sábado, 19 de março de 2022

Puerta del Sol (7): Madrid sacrifica o Sahara Ocidental

1. Ao sufragar oficialmente o "estatuto de autonomia" concedido por Marrocos ao Sahara Ocidental, o governo espanhol reconhece a integração da antiga colónia espanhola por Rabat (em 1976), abandonando o direito à autodeterminação desse "território não-autónomo" reconhecido pelas Nações Unidas (para o que a Frente Polisário propunha a realização de um referendo). Em troca, a Espanha vê desde já satisfeita a sua exigência de colaboração por Marrocos no controlo da pressão emigrante sobre Ceuta e Melilla.

Enquanto na Europa, a Espanha apoia, e bem, a independência da Ucrânia face à invasão e eventual ocupação russa, em África sacrifica o direito à autodeterminação de uma antiga colónia sua (à qual deveria ter dado a independência em devido tempo), reconhecendo a sua ocupação pela força e a sua integração pelo País ocupante

2. Washington dera o mote em 2020, com o reconhecimento da soberania marroquina sobre o território pelo Presidente Trump. Agora foi a vez de Madrid. Quanto tempo vai demorar para que a própria UE - normalmente tão "principialista" nas relações internacionais (o que é de louvar!) - siga a peugada espanhola, contrariando a firme posição do TJUE?

Pelos vistos, quando convém, a visão "realista" das relações internacionais triunfa sobre a perspetiva "normativista", sacrificando os mais fracos aos interesses dos mais fortes...

Má sorte nascer africano!

Adenda
Comentário de um leitor:«É uma vergonha. Traição dos colonizados, uma depois da outra. Sanchez fica na companhia de Trump, uma bela medalha de serviço, não haja dúvidas».

sexta-feira, 18 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (21): Ajudas que comprometem

1. Entre os muitos estrangeiros que responderam ao apelo do Presidente Zelinski para ajudar a combater a invasão russa contam-se militantes de grupos de extrema-direita e supremacistas brancos -  incluindo portugueses -, que «aproveitaram o apelo de Zelensky para rumarem à Ucrânia, com o principal objetivo de receberem treino e ganharem experiência de combate num cenário real de guerra [e] criar uma rampa de lançamento para um movimento transnacional».
Há ajudas que comprometem!...

2. Que se saiba, não houve nenhum escrutínio tendente a excluir esses "combatentes", de ideologia comprovadamente neonazi, o que não deixa de ser estranho, sendo o Presidente de origem judaica (e tendo os judeus ucranianos sido tragicamente massacrados durante a ocupação nazi na II Guerra Mundial), mas menos surpreendente, quando se sabe que o notório "regimento Azov", uma milícia neonazi armada, formada em 2014, está formalmente integrada na Guarda Nacional da Ucrânia.
Pelos vistos, no combate à invasão da Ucrânia nem todos lutam por causas nobres, nomeadamente pela "democracia liberal"!

Adenda
Apoiando este post, um leitor manifesta-se chocado por o conhecido operacional neonazi, Mário Machado, ter sido judicialmente dispensado das "medidas de coação" a que estava sujeito (entre elas a obrigação de apresentação quinzenal ao tribunal) para viajar para a Ucrânia. Com efeito!

Campos Elísios (6): Macron bis

1. A três semanas da primeira volta das eleições presidenciais francesas, tudo indica que o atual incumbente, Emanuel Macron, vai ser eleito para um segundo quinquénio, como mostra o quadro de previsões acima, colhido no The Economist desta semana, que lhe dá perto de 100% de hipóteses de ganhar à segunda volta, mais uma vez contra a candidata da extrema-direita, Marine Le Pen.

Trata-se de um feito político, não somente porque os últimos presidentes não tinham conseguido a reeleição (Sarkozy, Hollande), mas também porque, apresentando-se ao centro, Macron quebra pela segunda vez a lógica da bipolarização esquerda-direita que era tradicional na V República. Macron consegue atrair grande parte do eleitorado tradicional da direita republicana (cuja candidata, V. Pécresse, aparece em 5º lugar nas sondagens) e, ainda mais, do Partido Socialista (cuja candidata, A. Hidalgo, se fica pelos 2%). Um triunfo convincente!

2. A eleição de Macron é boa para a França e para a UE. Para a França, porque é a vitória do reformismo liberal-democrata sobre a ameaça da direita populista e xenófoba (que em conjunto ultrapassa os 30%); para a UE, porque permite ver a França a investir no reforço da integração europeia, à luz do conceito de "soberania europeia", que o próprio Presidente francês cunhou logo no início do seu 1º mandato, tanto mais importante quanto a guerra na Ucrânia levanta novos desafios económicos e políticos à União.

