quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Praça da República (38): Onde a democracia falha em Portugal

1. No debate em que ontem participei com Alexandre Quintanilha e com Paulo Trigo Pereira, a propósito do livro do último sobre a democracia em Portugal (um livro de leitura obrigatória para quem se interesse pelo presente e futuro do regime democrático em Portugal), defendi que, embora Portugal se encontre muito bem posicionado nos rankings internacionais de qualidade da democracia (como os do Economist e da V-Democracy), há várias falhas que importa enfrentar, porque afetam o seu futuro. 
Entre esses falhas - défice de participação política (abstenção eleitoral, pouca intervenção nos mecanismos de democracia participativa), défice de cultura cívica e política (iliteracia cívica e irresponsabilidade política) e mau desempenho económico -, sublinhei a gravidade da última, pois, a não ser enfrentada, ela põe em causa a capacidade de sustentação do Estado social e, em última instância, a estabilidade da democracia liberal.

2. Com efeito, Portugal padece de uma prolongada situação de crescimento económico medíocre, resultado de baixa eficiência económica (produtividade) e insuficiente competitividade externa, que se reflete em desemprego elevado e emprego de baixa qualidade, baixos sálarios, fraco crescimento do rendimento pessoal, insuficiência de recursos fiscais (apesar dos impostos elevados), carência no financiamento dos serviços públicos, reduzido nível de investimento privado e público, elevado endividamento público, desequilíbrio e endividamento externo,.
Não admira, portanto, que Portugal vá descendo continuamente no ranking económico dos países da União Europeia, sendo regularmente ultrapassado pelos países do Leste, que, quando entraram na União, há menos de duas décadas, estavam bastante atrás de Portugal. 
Vamos caindo, irresponsavelmente, para o fundo da tabela.

3. Este mau desempenho económico estrutural tem a ver antes de mais com políticas públicas erradas (nomeadamente políticas económicas, orçamentais e fiscais), facilitadas por fatores políticos adversos (governos minoritários, partidos politicamente inconsistentes, incapacidade de negociação e de coligação interpartidária, falta de consenso sobre estratégia de longo prazo para o país), para os quais não tem havido a necessária resposta institucional e cultural.
Mas também contam muitos as falhas culturais ao nível individual e coletivo, por exemplo na preferência do gasto sobre a poupança, do endividamento sobre a prudência financeira, do consumo sobre o investimento, do imediato sobre o futuro, da dependência do Estado sobre a iniciativa e responsabilidade individual. 
Assim não vamos lá!

Pobre Língua (20): Portenglish

Já tínhamos o StayawayCovid, agora temos o IVAucher (jogando com a sigla IVA e o palavra inglesa voucher). O Estado junta-se assim, oficialmente, à tendência de jornalistas, economistas, etc. na adoção de termos ingleses ou de anglicismos, mesmo quando eles nada acrescentam à compreensão das iniciativas públicas em causa, salvo pretensiosismo.

Infelizmente, hoje em dia, há muita gente nas elites cosmopolitas que cuida mais do seu Inglês do que do Português. Mas o Estado, esse, não tem o direito de desconsiderar a Língua.

+Europa (31): Soberania económica da União

Obrigatório ler este relatório do European Council for Foreign Relations sobre a necessidade de defender a soberania económica da UE contra ações agressivas de outras potências económicas, nomeadamente os Estados Unidos e a China.

Definitivamente adquirido o conceito de soberania da União, introduzido pelo Presidente Macron e logo adotado pela Chancelerina Merkel, ele é especialmente útil no esfera da relações económicas internacionais, quer pelo facto de a União ser uma efetiva potência económica, quer por a economia da União depender muito do comércio internacional e do investimento direto estrangeiro.

Por isso, a União tem não apenas de adotar políticas assertivas nas suas relações económicas internacionais, mas também de se munir dos meios de defender, se necessário agressivamente, os seus interesses económicos no confronto com atitudes hostis de outras potências económicas

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Retratos de Portugal (2): Onde está a inspeção?

 

Estes dois contentores permanecem há anos abandonados, deixados nas obras de construção ou reparação da ponte sob a qual se encontram (sobre o Rio Cértima, no limite entre os concelhos de Águeda e de Oliveira do Bairro).

Obviamente, faltou inspeção final à obra antes da sua entrega, ou a inspeção "esqueceu-se" de ver o que ficava para trás. É um dos cancros do País: a inexistência ou ineficácia das inspeções de obras públicas.

Adenda
Ainda recentemente tive de protestar duas vezes junto da CM de Coimbra, por causa da obra de remodelação dos passeios da minha rua, cujos trabalhos tinham ficado inacabados ou com manifestas deficiências. A inspeção não tinha passado por lá.

Adenda 2
Comentário de um leitor:«O problema é que não poucas vezes a inspeção é comprada pelos empreiteiros para não ir ou não ver...». Pois, por isso é que convém fazer regularmente avaliação externa dos serviços de inspeção, o que, infelizmente, não está nos nossos hábitos administrativos. De resto, o problema não se coloca somente na inspeção de obras públicas, mas sim em todos os tipos de inspeção (obras particulares, tributária, ambiental, transportes, etc.).

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Debaixo do tapete (1): As carreiras especiais na função pública

Na sua entrevista ao Jornal de Negócios de hoje (acesso reservado a assinantes), a Ministra da Reforma do Estado anunciou a intenção de tornar mais céleres as progressões nas carreiras do regime geral da função pública, que dependem de avaliação de desempenho. O que não disse (nem sequer foi perguntada pelos jornalistas!) foi o que pretende fazer com as carreiras especiais, em que as progressões são feitas essencialmente pelo decurso do tempo, o que, além de um privilégio injustificável dentro da função pública, é insustentável a prazo em termos orçamentais, por causa do grande volume de funcionários em causa.

