sábado, 23 de janeiro de 2021

Vontade popular (12): "Candidatos paraquedistas"

1. A propósito deste post, um leitor deseja resposta para esta questão conexa:

«(...) solicito-lhe a gentileza de me esclarecer sobre a licitude ou racionalidade das candidaturas às autarquias locais por candidatos vindos de fora e sem ligação conhecida à cidade ou ao concelho. Será que o raciocínio vertido no seu post sobre as moradas do actual PR não poderá valer, mutatis mutandis, para estas situações? Por exemplo, temos lido nos jornais que Pedro Santana Lopes pondera regressar à política, eventualmente para se candidatar a uma câmara com o apoio do PSD, tendo PSL afirmado que não será candidato a Lisboa. Ora ele é de Lisboa, a sua ligação é com a capital, apesar de ter ganhado no pretérito a Figueira da Foz. Qual a razão por que as leis eleitorais não evitam estas situações em que os candidatos "pára-quedistas" são useiros e vezeiros?»

O tema é muito importante. Convém lembrar que a situação de Santana Lopes ocorreu muitas vezes com outros protagonistas em outros municípios. Aliás, vários dos ex-presidentes de CM que completaram o número de mandatos permitido à frente do mesmo município estão a candidatar-se a municípios vizinhos.

2. Quanto à licitude dessas situações, a lei não as proíbe espressamente, nem a opinião pública as censura especialmente. Não sei se tais candidaturas alguma vez foram judicialmente impugnadas, mas - que me lembre - o Tribunal Constitucional não foi chamado a decidir sobre tal questão.

No entanto, há boas razões para questionar tais candidaturas, como já o fiz num colóquio universitário há uns anos. As eleições locais são expressão de autogoverno das comunidades locais, o que, por definição, diz respeito somente aos cidadãos locais, sob pena de ele se tranformar em heterogoverno, se entregue a forasteiros (descontando os possíveis conflitos de interesse local). Por isso, só quem é eleitor na comunidade local deve poder ser candidato à sua governação.

Admitir a candidatura de pessoas de fora, não pertencentes à comunidade que vão governar, seria o mesmo que admitir a eleição de estrangeiros para a presidência da República ou a sua designação para Primeiro-Ministro, o que, naturalmente, está constitucionalmente excluído.

Adenda
Outro leitor pergunta se essa objeção vale igualmente para as eleições parlamentares, em que também há "paraquedistas" em listas eleitorais de distritos em que não residem nem votam. A resposta é negativa. Por um lado, trata-se de eleger um único órgão de soberania nacional (a AR); por outro lado, os deputados representam toda a coletividade nacional e não somente os eleitores dos círculos por que são eleitos. Nenhuma objeção constitucional, portanto.

Presidenciais 2021 (13): Abstenção e legitimidade política

1. Antecipo desde o início uma elevada abstenção eleitoral (por exemplo AQUI). 

É claro que a COVID dificultou uma campanha eleitoral mais vigorosa e vai afastar uma parte dos eleitores, por causa do receio da contaminação. Mas, independentemente disso, a particiapção eleitoral sempre seria baixa por dois outros motivos: (i) a vitória antecipada do candidato incumbente e (ii) a falta de empenhamento dos dois principais partidos, o PS e o PSD.

De resto, ensina a sociologia eleitoral que em eleições uninominais, a afluência às urnas tende a ser diretamente proporcional à dúvida sobre quem vai ser eleito.

2. Todavia, não creio que uma abstenção elevada ou mesmo muito elevada ponha em causa a legitimidade política do Presidente eleito.

Em primeiro lugar, a Constituição não exige, nem poderia exigir um quorum eleitoral, como expliquei AQUI; em segundo lugar, não havendo voto obrigatório, o sufrágio é um direito-liberdade e não um direito-obrigação; em terceiro lugar, num sistema representativo, os eleitos representam a coletividade através dos eleitores que votam, não dos que se abstêm. 

A abstenção tanto pode significar falta de interesse nas eleições e na disputa eleitoral em causa, como deixar implícito a apoio tácito dos que não votam ao resultado que vier a ser apurado.

Em todo o caso, numa democracia eleitoral, quem não vota não conta, nem quer contar.

3. Parece evidente que uma baixa votação pode retirar ao Presidente margem política para um segundo mandato mais interventivo ou ainda mais intrusivo na esfera governativa do que o primeiro. Mas isso não é um mal, pelo contrário.

Porém, pôr em causa a legitimidade política de um Presidente eleito por causa do baixo número de votantes, mesmo com folgada margem sobre a maioria absoluta, não é somente pouco conforme às regras da democracia eleitoral - é também uma versão de populismo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (12): Mau exemplo presidencial

1. O semanário Sol questiona hoje o facto de o Presidente da República ir votar a Celorico de Basto, onde tem raízes familiares, mas onde manifestamente não reside.

Ora, é estranho que o Presidente da República não tenha cartão de cidadão, que estabeleceu o princípio da morada única, para todos os efeitos. Depois, o próprio recenseamento eleitoral sempre exigiu a inscrição no local da residência habitual. Por último, uma pesssoa não devia poder ter licitamente várias moradas, para diferentes efeitos (morada civil, fiscal, de saúde, eleitoral).  

Pelo menos desde o cartão de cidadão, a morada eleitoral é a morada civil, até porque deixou de existir recenseamento eleitoral separado e cartão de eleitor. Desde 2019 os cadernos eleitorais são organizados automaticamente a partir do registo civil. 

Mesmo não sendo a situação estritamente ilegal, visto que o PR não tem cartão de cidadão, não deixa de ser um mau exemplo social e político do mais elevado magistrado da República. Pouco republicano, mesmo!

