quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Praça Schuman (11): Problemático e inoportuno

1. Parece estar iminente o anúncio da conclusão de um acordo de investimento direto estrangeiro entre a UE e a China, em negociação há vários anos.

Impõe-se, de facto, abrir a economia chinesa ao IDE europeu e garantir os direitos dos investidores europeus, corrigindo a assimetria existente (já que o investimento direto chinês na União encontra poucos obstáculos, como mostra o caso de Portugal).  Resta saber, porém, se o acordo está à altura das necessidades e se este é o momento politicamente oportuno para o anunciar.

2. Por um lado, as informações disponíveis não são concludentes quanto à substância dos ganhos obtidos pela União, em termos de "market access" e de solução de litígios sobre violação dos direitos dos investidores europeus na China. 

Por outro lado, é de questionar a oportunidade de anúncio deste acordo nas vésperas da tomada de posse do Presidente Biden nos Estados Unidos, sabendo-se que as falhas da China nesta campo (desproteção da propriedade intelectual, ajudas de Estado, privilégios das empresas estatais, preferências na contratação pública, etc.) só podem ser combatidas numa ação coordenada entre a União e os EUA. 

Anunciar neste momento um acordo com a China nesta área é dar um trunfo a Pequim contra Washington.

No bicentenário da Revolução Liberal (25): A Revolução e a Contrarrevolução em Braga

A JN HISTÓRIA nº 29 (novembro/dezembro) publica mais um artigo da já extensa série de textos da minha coautoria com o Professor José Domingues sobre a Revolução Liberal, desta vez sobre "A Revolução Liberal (e a contrarrevolução) em Braga".

Com base em fontes até agora inéditas, mostramos que, se a cidade foi essencial na organização e no apoio militar à Revolução do Porto, tanto no controlo do Minho como de Trás-os-Montes, já o apoio civil e institucional foi tardio e longe de entusiástico. Em contrapartida, quando a contrarrevolução chegou em 1823, Braga assinalou prontamente a sua adesão através de uma insólita e radical iniciativa, que foi a de convocar todos os cidadãos que tinham votado nas eleições das Cortes Constituintes de 1820 e das Cortes ordinárias de 1822, para revogarem individualmente o ato eleitoral!

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Free and fair trade (18): Uma falha corrigida

1.  Como se esperava, o acordo comercial entre a UE e o Reino Unido, concluído in extremis, mantém o comércio de produtos entre ambas as economias (incluindo indústria, agricultura e pescas) isento de tarifas aduaneiras e de restrições quantitativas, como antes (mas agora sujeitos a controlos fronteiriços).

Todavia, o que há de inovador no acordo não é a sua amplitude pouco ambiciosa (que tem pouco cobertura quanto aos serviços), mas sim aquilo que se veio a designar nas negociações como level playing field, ou seja, a proibição de as partes degradarem os seus padrões laborais e ambientais e de recorrerem a ajudas de Estado para aumentarem artificialmente a sua competitividade recíproca nas trocas comerciais entre eles.

Nunca se tinha ido tão longe nesta preocupação. Como mostrei anteriormente, Londres não poderia gozar de melhores condições de acesso ao mercado interno da União depois de sair do que antes.

2. Note-se, no entanto, que desde há duas décadas, os acordos comerciais da União já incorporavam uma cláusula laboral e ambiental, com o mesmo objetivo. A diferença estava em que até agora essas cláususlas eram desprovidas de mecanismos de enforcement, pelo que a sua violação não era suscetível de sanção, nomeadamente através da aplicação de tarifas aduaneiras compensatórias ou retaliatórias.

Há muito que eu criticava esta falha da política de comércio externo da União, designadamente no meu livro de 2014 sobre o assunto (capa em epígrafe). Apraz-me verificar que, finalmente, essa falha foi corrigida, sendo de esperar que a solução encontrada passe a ser uma regra em todos os futuros acordos comerciais da União.

Assim vai a política: Hegemonia socialista?

1. Esta sondagem eleitoral, da responsabilidade do Observador (acesso reservado a assinantes), confirma que as coisas continuam a correr politicamente bem ao PS, por mérito próprio na gestão da pandemia, demérito alheio (nomeadamente do BE e do PSD) e muita ajuda da UE (bazooka financeira, vacinas, acordo sobre o Brexit).

A próxima passagem tranquila das eleições presidenciais (de que deliberadamente se alheou oficialmente) e da presidência do Conselho da União (cujos principais dossiês foram resolvidos pela presidência alemã), assim como a perspectiva de controlo da pandemia antes do verão e da concomitante retoma económica - tudo aponta, salvo algum imprevisto acidente, para um bom ano político para António Costa.

A ideia de um "fim de ciclo político", que ainda há poucas semanas entretinha alguns comentadores precipitados, releva de excesso de imaginação política.

2. Em contrapartida as coisas não correm de feição para o PSD nem para a direita no seu conjunto.  

Com este resultados, as direitas somadas teriam menos deputados do que o PS sozinho (dado o efeito da fragmentação da votação por quatro partidos) e muito menos do que as esquerdas juntas. Ou seja, continuam muito longe do poder.

Ora, sem perspectiva de mudança do clima político a nível nacional e sem apresentar uma alternativa de governo credível (que Rio parece incapaz de formular), as eleições autárquicas do próximo ano podem constituir mais um sério revés para o PSD.

3. Outra "ideia feita" que as recentes sondagens contrariam é a da imparável tendência para a fragmentação da representação parlamentar e para uma maior dificuldade de reformas de fundo, por falta de maioria de 2/3 por parte do PS e do PSD.

Com efeito, segundo esta sondagem, os dois partidos somam quase 70% dos votos, muito acima do 2/3 de deputados necessários para a revisão constitucional e outras reformas políticas que carecem dessa maioria (como a reforma da lei eleitoral), sem poder de veto de nenhum outro partido. 

Torna-se evidente que só não há tais reformas (e outras) porque o PS as não quer, por causa da sua aliança política com o PCP, reconhecendo-lhe um implícito poder de veto político.

No bicentenário da Revolução Liberal (24): A Revolução em Coimbra


Apresentação pública do livro 'Há Constituição em Coimbra' - No bicentenário da Revolução Liberal, ontem, na Câmara Municipal de Coimbra, ladeado por Carina Gomes, vereadora da Cultura, e Manuel Machado, Presidente.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Não dá para entender (26): Regulador público contra o interesse público?

O debate público em curso sobre as redes de 5G, entre a ANACOM e os operadores instalados, tem rodado à volta da legalidade ou ilegalidade dos privilégios conferidos aos "novos entrantes" no concurso aberto pela entidade reguladora, para facilitar o aumento de operadores no mercado, a fim de alegadamente proporcionar mais concorrência entre eles. 