Mas é assim: é fatal a nossa disponibilidade para colocar debaixo do tapete as questões difíceis e de empurrá-las para diante, indefinidamente

Praça da República (37): O risco de declínio da democracia e os meios de o conjurar

 

Vai ser publicamente lançado amanhã o livro de Paulo Trigo Pereira intitulado «Democracia em Portugal: Como evitar o seu declinio»

O autor, conhecido professor universitário e militante de várias causas cívicas, reflete sobre a sua recente experiência como deputado à Assembleia da República e procura tirar lições quer quanto ao desempenho da democracia parlamentar, quer quanto aos remédios para o melhorar.

A convite do autor, vou ter o gosto de apresentar o referido livro. É amanha, no ISEG em Lisboa.

Pandemia (33): A falta de civismo e o arrocho

O  anúncio da proposta de lei do Governo para tornar obrigatória a instalação da app StayawayCovid fez disparar tanto o número de instalações (o que é bom) como as manifestações públicas contra a obrigatoriedade (o que é mau).

Mas isto permite duas conclusões, nenhuma delas positiva(i) por um lado, os portugueses ligam pouco às obrigações cívicas, mesmo quando estas são flagrantes, só as cumprindo quando elas se tornam legalmente obrigatórias - o que quer dizer que só o arrocho legal substitui o défice de civismo; (ii) por outro lado, há sempre, mesmo entre intelectuais de esquerda, aqueles que invocam a liberdade em abstrato para se furtarem ao dever de não contribuir para a morte de outros, com argumentos que vão desde a iliteracia tecnológica, passando pela (inexistente) ameaça à privacidade da aplicação em causa, até ao pedestre cabotinismo dos negacionistas da COVID.

Lamentável!

Adenda
Lamentável é também que a Ministra da Reforma do Estado se tenha recusado, numa entrevista ao Jornal de Negócios, a responder à pergunta sobre se tem app instalada, invocando a natureza "privada" da questão. Como?! Então, sendo um óbvio dever cívico, os membros do Governo não deviam dar o exemplo público? E tendo o Govemo proposto a sua obrigatoriedade, não deviam os membros do Governo mostrar que a medida é justa?

Não dá para entender (21): Escolas privadas financiadas pelo Estado

Apesar da forte redução do número de escolas privadas financiadas pelo Estado desde 2015 (como mostra o gráfico junto, retirado Público de hoje), mercê das medidas então tomadas - que pararam a vasta  parasitagem à custa do orçamento vinda do passado -, ainda há um número significativo de escolas privadas que beneficiam de financiamento público, no montante de cerca de 42 milhões de euros por ano.

Ora, a obrigação do Estado de dispor dos estabelecimentos de ensino públicos necessários para cobrir toda a população escolar está inscrita na Cosntituição desde 1976, ou seja, vai para meio século. Como se compreende então que, passado este tempo todo e o enorme aumento de dotações orçamentais e do número de professores, ainda haja tantas turmas (mais de 500) sem frequência em escola pública?!

Há um nome para isso no Direito constitucional: inconstitucionalidade por omisssão, ou seja, falta ou insuficiência das medidas necessárias para cumprir as "obrigações de resultado" inscritas na Constituição.

domingo, 18 de outubro de 2020

Retratos de Portugal (1): A pegada de plástico

Eis o que muitas vezes fica de pique-niques ao ar livre no nosso País (foto de hoje numa mata da zona da Pateira de Fermentelos, concelho de Águeda). 

Infelizmente, não é uma imagem insólita, pelo contrário. A falta que faz o ensino de educação cívica em pequenos e a responsabilidade cívica em adultos!...

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Corporativismo (17): Usurpação de funçoes

1. Há uma manifesta confusão nesta peça sobre o poder de fiscalização das ordens profissionais.  

Começando pelo equivocado título da peça, é inquestionável que o Estado goza do poder de fiscalização sobre as ordens, sendo a lei das ordens explícita em reconhecer-lhe uma tutela inspetiva geral, para além de uma tutela preventiva sobre alguns poderes específicos das ordens. 

Nem podia deixar de ser assim, dado que as ordens exercem poderes públicos de regulação e disciplina profissional conferidos pelo Estado, que podem afetar a liberdade profissional e a concorrência nos serviços profissionais, além dos direitos dos utentes, pelo que aquele deve ter o poder de velar por que elas não se desviem do exercício ds suas funções legais.

2. Quanto ao poder de fiscalização das ordens, é igualmente evidente que, como instituições oficiais de autorregulação e de autodisciplina profissional, elas têm, em substituição do Estado, o poder (e a obrigação) de fiscalizar e sancionar, se for caso disso, a violação dos deveres legais e deontológicos dos seus membros, que em geral lesa os utentes dos serviços profissionais. Isso inclui também um poder de inspeção sobre os escritórios e consultórios dos profissionais liberais.

Infelizmente várias ordens não exercem, ou exercem muito mal, tal poder/obrigação de fiscalização e de disciplina profissional.

A lei geral das ordens profissionais de 2103 confere-lhes o poder de designar um provedor dos utentes, com a missão a examinar e avaliar as queixas dos utentes dos serviços prossisdinais, podendo recomendar soluções e acionar a ação disciplinar. Mas, muito sigiticativemente, a maior parte das ordens preferiram não ter provedor e algumas que o previram nos seus estatutos não o nomearam.

Assim se vê que as ordens não conferem qualquer prioridade à defesa dos utentes contra os abusos deontológicos dos seus membros.


3. Diferente é o caso de um pretenso poder de fiscalização das ordens sobre as instituições (públicas ou privadas) que empregam ou onde atuam os seus membros, poder que vários dos bastonários reivindicam na referida peça jornalística, citando a recente auditoria ao lar de Monsaraz pela Ordem dos Médicos. 

Mas trata-se de uma pretensão sem qualquer fundamento. É certo que as ordens têm por missão a defesa do "interesse geral da profissão", sobretudo no plano político e legislativo, mas não lhes compete defender os interesse setoriais de grupos dos seus membros, muito menos no aspeto laboral, que cabe aos sindicatos, e não às ordens.