2. É certo que para efeitos de eleições presidenciais ou europeias, o sítio onde se vota é indiferente, dada a candidatura nacional nessas eleições. Mas já não será o mesmo no caso de eleições parlamentares (onde os deputados são eleitos por círculos distritais) nem, muito menos, nas eleições locais, onde os autarcas são eleitos pela população de cada freguesia ou de cada município. 

Ora, em ambos os casos, o número de mandatos parlamentares ou locais a eleger depende do número de eleitores, pelo que a existência de eleitores não residentes pode alterar indevidamente esse número.

Acresce que não parece que faça algum sentido que um cidadão participe na eleição dos representantes e governantes de uma freguesia e de um município a centenas de quilómetros de onde reside, e em cuja vida coletiva não participa. Se a autonomia local implica autogoverno dos respetivos cidadãos, ela exclui, por definição, os que não são cidadãos locais.

3. É conhecida a censura política e social dessa opção artificial da morada civil e eleitoral, sobretudo quando essa escolha implica vantagens materiais, como sucedeu com alguns deputados e governantes, que, embora residindo em Lisboa, optaram por declarar moradas longe da capital, para efeito de subsídios de deslocação e de alojamento.

Não é esse obviamente o caso do PR. Mas é fácil ver como este mau exemplo pode servir de desculpa para outros titulares de cargos públicos para quem a morada conta.

[corrigido]

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (11): A despropósito

1. Num debate coletivo entre os candidatos presidenciais, Marcelo Rebelo de Sousa entendeu oportuno defender o alargamento do número de deputados eleitos pelos residentes no estrangeiro para a AR.

Ora, o alargamento da representação parlamentar dos residentes no estrangeiro não é somente um ideia despropositada no debate de uma eleição presidencial, num sistema constitutcional onde o PR não governa nem tem poder de iniciativa legislativa, sendo, portanto, uma jogada caraterizadamene oportunista. 

Além disso, é uma ideia que não merece ser sufragada. 

2. Antes de mais, o aumento da número de mandatos pelos dois círculos eleitorais do exterior só poderia ser obtido à custa da redução da representação parlamentar do território nacional, visto que o número total de deputados não pode ser aumentado.

Em segundo lugar, dado o elevado número de portugueses residentes no estrangeiro - que agora são automaticamente recenseados - uma repartição territorial proporcional ou quase proporcional dos mandatos aumentaria em muito a sua representação parlamentar relativa, podendo dar-lhes o poder de determinar as maiorias parlamentares.

3. Além disso, toda a gente  sabe perfeitamente porque é que a Constituição e a lei eleitoral fazem corresponder aos círculos do exteriror somente quatro deputados.

Na verdade, no que respeita às eleições parlamentares, que decidem a escolha do governo e da política do País, não podem pôr-se no mesmo pé os cidadãos residentes e os cidadãos não residentes, pela simples razão de que os segundos, diferentemente dos primeiros, não pagam em geral os seus  impostos aqui nem são afetados diretamente pelas leis e pelas políticas governamentais. 

Na origem da democracia representativa esteve a regra no taxation without representation; mas com a mesma lógica pode também defender-se a regra contrária, no representation without taxation.

Acresce que muitos dos cidadãos nacionais nascidos no estrangeiro têm também a cidadania do país onde residem, pelo que participam na governação desse país, o que pode criar conflitos óbvios de lealdade e, mesmo, conflitos de interesses. ´

Decididamente, uma má ideia. Pior ainda, vinda de quem vem.

Adenda
Um leitor pergunta malevolamnte se o PS, que apoia oficiosamente a recandidatura do PR incumbente, concorda com essa radical reforma política. Tenho a certeza que não.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Pandemia (47): Até quando prevalece a pusilanimidade política perante o populismo?

1. Mais um ministro infetado, levando ao confinamento preventivo do todos aqueles com quem ele contactou nos últimos dias! E vão quatro!

Quantos mais ministros infetados e quantos mais confinamentos dos seus círculos de contactos próximos são necessários para ser adotada a única decisão decente, que é de vacinar os principais dirigentes políticos do Estado (PR, PM e ministros, Presidente e vice-presidentes da AR, pelo menos), como grupo de risco que são, pelas numerosas reuniões oficiais e de trabalho presenciais em que têm de participar, muitas vezes em espaços fechados, ao serviço do Estado?

Como se não bastasse a remuneração baixa, a devassa regular da sua vida privada, a frequente sujeição ao vilipêndio impune na imprensa e nas redes sociais, o stress provocado pela pandemia e pela crise económica e social associada, ainda se exige que os dirigentes políticos do Estado ponham em risco a sua vida e a dos seus familiares, como bodes expiatórios da demagogia e do populismo nacional?

2. Acresce que, cabendo a Portugal a presidência do Conselho da União Europeia neste semestre, a multiplicação de ministros infetados cria um óbvio constrangimento em relação às reuniões do Conselho e com a Comissão Europeia, pelo receio destes em verem os seus membros ou colaboradores também contaminados, ou sujeitos a confinamento preventivo, pelos seus contactos em Portugal ou com os dirigentes portugueses.

Como se não bastassem os maus records que Portugal está a bater por estes dias quanto à pandemia, o País pode tornar-se também denunciado como um sítio de elevado risco sanitário para ser visitado por dirigentes ou quadros da União Europeia, o que não tardará a ser explorado em Bruxelas, considerando os governantes portugueses como personae non gratae e arruinando a Presidência portuguesa do Conselho.

