Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
sexta-feira, 18 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (21): Ajudas que comprometem
Campos Elísios (6): Macron bis
1. A três semanas da primeira volta das eleições presidenciais francesas, tudo indica que o atual incumbente, Emanuel Macron, vai ser eleito para um segundo quinquénio, como mostra o quadro de previsões acima, colhido no The Economist desta semana, que lhe dá perto de 100% de hipóteses de ganhar à segunda volta, mais uma vez contra a candidata da extrema-direita, Marine Le Pen.
Trata-se de um feito político, não somente porque os últimos presidentes não tinham conseguido a reeleição (Sarkozy, Hollande), mas também porque, apresentando-se ao centro, Macron quebra pela segunda vez a lógica da bipolarização esquerda-direita que era tradicional na V República. Macron consegue atrair grande parte do eleitorado tradicional da direita republicana (cuja candidata, V. Pécresse, aparece em 5º lugar nas sondagens) e, ainda mais, do Partido Socialista (cuja candidata, A. Hidalgo, se fica pelos 2%). Um triunfo convincente!
2. A eleição de Macron é boa para a França e para a UE. Para a França, porque é a vitória do reformismo liberal-democrata sobre a ameaça da direita populista e xenófoba (que em conjunto ultrapassa os 30%); para a UE, porque permite ver a França a investir no reforço da integração europeia, à luz do conceito de "soberania europeia", que o próprio Presidente francês cunhou logo no início do seu 1º mandato, tanto mais importante quanto a guerra na Ucrânia levanta novos desafios económicos e políticos à União.
Resta saber se o partido que ele fundou, La Republique en Marche (LRM), também vai repetir a maioria absoluta nas eleições parlamentares que se seguem, condição para que o Presidente possa levar a cabo o seu programa reformista.
quinta-feira, 17 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (20): Um favor a Putin
1. A exclusão da Rússia do Conselho da Europa, por causa da invasão da Ucrânia e pelos fortes indícios de violação do direito da guerra na condução das operações militares, afasta também o País da jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).
Ora, essa exclusão vai privar os cidadãos russos da proteção dos direitos garantidos na Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), de que até agora gozavam, através do direito de queixa individual para Estrasburgo - tendo a Rússia sido condenada numerosas vezes. Sem acrescentar nada à proteção dos direitos dos ucranianos, a exclusão da Rússia desprotege os cidadãos do maior país europeu. Tem razão a Amnistia Internacional, quando considera isto uma «tragédia para as vítimas de abusos do Kremlin»
Ou seja: uma penalização dos cidadãos russos e um desnecessário favor a Putin!
2. Esta precipitada "libertação" da Rússia da jurisdição do TEDH ocorre quando esta se tornava mais necessária, tendo em conta que uma das consequências mais prováveis desta guerra vai ser o endurecimento do regime e um maior constrangimento das liberdades civis e políticas no País. A qualificação dos críticos internos da invasão como "traidores" e como "escumalha", que importa denunciar para "depuração" da Rússia, não augura nada de bom.
Lamentavelmente, a exclusão da Rússia do Conselho da Europa, a título de justa punição pela invasão da Ucrânia, pode acabar por facilitar o caminho para a autocracia em Moscovo, sendo mais um tijolo no novo muro que ameaça voltar a dividir duradouramente a Europa.
Praça Schuman (12): Reciprocidade no comércio externo da União
1. Após um longo e difícil processo legislativo, que demorou quase uma década, a Comissão Europeia vai ser dotada de meios para fazer observar um princípio de reciprocidade no acesso de empresas entrangeiras ao importante mercado de compras públicas dentro da UE - ou seja, compra de bens e serviços, obras públicas, etc. -, penalizandao as empresas de países que não abram correspondentemente o seu mercado de compras públicas às empresas europeias.
Este novo mecanismo visa sobretudo grandes empresas de países como a China ou a Índia, que tiram partido da abertura do public procurement na União, enquanto esses países mantêm elevadas barreiras à entrada de empresas europeias no seu próprio mercado, beneficiando, portanto, de uma situação de concorrência desleal.
Como é bom de ver, estando a União constitucionalmente obrigada a reduzir/elimnar as barreiras ao comércio internacional e ao investimento direto estrangeiro, não se trata de uma medida protecionista, mas sim de uma alavanca política para pressionar outros países a reduzirem o seu próprio protecionismo.
2. No pileline legislativo da Bruxelas em matéria de comércio externo - que é uma competência exclusiva da União - está também uma proposta da Comissão para aplicar às importações de produtos mais intensivos na produção de CO2 (como aço, cimento, alumínio, etc.) uma tarifa compensatória, quando oriundos de países que não tenham em vigor medidas equivalentes de limitaçao do carbono.
Com esse carbon border adjustment mechanism (CBAM), como são conhecidas essas medidas, a União Europeia - que seria a primeira potência comercial a introduzi-las, apesar de controvertidas quanto à sua compatibilidade com as regras do GATT - visam-se dois objetivos: (i) eliminar a vantagem comercial desses produtos importados sobre os produzidos na União, cujo preço incorpora as exigentes medidas de redução do CO2 em vigor nas Europa e, de caminho, obstar à tentação das empresas europeias de se deslocalizarem para geografias menos exigentes no combate às alterações climáticas; (ii) contribuir para a descarbonização global da economia, pressionando os demais países a adotarem medidas equivalentes, a fim de poderem exportar sem penalização para o imporatnte mercado da União.