Em qualquer caso, como entidades públicas que são, as ordens só têm os poderes conferidos por lei, e tal poder não consta da lei. Não consta nem devia constar, pois não faz sentido que, por exemplo, a Ordem dos Advogados faça auditorias aos tribunais ou aos serviços judiciais ou que as ordens do setor da saúde façam auditorias aos serviços públicos e privados de saúde ou que a Ordem dos Arquitetos faça autorias aos serviços municipais de urbanismo. Para isso há as auditorias e inspeções públicas e, no plano laboral, a competente fiscalização da respetiva Autoridade.

Não é para isso que as Ordens existem. Tratar-se-ia de uma manifesta usurpação de funções.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Pandemia (32): Vale mesmo a pena?

1. Uma eventual obrigação de instalação da app StayawayCovid - tal como o Governo anunciou que vai propor à AR - tem suscitado objeções de constitucionalidade, por uma tal medida se revelar uma excessiva invasão da privacidade, não passando, portanto, o teste constitucional da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais. 

Não me parece, porém, um argumento convincente, visto que, se tal medida se mostrasse eficaz para levar as pessoas dos grupos críticos selecionados a instalá-la e assim combater eficazmente a difusão da pandemia, então seria de considerar que o elevado fim coletivo em vista bem pode justificar o moderado sacrifício do valor pessoal em causa.

2. O problema que se pode sucitar é de saber se essa medida passa o teste constitucional da sua adequação ao fim em vista, tendo em conta especialmente a previsível dificuldade da sua implementação e do seu enforcement. Para além de que a obrigação só vincularia obviamente quem tem smartphone, não se vê como é que ela poderia ser implementada eficazmente em relação a estes. 

Como é que seria? A polícia teria o poder de exigir às pessoas a exibição dos seus aparelhos e a prova de instalação da app? E teria também o poder de consultar as listas de infetados e exigir-lhes a prova de que registaram a infeção na app? E a fiscalização policial seria feita na rua, nos cafés e noutros lugares públicos? Poderia entrar nas escolas e locais de trabalho para esse efeito? E quantos efetivos seriam precisos para uma fiscalização razoavelmente ampla?

Tudo indica, portanto, ser altamente improvável - por demasiado intrusivo e oneroso - um enforcement minimamente relevante dessa obrigação, suscitando além do mais acusações de seletividade e de discriminação por parte das pessoas apanhadas em falta. Ora, não havendo meios de fazer cumprir essa obrigação em larga escala nos grupos-alvo, ela deixa de satisfazer o critério da adequação ao fim em vista, pelo que deixa de se justificar a restrição à liberdade pessoal que ela impõe.

sábado, 10 de outubro de 2020

Aplauso (17): Travar a fragmentação do território


(Número de freguesias; fonte Pordata)

1. Ainda bem que, segundo o Expresso (que se tornou um canal de comunicação suplementar do PR...), o Presidente da República vai vetar a eventual lei de recriação de centenas de freguesias, que aqui denunciei como uma manobra de oportunismo político de grosso calibre, em vista das eleições locais do próximo ano.

A confirmar-se este anúncio, oxalá esta travagem da lei por Belém consiga o mesmo efeito que há mais de 20 anos o Presidente Jorge Sampaio conseguiu, ao parar a irresponsável deriva demagógica para a criação de dezenas de novos municípios, nessa altura também apoiada pelo PS (a que naturalmente me opus decididamente). 

Eis um campo privilegiado para o exercício do poder de veto presidencial, no cerne do poder moderador dos excessos das maiorias parlamentares: evitar as derivas políticas que ameaçam desestruturar o território.

2. Só comparavel, como erro político, com a promessa  de 2015 de repor as 35 horas de trabalho semanal na função pública (que foi levada a cabo, com enormes custos orçamentais e alargando o fosso entre a função pública e o trabalho no setor privado), esta proposta de fragmentação do território (que MRS teria qualificado, justamente, como "loucura" política), iria inutilizar em grande parte uma reforma do território que era necessária e é globalmente digna de aplauso, conferindo dimensão crítica a muitas freguesias que a não tinham.

Para além dos seus custos orçamentais, a fragmentação da freguesias é um atentado qualificado à racionalidade e eficiência da administração local.

3. Se o veto do Presidente merece todo o aplauso, já é puramente farisaica a resposta do Ministério da Reforma do Estado, argumentando que a proposta de lei se limita a estabelecer o quadro geral de criação de freguesias e que sua criação efetiva dependerá dos interessados, das assembleias municipais e da AR, .

Torna-se evidente que a lei é feita para a "desbunda" e que, logo que ela fosse aprovada, haveria uma corrida à criação de todas as freguesias possíveis, sem que ninguém tivesse a coragem para travar a vaga populista, limitando-se a  AR no final a carimbar as propostas. 

Como se mostrou no caso dos municípios há um quarto de século, o mal nestas coisas de fragmentar o território é abrir uma brecha no dique de contenção. Depois, é "fartar vilanagem".

4. Se a proposta de lei do Governo só merece ser rejeitada, o PCP ainda a acha pouco ambiciosa, defendendo que todas as freguesias extintas por agregação em 2013 devem ser restauradas, se tal for a vontade das populações interessadas. Mas esta proposta do PCP só pode qualificar-se como aquilo que é: irresponsabilidade política de primeiro grau. 

Por vontade do PCP, voltaríamos às mais de 4 000 freguesias do antigo regime! Que importa que muitas delas não tivessem o mínimo de população e de recursos para sobreviverem, se isso significasse mais umas dezenas de freguesias sob gestão comunista? 

Cada vez mais confinado na gestão municipal, o PCP aposta num último reduto de gestão paroquial. E o Governo serve de prestimoso comissário...

Não com os meus impostos (3): Haja decência!

Um dirigente sindical queixa-se de que o Governo não avança com nenhuma proposta de aumento das remunerações na função pública. Mas só pode lamentar-se a insistência dos sindicatos nesse aumento e louvar-se a sensatez política e orçamental do Governo em recusá-lo. 