Vacinação, sem demora, impõe-se. Haja sentido de Estado!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Pandemia (46): As maiores falhas

1. As maiores falhas do controlo da pandemia em Portugal, que conduziram à atual situação crítica, foram, a meu ver, três: 

   - a desatenção continuada ao barril de pólvora dos lares de idosos, apesar do "aviso" do lar de Reguengos de Monsaraz, logo no início da pandemia;

   -  o défice e atraso dos inquéritos junto dos infetados para indentificar e interromper as linhas de contaminação;

   - o monumental falhanço da aplicação Stay-away-covid, em que somente uma ínfima parte dos casos de infeção detetados foram registados.

O baixo nível de civismo e de responsabilidade cívica fizeram o resto.

2. Essas três falhas propiciaram que a partir do início da segunda vaga em outubro se tivesse perdido progressivamente capacidade de controlo efetivo sobre a contaminação, cada vez mais generalizada, apesar das medidas tomadas para a travar antes do Natal, logo inutilizadas a seguir.

Agora que a situação ameaça seriamente a capacidade de resposta do SNS e do sistema de saúde em geral, impõe-se intensificar o confinamento.

Adenda (18/1)
As medidas hoje anunciadas pelo Governo vão na direção certa. Não podia continuar a "desbunda" de um pseudoconfinamento que muitos nem sequer fingiam respeitar.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Pandemia (45): Como era de temer

1. Com os números da pandemia (infetados, internados e mortos) a colocarem Portugal entre os países onde a situação é mais grave e o sistema de saúde está à beira do esgotamento, é lamentável verificar que o confinamento tardiamente decretado esta semana está longe de ser observado, tal o número de automóveis e de gente nas ruas, esplanadas e praias (!).

Além dos esbelecimentos de ensino abertos, desde o básico ao superior, há uma série de outras exceções que tornam este confinamento muito menos efetivo do que o da primavera passada e que facilitam os abusos e dificultam a fiscalização das autoridades policiais. Impõe-se reavaliar a situação.

2. Tudo seria diferente, se os cidadãos cumprissem voluntarimente o confinamento por motivo de responsabilidade cívica. Mas, como era de temer, é ingloriamente que o PR, o PM, a ministra da Saúde, os médicos e demais pessoal da saúde, etc., apelam para o civismo das pessoas. Os ajuntamentos nas esplanadas e praias da linha de Cascais, este fim de semana, muitas vezes sem uso de máscara, são bem o retrato deste país.

Infelizmente, civismo e responsabilidade cívica são bens escasssos em Portugal. A falta de investimento em educação cívica e a complacência social com a irresponsabilidade cívica pagam-se caro.

Um pouco mais de jornalismo sff (18): Disparate à solta

1. O Jornal Económico entende que o hacker Rui Pinto cometeu um crime punível com prisão, por ter revelado nas redees sociais o seu voto hoje, na votação antecipada das eleiçoes presidenciais.

Mas trata-se, obviamente, de um rotundo disparate, pois o segredo de voto só se refere naturalmente à proibição de revelação de voto alheio. Nem poderia ser de outro modo. A que propósito é que numa democracia liberal fosse proibido que alguém revelasse publicamente o seu voto?

2. O problema é que hoje as notícias passam diretamente do computador dos jornalistas para a página eletrónica do jornal, tendo deixado de haver a filtragem de textos que antes havia, através do chefe de redação e do revisor de textos, ou seus substitutos. Daí a frequência de situações como estas, bem como dos pontapés na ortografia e na gramática.

Pelos vistos, também não há controlo a posteriori. Se houvesse, esse texto já teria sido suprimido, com pedido de desculpas aos leitores.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Praça da República (34): Uma lacuna institucional

1. Uma óbvia lacuna de regulação do nosso sistema político diz respeito à ausência de uma lei sobre o lobbying, ou seja, a disciplina da atividade profissional de representação e defesa de interesses particulares junto de decisores políticos, nomeadamente os deputados e os membros do Governo. 

Sendo o lobbying incontornável, a sua displina legislativa constituti uma condição essencial da transparência da atividade e das decisões políticas.

2. É lamentável que o PSD, tradicionalmente um partido reformista, não se tenha empenhado na aprovação dessa lei (não apresentou projeto próprio) e se prepare para, junto com o BE e o PCP, votar contra o projeto negociado no Parlamento entre o PS, o CDS e outros partidos

Se há um assunto em que era de esperar um consenso entre os dois principais partidos de governo entre nós, era este. Vai sendo cada vez mais difícil perceber algumas opções do PSD...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (12): Caraterização correta, qualificação enganadora

1. Dificilmente se poderia caraterizar melhor, em poucas palavras, o lugar e o papel do Presidente da República no nosso sistema político-constitucional, como  no texto do ex-Presidente Jorge Sampaio (1996-2006) hoje publicado no Expresso [reservado a assinantes]: 

«[U]m Presidente árbitro, moderador, garante do regular funcionamento das instituições; um Presidente da República (1996-2006) que intervém activamente na vida política, mas que não governa, não lidera um Governo ou a oposição, não tem uma militância partidária activa».

2. Só não se percebe que sentido faz qualificar como "semipresidencialista" o sistema de governo tão bem descrito por Sampaio. 

Primeiro, se o sistema de governo presidencialista, como o dos Estados Unidos, é aquele em que o Presidente governa e é titular do "poder executivo", então o sistema de governo da CRP não tem nada de presidencialista, visto que o PR não compartilha do poder executivo, sendo antes titular de um "quarto poder", um poder arbitral ou moderador, como o qualifica corretamente Sampaio, claramente separado do poder executivo, a cargo do Governo. Em segundo lugar, se o sistema de governo parlamentar é aquele em que a legitimidade do governo decorre das eleições parlamentares e o governo é responsável politicamente perante o parlamento (como sucede no Reino Unido ou na Itália), então o sistema de governo da CRP corresponde essencialmente a essa definição. O "poder moderador" do Presidente não altera essa natureza, embora lhe confira traços específicos.