Ora, este texto sobre as novas redes de 5G mostra que não se trata somente de uma questão de legalidade. De facto, depois de mostrar que «a existência de 4 operadores vai conduzir a uma menor qualidade de experiência dos utilizadores», o autor remata: 

«Como se vê, a existência de 3 ou 4 operadores não é exclusivamente uma questão de concorrência. Se analisarmos os 9 países europeus com população da ordem de grandeza de Portugal (entre 7 e 12 milhões de habitantes), apenas 2 (22%) possuem 4 operadores (todos os outros possuem 3). Adicionalmente, países como Estados Unidos da América, Japão e Alemanha, com mais de 80 milhões de habitantes, possuem 3 operadores.
Em conclusão, relativamente ao número de operadores em 5G, “technology matters”.»

Adenda
Como declaração de interesses, é público que dei a um dos operadores um parecer no sentido da ilegalidade/inconstitucionalidade do Regulamento da ANACOM. É bom saber que ele não padece somente dessa mancha.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Não com os meus impostos (4): Pôr os contribuintes a pagar a ADSE, não!

1. É claro que os beneficiários da ADSE, que financiam integralmente esse subsistema de saúde - e assim deve ser -, têm razão quando consideram injusto terem de pagar pelas isenções de quotização dos aposentados com pensões mais baixas, que nada justifica. 

A ADSE não é um direito, a par do SNS; é uma prerrogativa facultativa que deve ser paga por quem dela beneficia, como se impõe. Os aposentados do setor privado, se quiserem ter um seguro de saúde, têm de o pagar, não se vendo razão nenhuma para seja diferente para os aposentados da função pública. No caso da ADSE, aliás, o cálculo "prémio" do seguro até os favorece, pois é uma percentagem do rendimento, sendo, portanto, baixo para quem tem menor rendimento.

2.  O que não faz sentido é exigir do Governo que passe a ser o Estado, ou seja, os contribuintes em geral, a financiar essas isenções da ADSE dos pensionistas públicos, quando todos já têm de pagar o SNS, único sistema de que beneficiam. Espero que o Governo responda com um rotundo "não". De resto, com  o novo regime, o número de isentos até vai baixar. 

E se os beneficiários-pagadores (entre os quais me conto...) não quiserem continuar a suportar ess encargo adicional, não são obrigados a permanecer. Há privilégios que têm ónus associados. Duvido que alguém saia por causa disso!

É evidente que, se fossem todos os contribuintes a pagar, seria muito mais leve suportar esse encargo, do que sendo somente os beneficiários da ADSE a fazê-lo. Mas seria socialmente iníquo pôr a cargo de todos o pagamento dos privilégios adicionais da função pública.  Com os meus impostos, não.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

No bicentenário da Revolução Liberal (22): A contribuição de Coimbra


1. Acaba de ser publicado este livro da minha coautoria com José Domingues sobre a  participação de Coimbra na Revolução Liberal, há 200 anos, desde a entrada das forças liberais na cidade em finais de agosto de 1820, festivamente acolhidas, até às eleições na cidade para as Cortes Constituintes, em dezembro desse ano, marcadas pela vigorosa luta da academia de Coimbra pelo direito de voto dos estudantes, liderada por Almeida Garret, então finalista de Leis.

Trata-se de um relato de páginas brilhantes nos anais da Revolução Liberal e da história da cidade de Coimbra, até agora pouco conhecidas, baseado em documentos em grande parte inéditos.

O curioso título do livro - "Há Constituição em Coimbra" - provém de uma informação "em código" que um partidário do antigo regime comunicou para Lisboa sobre a adesão de Coimbra à Revolução, utilizando para tal o seu principal objetivo, que era a aprovação de uma Constituição.

2. O livro, numa cuidada edição da Câmara Municipal de Coimbra - que colocou todo o empenho nesta iniciativa -, encontra-se disponível para venda ao público em três locais culturais municipais: na Bilblioteca Municipal, na Casa da Escrita e no Museu do Chiado. 

Da nossa parte, como autores (falando em nome dos dois), apraz-nos termos tido esta oportunidade de investigar estes episódios gratificantes da história conimbricense, que oferecemos graciosamente ao Município. Supomos que é a única monografia publicada neste ano do bicentenário sobre as vicissitudes da Revolução Liberal numa das cidades em que ela teve maior expressão (depois do Porto e antes de Lisboa). 

Infelizmente, o atual surto da pandemia inviabilizou a sessão pública de lançamento que tínhamos programado com aparticipação de um reputado historiador da Revolução Liberal. Ficará para ocasião mais oportuna. 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Presidenciais 2021 (6): "Ficção presidencial"

1. Concordo com esta análise de M. Vilaverde Cabral sobre a previsível abstenção elevada nas eleições presidenciais, que vão ser afetadas por três razões: (i) a pandemia, que afasta os cidadãos das eleições e não permite uma campanha eleitoral normal; (ii) o facto de a eleição ter vencedor antecipado, por larga margem; (iii) a falta de empenho dos dois principais partidos, visto que o PS não tem candidato próprio e o PSD não apoia MRS entusiasticamente.

Portanto, estas eleições têm tudo para serem pouco mobilizadoras, salvo para a disputa do segundo lugar entre setores minoritários do eleitorado.

2. Mas não acompanho MVC quanto à alegada culpa daquilo que ele designa por "ficção presidencial", ou seja, o argumento de que a eleição direta não se justifica face aos poucos poderes políticos do PR.

Na verdade, continuo a entender que no nosso sistema constitucional, apesar da estrita separação de poderes entre PR e Governo, há justificação para a eleição direta do Presidente, dada a importante função que lhe cabe de supervisão do sistema político e de contenção de abusos das maiorias parlamentares, designadamente quanto ao poder de veto legislativo, a partilha do poder de nomeação de importantes titulares de cargos públicos, a convocação de referendos, a declaração do estado-de-sítio e do estado-de-emergência e, em última instância, a dissolução parlamentar. Não vejo como é que estes poderes independentes poderiam ser legitimamente exercidos sem que o PR tivesse legitimidade eleitoral direta.

De resto, não faltam países com sistemas de governo de tipo genuinamente parlamentar em que o PR não dispõe de tais poderes mas é eleito diretamente (Irlanda, Áustria, Finlândia, etc.). 

3. A ficção política que há muito existe entre nós, e demora a desaparecer (desde 1982!), é a ficção semipresidencialista quanto ao sistema de governo, pois, de facto, entre nós: (i)  o PR não governa, nem cogoverna, nem compartilha da função governativa; (ii) o órgão de condução da política nacional é o Governo e só ele; (iii) o Governo, cuja legitimidade política decorre das eleições parlamentares (via AR), não depende da confiança nem de tutela política do PR.

Neste sentido, ao contrário do que sucede nos regimes presidencialistas ou semipresidencialistas (em sentido próprio), as eleições presidenciais entre nós não afetam o Governo nem a política governamental. Mas, dependendo das circunstâncias e do Presdente eleito, elas podem alterar, e muito, não somente o quadro político em que os governos em funções se movem e conduzem as suas políticas, mas também a sua própria subsistência política (caso de dissolução parlamentar). 