Quando o défice orçamental dispara sob o impacto financeiro da pandemia e da crise económica e quando a generalidade dos portugueses fora do Estado sofrem perda de rendimentos, seria um verdadeiro escândalo político e social que houvesse aumento das remunerações do setor público, à custa dos impostos de todos e de mais endividamento público.

Haja decência!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Antologia do nonsense político (13): Moeda açoriana!

O porta-voz do Livre nos Açores e candidato às próximas eleições regionais propõe nada menos que a criação de uma moeda regional nos Açores, paralela ao Euro, invocando os seus efeitos positivos sobre o emprego, o crescimento económico e o desenvolvimento verde! 

Proposta original, pode ser; tonteria política, de certeza que é! 

Resta saber se este milagre de engenharia monetária e de afirmação da soberania monetária regional é subscrito pela direção nacional do Partido, que nas eleições legislativas nacionais do ano passado conseguiu eleger uma deputada, entretanto perdida.

Assim se vão descredibilizando, pelo ridículo, os partidos políticos...

Um pouco mais de jornalismo, sff (17): Comparação disparatada


Nesta notícia diz-se que o apoio do Estado ao lay off das empresas durante a pandemia - que permitiu manter centenas de milhares de empregos e salvar muitas empresas - é muito inferior ao montante da ajuda pública ao Novo Banco. 
A notícia, porém, não se limita a comparar dimensões incomparáveis, pois, no primeiro caso, só estão contabilizadas as despesas até junho, enquanto no segundo trata-se do montante da ajuda ao novo banco durante o ano. O mais grave é que a notícia, induzindo deliberadamente os leitores em erro, se "esquece" de dizer que, enquanto o primeiro valor é despesa efetiva do Estado, o segundo é um empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, que vence juros e que terá de ser reembolsado, logo que o Fundo tenha recursos suficientes através das contribuições dos bancos. 
Trata-se, portanto,  de uma comparação disparatada, imprópria de um jornalismo responsável.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Est modus in rebus (1): O caso do Presidente do Tribunal de Contas

1. Confesso que me irrita cada vez mais, como cidadão, o excesso verbal, o sectarismo ideológico, os ataques pessoais e a leviandade de juízos no debate político entre nós, de que é caso exemplar o debate sobre a nomeação do novo presidente do Tribunal de Contas, onde valeu tudo e onde não faltaram as acusações de "despotismo governamental", de "conspiração" entre o PM e o PR contra o regime, sem falar na tentativa de enlameamento pessoal do novo Presidente. Um comentador mais incontido foi ao ponto de ver neste episódio a prova da "podridão" do regime! 

Mas nada disto tem qualquer fundamento.

2. É certo que a Constituição não estabelece explicitamente nenhuma limitação dos mandatos do presidente do TdC - mas devia fazê-lo. O princípio essencial do Estado de Direito é o da independência dos juízes face ao poder político (ou qualquer poder externo), o que exige que um juiz não possa sentir-se pressionado na sua atuação para obter a recondução no cargo por parte dos órgãos políticos competentes.

Tal é de resto a regra constitucional em relação aos demais juízes, que ou são de nomeação vitalícia, como sucede com os dos tribunais judiciais e administrativos, ou têm um único mandato, como sucede com os do Tribunal Constitucional.

Por consequência, a solução do mandato único é a mais conforme aos princípios constitucionais.

3. Não havendo nenhuma norma explícita a proibir a recondução, nada impede, porém, o Primeiro-Ministro - a quem cabe a indigitação ao Presidente da República - de adotar esse critério, desde que o anuncie publicamente e se comprometa a respeitá-lo. 

Foi, aliás, o que sucedeu. O facto de até agora não ter sido assim é irrelevante. Nunca é tarde para mudar para melhor. Só há que elogiar o PM pela decisão a favor de um mandato único, esperando que ela inaugure uma prática política mais consentânea com os princípios constitucionais.

A alternativa ao mandato único é a indefinição quanto ao número de mandatos, que convida ao cambalacho político ou pessoal ou à inércia e à manutenção em funções de quem lá esteja, indefinidamente, até o titular se decidir a sair, como já sucedeu. Mesmo que não houvesse o referido princípio da independência dos juízes, há sempre o princípio republicano que afasta a ocupação de cargos públicos por tempo indeterminado.

4. Todavia, uma vez adotado, e bem, o princípio do mandato único, torna-se conveniente alargar a sua duração, atualmente limitada a quatro anos, talvez por equiparação ao mandato-regra dos governos. A referência pode ser a da duração do mandato do PR (cinco anos), do das autoridades reguladoras independentes (6 anos) ou do dos juízes do TC (nove anos).

Por isso, justifica-se incluir esse tema na próxima revisão constitucional, no sentido de : (i) estabelecer explicitamente o mandato único; (ii) ampliar a duração do mandato; (iii) acabar com a atual possibilidade de exoneração do cargo por proposta do PM e decisão do PR (hipótese nunca verificada), que contraria o essencial princípio constitucional da irremovibilidade dos juízes.

Adenda

Um leitor irritado com a expressão latina pergunta porque não utilizo um equivalente em Português. A expressão latina significa literalmente "haja moderação nas coisas!" e o melhor equivalente poderia ser algo como "um pouco de moderação, por favor!". Mas não é a mesma coisa!

Adenda 2

Outro leitor defende que o anterior Presidente do TdC só não deveria ter sido reconduzido se tivesse desempenhado mal o cargo, o que não é manifestamente o caso. Mas isso só seria assim, se se entendesse, erradamente, que quem ocupa um cargo público tem direito à recondução após terminar o mandato (o que poderia levar à sua permanência vitalícia no cargo...). Quando muito pode ter essa expectativa pessoal, mas não há nenhuma obrigação de recondução. Se a Constituição não proíbe a recondução (apesar de ser inconsistente com o princípio da independência judicial), muito menos a impõe.