Não há nenhuma vantagem  política ou intelectual em utilizar noções equívocas ou enganadoras.

Às avessas (2): Quando os infratores "viram" queixosos

1. A aparente unanimidade nos média contra a vigilância ordenada pelo Ministério Público sobre jornalistas que infringiram o segredo de justiça, para tentar conhecer as suas fontes no processo, revela bem a solidariedade da tribo quando de trata de negar os abusos da liberdade de imprensa.

Tal como as demais liberdades, também a liberdade de imprensa não é absoluta.  A injúria ou a difamação através da imprensa são crime; a violação da intimidade da vida privada através da imprensa é crime; a violação do sigilo profissional de médicos, etc., é crime; a violação do segredo de Estado é crime. 

Também é crime a violação pela imprensa do segredo de justiça, aliás explicitamente protegido pela Constituição, quer para proteger a investigação penal, quer para proteger o bom nome e a reputação de pessoas ainda sem culpa formada contra julgamentos na praça pública.

2. A impunidade da violação do segredo de justiça é um dos escândalos do nosso sistema de justiça, não tendo conta os inquéritos abertos que acabam em nada, porque o Ministério Público, numa errada intepretação da lei penal, entende que é preciso provar o acesso dos jornalistas ao processo, por si ou por interposta pessoa.

Daí as diligências de investigação neste caso quanto aos contactos  "internos" dos jornalistas que violaram o segredo de justiça. Ora, apesar do bruhaha que por ai vai quanto a essas diligências policiais - de que é exemplo a capa da Sábado acima -, a verdade é que elas não implicaram violação de nenhum direito fundamental dos visados (buscas domicíliárias, sigilo de comunicações, etc.), que necessitasse de autorização judicial. De resto, seguir pessoas e observar os seus contactos é o que os jornalistas fazem todos os dias na sua atividade de investigação...

Também não faz sentido invocar o "segredo das fontes" quando os jornalistas em causa e suas fontes cometeram um crime...

Adenda
Como é usual nestas circunstâncias, não faltam os políticos que, em vez de defenderem o segredo de justiça e condenarem a sua violação, como manda a Constituição, saltam oportunisticamente em defesa dos infratores. Aposto que todos os candidatos presidenciais vão fazer o mesmo...

Adenda 2
Um leitor argumenta que quem deve ser punido são as fontes na Polícia Judiciária ou no Ministério Público que, a troco de dinheiro ou por razões políticas, fazem os leaks para a imprensa. Sucede, porém, que a violação do segredo de justiça só se consuma com a publicação e que, se os jornalistas da Sábado e outros começassem a ser punidos, as "toupeiras" deixavam de ter clientes...

Adenda 3
Um leitor observa, pertinentemente, que no caso havia também, muito provavelmente, um crime de corrupção, como sucede em muitos dessas situações: passar informações em segredo de justiça a troco de dinheiro ou outras vantagens.

Adenda 4
Entre as opiniões disparatadas que recebi a propósito deste post, avultam as três seguintes: "acabe-se com o segredo de justiça", "não se pode proibir a informação" e "os jornalistas não podem ser investigados quanto às informações que publicam".  Ora, o fim do segredo de justiça na fase de investigação seria o fim da justiça e, obviamente, o jornalismo não está imune ao Código Penal.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (10): Contradições quanto ao SNS

1. Todos os candidatos presidenciais de esquerda compartilham uma explícita animosidade contra o setor privado da saúde, mas todos eles apoiam a ADSE -  o sistema de saúde privativo dos funcionários públicos - , que é o seu principal cliente e financiador (depois do próprio SNS), contribuindo assim o próprio Estado para que o SNS seja cada vez menos universal, como dispõe a Constituição...

2. Todos esses candidatos se opõem, por princípio, às parcerias público-privadas (PPP) no SNS, ou seja, à concessão da gestão de hospitais do SNS a entidades de saúde privadas. Mas a avaliação existente desssas situações prova que a gestão privada é, em geral, mais eficiente, poupando dinheiro ao Estado, sem pôr em causa a qualidade clínica, pelo contrário.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (10): Paralelo descabido

1. No debate de ontem na RTP entre todos os candidatos presidenciais, o candidato Vitorino Silva ("Tino de Rans") defendeu a tese da ilegimidade das eleições, se a participação eleitoral não fosse superior a 50%, invocando o regime constitucional dos referendos, que exige tal quorum para o seu resultado ser vinculativo.

Mas o paralelo não tem nenhum cabimento. A razão por que a Constituição estabelece tal quorum para a vinculatividade dos referendos tem a ver com o facto de eles costituírem uma derrogação da democracia representativa, podendo obrigar o parlamento a aprovar ou rejeitar uma lei contrária à vontade maioritária da AR.

Não é possível, portanto, comparar as eleiçoes com os referendos. Não vem mal nenhum ao mundo, se um referendo não for vinculativo; mas pode vir muito mal, se uma eleição tivesse de ser repetida por falta de quorum, aliás sem garantia nenhuma de que este exista na eleição seguinte...

2. Note-se que, se a Constituição exige maioria absoluta de votos (qualquer que seja o número de eleitores) para a eleição presidencial, só contam, porém, os votos expressos e válidos, desconsiderando, portanto, os votos brancos e os nulos. Não basta, por isso, ir votar, para contar na escolha do Presidente.  

Numa democracia liberal como a nossa, em que o voto não é obrigatório, votam os cidadãos que sentem que as eleições e o seu voto são relevantes ou que entendem a participação eleitoral como uma obrigação cívica. Quem prefere abster-se, não conta eleitoralmente. Quem se abstém deixa aos outros a decisão da eleição. O sufrágio é também uma responsabilidade cívica.


