforria, também os dados protegidos pelo segredo de justiça não deixam de o estar mesmo depois de "fugirem" ilicitamente do processo. Aliás, se os dados em segredo de justiça não puderem ser publicados, poucos serão tentados a violá-lo na origem. É evidente nos últimos meses que se o segredo de justiça não vincular os jornalistas ele deixa de ter significado.
O mesmo sucede com os demais segredos. Por exemplo, seria intolerável que um jornal pudesse publicar uma conversa telefónica privada de outrem, só porque não foi o jornalista que efectuou a escuta ilícita e a recebeu de terceiro. Onde ficaria a protecção do sigilo das comunicações privadas, constitucionalmente garantido? Salvo se "valores mais altos" se levantarem em casos concretos, a imprensa não goza de imunidade constitucional nas infracções aos direitos fundamentais das pessoas.
Finalmente, não proponho nenhuma lei para estabelecer um novo limite da liberdade de informação. Na minha interpretação das leis vigentes (e não vejo que outra seja melhor), os jornalistas já estão juridicamente vinculados ao segredo de justiça, em termos até talvez demasiado amplos, como procurei demonstrar. Por isso entendo mesmo que é de limitar o excessivo alcance da restrição que já existe (embora não seja "praticada"...).

Vital Moreira

Coimbra desencantada (3)

1. "Cidade do conhecimento"
Embora com indesculpável atraso registo aqui o desafio de João Mãos de Tesoura no seu "Exacto". Entre muitos reparos e propostas sobre Coimbra, escreve ele por exemplo:

« (...) Há vinte anos Coimbra dispunha de uma vantagem competitiva face ao resto do País. Tinha em relação ao ensino aquilo que na gestão se designa por elevada "Brand Equity". Bastava a invocação do nome e ficava no ar a deferência que se deve ao Saber. Era esta a força da sua Marca. (...) Em suma, Coimbra podia e devia ter-se diferenciado como arauto de ensino. A concorrência é hoje fortíssima; Lisboa, Porto, Aveiro e Braga são já referências incontornáveis na oferta de educação. Por falta de tradição de empreendimento, Coimbra não se alicerçou no ensino privado que se sabe ser hoje, quer se goste ou não, o bastião da melhor oferta nos países que perceberam que o conhecimento também se pode exportar. Esta é a excelência que potencia a criação de serviços de alto valor acrescentado, alicerçados no conhecimento e dificilmente replicáveis.»

Vale a pena ler o resto na origem.
Também penso que a principal vocação de Coimbra está naquilo em que tem tradição e marca de prestígio, ou seja, no ensino, no conhecimento e no saber, bem como nas actividades a eles directamente ligadas (saúde, tecnologias sofisticadas, etc.). Infelizmente por falta de visão estratégica, Coimbra não aproveitou nos últimos 20 anos, como lhe competia, todas as suas potencialidades neste domínio, enquanto uma política centralista concentrou crescentemente o ensino superior em Lisboa (nada menos do que quatro universidades públicas). Entre outras coisas faltou-lhe uma liderança activa tanto à frente do município como da universidade, a que se somou a falta de poder económico e a distância do poder de Lisboa. Mesmo assim, a cidade continua a ser o maior centro urbano fora das áreas metropolitanas, bem como um importante centro administrativo. E a UC continua a não temer o confronto com qualquer outra universidade nacional em muitas áreas, incluindo quanto ao prestígio internacional. Há dimensões que não se medem pela quantidade.

2. A "Escola de Coimbra"
No "Público" Paulo C. Rangel publicou um sentido texto sobre a recente atribuição do prémio Pessoa ao Professor Gomes Canotilho, da Universidade de Coimbra. A sua homenagem ao laureado é estendida à sua Faculdade. Permita-se-me a transcrição de uma passagem:

«Premiar Canotilho é também e ainda premiar a escola a que pertence, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Digo-o com pleno à vontade, já que nenhum laço me liga àquela faculdade e penso até que nela são especialmente notórios alguns dos vícios típicos das nossas universidades públicas. Mas não sobejam dúvidas de que, por obra de um ambiente e de uma cultura de escola irrepetíveis, ela constitui um alfobre de intelectuais e humanistas de primeira grandeza - ainda que desconhecidos do público e ignorados, frequentes vezes, pelo circuito cultural "oficial".
(...) Pela forma como domina as leis da sua arte, pelo modo como reescreve os paradigmas e teorias da sua ciência, pelo estilo com que declina os segredos do português e de tantas outras línguas, pelo jeito com que guarda os tesouros de um inabarcável espólio bibliográfico e pelo olhar com que fita os recantos de uma sólida cultura (que corre e percorre dos gregos à pós-modernidade), facilmente se descobre em Gomes Canotilho o carisma próprio dos eleitos - necessariamente poucos e raros - da escola de Coimbra.»

3. Saramago "honoris causa"
Sob proposta da Faculdade de Letras local, José Saramago deverá ser em breve distinguido com o doutoramento "honoris causa" pela Universidade de Coimbra. Apesar de já ter sido distinguido por várias outras universidades de prestígio, não é tarde para que a UC premeie com o mais elevado galardão académico o grande escritor do "Memorial do Convento". Como seu amigo e admirador regozijo-me com a iniciativa. Além do mais a sua entrada no claustro do velho palácio real da alcáçova coimbrã poderá ser também uma excelente oportunidade para a sua reconciliação com cidade que não foi capaz de o encantar outrora numa fria etapa da sua "Viagem a Portugal"...

Vital Moreira

quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

Estado da União - As crianças mentem...

"Little David was in his 5th grade when the teacher asked the children what their fathers did for a living. All the typical answers came up - fireman, policeman, salesman, doctor, lawyer, etc.
David was uncharacteristically quiet, so the teacher asked him about his father. 'My father is an exotic dancer in a cabaret and takes off his clothes in front of other people. Sometimes, if the offers are really good, he will go out to the alley with someone for money'.
Stunned, the teacher hurriedly set the other children to work on some exercises and took little David aside to ask him 'Is that really true about your father?' 'No', said David, 'he works for the Bush administration, but I was too embarassed to say that in front of the other kids..."

Cortesia de uma amiga juíza para celebrar a abertura do Ano Judicial. Ele há neste país magistrados com humor e discernimento.

Ana Gomes

Os desenhos de Siza Vieira

Excelente iniciativa, aquela que com o BPI nos brinda cada Natal. Uma série de magníficos livros, graficamente bem cuidados, que em comum têm o facto de valorizar artistas portugueses, entre aqueles que mais gosto, como Menez, Mário Botas ou Graça Morais. Este ano foi a vez dos desenhos de Siza Vieira («O que a Luz ao Cair Deixa nas Coisas»), com um texto de Bernardo Pinto de Almeida e prefácio de José Saramago.
Como dizem os que o conhecem, "o caderno de desenho é uma companhia permanente, sobretudo em viagens, [sendo] dos raros objectos de que Siza nunca se esquece, apesar de ser muito distraído". E aí está o resultado, um conjunto impressivo de lembranças de pessoas, muito mais que de locais, paisagens ou habitações.