Corporativismo (16): Coutadas profissionais

1. Este pedido da organização regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, tendente ao encerramento de uma empresa de cobrança de dívidas, por alegada violação do exclusivo de "atos próprios" dos advogados (definidos na Lei nº /2004, de 24 de agosto), pode ser uma boa ocasião para debater o fundamento invocado, quer em termos de liberdade profissional (que é um direito fundamental protegido pela Constituição), quer em termos de concorrência na prestação de serviços profissionais qualificados numa economia de mercado (que é baseada numa e noutra).

Tradicionalmente, a crítica às Ordens profissionais apontava sobretudo as restrições ao acesso às profissões e a consequente limitação da "concorrência endógena", que a chamada Lei-Quadro das ordens profissionais de 2013 (Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro) veio tentar reduzir, sem o ter conseguido inteiramente (até porque foi logo derrogada pelos estatutos de algumas Ordens, incluindo a dos advogados). Todavia, a questão do protecionismo profissional, através da excessiva reserva de atividades, pode ter efeitos ainda mais graves, pois o monopólio profissional injustificado de uns significa impedimento profissional para todos os outros, eliminando a concorrência interprofissional.

2. Na verdade, ao longo deste anos veio-se ganhando uma consciência mais aguda dos custos dessas restrições, não apenas quanto ao sacrifício indevido de direitos fundamentais, mas também quanto aos efeitos negativos, quer sobre o desempenho da economia, que é crescentemente baseada nos serviços e na "servicização" geral da atividade económica, quer sobre o welfare dos utentes de serviços.

Ainda há pouco anos, a OCDE, em colaboração com a Autoridade da Concorrência nacional, elaborou e publicou um relatório altamente crítico sobre as restrições existente em algumas profissões autorreguladas em Portugal, incluindo a advocacia, o qual era acompanhado de recomendações de correção da situação, em alguns casos radicais, que não tiveram qualquer seguimento político ou legislativo.

Por isso, é tempo de pôr fim à "conspiração de silêncio" (em que este blogue não tem manifestamente participado, como se vê pelo número de posts nesta série) e de abrir um debate político e legislativo sobre as restrições à liberdade profissional e à concorrência nas profissões autorreguladas (e nas outras...).

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Este país não tem emenda (23): Retrocesso

1. Respondendo aos clamores localistas, o Governo vai restaurar muitas das freguesias agregadas na reforma da geografia das freguesias em 2013, abdicando das vantagens da consolidação territorial e do reforço dos meios e recursos dessas autarquias locais de base. E não se trata de alguns ajuatamentos pontuais, estando prevista a restauração de nada menos de 600! Puro populismo político, com vista às eleições autárquicas do próximo ano!

Vai, portanto, aumentar o número de autarcas e a despesa pública nas novas coletividades territoriais, sem nenhum ganho para os habitantes, salvo o retorno das "suas" freguesias. De resto, uma vez aberta a "caixa de Pandora" das reivindicações territoriais, nada nos garante que na AR ao número de freguesias restauradas não venha aumentar ainda mais...

2. Infelizmente, o problema da descentralização territorial em Portugal (para além da falta das autarquias regionais constitucionalmente previstas) não está em haver em freguesias a menos mas sim municípios a mais, dado o significativo número de municipios com menos de 5 000 habitantes (quase cinco dezenas!) e, portanto, sem meios e recursos suficientes para desempenharem as suas missões, tanto mais que em Portugal as competências municipais não são diferenciadas conforme a dimensão e meios disponíveis dos municípios, como sucede em tantos outros países.

Já em 2013 o próprio Governo PSD/CDS e a sua maioria parlamentar meteram na gaveta o programa de assistência financeira que exigia a redução substancial do número de autarquias locais, sem distinguir entre freguesias e municípios, cortando somente no número de freguesias. Desde então a questão da agregação de municípios nunca mais voltou à agenda política, nem sequer ao debate político - uma verdadeira conspiração de silêncio. 

Decididamente, por mais necessárias que sejam, há reformas impossíveis entre nós.

Adenda

Um leitor acrescenta um argumento importante: «É um contrassenso a multiplicação de freguesias, quando muitas das que existem têm muitas carências que limitam o seu desempenho: intalações, equipamento, remuneração dos presidentes das juntas. Era aí que o Governo devia investir!» Tem toda a razão!

Ai, o défice (12): Défice bom versus défice mau

1. Quando oiço um governante dizer que o défice não é um "preocupação central" nas opções orçamentais, receio sempre que seja um understatement e que a orientação é mesmo para gastar mais sem nenhuma preocupação.

Ora, por mais voltas que se dê, défice é mais dívida, que paga juros e tem de vir a ser paga a seu tempo. E se a dívida dispara para níveis demasiado elevados, não são somente os correspondentes encargos que aumentam, podendo também criar receios nos investidores e dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida.

As regras de disciplina orçamental da UE estão suspensas por causa da pandemia, mas hão-de vir a ser repostas e, então, quanto mais elevada for a dívida, maior será o esforço para reduzir. Mais dívida é o caminho direto para mais impostos no futuro.

2. É evidente que na situação de recessão económica por causa da pandemia, pode ser virtuoso o défice necessário para apoiar a economia e manter empresas viáveis em funcionamento até que a crise passe, assim como para aumentar o investimento público, que tão maltratado tem sido na política orçamental, sacrificado à prioridade dada ao aumento da despesa corrente ao longo destes últimos anos.

Já não vejo nenhuma justificação económica para aumentar a despesa pública e o défice com aumentos extraordinários de salários no setor público e das pensões, primeiro porque o consumo vai continuar retraído enquanto durar a incerteza da pandemia e depois porque grande parte dele se dirige a aumentar as importações, sem impacto sobre a economia e degradando o saldo da balança comercial

Além disso, não é socialmente justo (pelo contrário) que quem depende do Estado tenha aumento de rendimentos, à conta do défice, quando a generalidade dos portugueses têm redução dos seus.

Défice orçamental para investimento, sim; défice para aumentar a despesa corrente e para agravar assimetrias sociais, não!