Corporativismo (20): 12-anos-12!

1. Ficamos a saber por esta notícia que a Ordem dos Médicos demorou 12 anos a punir disciplinarmente um médico que foi condenado criminalmente por abuso sexual de doentes seus.  

É um escândalo revelador da incúria no desempenho da principal função das ordens profissionais, que é zelar pelo cumprimento das obrigações deontológicas dos seus membros em relação aos utentes de serviços profissionais, mas que as ordens em geral ignoram, tornando-se cúmplices da impunidade. 

A autodisciplina profissional é entre nós uma ficção, com que o Governo e a AR compactuam, numa comprometedora conspiração de silêncio.

2. É certo que nesta história há outra instituição com largas "culpas no cartório", que é o Ministério Público, o qual, tendo poderes legais para desencadear a ação displinar junto das ordens profissionais, devia fazê-lo por dever de ofício sempre que um profissional seja condenado num tribunal por condutas ilícitas no exercício de funções.

Mas não há notícia de que o MP cumpra essa obrigação elementar de defesa da legalidade e dos interesses dos utentes de serviços profissionais. E também ninguém se preocupa em saber porque é que as coisas são o que são. 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Memórias acidentais (13): Carlos Brito

1. Não foi sem emoção que assisti à tocante entrevista de Fátima de Campos Ferreira a Carlos Brito, ontem na RTP 1 (que só pude ver hoje). 
Tendo passado sete anos da minha militância no PCP junto dele em São Bento, entre 1975 e 1982 (ele como presidente do grupo parlamentar e eu como vice-presidente), posso testemunhar a sua convicta dedicação à frente parlamentar (quando o Partido a menosprezava), a sua inteireza de caráter, a sua amizade e compreensão para com as minhas crescentes divergências em relação à orientação do Partido e, em especial, as minhas críticas à URSS.
Em vários ocasiões em que lhe manifestei a minha incapacidade para acompanhar as posições de voto filossoviéticas do PCP, como, por exemplo, aquando da retirada da cidadania a Sakharov, dizia-me discretamente para não participar na votação, o que era uma prova de inequívoca cumplicidade pessoal.

2. Foi ele quem, no verão de 1979, na Ilha de Faro, me convenceu a desistir da intenção que lhe tinha transmitido de deixar a AR e de regressar a Coimbra, para ultimar o doutoramento que eu interrompera em 1974, tendo-me persuadido a aceitar o desafio de ser cabeça-de-lista por Aveiro, meu distrito natal. Contra as previsões, visto que o PCP ficara longe de eleger alguém quer em 1975 quer em 1976, fui eleito folgadamente, repetindo a eleição nas eleiçoes do ano seguinte, o que me permitiu intervir ativamente na revisão constitucional de 1982.
Foi aí que se deu o meu desencontro decisivo com o PCP. Ultimada a votação da revisão constitucional na especialidade, defendi, junto com Veiga de Oliveira, que o Partido não votasse contra a revisão, devendo abster-se. Apesar de a nossa posição ter encontrado algum eco no grupo parlamentar, onde o debate era franco e aberto (outro mérito de Brito), o secretário-geral do Partido impôs o voto contra sem margem para quaquer discussão. Perante esta situação, transmiti a Carlos Brito a minha decisão de renunciar ao mandato, o que fiz no dia seguinte à votação da revisão constitucional. 
Confessadamente entristecido com minha saída, disse-me esperar que um dia voltasse. Mas adivinhava, tão bem como eu, que era uma despedida - como foi.

3. De facto, em 1987, quando veio a público a dissidência assumidamente antimarxista-leninista do "Grupo dos 6", que eu integrava, Carlos Brito veio falar comigo, para me transmitir a sua preocupação com a situação e com o risco de a nossa eventual saída enfraquecer as posições reformistas dentro do Partido, de que - cuidou de enfatizar - os "seis" não eram os únicos representantes.
O resto da história é conhecida. A saída do "grupo dos seis" foi seguida da de outros grupos de dissidentes nos anos seguintes ("3ª via", etc.). E, apesar  de se ter mantido firme na sua inglória luta interna pela renovação do PCP, Carlos Brito não foi poupado a ser compelido a sair do Partido a que dedicou a sua militância política desde a juventude, sob a repressão da Ditadura
Com o seu afastamento, cessava simbolicamente qualquer esperança de abertura doutrinária e política do PCP. 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (9): Questõs complexas raramente têm solução simples

1. Há quem pense que não há questão que não tenha uma solução simples e expedita, como esta ideia de instaurar a todo o vapor o voto por correspondência ou o voto eletrónico a distância

Ora, para além de ser preciso uma revisão constitucional, que exige o seu tempo, sucede que as razões por que a Constituição impõe a votação presencial (proibindo o voto por correspondência ou por via eletrónica) ainda não estão decididamente superadas entre nós, nomeadamente quanto ao risco para o sigilo de voto, a liberdade de voto ou a compra de votos, a que se soma a segurança da votação no caso do voto eletrónico.

A opção pelo voto não presencial não é politicamente gratuita.

2. Uma coisa é abrir o debate sobre a questão e preparar os estudos necessários sobre o  impacto das várias alternativas e outra é enveredar a passo estugado pela revisão constitucional e pela alteração legislativa.

O pior que poderia suceder era avançar com reformas precipitadas que abalassem a atual confiança dos cidadãos no sistema de votação ou que permitissem gerar acusações de fraude sobre os resultados eleitorais (por mais infundadas que fossem), como sucedeu agora nos Estados Unidos.

Numa democracia eleitoral, a confiança no sistema de votação e de contagem eleitoral é um "bem público" ainda mais importante do que a confiança no sistema judicial ou no sistema bancário, não se podendo pôr levianamente em causa.