É por isso que as eleições presidenciais não podem nem devem ser desvalorizadas.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Pandemia (44): Confusão legal

1. Inovando em relação às anteriores edições, o projeto de decreto do Presidente da República para a próxima renovação do estado de emergência, a partir de 24 de dezembro, prevê expressamente a punição como crime de desobediência para quem não cumprir as suas determinações.

O decreto remete explicitamente para o art. 7º da Lei do Estado de Sitio e do Estado de Emergência (Lei nº 44/86, na sua atual redação), que diz examente isto:«A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência»

De resto, como o decreto presidencial não é uma lei, não poderia criminalizar uma conduta que não estivesse já prevista e punida por lei.

2. A questão é saber se esse preceito legal, na sua expressão literal,  altera o definição do crime de desobediência, tal como consta do Código Penal (art. 348º), segundo o qual, para haver tal crime, não basta infringir uma obrigação legal ou regulamentar (desobediência à norma), sendo necessário haver o incumprimento de uma ordem concreta de uma autoridade legítima.

Ora, não pode deixar de considerar-se uma violência desproprocionada punir como crime e com pena de prisão a simples violação das obrigações decorrentes do estado de emergência (por exemplo, quanto a uso de máscara, limites à circulação ou horários de estabelecimentos), sem ter havido desobediência a uma cominação de autoridade que tenha ordenado a cessação da infração, como estabelece o Código Penal.

A violação de restrições legais de índole administrativa devem ser punidas como contraordenações, e não como crimes.

3. Por conseguinte, é de concluir que a nova cláusula do decreto presidencial não veio acrescentar nada, nem o pretendeu, pois não era preciso invocar expressamente a Lei nº 44/86, para ela se aplicar à violação das obrigações decorrentes do estado de emergência, sempre que declarado. 

Em contrapartida, porém, esse preceito legal suscitaria um sério problema de constitucionalidade, se fosse entendido à letra, no sentido de punir como crime de desobediência o simples incumprimento das normas do estado de emergência, sem desobediência à ordem concreta de uma autoridade policial, como exige o Código Penal.

Praça Schuman (10): Pôr os gigantes tecnológicos na ordem

1. Os grandes operadores digitais suscitam duas questões cruciais: (i) o descontrolo dos conteúdos disponibilizados (violação de direitos de autor, veiculação de terrorismo, fake news, etc.) e (ii) o abuso de posição dominante contra concorrentes e utilizadores, pondo em causa a concorrência.

É evidente que, tratando-se de operadores globais, dotados de enorme poder económico, nenhum país pode ter a ilusão de enfrentar sozinho tais problemas. Felizmente, há a União Europeia.

Ora, a Comissão Europeia acaba de avançar com dois novos instrumentos legislativos, destinados a atualizar e reforçar os mecanismos existentes, que se têm revelado insuficientes: o Digital Services Act (DSA), ou lei dos serviços digitais, e o Digital Markets Act (DMA), ou lei dos mercados digitais. Trata-se de propostas vigorosas, da responsabilidade conjunta de dois dos comissários mais asserivos do atual executivo da União, Verstager e Breton.

Os dois comissários explicam AQUI o essencial do novo regime proposto.

2.  Agora espera-se que as propostas venham a ser prontamente aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho e que os parlamentos nacionais - que podem pronunciar-se sobre todas as iniciativas legislativas da União - não fiquem de fora desta batalha pelos direitos individuais e a veracidade da informação online e pela concorrência nos serviços digitais no mercado interno da União. 

É preciso pôr os gigantes digitais em linha com os princípios do Estado de direito e a ordem económica da União. Já se faz tarde!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Barbárie tauromáquica (11): A "cultura" da tortura

Subscrevo inteiramente este texto sobre o absurdo de equacionar a proteção das touradas como "património cultural imaterial da humanidade" pela UNESCO.

No dia em que um Governo socialista, por oportunismo "lisboacêntrico", descesse à ignomínia de patrocinar ou apoiar uma tal candidatura, garanto que aí terminaria a minha confiança na integridade de uma política de esquerda. E se, por absurdo, a UNESCO caísse na vileza de considerar como património cultural da humanidade a sádica tortura sangrenta de animais indefesos para gáudio público, então eu concluiria que o mundo tinha ensandecido!

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O que o Presidente não deve fazer (23): Uma "regra" cheia de buracos

1. Têm toda a razão todos os que entendem - por exemplo, AQUI e AQUI - que o PR extrapolou os seus poderes constitucionais no caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Desta vez, foi demasiado ostensivo.

Fê-lo quando se pronunciou publicamente sobre o destino do Serviço, que é obviamente uma exclusiva competência governamental (como o próprio MRS veio reconhecer, depois da ingerência consumada...); voltou a fazê-lo quando recebeu o comandante da PSP e lhe deu palco público para defesa da extinção do Serviço, tanto mais que os dirigentes dos corpos adminstrativos só respondem perante o Governo e é este que responde pela Administração Pública perante o PR, sendo descabido serem chamados diretamente a Belém. 

Estamos, portanto, perante uma ação do PR caraterizadamente fora do quadro dos seus poderes constitucionais.

2. O Primeiro-Ministro veio declarar que o PR «em regra» respeita «escrupulosamente» a separação de poderes. Mas é manifestamente uma "regra" com demasiadas exceções: só nesta série sobre "O que o Presidente não deve fazer", aqui no Causa Nossa, já conto nada menos de 23 casos, ao longo destes cinco anos -, sem ter sido exaustivo.

A verdade é que, dada a sua repetição, não se trata já de exceções ocasionais e acidentais, mas sim de um padrão de conduta presidencial, forçando os seus poderes constitucionais, em favor de uma espécie de tutela política sobre o Governo, o que não pode deixar de ser motivo de funda preocupação. É a autonomia constitucional do Governo na condução das suas políticas e na direção da Administração Pública, sob exclusiva responsabilidade política perante a AR, que é posta em causa.

3. Só é estranho que seja o PS a mostrar uma inesperada complacência política perante esta tentação presidencialista, uma vez que se trata do partido que tradicionalmente mais zeloso tem sido numa estrita delimitação dos poderes presidenciais e na autonomia política do Governo, desde o confronto de Mário Soares com o Presidente Eanes no início do regime constitucional de 1976, que culminou na revisão constitucional de 1982 e no fim da conflituosa responsabilidade política dos governos perante o PR. 

Ora, nem tudo pode ser justificado pela vulnerablidade política dos governos minoritários e pelo apoio oficioso de conveniência ao candidato presidencial incumbente...