Resta saber se o partido que ele fundou, La Republique en Marche (LRM), também vai repetir a maioria absoluta nas eleições parlamentares que se seguem, condição para que o Presidente possa levar a cabo o seu programa reformista.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (20): Um favor a Putin

1. A exclusão da Rússia do Conselho da Europa, por causa da invasão da Ucrânia e pelos fortes indícios de violação do direito da guerra na condução das operações militares, afasta também o País da jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).

Ora, essa exclusão vai privar os cidadãos russos da proteção dos direitos garantidos na Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), de que até agora gozavam, através do direito de queixa individual para Estrasburgo - tendo a Rússia sido condenada numerosas vezes. Sem acrescentar nada à proteção dos direitos dos ucranianos, a exclusão da Rússia desprotege os cidadãos do maior país europeu. Tem razão a Amnistia Internacional, quando considera isto uma «tragédia para as vítimas de abusos do Kremlin»

Ou seja: uma penalização dos cidadãos russos e um desnecessário favor a Putin!

2. Esta precipitada "libertação" da Rússia da jurisdição do TEDH ocorre quando esta se tornava mais necessária, tendo em conta que uma das consequências mais prováveis desta guerra vai ser o endurecimento do regime e um maior constrangimento das liberdades civis e políticas no País. A qualificação dos críticos internos da invasão como "traidores" e como "escumalha", que importa denunciar para "depuração" da Rússia, não augura nada de bom.

Lamentavelmente, a exclusão da Rússia do Conselho da Europa, a título de justa punição pela invasão da Ucrânia, pode acabar por facilitar o caminho para a autocracia em Moscovo, sendo mais um tijolo no novo muro que ameaça voltar a dividir duradouramente a Europa.

Praça Schuman (12): Reciprocidade no comércio externo da União

1. Após um longo e difícil processo legislativo, que demorou quase uma década, a Comissão Europeia vai ser dotada de meios para fazer observar um princípio de reciprocidade no acesso de empresas entrangeiras ao importante mercado de compras públicas dentro da UE - ou seja, compra de bens e serviços, obras públicas, etc. -, penalizandao as empresas de países que não abram correspondentemente o seu mercado de compras públicas às empresas europeias.

Este novo mecanismo visa sobretudo grandes empresas de países como a China ou a Índia, que tiram partido da abertura do public procurement na União, enquanto esses países mantêm elevadas barreiras à entrada de empresas europeias no seu próprio mercado, beneficiando, portanto, de uma situação de concorrência desleal.

Como é bom de ver, estando a União constitucionalmente obrigada a reduzir/elimnar as barreiras ao comércio internacional e ao investimento direto estrangeiro, não se trata de uma medida protecionista, mas sim de uma alavanca política para pressionar outros países a reduzirem o seu próprio protecionismo.

2. No pileline legislativo da Bruxelas em matéria de comércio externo - que é uma competência exclusiva da União - está também uma proposta da Comissão para aplicar às importações de produtos mais intensivos na produção de CO2 (como aço, cimento, alumínio, etc.) uma tarifa compensatória, quando oriundos de países que não tenham em vigor medidas equivalentes de limitaçao do carbono.

Com esse carbon border adjustment mechanism (CBAM), como são conhecidas essas medidas, a União Europeia - que seria a primeira potência comercial a introduzi-las, apesar de controvertidas quanto à sua compatibilidade com as regras do GATT - visam-se dois objetivos: (i) eliminar a vantagem comercial desses produtos importados sobre os produzidos na União, cujo preço incorpora as exigentes medidas de redução do CO2 em vigor nas Europa e, de caminho, obstar à tentação das empresas europeias de se deslocalizarem para geografias menos exigentes no combate às alterações climáticas; (ii) contribuir para a descarbonização global da economia, pressionando os demais países a adotarem medidas equivalentes, a fim de poderem exportar sem penalização para o imporatnte mercado da União.

Como é bom de ver, a receita desssa "tarifa CO2" deve reverter para o orçamento da União, como genuína "receita própria", tal como, aliás, sucede desde sempre com as demais tarifas aduaneiras.

Guerra na Ucrânia (19): Acordo de paz a caminho?

1. Há informações confirmadas sobre importantes avanços nas negociações para a paz entre os beligerantes, nomeadamente na questão crucial da neutralidade da Ucrânia, condição considerada essencial pela Rússia para a sua segurança.

Penso que do lado da Ucrânia, tendo de ceder o necessário para ir ao encontro da duas preocupações de Moscovo (segurança e estatuto das minorias russas), será primacial obter em contrapartida garantias firmes quanto à sua própria soberania e segurança e quanto à sua autonomia em matéria de sistema político e económico e das suas alianças em ambas essas dimensões. 