Maria Manuel Leitão Marques

Um alerta ao endividamento

O Governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, cumpriu esta semana o que havia prometido em 2000, quando tomou posse do cargo, no que respeita ao crédito: fazer "pedagogia na utilização dos serviços financeiros; promover melhores práticas no sistema; esclarecer, sem criar sentimento de irresponsabilidade nos consumidores (...)"; .e incentivar os bancos "a informar melhor os seus clientes".
Preocupado com os efeitos de uma subida de taxas de juro no endividamento das famílias, o Banco de Portugal veio hoje transformar em regulação obrigatória uma anterior recomendação sobre a informação a prestar pelos bancos no crédito à habitação. Os bancos passaram a estar obrigados a fornecer informação relativa ao impacto de uma eventual subida de taxas de juro de um e de dois pontos percentuais no plano das prestações a liquidar pelo devedor ("Público" de hoje).
Parece pouco, mas, conhecendo a iliteracia financeira de muitas famílias que recorrem ao crédito, alertar para que a prestação de hoje pode não ser a de amanhã, que a taxa de juro tanto desce como sobe, é uma medida muito salutar. Por isso, há muito que no Observatório do Endividamento dos Consumidores vimos defendendo essa providência, bem como outras medidas preventivas desta natureza (educação financeira, clareza da informação, etc.). Diria mesmo que só pecou pela demora.
Se, por um lado, não devemos diabolizar o crédito, esquecendo que na maioria dos casos ele serve para melhorar a vida das famílias com reduzidos recursos financeiros, convém, por outro lado, que não nos esqueçamos que o crédito representa um novo risco, tanto maior quanto maior for a duração do empréstimo, a aleatoriedade dos rendimentos e a variação da taxa de juro.
Parabéns, portanto, ao Banco de Portugal, pela iniciativa, e ao seu Governador, por não esquecer o prometido! Isto é tanto mais de enaltecer quanto a defesa dos interesses dos consumidores não consta explicitamente (como devia) entre as tarefas do Banco de Portugal enquanto supervisor das instituições de crédito. Prouvera que este fosse o padrão de comportamento e responsabilidade dos poderes públicos em geral...

Maria Manuel Leitão Marques

Referendos vinculativos

No seu blogue "Professorices" João Vasconcelos Costa interpela-me directamente sobre a razão de ser da exigência de mais de 50% de votantes para que um referendo seja vinculativo.
A explicação desta exigência constitucional, introduzida na revisão de 1997, tem a ver com a contenção e cautela com que o referendo (cuja história entre nós não é tão virtuosa como na Suíça, pelo contrário) é encarado pela nossa Constituição, que se manifesta em outros aspectos, designadamente o considerável elenco das matérias não referendáveis, os controlos existentes na sua convocação, entre outros. A Constituição privilegia a democracia representativa, sendo o referendo uma excepção ao princípio representativo. Por isso se exigiu que a vontade dos órgãos representativos só seja vinculada por uma decisão popular directa, desde que nesta participe uma maioria de cidadãos e não uma pequena minoria de activistas interessados numa determinada questão, o que poria em causa a legitimidade política da decisão, mesmo se juridicamente inatacável. A verdade é que é mais difícil corrigir uma precipitada decisão referendária do que uma errada decisão parlamentar, dados os procedimentos muito mais exigentes daquela, desde logo porque não depende somente da Assembleia da República.
Pessoalmente penso que, à cautela, se deve exigir uma participação mínima de votantes para que os referendos sejam vinculativos; porém, tendo em conta a experiência dos dois referendos nacionais até agora realizados, hoje acho que a maioria absoluta é um requisito excessivo. Até porque os referendos passados, apesar de não terem atingido o limiar constitucionalmente estabelecido para serem juridicamente vinculativos, se tornaram na realidade politicamente vinculativos, de tal modo que até agora não se tomou nenhuma iniciativa legislativa em sentido contrário ao resultado deles. Ora não tem sentido negar legitimidade jurídica, por falta de "quórum", a referendos que gozam de incontestável autoridade política.

Vital Moreira

Contra o "recurso de amparo"

No Diário Económico de terça-feira (link indisponível) o Presidente do Tribunal Constitucional, Luís Nunes de Almeida, é citado como tendo «sérias reservas» à introdução do recurso de amparo entre nós, sugerida recentemente pelo Presidente da República. E acrescentou: «Não tenho uma opinião muito favorável a substituir o actual sistema. O prejuízo traduz-se numa inundação e redução da eficácia do TC e num aumento significativo, como acontece noutros países, da conflitualidade com os tribunais comuns». Para além disso, «seria necessário rever todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade», pressupondo portanto uma substancial revisão da Constituição nessa matéria.
É evidente que esta posição coincide com a que aqui foi defendida sobre a mesma matéria.
Aproveito para acrescentar que não vejo razão premente para levantar de novo esta questão, pois não se tem sentido uma manifesta falta desse mecanismo de protecção. Pelo contrário, os recursos que recentemente chegaram ao TC no caso do processo da Casa Pia, e que tinham a ver com decisões que punham em causa direitos constitucionais dos arguidos, mostraram uma razoável agilidade do actual "recurso de constitucionalidade", se inteligentemente utilizado, para responder às necessidades de protecção geralmente associadas ao "recurso de amparo" contra decisões judiciais inconstitucionais.

Vital Moreira

terça-feira, 20 de janeiro de 2004

A falsa inocência do Expresso

O editorial do último "Expresso" e a coluna "O que eles dizem", assinada pelo director-adjunto José António Lima, reflectem preocupações oportunas acerca da deriva sensacionalista dos media portugueses. Lima aponta a TVI e o "24 Horas" como exemplos característicos de "populismo degradante", enquanto no editorial - com a marca inconfundível de José António Saraiva - se desenvolve uma penetrante teoria sobre a origem do mal: a internet.

O mais sintomático, porém, é que Saraiva e Lima convergem num ponto essencial: a chamada imprensa de referência foi também atingida pelo vírus da tabloidização. Só que os directores do "Expresso" são omissos quanto ao alvo desta crítica - e, muito menos, admitem tratar-se de uma auto-crítica. O "populismo degradante" tem nomes apontados, mas não os jornais de referência que cedem à vulgaridade comercial e ao sensacionalismo serôdio para aumentar as tiragens. É fácil apontar o dedo à TVI e ao "24 Horas". Esses, pelo menos, não enganam ninguém. E o "Expresso"?

Basta ler algumas manchetes (a do recente "convite" a Niemeyer para projectar a futura catedral de Lisboa é digna de antologia) ou constatar a gritante falta de correspondência entre os títulos e as notícias (caso do "Partido Comunista apoia Carrilho", na última edição) para verificarmos até onde chega a imaginação editorial do nosso primeiro semanário de referência. E que dizer de certas peças memoráveis de "voyeurismo" sensacionalista sobre o processo da Casa Pia? Ou da forma como, em geral, se "embrulham" as supostas "cachas" sobre a actualidade política? Ou do estilo de bisbilhotice pimba que invade o jornal, designadamente a sua actual revista?