Adenda
Um leitor objeta que o PR tem sido o "amparo" do Governo do PS e que, ao funcionar como "tutor do Governo" (citando-me), ele compartilha também a responsabilidade política pela ação governamental, dificultanto a tarefa da oposição. Compreendo o argumento, observando, porém, que o facto de o PR ser o "supervisor" do sistema político, como tenho defendido, não o autoriza a substituir-se à oposição e a suprir a inépcia e a desorientação desta, como se tem visto na conduta errática do PSD. O PR tem o dever constitucional de permitir ao Governo governar e à oposição opor-se. Mas, nem "amparo" do Governo nem suplente da oposição.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A mão visível (6): O seu a seu dono

1. A contestação de dois regulamentos de autoridades reguladoras independentes - o Regulamento da ANACOM sobre o concurso de redes de 5G, contestado pelos operadores, e o Regulamento da ERS (Entidade Reguladora da Saúde) sobre a transferência de doentes entre unidades de saúde, contestado pelo próprio Governo - veio dar expressão pública a um conflito, até agora latente, entre a competência política do Governo e a competência regulamentar das autoridades reguladoras independentes (ARI).

A questão subjacente é a de saber se a atuação destas excede a esfera das suas atribuições legais. 

2. No "Estado regulador" contemporâneo, em que a intervenção económica do Estado se centra na correção das "falhas de mercado" e na defesa da concorrência, por via legislativa e administrativa, a execução dessas tarefas e a aplicação das correspondentes medidas não cabem em geral ao Governo e à administração direta ou indireta do Estado dependente daquele, mas sim a autoridades reguladoras independentes, que não respondem perante o Governo e que não estão sujeitas nem às suas instruções ou orientações nem à sua tutela ou controlo. Isso é assim nos Estados Unidos desde o princípio do Estado regulador, há quase um século (anos 30 do século passado) e posteriormente na Europa (desde os anos 80).

O problema que daí resulta é o de saber quais são as fronteiras entre o poder legislativ0 e a função política do Governo, por um lado, e os poderes das autoridades reguladoras independentes, por outro lado.

3.  Se há coisas que a independência das autoridades independentes não pode pôr em causa, elas são, por um lado, o princípio da legalidade inerente ao Estado de direito e, por outro lado,  a reserva governamental da função política, inerente à responsabilidade democrática.  Constitucionalmente, é tão importante a separação entre o poder legislativo e o poder executivo, como a separação, dentro do último, entre a função política e a função administrativa. Ora, as autoridades reguladoras independentes só podem ter funções administrativas, de índole essencialmente técnica, estando, portanto, subordinadas ao poder legislativo e à função política do Governo.

Uma vez que as autoridades reguladoras independentes não gozam de legitimidade democrática própria e não são responsáveis politicamente, nem perante o Governo nem perante o Parlamento, torna-se óbvio que elas não podem tomar medidas que dependem do legislador ou da decisão política governamental.

Por mais amplas que sejam as cláusulas da lei ou dos seus estatutos, estes preceitos têm de ser interpretados em conformidade com a Constituição. Numa democracia representativa, instituções "não maioritárias" têm de ser politicamente neutras na sua ação, não podendo tomar decisões que envolvam opções de política económica ou outra.

4. Por conseguinte, a autonomia regulamentar das autoridades reguladoras não pode invadir, antes tem de respeitar, a reserva de lei do legislador democrático e a reserva de decisão política do governo democrático, que respondem ambos, direta ou indiretamente, perante a coletividade política.

Nesse quadro, salvo delegação ou autorização expressa, as ARI não podem criar ou alterar direitos e obrigações dos particulares nem da Administração (que caem na esfera do legislador) nem podem versar sobre a organização dos respetivos mercados (que cai na esfera da política económica sectorial), pelo que o seu poder regulamentar se limita a dispor sobre o exercício dos seus próprios poderes de supervisão e de sanção administrativa que a lei lhes confere e sobre os procedimentos correspondentes.

Fora disso, salvo credencial legislativa específica, as autoridades reguladoras atuam ultra vires, invadindo ou infringindo a esfera de atribuições do legislador e/ou do Governo. É o que me parece ter sucedido nos dois casos acima referidos.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Não concordo (18): O Chega agradece

 1. Onde as coisas já vão na obsessão sobre o Chega! 

Começou pela hipótese de proibi-lo; depois, veio a ideia de que nem sequer devia ter sido legalizado; por último, há duas candidatas presidenciais que asseguram que não dariam posse a um governo que o integrasse (ou fosse formalmente apoiado por ele), embora sem invocar a base constitucional para tal.

Para além de considerar estas posições politicamente precipitadas e constitucionalmente assaz problemáticas, entendo que elas pouco contribuem para travar a expressão eleitoral do Chega e impedir a sua possível entrada numa eventual futura coligação governamental de direita, se a direita vier a ser maioritária (o que não está no horizonte próximo) e o PSD for por aí. Pelo contrário, esta obsessão política com o Chega só lhe traz publicidade, alimentando a sua agenda populista. Ventura agradece.

2. É certo que uma democracia liberal é um compromisso entre a democracia e o liberalismo, implicando limitações da democracia em nome da liberdade (garantia de direitos fundamentais contra as maiorias políticas) e limitações à liberdade política em nome da democracia (proibição de organizações de tipo militar ou que tenham por objetivo a destruição do regime democrático). Todavia, ressalvado o caso extremo de salvação da democracia, o princípio básico de uma democacia liberal é a liberdade política.

O imprescindivel combate à extrema-direita populista tem de ser travado no campo político, quer na defesa dos valores da dignidade humana, do Estado de direito e do Estado social, quer na resposta às inquitações e queixas sociais que alimentam a agenda populista contra a o Estado e a "classe política".  Com a ressalva acima referida, as "medidas de segurança" proibitivas de organizações políticas escondem o défice de resposta política e são uma reação contraproducente.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Livres & Iguais (54): Comemorando o dia internacional dos direitos humanos

Apraz-me participar amanhã nesta oportuna iniciativa da organização de mulheres do PS na comemoração do dia internacional dos direitos humanos (adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1848).

Este ano, tendo em conta o impacto negativo da pandemia sobre os direitos humanos, o lema das Naçoes Unidas é "Stand up for Human rights"!

No caso europeu, cumpre lembrar este ano também o 70º aniversário da Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950) e o 20º aniversário da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), que ocorreram recentemeente.

O que devemos a estes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, nas suas várias vertentes, desde a liberdade individual até ao direito à saúde?

Brexit (3): No limite do prazo, a discórdia UE-UK persiste

[Origem da foto AQUI]

1. A três semanas do fim do prazo para a saída definitiva do Reino Unido da União Europeia, deixando de ter acesso livre ao seu mercado interno, persistem as divergências que têm impedido um acordo comercial entre ambos, para vigorar a partir de 1 de janeiro.

Entre as divergências remanescentes avulta a recusa do RU em dar garantias de manter um level playing field concorrencial entre as duas economias, especialmente quanto à proibição de ajudas de Estado, que favorecem ilegitimamente a competitividade comercial externa.