Como é bom de ver, a receita desssa "tarifa CO2" deve reverter para o orçamento da União, como genuína "receita própria", tal como, aliás, sucede desde sempre com as demais tarifas aduaneiras.
Guerra na Ucrânia (19): Acordo de paz a caminho?
1. Há informações confirmadas sobre importantes avanços nas negociações para a paz entre os beligerantes, nomeadamente na questão crucial da neutralidade da Ucrânia, condição considerada essencial pela Rússia para a sua segurança.
Penso que do lado da Ucrânia, tendo de ceder o necessário para ir ao encontro da duas preocupações de Moscovo (segurança e estatuto das minorias russas), será primacial obter em contrapartida garantias firmes quanto à sua própria soberania e segurança e quanto à sua autonomia em matéria de sistema político e económico e das suas alianças em ambas essas dimensões.
De resto, nos objetivos explícitos da invasão, Putin não incluiu nenhuma exigência incompatível com essses pontos. Não há nenhuma indicação sobre um suposto propósito de "mudança de regime", ou da transformação da Ucrânia num "protetorado" russo, muito menos da sua anexação e reintegração na Rússia, objetivos que muitos comentadores imputaram ao Presidente russo, sem fundamento credível.
2. Vislumbram-se, portanto, condições para uma negociação bem-sucedida.
No entanto, como tenho referido várias vezes, o acordo de paz não deve envolver somente os dois beligerantes, mas também um conjunto de outros protagonistas, selecionados por acordo entre as partes, que possam avalizar o respeito dos compromissos assumidos. O exemplo do acordo de Minsk, cujo incumprimento constituiu um dos fatores desta guerra, não pode repetir-se.
Se a metáfora não for descabida, o acordo de paz tem de ser "à prova de bala" e da má-fé, vinculando os países e não somente os governos da hora.
quarta-feira, 16 de março de 2022
A guerra da Ucrânia (18): Um "agente de Putin" em Chicago!?
Depois deste artigo de John Mearsheimer, prestigiado professor da Universidade de Chicago, publicado na revista liberal britânica The Economist, já não é mais posssível sustentar que só os adeptos da "esquerda iliberal" e uns abencerragens do "anti-imperialismo americano" é que ousam falar na responsabilidade ocidental na crise ucraniana - ou seja, o processo de integração da Ucrânia na Nato, que não podia deixar de ser considerada por Moscovo como uma ameaça séria à segurança da Rússia - e considerar a guerra da Ucrânia como uma guerra indireta entre a Rússia e a Nato em solo ucraniano (e à custa dos ucranianos).
Tenho a certeza de que este artigo do conhecido especialista em relações internacionais, obviamente imune a qualquer suspeição de russofilia, não vai suscitar as habituais acusações de "desamor pela democracia liberal" e de "cumplicidade com o imperialismo russo", com que são mimoseados todos os que se atrevem a beliscar o "consenso Washington-Bruxelas" sobre a guerra. O mais provável é ser deliberadamente ignorado...
Um leitor queixa-se de que o referido artigo do professor de Chicago está reservado a assinantes do Economist, pelo que os não-assinates têm de aguardar pela edição semanal impressa (que sai no sábado que vem e que também recebo, mas com vários dias de atraso). Uma opção mais célere (e mais barata) é mesmo assinar a edição digital da revista, cuja leitura considero obrigatória (concordando ou discordando) para todos os liberais, de direita ou de esquerda.
terça-feira, 15 de março de 2022
A guerra da Ucrânia (17): Não ao cancelamento do desporto e da cultura
Saúde-se o editorial do El País de hoje, que, sem deixar de condenar incondicionalmente a invasão da Ucrânia e de apoiar as sanções políticas, económicas e financeiras da UE à Rússia, condena igualmente o "cancelamento" generalizado dos desportistas e artistas russos, como se todos os russos, só por o serem, também fossem coletivamente responsáveis pela guerra. (O New York Times acrescenta o boicote dos cientistas russos...).
Mesmo que a União estivesse diretamente em guerra com a Rússia - e não está! -, esta perseguição ao desporto e à cultura russa e a cumplicidade com a gestação de um clima de russofobia primária, sem precedente na "Guerra Fria", são indignas da democracia liberal. Infelizmente, não há muitos jornais como o El País...
A guerra há de findar, Putin há de passar, mas a Rússia e o povo russo ficam, e a sua cultura (literatura, música, património, etc.) vai continuar a fazer parte integrante da grande cultura europeia.
Antologia do nonsense (18): Reativar centrais a carvão!?
As ideias estapafúrdias podem surgir de onde menos se espera, como esta proposta da SEDES de reativar as centrais elétricas a carvão, a pretexto do risco de abastecimento de gás, por causa da guerra da Ucrânia.
Não há nenhuma razão para isso: primeiro, a guerra não provocou nenhuma pertubação no fornecimento de gás natural russo e a cotação do gás até tem vindo a baixar em relação ao pico atingido depois do início da invasão da Ucrânia; segundo, Portugal só depende em 10% do abastecimento de gás russo, que pode ser facilmente substituído por outras fontes.
Pelo contrário, o que há a fazer é reforçar a apostar na autonomia energética do País e na descarbonização da economia por meio das energias renováveis (água, vento e sol). Carvão nunca mais!
Não concordo (30): Estimular a inflação
Embora provavelmente exagerado pelos interessados, o panorama de subida de preços de muitos produtos no retalho alimentar e de escassez de alguns deles não vai tardar a gerar reivindicações de subsídio público dos preços e de restrição no seu abastecimento.