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Pobre Língua (19): Um pouco mais de zelo, sff

1. Que no falar corrente muita gente diga "ir de encontro a" (=ir contra, chocar contra) em vez de "ir ao encontro de" (= caminhar na direção de, concordar com) é lamentável. Mas que tal confusão conste com alguma frequência na imprensa (hoje no JN), é inaceitável. Por vezes, o erro pode ser assaz embaraçoso, como acontece aqui.

Com efeito, neste caso a notícia pretende dar conta de um comunicado ministerial, podendo induzir a ideia de que o erro provém do comunicado, o que não é verdade, como se pode ver pelo texto oficial deste, onde tal frase não consta. Portanto, enquanto o comunicado diz que a nomeação do Procurador está de acordo com a deliberação do CSMP, a infiel versão jornalística do comunicado diz que a nomeação contraria a tal deliberação. Exatamente o oposto!

2. Desde há muito que lamento o desaparecimento dos antigos revisores das redações dos jornais, que corrigiam não somente as "gralhas" tipográficas, mas também os lapsos ortográficos e gramaticais dos textos a publicar. Como parece que as escolas deixaram de ensinar Português a sério, as probabilidades de "pontapés na Língua" aumentaram muito.

Decididamente, impõe-se um pouco mais de zelo com a Língua na imprensa

+ Europa (30): Adesão à Convenção Europeia de Direitos Humanos

É de saudar a retoma do dossiê da adesão da UE à CEDH, agora anunciada em comunicado conjunto do Conselho da Europa e da Comissão Europeia, visto que essa adesão constitui um mandado constitucional do Tratado da União Europeia há mais de 10 anos (Tratado de Lisboa). Importa superar os obstáculos levantados pelo Tribunal da Justiça da União ao acordo inicialmente estabelecido entre a União e o Conselho da Europa há alguns anos.

Quanto a CEDH perfaz 70 anos (1950) e a Carta de Direitos Humanos da União completa 20 anos (2000), eis uma conjunção oportuna para retomar esse procedimento.

Se todos os Estados-membros da UE estão vinculados à CEDH e à jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) em Estrasburgo, não há nenhuma razão para a União não estar sujeita às mesmas obrigações. Não são somente os Estados-membros que podem eventualmente infringir os direitos protegidos pela CEDH através da sua legislação ou ação administrativa.

No bicentenário da Revolução Liberal (20): "De súbditos a cidadãos"


No próximo dia 15 de outubro, vamos falar da conquista e construção da cidadania em Portugal desde 1820 à atualidade, neste colóquio integrado no programa das comemorações do bicentenário da Revolução Liberal organizadas pelo Município do Porto (assim como no programa de investigação da Universidade Lusíada-Norte sobre constitucionalismo eleitoral em Portugal).

O programa do colóquio pode consultar-se aqui: http://www.ulusiada.pt/constitucionalismoeleitoral/#links 

Pela minha parte vou abordar o seguinte tópico: "Cidadãos somos" – A principal conquista da Revolução Liberal. [A frase entre aspas pertence a uma proclamação de Garrett em 1820, como quintanista de Direito da Universidade de Coimbra, encabeçando uma luta pelo direito de voto dos estudantes nas eleições cosntituintes de dezembro desse ano.]

Aplauso (16): Ética republicana, reclama o PR

1. Fez bem o Presidente da República em reclamar o respeito da ética republicana nas comemorações dos 110 anos do 5 de de outubro, não somente pela pertinência da data, mas sobretudo para assinalar que os titulares de cargos públicos, assim como os funcionários públicos, não estão somente vinculados pela lei, mas também pela deontologia republicana, esteja ou não vazada em códigos de conduta formais. 

Ao contrário do que um ministro uma vez proclamou, a ética republicana é mais do que o cumprimmto da lei, desde logo porque a lei deixa aos decisores públicos uma larga margem de poder discricionário, que pode ser objeto de desvios ou de abusos, se não houver outras normas a respeitar.

2. A ética republicana tem a ver essencialmente com os seguintes aspetos: (i) a primazia absoluta do interesse público sobre os interesses privados; (ii) a separação estrita entre cargos públicos e interesses privados e a prevenção rigorosa de conflitos de interesse; (iii) o não aproveitamento de cargos públicos para benefício pessoal ou de familiares ou amigos, rejeitando o favoritismo e o nepotismo; (iv) a gestão prudente e parcimoniosa dos dinheiros públicos e do património público (v) o cumprimento escrupuloso das obrigações públicas, nomeadamente no plano fiscal.

A ética republicana é, antes de tudo, uma ética de serviço público.

3.  Tal como certas profissões estão sujeitas a uma deontologia profissional própria, que os profissionais devem aprender na sua candidatura à profissão, assim também o acesso a cargos públicos deveria passar por uma avaliação do seu conhecimento da deontologia do serviço público.

Uma errada perspetiva da função pública, promovida pela chamada "nova gestão pública", tendeu a reduzir a relação de emprego público a um normal contrato de trabalho e a equiparar os cargos públicos a cargos de gestão empresarial, esquecendo as especificidades da coisa pública. Ao contrário do que sucede na gestão privada, os funcionários e titulares de cargos públicos não cuidam dos seus interesses, sendo fiéis curadores do interesse público.

Urge resgatar a ética de serviço público, à luz da ética republicana da virtude ao serviço do interesse geral.

Adenda

Um leitor entende que os funcionários públicos e titulares de cargos públicos deveriam prestar, na sua tomada de posse, um juramento de cumprimento não somente da Constituição e da lei, mas também do código de ética do serviço público, ficando, portanto, vinculados também por um compromisso moral. Concordo.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Ainda bem! (6): O "mea culpa" de um antiausteritário

1. Em 2011 Olivier Blanchard, então economista-chefe do FMI, foi um dos economistas que sufragaram a tese de que a austeridade orçamental imposta pela troika a Portugal iria sufocar a capacidade de crescimento e de recuperação da economia, prolongando a crise económica.