Além de invocar a sua soberania legislativa, Londres argumenta que a União não impôs tais exigências, por exemplo, ao Canadá. Ora, este argumento não faz nenhum sentido, porque as situações não são comparáveis.

2. De facto:
         - o acordo comercial com o Canadá não eliminou integralmente as tarifas aduaneiras com a UE, ao contrário do que se pretende no acordo com o RU;
        - o Canadá está longe, pelo que as suas exportações de bens para a União8 ficam mais caras, por causa dos elevados custos de transporte, o que não sucede com o RU;
        - as empresas exportadoras britânicas já têm as suas densas redes de clientes em toda a União, o que não sucede com o Canadá;
        - por último, o comércio internacional assenta cada vez mais nos serviços (financeiros, transportes, telecomunicações, etc.), onde o RU já é excecionalmente competitivo.

Ora, o RU não pode beneficiar de melhores condições no comércio com a UE depois da saída da União do que antes, quando tinha de cumprir as regras sobre proteção da concorrência no mercado interno da União contra ajudas de Estado ilícitas. 

3. O mesmo vale, pelas mesmas razões, para a garantia de padrões idênticos de proteção do do trabalhado e do e ambiente, impedindo o "dumping" laboral e ambiental. 

Por isso, a União tem toda a razão em (e a obrigação de) fazer do level playing field uma questão sine qua non.

Adenda

Declaração da chancelerina Merkel no Parlamento alemão: «We are starting now from a similar, harmonized legal system, but over the years these legal systems will develop apart in the fields of environmental policy, labor policy or health policy ... And we can't just say: We don't talk about that. Instead, we need a level playing field not only for today but also for tomorrow and the time ahead, and for that we need an agreement on how either side can react if the other changes the legal system,». Nem mais!

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Concordo (17): O imbróglio da TAP

[Fonte da imagem AQUI]

1. Concordo com a decisão do Governo de submeter o plano de recuperação da TAP, negociado com a UE,  a ratificação parlamentar. Se a Constituição não permite à AR avocar decisões de competência governamental, já nada impede que o Governo lhas submeta, sobretudo quando, como é o caso, a decisão vai ter um grande impacto duradouro sobre a economia e as finanças nacionais, que vai perdurar muito para além do mandato do atual Governo.

Importa, por isso, que todos os partidos assumam posição sobre o destino da TAP. A alternativa é: pagar uma fatura elevada pela sua reestruturação (e forte "emagrecimento"), confiando que o plano seja bem-sucedido, ou determinar o encerramento da transportadora, por inviabilidade.

2.  Sempre fui muito crítico do controlo político e da gestão empresarial da TAP, assim como da reversão da privatização em 2016 e do regresso do controlo do Estado em 2019. Entendo que a TAP tem custado demasiado dinheiro aos contribuintes nas últimas décadas, pagando a interferência política, a gestão ineficiente da empresa e os privilégios sindicais. E duvido que uma companhia aérea de gestão pública tenha condições de sobrevivência no ambiente concorrencial da UE e da aviação mundial.

Mas também compreendo a falta que pode fazer uma companhia aérea nacional sediada em Lisboa, capaz de assegurar ligações aéreas satisfatórias dentro do território nacional e com a Europa, os PALOP, o Brasil e demais países de forte emigração portuguesa.

Complicada equação política, portanto, aquela que o parlamento vai ser chamado a resolver e que vai pôr à prova todos os partidos da oposição.

3. A equação vai ser especialmente incómoda para a extrema-esquerda parlamentar (BE e PCP), confrontada com o dilema entre, por um lado, seguir o seu nacionalismo económico, e salvar a TAP, ou, por outro lado, ceder à tentação de rejeitar a "ditadura da União" e de recusar despedimentos e redução de regalias laborais (o que consideram inadmisssível em empresas públicas), mesmo que a alternativa seja pior, isto é, o encerramento da empresa.

Para o PSD (e demais direita), o desafio do Governo vem na pior altura, obrigando-o a optar entre apoiar a decisão governamental, em nome do "superior interesse" do País, ou em "tirar o tapete" ao Governo, para lhe criar dificuldades, como fez recentemente na recusa de injeção de capital no Novo Banco, via Fundo de Resolução.

Tudo somado, é de admitir que, por uma razão ou por outra, todos se recusem a aceitar o desafio governamental, através da abstenção, no meio de forte crítica da metodologia e da "inépcia governamental" na condução do dosssiê. E depois, é o habitual: o Governo dirá que a sua decisão foi apoiada pelo parlamento (com os votos do PS...) e as oposições dirão que a não endossaram!...

Adenda

Contrariando a vontade do Ministro da pasta, Pedro Nuno Santos, o Governo descartou a hipótese de submeter o plano de reestruturação a ratificação parlamentar. Terá pesado a consideração de que isso poderia criar problemas políticos indesejáveis. É evidente que, para além das reservas  da oposição em geral, o plano só podia suscitar a oposicão do PCP (por causa do seu custo social e por ser uma "imposição" da UE), o qual constitui o principal interlocutor político do Governo na atual legislatura, como se mostrou na votação do orçamento. 

Adenda 2

É de estranhar que o PSD, não se querendo comprometer nesse assunto, tenha invocado a "separação de poderes" como obstáculo à ratificação parlamentar do plano governamental (que seria feita a pedido do Governo), quando ainda há pouco, na votação do orçamento, esse partido votou airosamente várias pr0postas que claramente configuram decisões políticas, do foro governamental, alheias ao orçamento e à competência parlamentar, como mostrei AQUI e AQUI.

Bloquices (15): Somos todos social-democratas

A candidata presidencial do Bloco de Esquerda, Marisa Matias, também se considera "social-democrata", embora de uma estirpe diferente da social-democracia de Ana Gomes e de Marcelo Rebelo de Sousa.

Nada haveria a criticar nesta invenção de uma inopinada estirpe esquerdista de social-democracia, considerando que também já existe uma exótica estirpe de direita (PSD). O problema, porém, está em que a noção de social-democracia está proscrita na ideologia do Bloco (onde a troca do retrato de Rosa Luxemburgo pelo de Edouard Bernstein não é concebível), o qual, tal como o PCP, critica rotundamente as opções "social-democratas" do PS, em nome da "verdadeira esquerda". 

Por isso, apesar de se tratar obviamente de uma simples declaração de conveniência política em tempo eleitoral, Marisa Matias arrisca-se a ser confrontada internamente com um pedido de retratação, por grave "desvio de direita".

[revisto]

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Bloquices (14): A "doença infantil do comunismo"

1. Num curioso artigo do Público, intitulado Lénine e Nós, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, por vezes apontado, com alguma razão,  como "patrono intelectual" do Bloco de Esquerda, vem invocar a obra do revolucionário russo de há cem anos, "Esquerdismo, doença infantil do comunismo", para censurar severamente a recente posição do Bloco de Esquerda contra o orçamento, elogiando em contrapartida a atitude e a capacidade de negociação do PCP, que conseguiu importantes ganhos políticos a troco da sua abstenção.