Decididamente, questõs complexas raramente têm soluções simples.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (8): Debate civilizado

Com exceção da baixeza provocatória de Ventura - que excedeu as piores expectativas -, os debates a dois entre os demais candidatos presidenciais na televisão pautaram-se em geral pela urbanidade, mesmo quando politicamente agrestes, e pela ausência de ataques ou insinuações pessoais -  como é de esperar numa democracia madura num país civilizado. 

A este respeito, foi pena Ana Gomes, no debate com Marcelo Rebelo de Sousa, ter cedido à tentação de trazer à liça a relação de amizade deste com Ricardo Salgado. Por um lado, nenhum político é responsável pela conduta de pessoas próximas; segundo, não existe nenhum indício de que MRS foi de algum modo influenciado por isso na sua missão presidencial. Não havia necessidade...

sábado, 9 de janeiro de 2021

Vontade popular (12): De novo, o voto eletrónico

[Fonte da iamgem: AQUI]

1. Em abril do ano passado, no primeiro surto da pandemia e antecipando a sua duração prolongada, propus um debate sobre o voto eletrónico, tendo mesmo sugerido que a AR «deveria solicitar à CNE um relatório sobre o assunto ou nomear uma comissão técnica para informar sobre ele, quanto aos aspetos técnicos e jurídicos»

O meu alerta não teve nenhum eco público e o parlamento ignorou o meu desafio. Talvez  seja diferente agora, que a questão é suscitada por Marques Mendes, que considera o voto eletrónico uma «questão essencialíssima»

2. No entanto, para além de anotar que a introdução do voto eletrónico remoto (pois também pode haver voto eletrónico presencial, como jé sucedeu experimentalmente entre nós em Évora nas últimas eleições europeias) carece de revisão constitucional, importa alertar que o voto eletrónico a distância suscita questões de segurança e de liberdade e segredo pessoal do voto que precisam de ser apropriadamente respondidas antes de qualquer medida legislativa.

O voto eletrónico remoto não é algo que possa ser precipitadamente adotado.

Presidenciais 2021 (7): Direito a votar

O direito de voto a votar é um direito a votar, tendo o Estado a obrigação de proporcionar a todos a possibilidade de o exercer. 

Por isso, concordo com esta opinião de que, se as pesssoas acolhidas em lares de idosos não podem ir às urnas de voto, por causa da pandemia, devem estas ir aos lares onde haja idosos que queiram votar, tal como vão às prisões recolher os votos dos presos que tenham manifestado vontade de votar. E isso pode ser feito ao longo de vários dias, em voto antecipado, que a Constituição não proíbe. Basta mudar a lei em procedimento de urgência e disponibilizar os meios logísticos necessários.

Em tempos excecionais, medidas excecionais.

Adenda
Um leitor comenta que nada disso seria necessário, se houvesse voto por correspondência, como nos Estados Unidos e outros países. Sucede, porém que a Constituição estipula expressamente o voto presencial nas eleições presidenciais em território nacional, o que inviabiliza o voto a distância, designadamente o voto por correspondência.

Adenda 2
Um leitor argumenta que, por razão de igualdade, os idosos que estão em casa também deviam beneficiar do voto no domicílio. Mas não é a a mesma coisa. Os que estão em lares vivem em comunidade e ficam em quarentena se saírem, para não correrem o risco de serem infetados e contaminarem os demais, o que os impede de ir votar -, o que não sucede com quem mora em casa

Livres & iguais (55): "Tradições culturais" contra os direitos humanos

[Fonte da imagem AQUI]

Saudemos esta primeira condenação em Portugal da multilação genital feminina, desde que a punição dessa prática bárbara foi autonomizada criminalmente em 2015.

A punição penal da MGF simboliza bem o facto de a proteção dos direitos humanos  não visar somente as violações efetuadas pelo Estado mas também as perpetradas na "sociedade civil" e no âmbito familiar, em nome de práticas culturais atávicas, que lesam a integridade fisica e moral das pessoas, neste caso das crianças do sexo feminino. O Estado não tem somente a obrigação de respeitar ele mesmo os direitos humanos, mas também a obrigação de protegê-los contra a sua violação por terceiros (respect and protect).

Que este seja o primeiro passo para combater decididamente esse flagelo em algumas comunidades de origem africana entre nós.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Falsas boas ideias (2): Revisão constitucional inútil

Penso que não faz nenhum sentido a ideia de uma revisão constitucional relâmpago para permitir a votação da eleição presidencial em mais do que um dia

De facto:

       -  havendo estado de emergência declarado, é imposssível aprovar qualquer revisão constitucional neste período, que é expressamente proibida pela Constituição; 
       - não é a Constituição, mas sim a lei eleitoral, que impõe a eleição presidencial num só dia, pelo que não é necessário alterá-la para esse efeito (de resto, a lei eleitoral já permite o voto antecipado, em certos termos, assim como a votação em dois dias no estrangeiro);
       - não é por haver mais do que um dia de votação que a previsível abstenção elevada vai diminuir, pela simples razão de que - como AQUI mostrei - ela se vai ficar a dever-se a diversos factos que não têm a ver com a duração do período da votação, a saber (i) as eleições terem um vencedor antecipado, (ii) falta de empenhamento dos dois principais partidos nas eleições; (iii) não haver campanha presencial por causa da pandemia e (iv) o receio de contaminação pela COVID nas assembleias eleitorais.

Em suma, uma revisão constitucional ad hoc não adiantaria nada.