A subsidiação não me parece boa ideia, não somente pelo seu custo orçamental, mas sobretudo porque o subsídio ao consumo de bens escassos apenas vai estimular a subida dos respetivos preços, agravando a pressão inflacionista, em prejuízo de todos os consumidores. Melhor será preparar medidas de ajuda às pessoas mais carenciadas e, se for caso disso, atuar preventivamente sobre as tentações de açambarcamento e de especulação, que as situações de insegurança quanto ao abastecimento sempre geram.
A guerra da Ucrânia (16): Paralelo despropositado da Ucrânia com Taiwan
Há quem pergunte se a invasão da Ucrânea pela Rússia pode prefigurar uma eventual invasão de Taiwan pela China.
Parece-me, porém, ser de todo descabida a similitude de situações insinuada nesta tese, por vários motivos:
- em primeiro lugar, enquanto a Ucrânia é um país soberano desde há três décadas, reconhecido pela própria Rússia e sendo membro das Nações Unidas, a separação de Taiwan nunca foi reconhecida pela RP da China (Pequim) nem por muitos outros países, não sendo um país integrado na ONU;
- em segundo lugar, enquanto no primeiro caso, ao contrário de algumas especulações, não se verifica nenhum propósito da Rússia de anexação ou de reintegração da Ucrânia, já não há a mínima dúvida acerca da determinação de Pequim em reintegrar Taiwan na "unidade nacional", ao abrigo do princípio "uma só China" (o que faz de Taiwan uma "questão interna" do país), sem excluir nenhum meio para alcançar esse objetivo;
- terceiro, enquanto a Ucrânia, não sendo ainda membro da Nato, não pôde contar com a obrigação de intervenção desta em sua defesa, já no caso de Taiwan esta goza do compromissso político dos Estados Unidos de garantia da sua segurança contra Pequim, pelo que uma tentativa de invasão da ilha poderia levar a uma guerra, de consequências imprevisíveis, entre as duas potências;
- por último, enquanto a questão da Ucrânia era uma questão urgente para a Rússia, dado o perigo de entrada daquela na Nato e o agravamento da situação nas províncias russófonas do leste do Páis, a questão de Taiwan pode esperar pela proverbial paciência chinesa, sem precipitações (como já sucedeu, aliás, com a integração negociada de Hong-Kong e de Macau).
De uma coisa estou, porém, convicto: embora uma eventual invasão de Taiwan não suscitasse a condenação nem as sanções internacionais que a invasão da Ucrânia gerou (fica longe e não envolve a Europa...), as dificuldades e o custo desta guerra para a Rússia não podem deixar de ser levadas em conta pela China na sua eventual operação de reintegração de Taiwan.
A guerra da Ucrânia (15): Ominosas previsões extrabélicas
Ninguém pode ignorar o inevitável efeito de ricochete das duras sanções financeiras e comerciais ocidentais aplicadas à Rússia, na sequência da invasão da Ucrânia, desde logo quanto ao preço dos combustíveis e outras commodities e quanto aos decorrentes efeitos sobre a economia (inflação, travagem do crescimento, eventual escassez de alguns produtos, etc.).
No entanto, mantém-se em aberto a estimativa sobre esse impacto negativo, que nas versões mais sombrias pode ir de uma situação de estagflação - ou seja, estagnação económica acompanhada de inflação elevada, com a consequente perda de rendimentos reais para a maior parte da população - até uma perspetiva ainda mais pessimista, designadamente a de uma nova crise financeira global, equiparável à provocada pela falência do Lehmann Brothers em 2008, como se pode ler nas páginas do cirscunspecto Financial Times.
Confiemos em que este último cenário não se venha a verificar...
segunda-feira, 14 de março de 2022
Concordo (21): Tributação extra dos "windfall profits"
Sufrago esta proposta da OCDE para um imposto extraordinário temporário sobre as petrolíferas, a reverter em benefício dos consumidores, para aliviar a enorme alta dos preços na atual conjuntura. Ela converge, aliás, com a solução que há pouco tempo AQUI adiantei, como alternativa market-friendly à fixação administrativa dos preços dos combustíveis, defendida por algumas forças políticas e interesses sociais.
domingo, 13 de março de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (14): Trilogia de perdição
1. Considerando "nojento" este meu artigo sobre a invasão da Ucrânia, que qualifica de "mal disfarçado panfleto pró Moscovo", um leitor irado protesta "não voltar a abrir" este blogue.
Sendo obviamente abusiva a interpretação do leitor, e ultrajante a sua acusação, não lamento o seu afastamento - pelo contrário. No entanto, esta distorção primária dos factos e a acusação destemperada não passam de afloramento da atitude passional com que muita gente encara a guerra na Ucrânia, talvez por se travar à nossa porta e por as suas vítimas serem europeias e não as habituais (iraquianas, sírias, líbias, etc.).
Pelos vistos, nem todas as guerras e nem todas as vítimas delas valem o mesmo...
2. Ainda assim, nada justifica este grau generalizado de simplismo, de maniqueísmo e de fanatismo político - a trilogia mental que envenena irremediavelmente a análise da guerra.
O simplismo exclui à partida qualquer elaboração sobre o processo que culminou na invasão; o maniqueísmo faz extremar as posições, levando a esquecer a imprudência ocidental no agravamento do contencioso russo-ucraniano e a desqualificar totalmente as posições do adversário, por definição malévolas; o fanatismo russófobo - como se a Rússia fosse uma reincarnação agravada do comunismo soviético - leva a ver apenas um lado da guerra e a aceitar e justificar situações inadmissíveis em democracias liberais, como o ostracismo de desportistas e de artistas por causa da sua nacionalidade. (Também há o velho fanatismo antiamericano de alguns defensores da intervenção russa, mas são felizmente muito poucos).