BSS absteve-se, aliás, de sublinhar que o Bloco manteve caprichosamente o seu voto contra, mesmo depois de a sua principal reivindicação - a rejeição de injeção de dinheiro no Novo Banco através do Fundo de Resolução  - ter sido aprovada com o voto oportunista e irresponsável do PSD...

2. É, porém, de duvidar se a amistosa admoestação tutelar de BSS vai ter algum efeito na posição do Bloco em relação ao Governo. Não consta, de resto, que ao longo destes cem anos a lição de Lénine tenha servido para levar algum partido esquerdista a moderar a sua visceral hostilidade ideológica em relação à social-democracia e a adotar um módico de flexibilidade política tática.

Está-lhe "na massa do sangue", vindo de onde vem. A não ser que as sondagens de intenção de voto antecipem uma acentuada punição política, desde logo castigando a sua candidata presidencial em janeiro próximo, ou que o risco de disputar eleições antecipadas em posição vulnerável morigere o seu atávico dogmatismo...

Praça da República (41): Conspiração de silêncio

[Fonte da imagem AQUI]

1. Foi agora posta a nu pela investigação da Comissão Europeia o caso da violação generalizada das regras da União Europeia sobre ajudas de Estado na Zona Franca da Madeira, através da concessão ilícita das generosas deduções fiscais previstas na lei (5% de IRC!) a empresas tipo caixa postal, que não investem nem criam os postos de trabalho devidos na Madeira, distorcendo a concorrência e privando o Estado de recursos fiscais avultados. 

Mas o que este caso revela é uma escandalosa conspiração de silêncio política, por parte do parlamento regional da Madeira, do parlamento e do Governo da República e da Autoridade Tributária, que ignoraram dolosamente, sem quelquer investigação, as reiteradas denúncias fundamentadas de vários observadores, entre os quais é justo salientar Ana Gomes, enquanto eurodeputada. 

2. Infelizmente, segundo as regras da União, as empresas ilicitamente beneficiadas só vão ter de devolver as ajudas superiores a 200 000 euros, o que deixa de fora milhões de euros em ajudas ilegais. 

Resta saber o destino do reembolso das ajudas ilícitas. Formalmente, elas são devidas à Madeira, que goza de autonomia fiscal e orçamental. Mas é evidente que, ao conceder ajudas ilícitas para atrair empresas sem direito a elas, o Governo regional da Madeira privou o orçamento da República dos impostos dessas empresas, se tivessem permanecido no Continente. 

Por isso, o Governo da República deve exigir à Madeira indemização pelas receitas fiscais que deixou de receber, sob pena de benefício do infrator.

domingo, 6 de dezembro de 2020

Memórias acidentais (12): A Coimbra Editora

 


1. Quantas vezes entrei neste grandioso edifício da COIMBRA EDITORA, fundada em 1920, que publicou quase todos os meus livros, durante várias décadas, até ao encerramento da sua atividade editorial há alguns anos!

A primeira vez foi em 1977, junto com Joaquim Gomes Canotilho, para propormos a publicação da nossa Constituição Anotada, que a Livraria Almedina, a outra editora jurídica de Coimbra, tinha rejeitado, receosa de que a Constituição não durasse muito tempo e que o investimento se perdesse. Como se sabe, a obra tornou-se um clássico como comentário à CRP de 1976, atingindo a quarta edição (2007-2010).

A última vez que visitei a Coimbra Editora, muitos anos e muitos livros depois, foi para entregar o segundo volume da coleção "Obras de Vital Moreira", intitulado "Respublica" Europeia - Estudos de Direito Constitucional da União Europeia, publicado em 2015. Infelizmente, a coleção ficou por aí, pois a empresa entrou em dificuldades pouco depois, sendo definitvamente extinta, por decisão judicial de falência, já no corrente ano.

Assim findou, um século depois da sua fundação, um capítulo brilhante da história da edição jurídica (e não só) em Portugal. Era uma editora de referência. Basta consultar o acervo editado.

2. Parabéns à CRITICAL SOFTWARE, que adquiriu e vai requalificar e revitalizar este notável monumento do património industrial e cultural de Coimbra e do País (ver link de vídeo: https://www.linkedin.com/posts/miguelvalerio_facilitymanagement-projectmanagement-workplace-activity-6740694962448457728-htch )

Revendo este vídeo, recordo toda a geografia familiar do edifício: à entrada, de cada lado, o escritório e a livraria; atrás, as oficinas de impressão / encadernação e o armazém; no segundo andar, em galeria com vista para as oficinas, os locais de composição e paginação, guardando ainda, como relíquia, as estantes de composição em carateres de chumbo.
Penso que, tal como a Coimbra Editora, também a sua sede merece uma monografia histórica e arquitetónica. Desafio a Critical Software a encomendá-la.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Vontade popular (12): Quando "boas soluções" são inviáveis

 

1. No seu artigo do Expresso deste fim de semana (acesso reservado a assinantes), Miguel Sousa Tavares defende que o País deixou de ser governável através de governos minoritários (como confirmou o recente processo orçamental) e propõe a importação do sistema eleitoral grego, para proporcionar a eleição de parlamentos com maioria absoluta do partido vencedor das eleições.

Ora, ambos os traços mencionados do sistema eleitoral grego - "majoração" do partido mais votado com 50 deputados, além da sua quota, e "cláusula barreira" de 3% para um partido entrar no parlamento - são impraticáveis entre nós, pois são constucionalmente inviáveis (para além de eleitoralmente iníquos).

2. O meio mais simples de favorecer a obtenção de maiorias absolutas por parte do partido vencedor das eleições (PS ou PSD) - ou, pelo menos, de reduzir o número partidos para formar maiorias parlamentares - seria a divisão dos círculos eleitorais maiores (Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro), de modo que nenhum elegesse mais de 10 deputados.

Uma tal operação, constitucionalmente inatacável, atalharia a fragmentação parlamentar (já vamos em 10 partidos), favoreceria a lógica do "voto útil" num dos dois referidos partidos e permitiria maiorias absolutas com cerca de 40% dos votos. 

Essa solução poderia ser ajudada com a permissão de coligações eleitorais "virtuais" entre partidos, sem "fusão" eleitoral dos partidos coligados, o que poderia proporcionar as vantagens das coligações (concentração de votos e eleição de mais deputados) sem as dificuldades que a candidatura comum suscita (lista comum, programa comum, campanha eleitoral comum, perda de identidade dos partidos coligados).

Essa solução poderia facilitar a formação de blocos eleitorais à esquerda e à direita capazes de alcançar a maioria absoluta.