De resto, nos objetivos explícitos da invasão, Putin não incluiu nenhuma exigência incompatível com essses pontos. Não há nenhuma indicação sobre um suposto propósito de "mudança de regime", ou da transformação da Ucrânia num "protetorado" russo, muito menos da sua anexação e reintegração na Rússia, objetivos que muitos comentadores imputaram ao Presidente russo, sem fundamento credível

2. Vislumbram-se, portanto, condições para uma negociação bem-sucedida.

No entanto, como tenho referido várias vezes, o acordo de paz não deve envolver somente os dois beligerantes, mas também um conjunto de outros protagonistas, selecionados por acordo entre as partes, que possam avalizar o respeito dos compromissos assumidos. O exemplo do acordo de Minsk, cujo incumprimento constituiu um dos fatores desta guerra, não pode repetir-se.

Se a metáfora não for descabida, o acordo de paz tem de ser "à prova de bala" e da má-fé, vinculando os países e não somente os governos da hora.

Adenda
Não compreendo o alerta do diretor do Público no seu editorial de hoje: «A imposição de um “estatuto de neutralidade” como o da Suécia ou da Áustria, que parece estar em cima da mesa, será um extraordinário embuste e um prémio à agressão. Se esse estatuto impedir uma aproximação à União Europeia, por exemplo, a Ucrânia será transformada no que a Rússia quer: num Estado-fantoche.». Ora, os dois países neutrais referidos são membros da UE; e o mesmo  sucede com a Finlândia e a Irlanda (e, quando entrarem na União, a Sérvia e a Moldávia). E nenhum deles é um "Estado-fantoche"!

quarta-feira, 16 de março de 2022

A guerra da Ucrânia (18): Um "agente de Putin" em Chicago!?

Depois deste artigo de John Mearsheimer, prestigiado professor da Universidade de Chicago, publicado na revista liberal britânica The Economist, já não é mais posssível sustentar que só os adeptos da "esquerda iliberal" e uns abencerragens do "anti-imperialismo americano" é que ousam falar na responsabilidade ocidental na crise ucraniana - ou seja, o processo de integração da Ucrânia na Nato, que não podia deixar de ser considerada por Moscovo como uma ameaça séria à segurança da Rússia - e considerar a guerra da Ucrânia como uma guerra indireta entre a Rússia e a Nato em solo ucraniano (e à custa dos ucranianos).

Tenho a certeza de que este artigo do conhecido especialista em relações internacionais, obviamente imune a qualquer suspeição de russofilia, não vai suscitar as habituais acusações de "desamor pela democracia liberal" e de "cumplicidade com o imperialismo russo", com que são mimoseados todos os que se atrevem a beliscar o "consenso Washington-Bruxelas" sobre a guerra. O mais provável é ser deliberadamente ignorado...

Adenda
O Presidente da Ucrânia parece agora disponível para abdicar da integração na Nato, o que poderá ser meio caminho andado para o fim da guerra (para o que faltará, porém, uma solução de compromissso quanto ao estatuto especial das províncias russófonas do Leste e da Crimeia). O que pode perguntar-se é se, em vez de ceder nessa questão fulcral agora, sob pressão da invasão russa, não teria sido mais prudente ter mantido o estatuto de neutralidade originária e negociado com a Rússia garantias de respeito recíproco de soberania e segurança, assim evitando tudo o que sucedeu desde 2014 (perda da Crimeia, separação das províncias do Dombass e atual invasão)...

Adenda 2
Um leitor observa que Mearsheimer usa uma gravata com as cores nacionais ucranianas (azul e amarelo). Os zelotas ainda vão acusá-lo de provocação...

Adenda 3
Recordo que, já em 2014, outro observador "realista" das relações internacionais, Henry Kissinger (antigo responsável dos negócios estrangeiros dos Estados Unidos), advertia contra a expansão da Nato para a Ucrânia. Lamentavelmente, a sua advertência foi ignorada em Washington, em Bruxelas (sede da Nato) e em Kiev...

Adenda 4
Fazendo questão de se identificar como "do velho PS", um leitor recorda que Mário Soares alertou, logo em 2008, para a "ameaça à paz" que significava a expansão da Nato para as fronteiras da Rússia, até ao Mar Negro. Pelos vistos, a sageza sénior de Soares não deixou traço nos atuais comentadores socialistas da guerra da Ucrânia, todos alinhados, sem desvios, com o discurso oficial de Washington.

Adenda 5

Um leitor queixa-se de que o referido artigo do professor de Chicago está reservado a assinantes do Economist, pelo que os não-assinates têm de aguardar pela edição semanal impressa (que sai no sábado que vem e que também recebo, mas com vários dias de atraso). Uma opção mais célere (e mais barata) é mesmo assinar a edição digital da revista, cuja leitura considero obrigatória (concordando ou discordando) para todos os liberais, de direita ou de esquerda.