Sucede que esta guerra verbal e ideológica não mata os seus guerreiros, mas infelizmente ajuda a matar mais gente entre os beligerantes no terreno, quer pelo clima hiperbélico que alimenta, quer por dificultar a criação das condições políticas para o termo do conflito, que somente um compromisso negociado e reciprocamente satisfatório pode alcançar.
sábado, 12 de março de 2022
Este País não tem emenda (27): Fragmentação autárquica
Enquanto em Espanha dois municípios da Estremadura decidiram fundir-se por iniciativa própria, criando o terceiro maior da Comunidade, e em muitos países europeus (e mesmo no Brasil) tem havido reformas tendentes a reduzir a fragmentação do poder local, em Portugal ninguém ousa sequer propor a fusão de municípios manifestamente inviáveis, por perda de população (havendo dezenas de municípios com menos de 5000 habitantes) e vai ser implementada a reversão da concentração das freguesias, efetuada há uma década, para satisfação dos candidatos às novas juntas de freguesia!
No entanto, é fácil ver que a fragmentação autárquica, o paroquialismo político e autarquias territoriais sem massa crítica põem em causa o poder local e a boa gestão dos escassos recursos públicos. Qaunto mais fragmentado, menos relevante!
Contra a invasão da Ucrânia (13): Nem tudo são más notícias
Como noticia o bem informado Financial Times, enquanto a devastação da guerra prossegue, as negociações entre a Rússia e a Ucrânia parecem abrir perspetivas de solução diplomática, centrada sobre um estatuto de neutralidade ucraniana e abandono da entrada na Nato (a principal reivindicação russa), acompanhada de efetivas garantias de segurança recíproca - afinal, a solução aqui preconizada desde o início. Segundo o jornal britânico (texto reservado a assinantes), «the two warring countries still seem to suggest that talk of neutrality might help silence the guns».
Infelizmente, nem as televisões nem o "comentariado" que as domina deram qualquer relevo a este desenvolvimento. Decididamente, a ideia de "silenciar as armas" não merece tempo de antena!
Contra a invasão da Ucrânia (12): Não é só a "esquerda iliberal"
1. Não é preciso integrar a "esquerda iliberal" para não alinhar em tudo com o coro hagiográfico dominante sobre a guerra da Ucrânia.
Também os que, como eu - pessoa de esquerda, assumidamente liberal e crítico recorrente da esquerda iliberal -, podem criticar tanto o incentivo da Nato, e especialmente dos Estados Unidos, ao abandono pela Ucrânia do seu estatuto de neutralidade em 2014 e ao pedido de adesão à Nato - o que não podia deixar de ser visto pela Rússia como um grave risco para a sua segurança (como seria para Washington um pacto militar entre o México e a Rússia ou a China...) - como a complacência ocidental com o gritante incumprimento do acordo de Minsk sobre a autonomia das províncias russófonas do Leste da Ucrânia, a qual, em vez disso, as manteve sob permanente assédio militar.
Ou seja, se a invasão da Ucrânia é ilegítima e só merece condenação, isso não impede de considerar legítimas as preocupações de Moscovo naqueles dois pontos. Há obviamente um país agressor e um país invadido, mas, tal como nas relações interpessoais, também aqui nada justifica a prevalecente atitude maniqueísta que vê no primeiro uma encarnação diabólica e na segunda um poço de virtude e que "cancela" como ilegítima toda a divergência ou opinião heterodoxa em relação à verdade assumida.
2. De resto, a crítica da Nato no caso da Ucrânia não pode considerar-se à partida como de motivação "iliberal", por três razões elementares.
Em primeiro lugar, as convicções liberais não exigem uma atitude acrítica ou seguidista perante posições aventureiras ou irresponsáveis de potências liberais, só por o serem, mesmo quando têm por alvo países autocráticos. Pelo contrário, isso seria antiliberal.
Segundo, a Nato não constitui propriamente um clube de democracias liberais, como mostra o facto de Portugal ter sido país fundador, sendo então uma ditadura parafascista, e de hoje em dia serem membros países tão pouco demoliberais como a Turquia, a Hungria ou a Polónia; nascida como pacto militar ocidental contra a União Soviética, independentemente do regime político dos seus membros, só trocou a URSS pela Rússia como adversário, depois do desaparecimento daquela.
Por último, como já escrevi antes, a invasão russa da Ucrânia não tem que ver com o suposto regime demoliberal desta - pois nem sequer parece exigir a mudança do seu Governo -, pelo que a guerra pode vir a terminar desejavelmente com um acordo entre as partes (com garantia plurilateral) que dê uma resposta satisfatória à Rússia nequeles dois aspetos, a troco naturalmente da garantia da soberania e da segurança da própria Ucrânia, sem afetar a conservação do regime político ucraniano nem, muito menos, transformar o País num "satélite" ou "protetorado" de Moscovo.
sexta-feira, 11 de março de 2022
Concordo (20): Um pequeno alívio
Perante a extraordinária subida da cotação internacional do crude, representada no gráfico acima (colhido aqui) - em consequência da guerra na Ucrânia e das sanções ocidentais contra a Rússia -, é bem-vinda a redução da carga fiscal sobre os combustíveis anunciada pelo Governo, baixando o ISP (cujo montante é fixado por portaria governamental, não precisando de ir ao Parlamento, atualmente dissolvido).