Passados estes anos eis o que diz, numa entrevista ao Diário de Notícias (reservada a assinantes):

Em 2017 escrevi um artigo no qual dizia que a austeridade fiscal iria abrandar a economia portuguesa e que eu faria as coisas mais lentamente. E estava errado. As coisas acabaram por ser melhores por duas razões: a austeridade não foi tão forte como a retórica e Portugal teve sorte porque teve um crescimento muito maior do que se estava à espera, em parte porque as exportações foram muito maiores do que o que estava nas previsões. Acabou por correr tudo bem. Mea culpa por ter sido demasiado pessimista em 2017. 

(Sublinhados acrescentados. A referência a 2017 é um óbvio lapso: ele queria dizer 2011, como se vê nesta entrevista ao Expresso). 

2. O que Blanchard não diz é que a principal razão para a sólida recuperação da economia, logo a partir do final de 2013, que foram as exportações, se ficou a dever justamente à "desvalorização interna" provocada pela política de austeridade (contenção de salários e redução de outros custos empresariais).

E os nossos fogosos antiausteritários, que vaticinaram uma prolongada catástrofe económica da austeridade, também vão seguir o exemplo de Blanchard e ter a honestidade política e intelectual de fazer mea culpa?!

História constitucional de Portugal (1): O que devemos à República de 1910

 

1. Quando celebramos os 110 anos da Revolução Republicana (5 de outubro de 1910), importa recordar o que lhe devemos em termos de edificação da democracia constitucional em Portugal, através da Constituição de 1911. Não é pouco!

Em primeiro lugar, devemos-lhe obviamente a mudança da "forma de governo", da Monarquia para a República, deixando o Chefe de Estado de ser um monarca vitalício e hereditário reservado à dinastia de Bragança - e que além das funções próprias de chefe do Estado tinha também um papel decisivo na função legislativa e governativa na Carta Constitucional -, para passar a ser um Presidente da República com legitimidade democrática própria, sendo eleito pelas duas câmaras do Parlamento, de entre os cidadãos portugueses em geral, e com mandato temporário e não renovável imediatamente.

A par desta mudança essencial houve também a eliminação da antiga Câmara dos Pares, nomeada pelo Rei e composta por representantes da nobreza e do clero, sendo substituída por um senado eletivo, de representação territorial.

Ainda no plano da democracia, importa sublinhar o reconhecimento enfático da autonomia e do autogoverno municipal.

2. Não foi menor a contribuição da I República para a igualdade política dos cidadãos.

A primeira e decisiva medida foi a eliminação dos "foros da nobreza" e dos  títulos nobiliárquicos e a fim da distinção entre nobres e plebeus. 

Depois vem o reconhecimento da liberdade religiosa, a separação entre a  Igreja e o Estado e o fim da discriminação religiosa entre portugueses.

Por último, mas não menos importante, há o reconhecimento constitucional do direito à educação, através da instituição do ensino primário obrigatório e gratuito, tendente a acabar, a prazo, com a básica distinção entre alfabetizados e analfabetos, principal obstáculo à fruição dos direitos de cidadania.

3. No plano da edificação do Estado de direito constitucional, cumpre destacar três medidas:

        -  a consolidação do direito à liberdade pessoal (reforço das garantias penais, entre as quais o habeas corpus);

        - a consagração dos "crimes de responsabilidade" pelos atos governativos, tendo a condenação por consequência a perda do cargo e incapacidade para exercer funções públicas;

        - a instituição da fiscalização judicial da constitucionalidade das leis, confiando a todos os tribunais o poder de, nos casos submetidos ao seu julgamento, desaplicar as normas que considerassem desconformes com a Constituição.

Adenda

Na sua mensagem sobre a revolução republicana no site so PS, Ferro Rodrigues credita-lhe também a conquista da cidania, através da passagem "de súbditos a cidadãos". Mas não é bem assim, pois essa conquista deve ser imputada à Revolução Liberal e à Constituição de 1822, que aliás FR menciona, justamente, como um dos fundamentos da Revolução republicana. 

De resto, se a República contribuiu decisivamente para estabelecer a igualdade na cidadania, como referido acima, já retrocedeu, por exemplo, quanto ao direito de sufrágio, mais restrito do que o vintismo, pois enquanto este adotou tendencialmente um sufrágio universal masculino, a República não só manteve a exclusão das mulheres, mas também afastou os analfabetos, que ainda eram uma proporção elevada da população. Ora, o direito de voto é o mais eminente direito de cidadania. Nesse aspeto, portanto, houve um recuo da cidadania republicana em relação a 1820.

Praça da República (36): O custo das alianças à esquerda

1. O problema das alianças de governo à esquerda, como a que parece estar na forja entre o Governo PS, o BE e talvez o PCP, não é somente o seu elevado custo orçamental (aumento da despesa pública permanente e redução da receita, por exemplo, nas propinas do ensino superior e outras taxas dos serviços públicos) e o abandono de instituições testadas e de obrigações assumidas (como as PPP na saúde ou os empréstimos ao Fundo de Resolução do Novo Banco, respetivamente).

Tanto ou mais importante do que isso é o cancelamento de reformas de que o País há muito carece, como a reforma fiscal, a revisão do insustentável regime das carreiras especiais na função pública, a condição de meios em todas as prestações sociais não contributivas, o destino da ADSE, o sistema de pensões, isto para não falar de reformas do sistema político com décadas de atraso, como a reforma eleitoral e do sistema de governo das autarquias locais.

2. Com efeito, contrariamente aos acordos pontuais (por exemplo, sobre um orçamento), que se esgotam aí e podem ser de geometria política variável, os acordos de governo de maior fôlego temporal implicam não somente compromissos políticos sobre as políticas públicas e a ação do Governo, mas também, por via de regra, o reconhecimento de um poder de veto do parceiro negocial sobre os pontos do programa de governo (ou do programa político do partido de governo) com que não concorda. 