3. Em todo o caso, depois do fracasso da grande reforma eleitoral de 1998, abortada pelo PSD, não tem havido disponibilidade para qualquer revisão da lei eleitoral - que precisa de uma maioria de 2/3, ou seja, de um acordo entre o PS e o PSD.

Ora, ambos os partidos parecem menos interessados em reformar o sistema eleitoral e travar a perigosa fragmentação política do parlamento, do que em manter o statu quo e impedir o adversário de ter boas condições de governo, se ganhar as eleições. 

Assim, não vamos lá!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Laicidade (10): Quousque tandem?

1.  Como mostra a imagem junta, o Reitor da Universidade de Coimbra volta a desafiar o princípio da laicidade do Estado, convidando oficialmente a comunidade académica para uma missa de homenagem à "padroeira da Universidade".

Volto a protestar, como é meu direito e dever cívico.

Quando é que o Reitor da UC, 110 anos depois da República, percebe a simplicidade deste silogismo: a Universidade é do Estado - o Estado é laico - logo, a Universidade é laica? E quando é que aceita que a laicidade das entidades públicas implica não poderem celebrar missas nem participar em cerimónias religiosas, sendo oficialmente neutras em matéria religiosa?

2. É evidente que os crentes católicos entre a comunidade académica da UC - incluindo o Reitor, a título pessoal - têm todo o direito de celebrar como bem entenderem a padroeira, de organizar e frequentar as missas que quiserem e de convidar toda a gente. 

Mas quando é que percebem que as coisas mudaram desde 1290 e que a UC não é propriedade da Igreja Católica, nem lhes pertence mais do que aos restantes membros da comunidade académica, sejam crentes de outras religiões ou de nenhuma (como é o meu caso), e que não devem continuar a instrumentalizar a Universidade nem a Reitoria em prol da sua causa religiosa?

Adenda
Um leitor pergunta quem paga a missa, observando pertinentemente que seria ilegal o pagamento pela Universidade, o que daria lugar a responsabilidade financeira, por não ser atribuição das universidades públicas prestarem serviços religiosos.
ç
Adenda 2
Outro leitor interroga-se como é que, no século XXI, uma instituição científica adota como "padroeira" o símbolo do dogma religioso da "imaculada" fecundação de Maria pelo Espírito Santo?!  Importa, no entanto, esclarecer que o dogma da Imaculada Conceição, tardio e controverso na história da Igreja (Pio IX, 1854), diz respeito à conceção "sem mancha" da própria Virgem Maria. [revisto]

Adenda 3
Perguntam-me o que fazer com a Capela e com a Padroeira? Parece-me simples. Quanto à Capela, que pertence à Universidade, a solução está em entregar a sua gestão religiosa (e só essa) à Diocese de Coimbra ou a uma entidade adrede constituída pela comunidade católica da UC, deixando a Reitoria de ter qualquer papel nessa gestão. Concomitantemente, a UC passaria a ter "padroeira" somente para a comunidade católica, retirando a respetiva data do calendário oficial da Universidade. Sendo laicas, as entidades públicas, enquanto tais, não têm patronos religiosos. A separação constitucional entre o Estado e as religiiões também vale para a UC.

Corporativismo (19): E a deontologia profissional?

1. Um médico e dois enfermeiros acabam de ser condenados pelo tribunal de Coimbra a penas de prisão e de multa por terem fraudulentamente trocado uma análise sanguínia para libertar o médico de ser apanhado em flagrante delito de condução com excesso de álcoolapós um atropelamento.

Ora, além da infração criminal, a conduta dos implicados cosntitui também uma grave infração deontológica e disciplinar, pela qual devem ser punidos pelas respetivas ordens profissionais - se estas cuidassem de exercer o seu poder displinar, como é sua obrigação.

2. Sucede que quase todas as ordens profissionais, enquanto se dedicam a tarefas de tipo "sindical" para as quais são incompetentes, tendem a esquecer a sua função disciplinar, no que são ajudadas tanto pela inércia do Ministério Público quanto ao poder de queixa disciplinar junto das ordens que a lei lhe confere, como pelo desinteresse da Assembleia da República, quanto ao seu poder de escrutínio sobre aquelas.

A impunidade das ordens quanto ao não exercício do poder disciplinar não tem a ver somente com elas.

3. A este respeito, é de perguntar duas coisas: 
   - quando é que algum deputado pergunta à PGR quantas queixas disciplinares foram apresentadas pelo Ministério Público no seguimento de condenações penais de profissionais por condutas que configuram também infrações displinares?
   - e quando é que os deputados resolvem debruçar-se a sério sobre os relatórios anuais que as ordens têm de enviar à Assembleia da República, no que respeita ao exercício do poder disciplinar?
É do interesse público saber as respostas!

Adenda
Comentário de um leitor: "Pode esperar sentado! Já reparou quantos deputados são membros de ordens e quantas ordens eles têm criado?" Pois!...

Adenda 2
Um leitor lembra, com toda a razão, que a conduta do tal médico e dos dois enfermeiros comparsas na falsificação da análise também constitui uma infração displinar no plano laboral, pelo que deviam ser punidos no hospital onde a falcatrua occorreu; mas duvida que tenha havido sequer procedimento disciplinar...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

História Constitucional de Portugal (2): A "constituição tradicional"


1. Eis o 1º volume da História Constitucional Portuguesa (edição da Assembleia da República), resultado da minha coautoria com o Prof. José Domingues (Universidade Lusíada-Norte, Porto), dedicado à "constituição tradicional", desde a fundação do Reino até à Revolução Liberal, que pôs fim à monarquia absoluta há dois séculos e inaugurou o moderno constitucionalismo entre nós (Constituição de 1822). 

Coligindo e analisando as diferentes fontes normativas ao longo de quase sete séculos, o presente livro procede a uma "leitura constitucionalista" da nossa história política, institucional e jurídica, preenchendo uma lacuna da nossa historiografia.

2. A este volume vão seguir-se mais sete, dedicados às modernas constituições (1822, 1826, 1838, 1911, 1933 e 1976), mais o projeto constitucional de 1823, a publicar até 2026, ano que assinala o cinquentenário da atual Constituição e o bicentenário da Carta Constitucional de 1826, por sinal as duas constituições mais duradouras da nossa história constitucional dos últimos dois séculos. 

Conjugando a história e a análise dos sucessivos textos constitucionais com a sua concretização legislativa e a sua aplicação política e institucional, cremos proporcionar uma nova visão abrangente da história constitucional portuguesa.

Dois países (2): Emprego público e privado

1. O Governo anunciou um aumento dos funcionários públicos menos bem remunerados, todos passando a ganhar acima do salário mínimo

Sucede, porém, que: (i) a crise da pandemia faz com que no setor privado não só não haja aumento de salários (salvo o salário mínimo), mas também que a massa salarial vai sofrer um corte significativo, por causa do aumento do desemprego; (ii) o Estado vai ter um elevado défice orçamental, implicando, portanto, o aumento da dívida pública para níveis preocupantes; (iii) ao contrário de outras medidas tomadas de apoio ao emprego e à economia por causa da pandemia, esta não vai ter duração temporária, aumentando a despesa permanente do Estado.