Mas é evidente que se trata somente de uma pequena mitigação, que fica longe de neutralizar o impacto da enorme subida da matéria-prima (e do seu transporte), até porque há que ter em consideração o importante contributo dessa receita fiscal para as finanças públicas e para o cumprimento das metas orçamentais, também colocadas sob pressão pelo previsto travamento do crescimento económico (sem excluir a estagnação), da subida dos custos da dívida pública e do aumento das despesas militares...
Se há algo que temos de interiorizar é que a guerra (e as sanções contra a Rússia) vêm alterar profundamente o quadro económico, financeiro e orçamental, assim como as previsões de crescimento e de inflação - e tanto mais, quanto mais durar o conflito. O orçamento e o PEC do corrente ano vão ter de levar uma volta (e, felizmente, há maioria parlamentar para o fazer)...
quinta-feira, 10 de março de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (11): Não ao cancelamento do debate sobre o conflito
Na verdade, para além da condenável proibição de média russos, no âmbito das sanções ocidentais contra a invasão, privando os cidadãos do acesso ao ponto de vista do outro lado do conflito, instalou-se um clima generalizado de condenação liminar e de denúncia como "filoputinista" de toda a opinião que se desvie da pauta de sagração das posições ocidentais e de deslegitimação absoluta de qualquer argumento adverso.
Ora, como tenho procurado mostrar nesta série de textos, é possível condenar sem ambages a invasão e a destruição da guerra, como deve ser, sem, porém, endossar acriticamente as posições da Ucrânia e ocidentais que lhe serviram de pretexto e sem deixar de refletir sobre os termos de uma solução negociada para o conflito, que, garantindo a soberania e a segurança da Ucrânia, satisfaça também as legítimas preocupações da Rússia quanto à sua própria segurança e quanto ao estatuto da minoria russófona.
2. Lamentavelmente, este cancelamento do debate é acompanhado pela complacência pública, se não pelo aplauso, de atitudes inaceitáveis de ostracização de atletas e artistas russos, como se também eles fossem "agentes de Putin", transformando ilegitimamente o desporto e a cultura em extensões da guerra.
Ora, também aqui a necessária solidariedade com a Ucrânia e o apoio aos deslocados pela guerra não tem de exigir o estímulo de um clima populista de "racismo" antirrusso, tornando todos os cidadãos russos em corresponsáveis pela conduta do seu governo. As sanções ocidentais já identificam devidamente os responsáveis.
Não pode deixar de considerar-se preocupante que, para além da miséria e da destruição da guerra, uma das suas sequelas possa ser a criação de uma generalizada russofobia, que envenenaria duradouramente as relações com a Rússia, com a qual coabitamos na Europa, na nova guerra-fria pós-bélica que se perfila.
quarta-feira, 9 de março de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (10): Efeitos colaterais positivos
Mesmo as guerras podem ter efeitos colaterais positivos, ainda que surpreendentes, como sucede com este súbito flirt de Washington com Maduro, a quem até agora não reconhecia sequer como Presidente da Venezuela, com a qual tinha cortado relações diplomáticas.
Alguns cínicos verão nesta aproximação uma exibição do mais pedestre oportunismo político, tanto de Biden, motivada pelo petróleo venezuelano e pela decisão de cortar a importação de petróleo russo, como de Maduro, um aliado da Rússia. Mas o apaziguamento internacional em relação à Venezuela vale bem a incongruência política...
E a UE, será que vai seguir as pisadas de Washington, como tem feito sempre neste crise, enviando também uma delegação amistosa a Caracas?
Contra a invasão da Ucrânia (9): Receita para o desastre
A fuga para a frente nas sanções contra a Rússia cada vez mais impactantes sobre a economia - como a proibição norte-americana de importação de petróleo e de gás russo -, a que Moscovo responde com contrassanções ainda mais disruptivas - como a proibição de exportação de matérias primas e outros produtos -, é uma espiral que ameaça tornar-se uma receita para o desastre económico, mas não apenas da Rússia: entre dois fogos, a UE, incapaz de assumir uma linha autónoma, arrisca-se a tornar-se uma importante vítima colateral de uma guerra de que não é parte ativa...
terça-feira, 8 de março de 2022
Bloquices (18): A intolerável economia de mercado
Revelando mais uma vez a sua aversão à economia de mercado, o Bloco de Esquerda vem novamente defender a fixação administrativa dos preços dos combustíveis, fingindo ignorar que, por princípio, onde há concorrência, não tem cabimento a regulação política dos preços.
O combate aos eventuais carteis (ou seja, a combinação anticoncorrencial dos operadores à margem do mercado) incumbe à Autoridade da Concorrência, que, aliás, tem mostrado mão bem pesada na sua punição, o que só é de louvar. E os lucros extraordinários (windfall profits) resultantes das condições atuais do mercado (invasão da Ucrânia, sanções ocidentais) devem ser combatidos com medidas fiscais conjunturais sobre as empresas, cuja receita deve reverter em benefício dos consumidores.
Mas, como é vidente, isto são "pormenores" que o Bloco prefere ignorar, no seu anticapitalismo primário.
Contra a invasão da Ucrânia (8): Cedência ucraniana?
1. Se sincera, esta abertura de Zelensky, numa entrevista um canal de TV norte-americana, a concessões quanto a dois dos principais fatores que motivaram a invasão russa na Ucrânia - ou seja, a desistência de entrada na Nato e o reconhecimento de um estatuto especial para os territórios russófonos do leste do país - pode abrir uma perspetiva negocial para a paz.