Adenda
Também não leva a nada, por inviável, a ideia de adiamento das eleições, mesmo que tal fosse defensável politicamente, como alguns propõem (a meu ver, erradamente). Primeiro, nem a Constituição nem a lei eleitoral preveem a remarcação das eleições; segundo, de acordo com a Constituição, o novo PR tem de estar eleito até ao termo do mandato em curso (9 de março), havendo que descontar três semanas para uma eventual segunda volta (por menos verosímil que seja tal hipótese), pelo que a primeira votação teria de ocorrer até 14 de fevereiro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Assim vai a política (4): Instrumentalização política da justiça

1. Por menos feliz e oportuna que tenha sido a acusação de António Costa sobre uma alegada "campanha internacional contra Portugal" por parte de alguns dirigentes e militantes do PSD, a propósito da nomeação do membro português na Procuradoria da União, tal não pode justificar a ideia de uma queixa-crime contra o Primeiro-Ministro, como defende a própria direção do PSD, apadrinhando a posição dos seus dirigentes.

Sendo manifestamente descabida, por não haver nenhum ilícito criminal, uma tal iniciativa não passa de uma lamentável operação de intrumentalização da justiça para efeitos políticos imediatos, destinada a impressionar cidadãos menos bem informados e a alimentar as "redes sociais" durante algumas horas.  

2. Numa democracia liberal, as acusações políticas devem ser combatidas na esfera política e não no foro judicial. Os juízes não devem ser chamados a adjudicar o combate político entre a oposição e o Governo. No combate político, mesmo os ataques de natureza pessoal - que neste caso nem sequer existem - só em casos-limite são criminalmente relevantes.

A judicialização da política, sobretudo quando promovida pelos próprios políticos, degrada tanto a justiça como a política. E não enobrece quem a promove. 

Adenda
Como seria de esperar, os visados no deslocado ataque do Primeiro-Ministro declinaram qualquer propósito de queixa-crime (que, aliás, não levaria a nada...), revelando mais sensatez política do que a tonta e precipitada decisão da comissão permanente do PSD.

Adenda (9/1)
Se acusação de António Costa aos militantes do PSD foi infeliz e inoportuna, é manifestamente excessiva e despropositada a crítica de Ana Gomes ao líder socialista, "equiparando-o a Orbán". Além do mais, este não é seguramente o melhor mod0 de cativar o voto socialista para a sua candidatura presidencial...

Praça da República (43): Os pontos nos ii

1. Faz bem o Primeiro-Ministro em lembrar uma regra essencial da responsabilidade política ministerial no sistema de governo estabelecido na Constituição, que o Presidente da República e muitos observadores políticos por vezes esquecem, a saber: «É perante o Primeiro-Ministro que cada ministro responde». 

Daí que só a ele, como chefe do Governo, caiba decidir sobre a demissão dos seus ministros, assumindo a correspondente responsabilidade política, devendo o PR abster-se de tomadas de posição públicas sobre tal assunto.

2. Mas, da mesma maneira, o PM deveria recordar publicamente uma outra regra constitucional que é consequência dessa, ou seja, que é somente ao PM (e não aos ministros, individualmente) que incumbe informar o PR sobre a condução das políticas governamentais, pelo que é politicamente descabida e constitutionalmente ilegítima a chamada de ministros a Belém (como AQUI mostrei). 

O PM é a única interface entre São Bento e Belém.

A degeneração da democracia constitucional começa quando, por deferência ou oportunismo político, se consentem práticas à margem da Constituição, por mais "inocentes" que pareçam à primeira vista.

Adenda

Na versão do Primeiro-Ministro sobre o caso da Ministra da Justiça há um aspeto que não "cola", que é a ideia de que as "incorreções" constantes da nota curricular enviada pelo MJ para Bruxelas eram "irrelevantes" para a escolha do candidato em causa, que se baseava na hierarquização dos candidatos pelo CSMP. Se assim fosse, não faria sentido enviar tal nota adicional, bastanto invocar a seleção feita pelo CSMP e o CV oficial do candidato que constava do processo do Conselho da União em Bruxelas (e que não continha nenhuma das mencionadas incorreções). É óbvio, portanto, que o MJ procurou reforçar a sua opção perante Bruxelas com elementos novos sobre o candidato escolhido, infelizmente infundados, sem o cuidado mínimo de verificar a sua veracidade.

White House 2021 (7): A demência trumpista

Incitada por um Presidente tresloucado pela derrota eleitoral, uma multidão furiosa de apoiantes invadiu o Capitólio (Congresso) em Washington, perante a irresponsável imprevisão da polícia, e interrompeu a cerimónia de contagem oficial das eleições presidenciais. Um dia negro para a democracia estadunidense.

Não podia terminar da pior maneira o mandato de um dos piores e mais rancorosos presidentes da história dos Estados Unidos. Só por isso ele merecia ser destituído e condenado por sedição.  Uma vergonha nacional e internacional!

Adenda

Vale a pena ler este editorial do New York Times.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

João Cutileiro (1937-2021): Uma grande perda


 Grata recordação de um almoço em Coimbra, 1999.

Presidenciais 2021 (6): Sem escrúpulos

Como AQUI se defendeu, o STA rejeitou liminarmente a ação judicial interposta pelo deputado André Ventura para obrigar o Presidente da AR a suspender o seu mandato parlamentar. O Tribunal considerou corretamente que, independentemente da substância do caso, «o STA não é uma instância de controlo jurídico-político dos atos [políticos] do Governo ou do Parlamento».

No entanto, num comentário provocatório, Ventura insinuou que o STA tem "receio" da AR e ameaçou voltar à via judicial depois de haver um decisão parlamentar sobre o caso. Decididamente, há uma aposta clara em provocar as instituições. Já inundado com processos, o STA não pode ser politicamente abusado, de má fé, para servir os mesquinhos objetivos mediáticos de um candidato presidencial sem escrúpulos políticos nem deontologia profissional como advogado.