É excelente que os directores do "Expresso" estejam preocupados com a degradação generalizada da imprensa portuguesa e a necessidade de combater essa deriva. Mas como a moral deve começar por casa, seria de toda a conveniência que praticassem o exemplo no seu próprio jornal. A não ser que desejem passar por hipócritas ou falsos moralistas, apontando aos outros as culpas que não desejam assumir. A internet pode ter culpa de muitas coisas, mas, por favor, não abusem do álibi do pecado original.

Vicente Jorge Silva

Blogposts nocturnos (6)

1. Implicitamente?
No relato da comunicação presidencial na sessão inaugural do ano judicial o "Público" diz que Jorge Sampaio defendeu "implicitamente" a vinculação dos jornalistas pelo segredo de justiça. O que precisaria de ter dito o Presidente para ser mais explícito do que foi?!
Basta recordar (texto integral disponível no site presidencial):
«A esta luz, entende-se mal a pretensão de alguns de que o segredo de Justiça não obriga os jornalistas, quando seria natural que fossem eles os primeiros a reconhecer tal obrigação (...). Acontece é que, se há um interesse público na observância do segredo de justiça, dificilmente se compreende que esse interesse público só seja relevante quando a divulgação de factos por ele cobertos é feita pelos participantes no processo, e deixe de o ser quando essa mesma divulgação seja feita por qualquer outro cidadão. O que é, obviamente, absurdo e iníquo.»

2. A Ordem dos Advogados e a fiscalização da constitucionalidade das leis
O bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, defendeu há dias que a Ordem deveria ter o poder de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade das leis. Actualmente, têm esse poder o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, um décimo dos deputados à Assembleia da República, o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República.
Houve quem condenasse limiarmente essa pretensão. Por exemplo no Bloguítica escreveu-se: «Era o que mais faltava! Desde quando é que a Ordem dos Advogados é um órgão de soberania ou uma instituição política?»
Por minha parte, vejo com bons olhos essa ideia. Primeiro, não existe nenhum argumento de princípio para que a fiscalização abstracta da constitucionalidade tenha de estar reservada a órgãos do poder político. Segundo, não seria uma solução inédita em direito constitucional comparado (existe por exemplo no Brasil). Terceiro, a Ordem dos Advogados é um ente público, estando o papel dos advogados expressamente mencionado nas Constituição, como um dos intervenientes na administração da justiça. Quarto, essa competência da OA poderia alargar o círculo das entidades independentes com poderes de acesso ao Tribunal Constitucional, melhorando assim a justiça constitucional.

3. A guerra falhada
À medida que a situação no Iraque se vai arrastando sem melhoria visível, com a subida contínua do número de vítimas nas acções da guerrilha anti-americana e de contra-guerrilha, vai crescendo também o pessimismo sobre uma saída airosa para a ocupação militar. No seu estilo directo e "provocativo" Clara Ferreira Alves traz a público o seu testemunho. Começa assim:
«Creio que passou o tempo das ilusões obre o Iraque. Aquilo não vai dar certo assim, nem agora nem nunca. Assim, o Iraque é um país condenado à sua miséria e à sua desordem. A ocupação militar não resolverá nenhum dos seus problemas e prolongar-se-á até ao momento em que o inquilino da Casa Branca decidir que não a pode sustentar mais tempo sem prejuízo do seu lugar e do seu nome. Ou seja, durará o tempo que durar a Administração Bush, se durar tanto. E depois será a retirada em atropelo, como no Vietname, o salve-se quem puder.»
Vale a pena ler o resto.

4. «Hitler killed the wrong Jews»
No "Guardian" de Londres Brian Whitaker dá conta da existência de grupos extremistas da direita judaica que se dedicam a recolher e a divulgar listas dos judeus que se opõem à política israelita nos territórios ocupados, denunciando-os como "traidores" ao País e à raça e apelando expressa ou implicitamente a medidas de violência ou pelo menos de intimidação contra eles. No website de um desses grupos existe uma lista de milhares dos ditos "traidores", entre eles personalidades tão diversas como Shimon Peres, Woody Allen, George Soros ou Kissinger, entre «socialistas, comunistas, anarquistas e autodenominados "activistas de Direitos Humanos"»! Depois afirma-se que «these radical, leftist, academic, socialist, "progressive," enlightened know-nothings are not even worthy of the name "Jew".»
O referido artigo conta o caso de Deborah Fink, uma professora de música judia que vive em Londres e é membro de uma ONG, "Just Peace UK", que luta contra a ocupação da Palestina e que defende "a viable and sovereign Palestinian state alongside a safe and secure Israel, with Jerusalem as the shared capital of both states". No mês passado ela recebeu subitamente um grande número de e-mails hostis, um dos quais dizia ameaçadoramente: "Hitler killed the wrong Jews."
Assim vai o fascismo judaico, que naturalmente aplaude a política de Sharon. É nestas ocasiões que nos damos conta da luta corajosa de tantos judeus, dentro e fora de Israel, nomeadamente na esquerda e nos grupos de direitos humanos, que conduzem em condições extraordinariamente adversas a luta contra o expansionismo israelita e por um paz justa na Palestina.

Vital Moreira

segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

A impunidade dos jornalistas vista pelo Presidente do CDJ

Óscar Mascarenhas, presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDJ), enviou um extenso post (na verdade, cinco posts) sobre as questões abordadas por Vital Moreira e Jorge Wemans a propósito da impunidade dos jornalistas.
Nos seus posts, Óscar Mascarenhas, defende que "o Conselho não está silencioso - é, frequentemente, silenciado. Desde Dezembro de 2002 que o Sindicato toma posição de apelo moderador no caso Casa Pia (...)".
Manifestando-se contra a criação de uma eventual Ordem dos Jornalistas, o presidente do CDJ afirma que não é uma Ordem que faz falta, mas sim: "(...) Falta repor um órgão prestigiado que faça a crítica pública do que está errado, com força de publicação obrigatória no órgão de informação criticado. É uma ideia que nada tem de novo; o que importa é que não se invente à pressa (...)".
Clique AQUI para ler a versão completa dos textos de Óscar Mascarenhas.

O Presidente da República interpela a justiça

1. Uma grande comunicação
Em grande forma está sem dúvida o Presidente da República, a julgar pelo poderoso discurso na abertura do ano judicial hoje proferido. Palavras claras, conteúdo forte, propostas consistentes, desafios estimulantes. Um verdadeiro "safanão" no ambiente judicial (para utilizar um termo usado pelo PGR, na mesma sessão, a outro propósito), sobretudo no área da justiça penal, tirando a moralidade dos atropelos cometidos no caso Casa Pia (embora sem mencionar explicitamente este processo).
De destacar numa primeira impressão: a importância da formação dos operadores judiciais (juízes, ministério público e advogados), com a original proposta de uma fase de formação comum a todos eles; a importância da sensibilização dos juízes para os valores constitucionais; a defesa do escrutínio público da justiça; o direito dos arguidos a conhecer os factos que lhe são imputados; a aplicação do segredo de justiça aos jornalistas, nos termos da lei; o reforço da cadeia hierárquica no Ministério Público; a sugestão de controlo judicial da decisão de arquivamento de processos pelo MP; a sugestão de reconhecimento do chamado "recurso de amparo" para defesa de direitos fundamentais.
Em suma, recados cortantes em várias direcções: juízes, Ministério Público, comunicação social.