De resto, se feita antes, essa abertura negocial bem poderia ter evitado a invasão em curso. O problema é que, com o imprudente apoio dos Estados Unidos e da UE, Kiev optou pela intransigência nacionalista desafiadora do ressentimento russo.
2. É certo que, depois de iniciada a invasão, Moscovo subiu a parada: não apenas a não entrada na Nato, mas também a desmilitarização e a "desnazificação" da Ucrânia; não somente o autogoverno das províncias do Leste, mas sim o reconhecimento da sua independência, assim como da anexação russa da Crimeia. Todavia, tendo em conta os pesados custos que a guerra também impõe à Russia, não é de excluir a possibilidade de um compromisso russo-ucraniano na base daqueles dois pontos fulcrais, em troca da garantia da soberania e da segurança da Ucrânia.
Neste novo quadro, em vez do seguidismo acrítico que tem mostrado em relação aos Estados Unidos, a UE, sem deixar de condenar firmemente a invasão e de apoiar a Ucrânia, deveria encorajar todos os sinais que possam representar janelas de oportunidade para uma solução negociada do conflito. Para bem dos ucranianos, que sofrem as agruras da invasão, e da própria União, que também vai pagar uma fatura pesada pela guerra (enquanto os Estados Unidos e a China dela beneficiam).
segunda-feira, 7 de março de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (7): Entre a paixão e a razão
Sendo claro que, passadas quase duas semanas do início da invasão, ela só vai terminar com a derrota e ocupação da Ucrânia e que, quanto mais durar a guerra, mais destruído ficará o país, não será altura de a União Europeia, sem prejuízo da condenação da invasão e da solidariedade com Kiev, reponderar a sua atitude passional e de alinhamento acrítico com Washington, atirando gasolina para a fogueira, e encarar a possibilidade de se tornar num fator ativo de moderação, em prol de um cessar-fogo e do início de negociações para a paz?
Não parece já evidente que, embora não sendo beligerante, a UE vai ter de suportar enormes custos da guerra (refugiados, preços da energia, inflação, travagem dos crescimento económico, nova guerra-fria duradoura com a Rússia) e que a China e os Estados Unidos vão ser os seus principais beneficiários? Não será altura de a UE (e em especial os governos social-democratas) introduzir um módico de racionalidade e de self-interest na avaliação da guerra?
sexta-feira, 4 de março de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (6): Erro de enquadramento
1. Há quem condene a invasão russa da Ucrânia, não por ser uma agressão à soberania territorial de outro Estado (como se isso não bastasse!), mas sim por se tratar do ataque de uma alegada "ditadura" a uma suposta "democracia liberal".
Compreende-se o propósito implícito: uma invasão já não seria censurável se se tratasse de uma democracia liberal a uma ditadura, para mudar ao regime, tese que o chamado pensamento "neoconservador" norte-americano defendeu há poucas décadas, para justificar as intervenções dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, e que ressurge regularmente quando convém, como, por exemplo, para justificar as intervenções ocidentais na Síria e na Líbia, e chegou a ser encarado no mandato do Presidente Trump para justificar uma intervenção na Venezuela.
No entanto, não há invasões de um país por outro menos ilegais e condenáveis do que outras. À face do direito internacional, o respeito pela soberania territorial dos Estados e a proibição da agressão militar não dependem do regime político dos países em causa.
2. Sucede que, tanto quanto é possível avaliar a partir da justificação russa para a invasão - proteção dos direitos da minoria russa, desmilitarização e "desnazificação" da Ucrânia -, ela não tem a ver com o regime político vigente em Kiev, podendo ter ocorrido mesmo que se tratasse de um regime autocrático.
Sendo lícito considerar que a principal razão russa para invasão visa impedir a jurisdição da Nato de chegar às fronteiras da Rússia, mantendo a Ucrânia como país-tampão neutral, também tem de concluir-se que não existe nenhuma identificação necessária entre a Nato e a democracia liberal: sendo verdade que a maior parte do países que integram a Nato são democracias liberais, tal não é uma condição (Portugal antes de 1974, Turquia e Hungria hoje), havendo várias democracias liberais europeias que a não integram, mantendo-se neutrais (Suécia, Suíça, Finlândia, Áustria).
Por conseguinte, não sendo necessário para a condenar sem reservas, em nome do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, também não é politicamente correto enquadrar a invasão russa da Ucrânia como uma guerra entre a autocracia e a democracia liberai.
Contra a invasão da Ucrânia (5): O Estado ucraniano não pode ser posto em causa
1. Não conheço nenhuma indicação que a apoie a tese, hoje corrente na interpretação antirrussa da guerra, segundo a qual os objetivos da invasão não seriam apenas os declarados - ou seja, desarmar a Ucrânia, de modo a garantir a segurança da Rússia, e salvaguardar os direitos da minoria russa -, mas sim reintegrá-la na esfera russa, a que pertenceu durante séculos. E francamente, não se vê como é que um tal objetivo poderia ser realizado: uma coisa é atacar e vencer pelas armas um país vizinho, outra coisa é subjugar e absorver politicamente um país com a dimensão territorial e populacional da Ucrânia.
Aliás, se a Rússia nunca poderia reverter a independência da Ucrânia, que reconheceu há quase três décadas, a própria invasão russa e as perdas materiais e humanas infligidas pela guerra vão criar um clima de hostilidade, se não de ódio, ao ocupante, que tornaria impossível qualquer tentativa de reintegração pacífica do País. Isto, para além das sanções internacionais e do isolamento da Rússia na comunidade internacional.