Por conseguinte, mais uma legislatura perdida quanto às referidas reformas.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pandemia (30): Comparativamente bem

 

1. Esta tabela (cortesia de Rosalvo Almeida) representa o número de infeções verificadas nas últimas semanas por milhão de habitantes em vários países do ocidente europeu e mostra que, embora estando a subir, como em quase todos os outros, os números de Portugal comparam bem com outros países, nomeadamente com a Espanha, a França, a Bélgica e os Países Baixos, embora menos bem com a Itália, a Suécia e a Alemanha. 

São, portanto, descabidas, por enquanto, as ideias de "descontrolo" da pandemia e a insegurança que elas alimentam.

2. Importa também não esquecer, como têm observado fundadamente vários analistas, que os números de agora não podem comparar-se com os de março e abril, como os média fazem todos os dias, pela simples razão de que hoje a realização de um número muito maior de testes deteta muito mais infetados assintomáticos do que antes, pelo que os números do pico da pandemia estavam seguramente muito subestimados. 

É essa, aliás, a principal razão por que hoje há muito menos internados e menos óbitos proporcionalmente aos infetados.

Adenda
Um leitor objeta, porém, que os números estão a crescer e que se não houver cuidado, uma segunda vaga pode ser uma relidade próxima. Tem razão.

White House 2020 (2): Punir a indecência política

Duas sondagens de hoje nos Estados Unidos mostram que Biden alargou o avanço sobre Trump depois do lamentável debate entre ambos. Elas mostram um record na diferença entre os dois candidatos desde o início, uma com 10 pontos percentuais e outra com 14 pontos. Um dos dados mais significativos diz respeito aos idosos, grupo em que Trump ganhou há quatro anos com 7pp de avanço e onde agora Biden lidera com 27pp! 

Este resultado mostra que felizmente nos Estados Unidos a indecência política ainda não deixou de ser punida pelos eleitores e reforça as possibilidades de Biden vir a ser o próximo Presidente dos Estados Unidos, devolvendo a seriedade política à Casa Branca e aos Estados Unidos. Espero obviamente que Trump venha a ser vencido nas urnas pelos cidadãos americanos e não pela COVID!

Adenda 
Proposta de um amigo meu para uma divisa anti-Trump: Let's Make America Decent Again!

Adenda 2
Um leitor observa que se Portugal participasse nas eleições presidenciais norte-americanas, Trump perdia aqui por 90% a 10% e que ninguém o apoia fora do Chega e de alguns colunistas do Observador. Por minha parte, penso que, se não votamos, somos pelo menos interessados, dado o peso político dos EUA no mundo em geral e em Portugal em especial, pelo que ao menos devemos "torcer" para que Trump seja despedido a Casa Branca. A bem da decência política.

sábado, 3 de outubro de 2020

Um pouco mais de rigor sff (69): A "geringonça"

Há quem continue a usar a noção de "Geringonça" para designar um eventual acordo de governo duradouro do PS com os partidos à sua esquerda, ou seja, com o BE, ou o PCP, ou ambos. 
No entanto, eu penso que o principal motivo para essa designação de "governo esquisito" ou "fora do normal" em 2015 era o facto de a aliança entre os três partidos ter visado afastar o Governo do partido (e coligação) que tinha ganhado as eleições (PSD+CDS), fazendo aprovar pela primeira vez na nossa história constitucional e parlamentar um governo minoritário do segundo maior partido parlamentar (o PS) e que, portanto, só se sustinha por ter o apoio dos partidos da Geringonça. 
Tal não é o caso agora, sendo o governo do PS apenas mais um "normal" governo minoritário do partido que ganhou as eleições sem maioria absoluta, solução com vários precedentes desde 1976. De facto, são nada menos do que cinco os governos desse tipo, antes do ataul (1976, 1985, 1995, 1999, 2009), sendo quatro deles do PS (agora cinco), que é assim o campeão dos governos minoritários. Por conseguinte, julgo ser de abandonar a noção de "geringonça", por deixar entender erradamente que se trataria de repetir a solução de 2015-19.

Adenda
Parecendo evidente que o PCP não está agora disponível para nenhum acordo de apoio ao governo - basta ver as suas propostas propositadamente inviáveis -, a hipótese de um acordo fica limitada ao BE (o que, aliás, não facilita a sua conclusão, visto que os bloquistas tenderão a ser mais exigentes, para não serem acusados pelo PCP de "cedências à direita"). Sendo assim, mais uma razão para deixar de utilizar a noção de "geringonça". Falar em "meia geringonça" faz ainda menos sentido...

Gostaria de ter escrito (26): O caso do Professor Doutor Aguilar

Sobre o escandaloso caso do Professor Aguilar, que espuma ódio antifeminista nos seus escritos académicos (?), merece ser lido este texto da jornalista Fernanda Câncio, no Diário de Notícias (reservado a assinantes). Um excerto:

No país em que se assiste a um cortejo de gente a bramar contra uma disciplina de Cidadania na escola, alegando "objeção de consciência" contra o ensino da igualdade de género e da liberdade de orientação sexual e de identidade de género, no país em que há gente a acreditar que dizer a crianças que não estão condenadas a seguir papéis tradicionais de género é um crime, um professor pode portanto apresentar as feministas como criminosas e defender a inferioridade e a submissão das mulheres numa revista da Faculdade de Direito pública e nada daí resultar.  

Por que não haveria então um engenheiro de apresentar no congresso de um partido de extrema-direita, e vê-la aceite para discussão, uma moção para mutilar mulheres que abortam? Porque não há de esse partido querer submeter no parlamento uma proposta de revisão constitucional que prevê, à moda dos talibãs, a mutilação como pena de crimes?

Subscrevo!

Adenda

A diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa veio publicamente condenar as ideias de Aguilar como "xenófobas" e "misóginas". É de saudar esta condenação pública. Mas o mais grave está em que, sabe-se agora, o dito Professor as expendeu repetidamente no seu ensino e nos seus escritos académicos antes de terem vindo a público. O "corporativismo académico" não pode coonestar situações desta gravidade.