2. Segredo de justiça e jornalistas
Entre as mais importantes das posições presidenciais conta-se seguramente a insistência na subordinação dos jornalistas ao segredo de justiça, até que a acusação se torne definitiva. O Presidente não poupou argumentos na denúncia das posições que até agora têm permitido a situação de impunidade corrente, apesar da clareza da lei, mesmo perante situações em que órgãos de informação transcrevem expressamente peças de autos em segredo de justiça ou invocam ostensivamente os autos como fonte.
Na minha crónica de amanhã, 3ª feira, no "Público", escrita antes de conhecer o discurso presidencial [ver agora aqui], pronuncio-me também no sentido de que, sob pena de o segredo de justiça se tornar irrelevante, ele não pode deixar de se impor também aos jornalistas, desde que limitado ao mínimo necessário para salvaguardar os valores que o justificam.

3. "Recurso de amparo"
Entre as sugestões adiantadas pelo Presidente da República, neste caso a título interrogativo, conta-se a instituição do "recurso de amparo", ou "queixa constitucional" entre nós - ele existe por exemplo na Alemanha e na Espanha -, de modo a permitir a qualquer interessado recorrer para o Tribunal Constitucional, em última instância, de qualquer decisão ou acto público (incluindo de decisões judiciais) quando lesivo de direitos fundamentais. Hoje só se podem levar ao TC questões de constitucionalidade de normas aplicadas (ou não) pelos tribunais, não das decisões individuais em si mesmas.
A ideia é sem dúvida atraente, mas tem fortes contra-indicações: perigo de inundação do TC, alongamento dos processos judiciais, agudização da hostilidade dos tribunais comuns contra o TC, entre outras. São estas reservas que explicam a rejeição dessa figura até agora nas sucessivas revisões constitucionais em Portugal. Estes obstáculos podem ser atenuados, mas há remédios que podem matar se não forem administrados com cuidado...

Vital Moreira

A autodisciplina jornalística: desacordo continua

A réplica de Vital Moreira sobre o que fazer para garantir uma autodisciplina eficaz dos jornalistas não me convence. De acordo, só num ponto: não se tem visto o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CDJ) intervir perante os desmandos deontológicos a que todos temos assistido. Mas, lá porque o órgão parece morto, não creio que seja líquido e imperioso realizar um implante. Defendo, isso sim, que é preciso curá-lo e revitalizá-lo.
Porquê?
1. Desde os anos 80 que o CDJ deixou de ser encarado como mero órgão do Sindicato. A sua eleição deixou de se fazer em bloco com a dos órgãos sociais do Sindicato. Tendencialmente caminhou-se para que a sua eleição ocorresse em momento diferente da destes e para que todos os jornalistas (não só os sindicalizados) fossem chamados a eleger o CDJ. Aprofundar este caminho aumentaria a legitimidade do CDJ. Mas nada o impede, desde já, de se pronunciar publicamente sobre a violação das regras deontológicas por parte de qualquer jornalista (sindicalizado, ou não).
2. Não vejo vantagem em fazer coincidir na mesma sede o juízo deontológico e o juízo sobre quem reúne condições para poder exercer a profissão. Pelo contrário, vejo inúmeras vantagens em separar as duas funções, atribuindo-as a órgãos distintos: o primeiro constituído apenas por jornalistas, o segundo formado por representantes destes, das entidades patronais e do público e presidido por um magistrado. Até porque não me parece que o objecto primeiro do juízo deontológico seja punir legalmente, mas sim o de prevenir práticas nocivas, se preciso recorrendo à condenação ética.
3. Por outro lado, quanto a "punição", recordo o aforismo. "Os médicos enterram os seus erros, os advogados enforcam-nos, os jornalistas... publicitam-nos". Quer dizer, não há nada mais público do que os erros dos jornalistas. A denúncia deontológica desses erros que toda a gente leu, ouviu ou viu, realizada por um órgão prestigiado dos próprios profissionais e tornada pública, não chega para arruinar o principal capital do jornalista: o seu nome?
4. Mas o enigma principal da actual situação é este: onde pára o CDJ, que ninguém sabe dele?

J. Wemans

Ainda a autodisciplina jornalística

Contestando um post meu sobre o tema em epígrafe, Jorge Wemans discorda fortemente da ideia de criar um organismo oficial de autodisciplina, com o argumento de que já existe um, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
Existem porém alguns problemas insuperáveis no mecanismo existente:
1º - Os sindicatos não possuem propriamente vocação para velar pela deontologia, tendo eles por missão constitucional e legal a defesa dos interesses profissionais dos seus associados, especialmente nas suas relações laborais (podendo mesmo questionar-se da legitimidade dos sindicatos para exercerem funções deontológicas...).
2º - Sendo o sindicato uma associação de inscrição livre, como impõe a liberdade sindical, os poderes de autodisciplina que ele assuma só valem em relação ao seus associados, deixando de fora os não sindicalizados, pelo que a sua "jurisdição" só abrange uma parte dos jornalistas.
3º - A generalidade das profissões reguladas com fortes implicações deontológicas têm organismos de autodisciplina com jurisdição universal, conferidos por lei, com poderes sancionatórios fortes, incluindo a suspensão e, em casos limite, a expulsão da profissão (obviamente com recurso para os tribunais).
4º - O esquema existente, independentemente da boa-vontade do CD do SJ, já provou à saciedade a sua incapacidade para apreciar e punir eficazmente as crescentes violações do Código Deontológico. No caso do processo Casa Pia, consultando o website do Sindicato dos Jornalistas só encontrei um comunicado genérico. Não há notícia de um único processo específico por infracção do Código Deontológico, isto apesar de o referido comunicado referir «persistentes violações destes princípios éticos». É manifestamente pouco.
É preciso pensar numa alternativa mais eficaz, a qual, como defendo há muitos anos, não tem de passar por uma ordem profissional , no sentido próprio do conceito, porque esta acumula as funções de auto-regulação com as funções de representação e de defesa dos interesses profissionais (no que, aliás, no caso de uma profissão onde predominam as relações de trabalho subordinado, tenderia a entrar em concorrência com o sindicato). Por exemplo, o Conselho da Carteira Profissional dos Jornalistas, que é um organismo de regulação interprofissional, dispõe de funções regulatórias (acesso à actividade) que em outras profissões são desempenhadas pelas ordens. Esse modelo poderia ser adaptado, num formato monoprofissional, também para as funções de supervisão deontológica.

Vital Moreira

domingo, 18 de janeiro de 2004

O mundo das crianças: Portugal entre os melhores

Foi revelado que Portugal é o sexto melhor país do mundo quanto a condições de vida para as crianças, entre elas a saúde infantil. Parabéns para os serviços de pediatria do SNS. Só conheço um de perto: o Hospital Pediátrico de Coimbra, que aliás goza de justificado prestígio. Por isso, não me admirou esta classificação. As instalações podem não ser as melhores, longe disso. Mas a dedicação de muitos dos seus profissionais é inexcedível e mesmo invulgar. Pelo tempo dedicado, pelo esforço de actualização, pelo empenho na inovação. Verdadeiro espírito de serviço público, como aquele de que falava Dahrendorf.
Contaram-me no outro dia que uma senhora islandesa, com dois filhos pequeninos, um dos quais com problemas de saúde, procurou na Internet a cidade melhor para viver com eles. Saiu-lhe Coimbra, e veio. Se utentes exigentes reconhecem a qualidade, que não a esqueça o Ministério!