2. Parecendo isto óbvio, não se compreende a insistência de Putin, antes e após a invasão, em afirmar a "unidade" da Rússia e da Ucrânia, que seriam "um só povo", como se esta fosse uma parte naturalmente integrante daquela e como se a secessão e a independência ucraniana há três décadas não fosse mais do que um "efeito colateral" acidental do desmoronamento da União Soviética e do comunismo, que fosse possível reparar agora.
Por mais que pudesse debater-se a questão da identidade nacional da Ucrânia - dadas as suas mutações territoriais e a sua diversidade étnica, linguística e religiosa -, a verdade é que é a própria invasão russa e a resistência ucraniana que vem fornecer ao País o cimento político e o sentido de unidade e identidade de que eventualmente pudesse carecer. Com a invasão, Putin veio proporcionar à Ucrânia aquilo que lhe negava!
A história mostra que as tentativas de reintegração pela força de antigos territórios separados apenas legitimam e reforçam o seu sentido de independência.
terça-feira, 1 de março de 2022
Regionalização (5): A questão do referendo
1. Tendo voltado à agenda política, por iniciativa do governo do PS, a questão da descentralização regional no Continente (ou "regionalização"), mais de duas décadas sobre a rejeição da sua primeira versão no referendo de 1998, era inevitável que a questão do referendo regional, introduzido somente na revisão constitucional de 1997, viesse a ser de novo sujeita a debate público.
O que era menos esperado é que a abertura desse debate coubesse à nova presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, a socialista Luísa Salgueiro (presidente da CM de Matosinhos), a qual, embora sem pôr em causa a necessidade de referendo, imposto pela Constituição, avançou com uma proposta pública de alteração do regime constitucional do referendo quanto a dois pontos precisos:
- sujeitar a referendo somente o mapa regional geral, eliminando a segunda pergunta, relativa a cada área regional em especial;
- suprimir o requisito do quorum de 50% de participação no referendo como condição de vinculatividade da deliberação popular.
Embora na área do PS esta proposta não tenha suscitado comentários públicos, o mesmo não sucedeu no âmbito do PSD, como decorre desta recente peça noticiosa. Parece evidente que as ideias da presidente da ANMP não são consensuais à partida.
2. Das duas referidas propostas, a que faz mais sentido é a segunda, visto que a eventual exigência de participação de mais de metade dos eleitores no território nacional no referendo poderia vetar mais uma vez a criação das autarquias regionais, mesmo que o "sim" ganhasse por confortável maioria.
Note-se que o art. 256º da CRP não é líquido sobre essa questão. Se o nº 3 desse preceito constitucional remete para o regime geral do referendo (art. 115º), onde se inclui o requisito da participação de 50%, já o nº 1 daquele mesmo preceito apenas exige o «(...) voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta (...)», sem referir um quorum mínimo. Todavia, parece evidente que não pode convocar-se o referendo sem clarificar esta dúvida constitucional e ela não pode ser resolvida por consulta prévia ao TC.
Com efeito, nunca se conseguiu o referido quorum em nenhum dos referendos nacionais até agora realizados, nomeadamente no citado referendo regional de 1998, apesar da polémica a que deu lugar. Não há nenhuma razão para acreditar que desta vez seria diferente, tanto mais que a abstenção eleitoral cresceu desde então. A inclusão no recenseamento interno de muitos eleitores ausentes no estrangeiro (mas co morada indicada em Portugal) aumenta artificialmente a abstenção (calcula-se que em cerca de 10pp).
Por isso, realizar o referendo sem afastar claramente essa condição é matar deliberadamente a regionalização à partida.
3. Ora, independentemente de se considerar exagerada essa condição para qualquer referendo - o que levaria a reduzi-la, como proponho (por exemplo, para 40%) -, penso que há bons argumentos para prescindir de qualquer exigência de participação mínima no caso deste referendo específico.
São eles os seguintes:
- trata-se do único referendo obrigatório sobre a implementação de uma reforma institucional prevista desde o início na CRP, cuja ausência configura uma "inconstitucionalidade por omissão", ainda por cima numa questão-chave da arquitetura do Estado territorialmente descentralizado preconizado na Constituição;
- trata-se do único caso em que a execução de uma lei da AR (aliás, uma "lei orgânica" aprovada por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções) fica dependente da sua subsequente ratificação em referendo, à revelia da lógica da democracia representativa;
- este referendo não é sobre a regionalização em si mesma (pois esta está determinada pela Constituição), nem sequer sobre a lei-quadro em geral (atribuições, organização, etc.), mas sim somente sobre o mapa das autarquias regionais previamente definidas na referida lei;
- uma vez que os residentes no estrangeiro não participam neste referendo, não se compreende que nele interfiram indiretamente, só pelo facto de muitos manterem indevidamente a sua morada em Portugal.
Por conseguinte, não faz nenhum sentido que um referendo especial como este fique sujeito ao regime geral do referendo e que a vontade de uma maioria absoluta da AR e dos cidadãos votantes na consulta popular seja aniquilada pelos abstencionistas, que, por definição, não querem participar na decisão. Neste caso, a abstenção não pode ser contada como "não".
É importante, por isso, que os partidos que apoiam a descentralização regional se pronunciem claramente e atempadamente sobre esta decisiva questão.