Era conveniente saber a reação dos restantes candidatos presidenciais a este condenável espisódio.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Assim vai a política (3): Não há como desvalorizar

Não há como desvalorizar a gravidade do envio ao Conselho da União de uma nota curricular com vários erros importantes sobre o percurso profissional do candidato que Portugal propôs para a Procuradoria da União Europeia

Mesmo que o referido papel não tenha tido influência na escolha - que se baseou solidamente no facto de o referido candidato ter sido classificado em 1º lugar pelo Conselho Superior do Ministério Público -, a situação é constrangedora e pode ser explorada para pôr em causa a confiança de Bruxelas nas informações vindas de Lisboa.

Não basta a Ministra da Justiça vir reconhecer os erros e imputá-los a lapso dos serviços; importa saber quando é que teve conhecimento da situação e que medidas tomou para apurar responsabilidades e para reparar a incorreção da informação prestada ao Conselho da União.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Praça da República (42): Contradições oportunistas

1. Esta proposta oportunista do PSD, à boleia do caso Ventura, para alargar os casos de suspensão do mandato parlamentar a pedido dos próprios deputados, por razães de conveniência pessoal, invoca um alegado propósito de "desproletarizar" [sic] a função parlamentar, mas o seu resultado traduz-se numa inequívoca descaraterizaçao da natureza do mandato parlamentar, como obrigação política que deve ser. 
Os demais titulares de cargos políticos (alguns de duração mais longa) também não podem suspender o mandato por vontade pessoal. A conveniência pessoal dos deputados não pode sobrepor-se ao exercício do mandato que assumiram. 

2. Desde logo, pode questionar-se a necessidade de admitir a suspensão do mandato por motivos da vida pessoal, profissional ou política dos deputados num regime em que o função não é exclusiva e em que os deputados podem acumular livremente com outras tarefas. 
Mas a principal objeção tem a ver com o facto de a suspensão voluntária se traduzir num verdadeiro incumprimento do mandato político, que é de natureza pessoal. Embora eleitos em listas partidárias, os deputados são eleitos pelo voto popular, segundo a ordem da lista de candidatos, que é pública.  O nome dos deputados conta! 
Fomentar a instabilidade na composição parlamentar por motivos pessoais só reforça a partidocracia parlamentar e alimenta a pulsão populista contra a elite política.

3. De resto, numa altura em que a exigência de personalizaçao das eleições parlamentares sobe na opinião pública - sendo, aliás, uma proposta oficial do PSD desde há muito -, retomar a "fungibilidade" e a rotação dos deputados eleitos é uma insanável contradição.
Tendo sido apresentada por um vice-presidente da bancada parlamentar, com provável apoio de Rui Rio, esta proposta insensata do PSD agrava o sentimento de desorientação política e doutrinária em que se acha o principal partido da oposição.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Assim vai a política (2): Brincar com as instituições

1.  Esta intimação judicial contra o Presidente da AR requerida pelo Deputado André Ventura para obter a suspensão do seu mandato parlamentar não faz nenhum sentido.

Como jurista qualificado que é, ele sabe bem que (i) os atos da Assembleia da República ou do seu Presidente relativos ao governo do parlamento não são atos administrativos, sendo por isso insuscetíveis de escrutínio pela justiça administrativa e que (ii), como atos singulares que são, também não podem ser impugnados junto do Tribunal Constitucional, ressalvados os atos mencionados no art. 223º da CRP.

As normas constitucionais ou legais pertinentes são "normas imperfeitas", à margem de sanção judicial. Com algumas exceções, a Constituição deixou o escrutínio de atos políticos (do PR, da AR, do Governo) exclusivamente à esfera política, assim evitando a judicialização da política e, no caso da AR, respeitando o autogoverno parlamentar.  

2. É por saber isso, como qualquer estudante de Direito Constitucional sabe, que o deputado Andre Ventura só pode estar de ma fé quando recorre à justiça administrativa, numa óbvia operação de provocação das instituições para efeitos políticos. 

Por isso, além da rejeição liminar da descabida pretensão, o STA deveria equacionar a condenação por litigância de má fé.

Adenda
Um leitor pergunta o que penso sobre a suspensão do mandato de Ventura enquanto for candidato a Presidente da República. Apesar de não prevista no Estatuto dos Deputados, penso que faz sentido e entendo mesmo que poderia  ser automática, independentemente da vontade do deputado e de decisão paralamentar. Trata-se, a meu ver, de uma óbvia lacuna de previsão da lei.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ai, Portugal (7): Os comboios não votam

1. Segundo este relato do estado das obras de renovação da ferrovia, anunciadas em 2016 e que deviam estar concluídas quase todas em 2020, a maior parte delas já foram recalendarizadas para serem concluídas somente em 2023, sem contar com o abandono de três delas (uma vetada pela UE e outras duas retiradas).

Como é óbvio, o principal fundamento para esta derrapagem temporal tem a ver com falta de financiamento, por causa da redução do investimento público durante estes anos, vítima "colateral" da prioridade orçamental dada ao aumento da despesa corrente (pensões. salários, prestações sociais), por causa da aliança governamental à esquerda ("Geringonça"). 

Manifestamente, os comboios não votam.

2. Outro aspeto típico, "à portuguesa", deste plano ferroviário foi a aventureira previsão de uma nova linha, entre Aveiro e Mangualde, passando por Viseu, um projeto ultraoneroso (675 milhoes de euros!) - que, aliás, duplicava a linha da Beira Alta existente - e que era manifestamente inviável, como a Comissão Europeia mostrou duas vezes, tendo sido incluída no plano ferroviário apenas para satisfazer interesses localistas. 

Assim se planeam, irresponsavelmente, infraestruturas em Portugal...