Maria Manuel Leitão Marques

Ainda os hospitais SA

No Professorices Daniel Bonhorst («Doentes de primeira e de segunda (III)») volta à questão dos hospitais SA, revelando alguma informação preocupante sobre a nova gestão. Ainda bem que há quem esteja atento.
Quatro comentários às suas observações:
(1) Aplicar métodos de gestão empresarial não significa necessariamente sujeitar os serviços públicos a uma lógica lucrativa. A empresarialização - que aliás pode revestir diversas formas jurídico-institucionais -pode implicar tão só a racionalização de certos procedimentos, de modo a fomentar a eficiência e a responsabilização na gestão dos dinheiros públicos. Naturalmente, tem de ser compatibilizada com a lógica própria do serviço público em questão, sem esquecer a vertente da investigação e da formação nos hospitais onde ela existe;
(2) Também eu sou utente do SNS e também eu não o trocaria por nenhuma clínica privada. Mas isso não significa que não me tenha espantado, numa altura em que por lá andei, com serviços e equipamentos que são utilizados apenas umas horas (muito poucas) por dia, apesar das listas de espera. E, por favor, não me respondam que não há médicos ou enfermeiros para os ocupar por mais tempo. Mesmo que seja essa razão, não esqueçamos de quem é a responsabilidade. Há muito que no Senado da minha Universidade me indignei com o apertado "numerus clausus" existente na Faculdade de Medicina e lembro-me do que me responderam os seus professores então lá representados: que havia médicos suficientes, uma posição sempre secundada pela Ordem. Até os compreendo: defendem os seus interesses profissionais. O que eu nunca entendi foi a tolerância dos Reitores e dos Governos (até ao final da década de 90) perante tão descarado malthusianismo profissional. Agora, qualquer reforma de tipo empresarial vai ter de enfrentar esta grande dificuldade.
(3) Perfeitamente de acordo com a sua ideia de que antes de reformar é preciso saber se o serviço funciona mal (e critérios quantitativos não bastam para este efeito). Mas mais do que isso. Mesmo que a avaliação seja negativa, é preciso verificar se algumas correcções internas não podem resolver os problemas. E, por último, nos casos em que os cidadãos confiam no serviço (como parece ser o caso do SNS), evitar que reformas mais radicais afectem essa confiança. É que ela é muito fácil de destruir, mas muito difícil de recuperar.
(4) Até por isso, qualquer reforma, particularmente esta de serviços tão sensíveis (a saúde é a primeira prioridade dos portugueses em todos os inquéritos de opinião) deve ser avaliada e acompanhada por entidades independentes. A informação para esse efeito tem de ser disponibilizada de forma transparente, com escrutínio das fontes e dos métodos da sua recolha. Ora, não parece ser isso que está a acontecer. Ontem no Público, António Correia de Campos - que está longe de ser alguém com preconceitos contra a empresarialização -, desmontava os números pomposamente publicitados pelo Ministério da Saúde sobre o sucesso dos hospitais SA. Confesso que já desconfiava de tanta e tão dispendiosa publicidade! Espero que não tenha sido para justificar o generoso aumento de remunerações, com retroactivos, concedido aos seus gestores!
[Na imagem: John Lavery: Doentes num hospital de Londres, 1914]

Maria Manuel Leitão Marques

Mais "regiões"

Tenho recebido variados mails e comentários-posts sobre a malfadada matéria das regiões administrativas. Ainda bem que o tema suscita a inquietação dos cidadãos, bloguistas ou não, já que não podemos deixar que a organização administrativa do País nos passe ao lado sem discussão.

(1) Uma crítica

Do blog Liberdade de Expressão, de João Miranda, transcrevo uma opinião contrastante com a que aqui produzi na semana passada:

"No fundo, o que Luís Nazaré defende é que o melhor mapa é aquele que é planeado por técnicos qualificados e que torna possível uma administração racional.
O problema é que nenhum técnico, por mais competente que seja, dispõe da informação e capacidade de previsão necessárias para criar um bom mapa. O mapa das 5 regiões é um mapa que ignora completamente as afinidades das populações locais. Limita-se a satisfazer os interesses, o modo de pensar e os vícios dos tecnocratas.
A alternativa ao mapa planeado por burocratas é um mapa que resulta da evolução ao longo do tempo das relações entre entidades políticas mais pequenas. Se o mapa das 5 regiões é mesmo bom, então os municípios acabarão por descobrir isso mesmo. Mas se for mau, os municípios acabarão por descobrir um melhor.
(...)
É curioso que Luís Nazaré chame a este mapa um mapa administrativo. É que o que pode resultar de tudo isto não é um mapa administrativo. É um verdadeiro mapa político em que cada unidade é formada por municípios com afinidades e com interesses comuns. O que pode resultar de tudo isto é um verdadeiro autogoverno".

Em apoio da sua tese, João Miranda insere um conjunto de mapas, dos mais "racionalistas" - como o dos Estados Unidos (mas não o do Próximo Oriente, como supõe) - aos mais "históricos" - como o suiço. A este propósito, salienta que "O mais pequeno cantão suiço tem 37 km2. É mais pequeno que o concelho do Porto. Regiões demasiado pequenas é coisa que não existe. O tamanho ideal de uma região depende das suas condições locais, conhecidas apenas pelos habitantes."

(2) A minha resposta

Registo a posição, interessante e tonificante, de João Miranda. Infelizmente, não creio que o optimismo que revela quando afirma que "o que pode resultar de tudo isto é um verdadeiro autogoverno" conheça melhores dias do que os da ilusão auto-gestionária das décadas de 60 e 70. Do mesmo modo, recuso-me a aceitar a primazia da legitimidade e do conhecimento das populações locais sobre o interesse geral e a razão dos portugueses (todos os portugueses). Faltam-me provas da capacidade dos autarcas em ultrapassar, eles sim, constrangimentos paroquiais e conveniências duvidosas. Duvido das intenções de quem retalha o Norte em sete pedaços e o Alentejo em quatro, para não ir mais longe. No limite da boa-vontade, estaremos perante um puro exercício de reformulação das fronteiras distritais, inconsequente, despesista e gerador de mais confusão e burocracia.