Sim, mas (9): Emergência sanitária
Não tenho dúvidas da conveniência de uma tal lei, para autorizar restrições especiais a algumas liberdades individuais (como a liberdade de circulação, a liberdade de empresa, a liberdade de trabalho, a liberdade de reunião, a liberdade culto, etc.) e para impor certas obrigações excecionais (obrigação de uso de máscara, de testes sanitários, etc.), mas entendo que, sem uma mudança na Constituição, algumas medidas adotadas durante a recente pandemia, como a quarentena, o confinamento domiciliário ou o recolher obrigatório, só podem ser decretadas em estado de sítio ou estado de emergência, por se tratar de casos de verdadeira suspensão ou privação de direitos, e não da sua simples restrição, a qual não permite lesar o "núcleo essencial" dos direitos fundamentais afetadas, como ocorre nos referidos casos.
2. Houve quem, durante a pandemia, tentasse justificar constitucionalmente tais medidas, invocando a necessidade de proteger o direito à saúde de terceiros, também garantido na Constituição.
Todavia, tal como ensinam os constitucionalistas, um eventual conflito de direitos (entre o direito à saúde e o direito à liberdade pessoal) só poderia justificar a restrição de ambos, não a privação de um deles em benefício do outro, tanto mais que a Constituição cuida de enunciar explicitamente os casos excecionais de privação do direito à liberdade além da pena de prisão e da prisão preventiva (CRP, art. 27º), entre os quais não se conta o direito à saúde, o qual obviamente não pode ser acrescentado por suposta analogia. Foi este, aliás, o entendimento das decisões judiciais que concederam o habeas corpus em várias situações de quarentena fora de estado de emergência, por detenção infundada.
Por conseguinte, tal como tenho defendido várias vezes (por último, AQUI), a tal lei de emergência sanitária ficará aquém do necessário sem uma prévia revisão constitucional.
Contra a invasão da Ucrânia (4): "A Ucrânia não deve aderir à NATO"
Vale a pena recordar este artigo de 2014 sobre a Ucrânia de Henry Kissinger, que sabia a do que falava, onde defendia que o país deveria manter o estatuto de neutralidade, sem aderir à NATO (como aqui também defendi).
Este País não tem emenda (27): Calotes estudantis
Só por incúria das universidades e institutos politécnicos é que a dívida de propinas do ensino superior público pode atingir um tal montante.
Sabendo-se que as taxas do ensino superior baixaram substancialmente desde 2015 - um dos custos orçamentais da "Geringonça" - e que cresceu o número de estudantes beneficiários de bolsas de estudo - o que é de aplaudir -, não há nenhuma razão para este nível elevado de incumprimento, mesmo contando com algum impacto negativo da pandemia. E, em vez de se queixarem somente do seu subfinanciamento orçamental, as instituições de ensino superior públicas fariam bem a cobrar os seus créditos e robustecer o seu nível de autofinanciamento - aliás, condição de uma maior autonomia face aos governos.
Sei bem que para os dirigentes estudantis as propinas nem sequer deveriam existir, apesar de atualmente só cobrirem uma pequena parte dos custos do investimento de que beneficiam, sendo o seu financiamento coberto na maior parte pelos contribuintes em geral. Mas, enquanto as propinas existirem - e eu espero que continuem a existir! -, devem ser cobradas.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (3): «O Ocidente falhou a Ucrânia»
1. Na justa condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia não devemos esquecer, porém, o encadeamento do processo político que levou a este desenlace, justamente recordado neste artigo de um especialista em política internacional, J. P. Teixeira Fernandes, no Público de ontem, de que vale a pena transcrever o último parágrafo:
«O Ocidente falhou em termos morais e políticos. Falhou por não falar claro à Ucrânia e ajudá-la a perceber a opções reais que tinha. Levou-a a afastar-se da neutralidade sem lhe dar uma alternativa exequível. Pior ainda, o Ocidente ignorou o interesse estratégico permanente da Rússia e os seus sentimentos de humilhação, sem proteger efectivamente a Ucrânia. Não obstante a invasão da Rússia ser totalmente injustificada, desrespeitar grosseiramente o Direito Internacional e merecer uma condenação inequívoca, há responsabilidades ocidentais que não se podem iludir agora. A ambição ucraniana de integração da NATO e União Europeia precisava de garantias efectivas de realização. Se isso sempre foi assim, tornou-se demasiado evidente após a anexação da Crimeia (2014). Mas o que fizeram a NATO e a União Europeia? Encorajaram (demasiado) a orientação ocidental da Ucrânia — espicaçando o nacionalismo russo — sem se comprometerem (de forma adequada) com a sua adesão. Não o fizeram porque isso implicava dar garantias de adesão e de segurança militar, assumindo o risco de enfrentar a Rússia, algo que os ocidentais não estavam dispostos a fazer. Para além das manifestações de solidariedade a custo zero, afinal, quem quer morrer pela Ucrânia?»
2. Outro aspeto em que a atual unanimidade antirrussa me parece falhar consiste em apresentar a invasão da Ucrânia como uma decisão isolada do "ditador" Putin e da elite do poder do Kremlin na execução de um maquiavélico projeto pessoal de reconstituição do antigo império russo.
Ora, se bem interpreto o que se passa na Rússia, o espírito nacionalista e o receio pela segurança nacional são hoje sentimentos vastamente dominantes entre a população, decorrentes da desagregação do império aquando do desmoronamento da União Soviética, da discriminação das minorias russas nos novos países independentes e da expansão da Nato até às fronteiras da Rússia.
Como já assinalei anteriormente, espicaçar e alienar uma potência vencida e ressentida acarreta riscos, aliás anunciados, que não deviam ter sido ignorados.