2. Por conseguinte, esta medida é socialmente iníqua e orçamentalmente imprudente. Mais uma vez se mostra que em matéria de emprego (estabilidade, remuneração, horário de trabalho, etc.) há dois países à parte, o setor público (para o qual nunca falta orçamento) e o setor privado (que depende da economia e da sorte das empresas). 

Que importa, porém, se os funcionários públicos são um importante ativo político e eleitoral para qualquer Governo?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Pandemia (43): Portugal atrasa-se, mais uma vez

1. Eis as previsões da OCDE para o impacto da pandemia nas principais economias no corrente ano e nos próximos dois anos.

Duas notas sobressaem:
  - a enorme assimetria entre os países incluídos, com a China a consegur escapar à recessão e países como a Argentina e o Reino Unido a perderem mais 10% do PIB;
  - a robusta retoma económica logo em 2021 em todas as economias, sendo mais uma vez de assinalar o extraordinário desempenho da China.

Como AQUI se previu no início da pandemia, a China ganha nesta crise um enorme avanço à zona euro e também aos Estados Unidos, a caminho de se tornar, mais cedo do que se antecipava, a maior potência económica mundial. Nem a pandemia a trava.

2. No que respeita a Portugal, as previsões da OCDE não são brilhantes. Se este ano a recessão prevista (-8,4%) fica acima da da zona euro (-7,5%), já a recuperação projetada para os próximos dois anos é muito mais lenta (ou seja, apenas 1,7% e 1,9%, respetivamente), ficando longe de se recuperar o PIB de 2019 em 2022.

A confirmarem-se estas previsões, voltamos a ficar para atrás na convergência intraeuropeia. Esperemos que a realidade corrija as previsões...

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Eduardo Lourenço (1923-2020): O labirinto português

1. Os grandes pensadores não escapam à lei da morte, mas a sua obra fica viva - para sempre. No caso de Eduardo Lourenço, fica a mais persistente e fecunda busca do mistério do "labirinto português" do último século. Nenhum aspeto escapou ao seu bisturi analítico; nenhum mito ficou por contestar, nenhuma ilusão ficou por questionar. 
Ficámos a conhecer-nos melhor, nas grandezas e misérias coletivas, nas esperanças e desesperanças nacionais. Obrigado, Eduardo Lourenço.

2. Ocorre-me dar conta de uma conversa com ele, numa das últimas ocasiões em que nos encontrámos, a saber no Parlamento Europeu, se bem me lembro aí por 2013, onde foi dar uma palestra - como sempre brilhante (ou não fosse ele também um grande pensador sobre a Europa) -, onde me surpreendeu com a confissão de que também tinha ambicionado ser eurodeputado, por considerar o Parlamento Europeu, onde conviviam representantes de países que tinham travado guerras seculares entre si, a mais conseguida e genuína expressão da integração e da paz europeias.
Perante a minha pergunta sobre porque não tinha realizado esse sonho, que me parecia de fácil realização, dada a sua conhecida proximidade ao Partido Socialista, limitou-se a retorquir, com um sorriso conformado: «Nunca fui convidado e também não quis fazer-me convidado». 
Fiquei interdito, a lamentar a enorme perda do areópago europeu...

Não dá para entender (26): "Fim de ciclo político"?

[Fonte. Jornal de Notícias]
1. Considero assaz precipitada, para não dizer de todo infundada, a tese veiculada por alguns comentadores políticos sobre os sinais de aproximação do fim do atual ciclo político, por incapacidade do PS para continuar a agregar o necessário apoio parlamentar, especialmente em termos orçamentais.
Ora, se em plena pandemia e no meio da crise económica e social a ela associada, o PS consegue alcançar o apoio eleitoral que a sondagem acima revela, mantendo o PSD a 13pp (!) de distância e somando mais do que todas as direitas juntas, não se vê como é que algum partdo da oposição pode estar interessado em provocar uma crise política e a antecipação de eleições. Seria politicamente suicidário!
De resto, o último partido a desejar esse desfecho é o próprio PSD, que não dá mostras de articular uma alternativa de governo credivel e que se tem fartado de dar tiros no próprio pé, como a admissão de alianças de governo com o Chega e as irresponsáveis votações no orçamento. O PS agradece.
Tenho para mim que a tese do "fim do ciclo político" não passa de wishful thinking dos seus defensores.

2. Tambem não vejo razão, se não houver nenhum percalço imprevisto, para que esta situação política favorável ao PS se não mantenha no próximo ano. 
A vacina contra a COVID-19 vai mudar tudo, sendo de admitir que antes do verão do próximo ano já se terá adquirido uma imunidade social suficiente para retomar a vida normal, em Portugal e na Europa, permitindo a recuperação da economia e do emprego, incluindo a retoma dos fluxos turísticos e a reanimação do sacrificado setor turístico.
Por outro lado, mesmo que o monte de dinheiro da "bazuca" europeia demore algum tempo a chegar, a antecipação do investimento público e privado que ela financiará terá alterado o clima económico e as perspetivas das empresas.
Ultrapassada a pandemia e com a ecomia a recuperar a ritmo acelerado, não existe nenhuma razão para que o PS não ganhe folgadamente as eleições autárquicas de outubro e para que o Governo não consiga pôr de lado mais mil milhões de euros para comprar o PCP na votação do orçamento daqui a um ano.
Se as coisas se passarem assim, então quem estará em maus lençois não será o PS e António Costa, mas sim o PSD e Rui Rio!

Adenda
Um leitor observa, evocando Rui Rio, que "as eleições não se ganham (pela oposição) perdem-se (pelos governos)". Mas é só meia verdade. Se a oposição não se apresentar como alternativa de governo consistente, a derrota do Governo pode demorar muito mais tempo e a vitória da oposição, quando vier, pode ser menos concludente do que deseja. Ora, para além de uma oposição inconsistente, caprichosa e "guerrilhenta", imprópria das responsabilidades de um partido de vocação governamental, o PSD continua sem apresentar uma proposta de governo minimamente confiável.

Adenda 2
Outro leitor acusa-me de eu próprio, sendo socialista, ter cedido ao wishful thinking. Julgo, porém, dar sobejas provas de independência política e intelectual neste blogue; não apoiei a Geringonça em 2015 e tenho sublinhado os elevados custos financeiros e políticos da dependência do Governo em relação à extrema-esquerda parlamentar (por exemplo, AQUI). Penso que uma das poucas vantagens dos governos minoritários é poderem eleger as alianças parlamentares de acordo com os assuntos, sem se tornarem dependentes apenas de uma.