Repare-se que não houve - nem se prevê que venha a haver - transferências de recursos e competências do poder central para as putativas "regiôes". Assim, cada uma não será mais que o menor múltiplo comum dos jogos inter-municipais, um patamar de eficiência duvidosa entre os (mesmos) poderes centrais e os dos municípios, um patamar a mais na já intrincada malha orgânica do Estado - CCRs, distritos, comarcas, associações de municípios, além das lógicas díspares de distribuição regional dos serviços centrais. É muito interessante delegar a construção de um edifício nos trolhas, mas nada se faz sem engenheiros e sem projectos. Que incentivos terão para disponibilizarem recursos e agregarem competências? Quem pagará? E que varinha de condão fará das novas sete (!) "Grandes Áreas Metropolitanas", desprovidas de recursos e de uma matriz orgânica comum - um desiderato provavelmente demasiado "tecnocrático"... -, um instrumento menos inútil que as actuais Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto? Ou que golpe de asa "basista" fará da "livre" organização dos municípios uma malha mais racional (lamento o termo, mas não me ocorre outro) do que a das actuais Regiões de Turismo, fruto da mesma lógica de conveniências bairrísticas?

Um último comentário para as referências cartográficas internacionais, especialmente a suíça. A Confederação Helvética sempre assentou num poder central ténue e numa forte diversidade de comunidades, largamente ditada pelas condições particulares do relevo. Além disso, possui uma assinalável heterogeneidade cultural e linguística, com quatro idiomas principais e uma infinidade de variantes dialectais, quase uma por cada comunidade de altitude. Razões suficientes para explicar a "inestética" repartição cantonal da Suíça. Mas não creio que o exemplo se possa comparar com qualquer outro da União Europeia. Atente-se na geometria de divisão regional de países como a Alemanha, o Reino Unido ou a França. Acima de tudo, comparem-se as regras e vejam-se as diferenças para este pobre exercício lusitano.

Luís Nazaré

Onde se meteu o Conselho Deontológico dos Jornalistas?

Não, meu caro Vital, não é necessária uma Ordem dos Jornalistas. Sim, meu caro, é preciso acabar com a imunidade e a impunidade dos jornalistas que atropelam o Código Deontológico que livremente redigiram, votaram e que juram honrar. Não, meu caro Vital, não creio que precisemos de outro organismo de autodisciplina dos jornalistas. Não, meu caro, não me parece que tal organismo deva ter poderes para proceder à suspensão ou à cassação da carteira profissional e, assim, impedir um qualquer jornalista de exercer a profissão.
Porquê?
Porque já temos um órgão - o Conselho Deontológico dos Jornalistas (CDJ) - eleito para se pronunciar sobre estas matérias.
Porque é bom não confundir Deontologia e Direito. E só este é que pode impedir alguém de exercer a sua profissão. Para que o CDJ tivesse poderes para proceder à cassação da Carteira Profissional e assim retirar a alguém o seu direito a exercer a profissão, não poderia ser um órgão instituído pelos próprios jornalistas, teria de ter alguma delegação de poderes jurídicos, não? Ou seja, já estamos perto de uma Ordem... Mas disto sabes tu mais do que eu!...
Além disso, não me parece necessário complicar as coisas. Não chega que um órgão representando os jornalistas, prestigiado e competente, condene publicamente o comportamento profissional de um jornalista, de um editor ou de um Órgão de Comunicação Social? Assegurando que o próprio OCS publique a dita posição pública?
Não é isto mais eficaz do que um processo legal?
O que é espantoso é que o CDJ esteja tão calado e silencioso que nem se dá por ele! Ou estarei a cometer alguma injustiça? Onde se meteu o meu amigo Óscar Mascarenhas (Presidente do CDJ)? Vou fazer-lhe chegar o teu post e mais este, a ver se me (nos) responde…
Mas, para já, e mesmo perante o carnaval de atropelos deontológicos que grassa desde há meses, continuo a defender que prefiro cada macaco no seu galho: a Lei, administrada por quem de direito (e os Tribunais que julguem os atentados à honra e bom-nome dos cidadãos visados pelos jornalistas, e todos os demais abusos da Liberdade de Imprensa); a Deontologia, exercida pelos próprios jornalistas no âmbito dos órgãos por eles eleitos, tornando pública a condenação dos infractores.

J.W.

sábado, 17 de janeiro de 2004

A intratável questão do aborto

1. Contradição nos termos
Definitivamente a Direita não consegue lidar com a questão penal do aborto, acabando quase sempre por meter os pés pelas mãos. Mesmo a que se tem por mais pura e coerente incorre nas mais inesperadas contradições. Na sua nova coluna no "Expresso" (link indisponível) J. Pereira Coutinho insiste em defender o indefensável. Ele opõe-se à descriminalização mas não quer a condenação das mulheres que o fazem. Não se dá porém ao trabalho de mostrar como se podem ter as duas coisas simultaneamente. Ordenando ao Ministério Público para fechar sempre os olhos? Pedindo aos juízes para ignorarem o Código Penal? Mas se, afinal, os abortos não devem ser punidos, qual então a justificação (e eficácia) da criminalização?
Por isso, querer a criminalização sem punição ou não querer a punição mantendo a criminalização só pode relevar de uma «suprema hipocrisia» (para utilizar palavras de JPC) ou de um extremo cinismo.

2. Argumento ao contrário
O mesmo "Expresso" conta que o Primeiro-Ministro admite descriminalizar o aborto, mas somente a prazo (sempre depois de 2006), preferindo numa primeira fase privilegiar medidas preventivas, combatendo as causas que levam as mulheres a abortar (planeamento familiar, educação sexual, apoio à maternidade, etc.).
Ora, isto significa colocar as coisas de pernas para o ar. Se em Portugal se justifica especialmente a despenalização da IVG é justamente porque são intensas e generalizadas as tais causas de gravidez indesejada, as quais, de resto, demoram muito tempo e exigem muitos esforços para serem atenuadas, quanto mais eliminadas.
A luta contra as causas dos abortos e a sua despenalização só podem ir juntos. Para penalização já basta ter de fazê-los.

3. Sem margem para liberdade de voto
Contrariando essa aparente relativização da criminalização do aborto (já que se admite a despenalização no futuro), a verdade é que o PSD decretou a disciplina de voto parlamentar nesta matéria, contrariando a tradição que assegurava liberdade de voto aos deputados discordantes (tal como de resto o PS reconhece idêntica liberdade aos seus deputados contrários à despenalização). A disciplina de voto em questões de consciência típicas como esta - que constitui uma limitação grave da liberdade do exercício do mandato, constitucionalmente garantida - só se compreende se para o PSD a questão for de fundamental importância ideológica ou política, o que não deixa de ser uma novidade. O invocado compromisso eleitoral não chega como explicação, pois esse vincula a posição oficial do partido, não podendo justificar só por si a proibição de divergências de deputados individuais, que nem sequer poriam em causa o resultado da votação parlamentar. É evidente que aqui prevaleceu a posição do parceiro de coligação, o PP, esse, sim, fundamentalista na posição criminalizadora.
Dá para perguntar: que atitude adoptariam os deputados J. Pacheco Pereira e Rui Rio, por exemplo, se estivessem na Assembleia da República?

Vital Moreira

Nevoeiro sobre Belém

Esta coisa simples de um cidadão querer saber o que terá escrito o Presidente da República na sua mensagem à AR pode tornar-se um verdadeiro calvário! Por azar, não se ouviu lê-la em sotaque açoriano (suponho que algum canal televisivo e algumas rádios a tenham dado em directo e na íntegra) e pronto: está tudo estragado! Compram-se jornais (todos os diários ditos de referência e ainda outros), e nada: muitos comentários, dois ou três excertos e chega! Compram-se as revistas semanais, e é o mesmo deserto: muitas análises, muitos adjectivos, mas a tal de mensagem - zero!
Para quem (ainda) tiver alguma curiosidade pode encontrá-la na página da Presidência.
Fui ler. Tornaram-se-me espantosos os comentários que já tinha lido - à excepção do editorial do Miguel Coutinho no DE. Ou porque o estilo é redondo (mais directo só uma Moção de Censura, que não cabe ao Presidente), ou porque a receita é impraticável, ou porque sim, ou porque não, parece que Sampaio não escreveu nada de relevante. Apesar de «arrasar a política orçamental»...
Não é fumaça, é nevoeiro!
Se ainda falamos a mesma linguagem - se calhar o problema é este -, o que o PR escreve é assim: 1. A actual maioria não tem sido capaz de avançar na solução dos problemas estruturais das finanças públicas; 2. O Governo anda a disfarçar défices com recurso a expedientes; 3. O mesmo Governo adoptou uma política (errada, subentende-se) pró-cíclica; 4. O dito cujo não anda a controlar a despesa, mas sim a reprimi-la; 5. Esse tal corta sem critério, hipotecando o futuro e destruindo o pouco que «na segunda metade da década de 90» se construiu de Estado-Providência; 6. O arguido não conseguiu avançar no combate à fraude e à fuga ao fisco e não preparou a administração fiscal para poder ter um papel activo nesse combate; 7. É ainda o mesmo que fugiu aos compromisso assumidos na Resolução sobre a Revisão do Programa de Estabilidade e Crescimento 2003-2006, aprovada por larga maioria pela Assembleia da República em 9 de Janeiro de 2003.
Com este discurso de acusação Sampaio bem pode voltar aos tribunais, já não como advogado, mas como digníssimo representante do Ministério Público. Safa! Grande sova!
Este não é um "Governo dos sete costados", mas antes o "Governo dos sete pecados orçamentais". Todos eles capitais. Sobretudo porque, no entender do PR, algumas áreas da despesa pública têm mesmo de crescer, sob pena de caminharmos para becos sem saída. Para além das políticas sociais, é a própria economia portuguesa que não tem futuro sem investimentos públicos (sustentação estratégica), presença reguladora e estruturante do Estado.
Trocando por miúdos: é urgente mudar a política orçamental; sem essa mudança não há futuro!
Tá bem! O PR não disse nada!...

Jorge Wemans

Alhos & bugalhos

No "Natureza do Mal" pergunta-se se a minha argumentação contra novas universidades públicas (nomeadamente em Viseu, mas não só) na presente situação não vale também contra a criação de novos cursos de medicina em universidades privadas (nomeadamente em Coimbra, mas não só).
A minha resposta é negativa. Primeiro, criar um curso novo em universidades existentes não é o mesmo que criar de raiz uma nova universidade (que aliás não pode ter só um curso...), desde logo quanto à diferença de meios envolvidos. Segundo, e sobretudo, não existe nenhum paralelo a este respeito entre as universidades públicas (que, como todo o investimento público, são financiadas essencialmente pelo erário público e carecem de uma justificação de interesse público) e as universidades privadas, que decorrem da liberdade de criação de estabelecimentos de ensino superior privado e que não envolvem uma obrigação de financiamento público (sendo tendencialmente pagas pelos seus utentes), cabendo ao Estado essencialmente uma função de verificação dos requisitos legais para a sua criação e de controlo da respectiva qualidade, ainda que no caso dos cursos de medicina (únicos que continuam administrativamente reservados ao sector público) essas tarefas tenham de ser seguramente bem mais exigentes do que na generalidade dos outros cursos.
Mas não devemos misturar alhos com bugalhos.

Vital Moreira

A honra democrática da Itália

O Tribunal Constitucional italiano acaba de tomar uma decisão que contribui decisivamente para salvar a honra democrática da Itália, ao declarar inconstitucional uma lei aprovada pela maioria governamental destinada especificamente a conferir imunidade penal ao chefe do Governo, Berlusconi, incluindo efeitos retroactivos, abrangendo crimes estranhos ao exercício de funções e livrando-o de ser julgado num processo em que ele já tinha sido acusado, por corrupção de juízes e falsificação de contas num caso de privatização de empresas públicas. Com o mesmo fundamento e no mesmo caso um colaborador chegado de Berlusconi foi entretanto condenado a cinco anos de prisão.
A reacção da imprensa italiana e europeia não deixou de celebrar justamente a salvaguarda da democracia italiana, apesar da erosão do actual governo de direita.
O Repubblica, que conduziu uma frontal oposição à lei podia rejubilar:
«Abbiamo assistito a qualcosa di inconcepibile in Occidente. Un imputato per reati gravissimi compiuti prima della sua stagione politica, mentre il processo è alla vigilia della sentenza, usa strumentalmente la maggioranza parlamentare che guida come premier, e si crea un salvacondotto ad effetto immediato per sfuggire ai suoi giudici.»
Para depois tirar a moral da história: «Le regole fondamentali della Repubblica tornano dunque a valere nel nostro Paese, dopo la strappo ad personam di Silvio Berlusconi».
O Financial Times escreveu:
«Silvio Berlusconi has found again this week, to his dismay, that Italy's system of checks and balances is still in good working order. Upholding the basic principle of equality before the law, the constitutional court has just struck down the recent law giving the prime minister immunity from prosecution while he holds office.(...)»
E o Sueddeutschezeitung, observando que os políticos italianos "perderam o sentido do Estado de Direito em que se movem», titulava o seu comentário assim: «Ainda há juízes em Roma».
É para isso, felizmente, que servem os tribunais constitucionais.

Vital Moreira

sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

A Ministra que joga para trás

Embora com atraso, foi com espanto que li a entrevista da Senhora Ministra da Ciência e Ensino Superior ao Expresso de sábado passado (link indisponível) sobre a suposta falta de avaliação dos projectos e centros de investigação e de concurso para os "laboratórios associados", insinuando que mais ou menos tudo era decidido pessoalmente pelo Ministro do Governo anterior (o resto o leitor que deduza).
Francamente, não era a Ministra investigadora do Instituto Superior Técnico antes de ir para o Governo? Ou terá estado em trabalho de campo fora do país, lá para o interior de África, onde não chegam o correio nem jornais?
É que pertencendo eu a um laboratório associado e tendo submetido projectos de investigação à FCT, não sei como pode dizer-se que não houve avaliação, muito em especial nos últimos anos. Talvez o ex-Ministro José Mariano Gago possa ser responsável por outras coisas (o rigor da avaliação dos projectos tornou a decisão, por vezes, demasiado lenta; o concurso para os laboratórios associados foi muito pesado nas exigências feitas), mas da falta de avaliação, Senhora Ministra, só o poderá acusar quem andou mais por lá do que por cá, ou quem joga para trás por que não sabe jogar para a frente.
Devo, aliás, acrescentar que, mesmo sendo «vítima» desse sistema, sempre o achei exemplar e desejei fortemente que fosse estendido a outros domínios da administração pública. Uma avaliação independente, incluindo nas respectivas comissões cientistas estrangeiros, uma avaliação penalizante, sem deixar de ser pedagógica (como ela é feita periodicamente, quantas vezes passamos os intervalos a pensar como vamos superar os defeitos apontados na avaliação anterior); enfim, uma avaliação cujos resultados se repercutem no financiamento só nos pode fazer bem.
Por isso, francamente, não sei do que está a falar. Se é para fazer notícia, mais valia ser sincera e, em vez de arranjar desculpas, confessar que há menos dinheiro para a investigação e para continuar a obra do governo anterior neste domínio. Olhe que isso até poderemos entender ou, pelo menos, aceitar discutir. Desde que, obviamente, não venha entretanto criar mais uma Universidade em Viseu ou algures, sem que seja conhecida qualquer avaliação (aí sim) que justifique a sua necessidade e os gastos nela envolvidos.

Maria Manuel Leitão Marques

É precisa uma ordem dos jornalistas ?

Nestes dias voltou à baila a velha ideia da criação de uma ordem dos jornalistas, que teve o seu auge há mais de 10 anos, até ser inequivocamente "chumbada" num referendo da classe.
O que veio reavivar subitamente a questão da ordem dos jornalistas foi seguramente o tratamento dado por alguns órgãos de comunicação social ao processo Casa Pia, espezinhando todos os limites deontológicos da profissão, incluindo a violação de alguns deveres básicos decorrentes directamente da lei, como a identificação de vítimas de abuso sexual de menores, a invasão infrene da privacidade de pessoas alegadamente implicadas, para não falar da sistemática violação do segredo de justiça - mesmo quando nenhum interesse público poderia justificá-lo - e do direito das pessoas ao bom nome e reputação. Jornais como o 24 Horas e televisões como a TVI (par citar somente os casos mais flagrantes) tornaram-se sérios candidatos ao prémio do "jornalismo de sarjeta", de que falava há anos o presidente do órgão deontológico do sindicato dos jornalistas.
Também penso que hoje se torna muito mais defensável a criação de um organismo de autodisciplina oficial dos jornalistas, composto essencialmente por jornalistas, com poderes oficiais sobre todos os profissionais, com capacidade para aprovar e fazer respeitar o código deontológico e com poderes sancionatórios fortes, incluindo a suspensão ou cassação da carteira profissional. Mas, como se mostra noutros países, não tem de ser uma "ordem", que mistura essas funções de autodisciplina com a função "corporativa" de representação e defesa dos interesses profissionais, a qual muitas vezes só prejudica a primeira função (ver o caso paradigmático da Ordem dos Médicos entre nós). Na Europa uma ordem de jornalistas, se não estou em erro, só existe na Itália (ver o respectivo website).
Seja como for, o que não deve continuar é a situação existente de gravíssimas infracções dos deveres deontológicos, que permanecem impunes, abusando da liberdade de imprensa e dos direitos de terceiros. Como diz Estrela Serrano, a prestigiada provedora do leitor no Diário de Notícias, numa entrevista dado ao semanário Independente desta semana, «é confrangedor verificar que as regras básicas que deram legitimidade ao jornalismo estão muitas vezes a ser deitadas para o lixo, e isso é dramático".

Vital Moreira

quinta-feira, 15 de janeiro de 2004

A palavra dos leitores

1. «A Madeira não é do Jardim»
«Quando me apercebi daquele pequeno pormenor («o continente agradecia») [cfr. o meu post em causa], a minha estupefacção e indignação foi tamanha, que me obrigou a mostrar o meu desagrado pela forma como critica Alberto João Jardim, sem se lembrar que, ao contrário do que muitos pensam, a Madeira NÃO É DO Jardim, nem é O Jardim! (...) Portugal não tem dono, a Madeira não tem dono!
(...) Por isso, se me permite, gostaria de lhe fazer ver que, apesar de sermos liderados (nós, madeirenses) por Alberto João Jardim, há vida para além das palavras de um homem! Os madeirenses são, orgulhosamente, PORTUGUESES! Não queremos a independência, não fazemos parte de outra civilização... Reparei que um qualquer fascista dirigiu-lhe alguns impropérios. Se o Dr. fosse estrangeiro, por verificar que há um fascista em Portugal, arriscar-se-ia a deduzir que Portugal está impregnado de fascistas? Não lhe passaria pela cabeça, pois não?
Infelizmente, o sistema democrático não é perfeito. O povo escolhe um líder, e esse líder ganha o privilégio de falar em nome de milhares (ou milhões) de pessoas, mesmo quando esses mesmos milhares (ou milhões) que o elegeram, nas ruas, manifestam o seu desacordo perante as opções políticas seguidas. Aquando da intervenção anglo-americana no Iraque, não suportava ouvir o nosso primeiro-ministro a afirmar que "Portugal apoia a intervenção". Eu faço parte de Portugal, sou cidadão de plenos direitos, mas não me revejo nas palavras do homem que, pelos portugueses como eu e o Dr., o colocaram ao leme da nação. Como proceder?
(...) Dr. Vital Moreira, como madeirense e português, agradecia que revisse a sua posição isolacionista, no que toca à minha terra. Se quer criticar o presidente que os (outros) madeirenses escolheram, faça-o mas não se iguale àquele que contesta. Qual a diferença entre um assassino e um homem que vinga a morte -com a morte? De uma vez por todas, deixem de ver a Madeira como o quintal do Dr. Jardim!»
[VS]

2. «Malhas que os imperialismos tecem...»
«(...) Isto a propósito (ou despropósito...) do excelente texto de Clara Ferreira Alves publicado no "Única" do Expresso de 3 do corrente.
Guantanamo só episodicamente nos belisca a sensibilidade. 680 homens e crianças detidos há ano e meio, sem culpa formada, sem direito a defesa, deslocados para milhares de quilómetros das suas terras, sujeitos a humilhações de toda a ordem (...)
No século XXI já não existem os fornos crematórios para destruir os corpos, mas há técnicas refinadas para destruir o espírito. Mesmo assim já se suicidaram 37 prisioneiros.
À margem desta história há uma singularidade, ou talvez o não seja. Os EU não instalaram o campo de concentração no seu território mas no da sua arqui-inimiga Cuba que, oficialmente, só no passado mês de Dezembro se insurgiu contra o mesmo.
Coincidência ou não, muitos ou pelo menos alguns dos fedayns detidos combateram as tropas de Moscovo, aliado de Cuba, com armas e dinheiro então fornecidos pelos EU às milícias talibans. Malhas que os imperialismos tecem...
As referências ao que se passa dentro do campo de Guantanamo são escassas. Já foram demitidos e/ou castigados vários oficiais e funcionários por revelações feitas e mesmo os poucos advogados de presos europeus e australianos que os visitaram não tiveram acesso às instalações dos prisioneiros.
Mas cá como lá os segredos de justiça ou militares têm sempre um preço...
As fotos (...) tiradas durante um voo de mais de 12 horas do Afeganistão para Cuba mostram bem as condições infra-humanas do transporte. Na UE as directivas para o transporte de gado para o matadouro não o permitiriam. Mas a verdade é que estamos na "velha" Europa do Snr. Rumsfeld...»
[MS]