Adenda 6
Minha resposta a um leitor que questionou a validade da "teoria realista" das relações internacionais: «Independentemente da minha posição sobre essa teoria, o que mantenho é que nenhum país que 'more' ao lado de uma potência ressentida deve cometer a imprudência ou a insensatez de a provocar, dando guarida no seu 'quintal' à sua principal potência inimiga. Não acicatar velhas inimizades internacionais também é um princípio normativo nas relações internacionais...».

terça-feira, 15 de março de 2022

A guerra da Ucrânia (17): Não ao cancelamento do desporto e da cultura

Saúde-se o editorial do El País de hoje, que, sem deixar de condenar incondicionalmente a invasão da Ucrânia e de apoiar as sanções políticas, económicas e financeiras da UE à Rússia, condena igualmente o "cancelamento" generalizado dos desportistas e artistas russos, como se todos os russos, só por o serem, também fossem coletivamente responsáveis pela guerra. (O New York Times acrescenta o boicote dos cientistas russos...).

Mesmo que a União estivesse diretamente em guerra com a Rússia - e não está! -, esta perseguição ao desporto e à cultura russa e a cumplicidade com a gestação de um clima de russofobia primária, sem precedente na "Guerra Fria", são indignas da democracia liberal. Infelizmente, não há muitos jornais como o El País...

A guerra há de findar, Putin há de passar, mas a Rússia e o povo russo ficam, e a sua cultura (literatura, música, património, etc.) vai continuar a fazer parte integrante da grande cultura europeia. 

Antologia do nonsense (18): Reativar centrais a carvão!?

As ideias estapafúrdias podem surgir de onde menos se espera, como esta proposta da SEDES de reativar as centrais elétricas a carvão, a pretexto do risco de abastecimento de gás, por causa da guerra da Ucrânia. 

Não há nenhuma razão para isso: primeiro, a guerra não provocou nenhuma pertubação no fornecimento de gás natural russo e a cotação do gás até tem vindo a baixar em relação ao pico atingido depois do início da invasão da Ucrânia; segundo, Portugal só depende em 10% do abastecimento de gás russo, que pode ser facilmente substituído por outras fontes.

Pelo contrário, o que há a fazer é reforçar a apostar na autonomia energética do País e na descarbonização da economia por meio das energias renováveis (água, vento e sol). Carvão nunca mais!

Não concordo (30): Estimular a inflação

Embora provavelmente exagerado pelos interessados, o panorama de subida de preços de muitos produtos no retalho alimentar e de escassez de alguns deles não vai tardar a gerar reivindicações de subsídio público dos preços e de restrição no seu abastecimento.

A subsidiação não me parece boa ideia, não somente pelo seu custo orçamental, mas sobretudo porque o subsídio ao consumo de bens escassos apenas vai estimular a subida dos respetivos preços, agravando a pressão inflacionista, em prejuízo de todos os consumidores. Melhor será preparar medidas de ajuda às pessoas mais carenciadas e, se for caso disso, atuar preventivamente sobre as tentações de açambarcamento e de especulação, que as situações de insegurança quanto ao abastecimento sempre geram.

Adenda
Um leitor argumenta que «a "ajuda às pessoas mais carenciadas" tem precisamente o mesmo defeito - estimular a inflação -, pois dar dinheiro a algumas pessoas faz aumentar o poder de compra total da sociedade, o que inevitavelmente leva a uma subida dos preços». Discordo de todo: uma coisa é subsidiar um produto para toda a gente e outra é subsidiar um pequeno conjunto de pessoas de baixo rendimento, que sem esse subsídio não teriam acesso a bens essenciais, por causa do seu encarecimento extraordinário. É uma questão elementar de justiça social.

Adenda 2
Governo anunciou uma nova prestação social para apoiar famílias mais pobres na compra de alimentos. Uma medida correta, como defendi acima.

A guerra da Ucrânia (16): Paralelo despropositado da Ucrânia com Taiwan

Há quem pergunte se a invasão da Ucrânea pela Rússia pode prefigurar uma eventual invasão de Taiwan pela China.

Parece-me, porém, ser de todo descabida a similitude de situações insinuada nesta tese, por vários motivos: 

    - em primeiro lugar, enquanto a Ucrânia é um país soberano desde há três décadas, reconhecido pela própria Rússia e sendo membro das Nações Unidas, a separação de Taiwan nunca foi reconhecida pela RP da China (Pequim) nem por muitos outros países, não sendo um país integrado na ONU;

    - em segundo lugar, enquanto no primeiro caso, ao contrário de algumas especulações, não se verifica nenhum propósito da Rússia de anexação ou de reintegração da Ucrânia, já não há a mínima dúvida acerca da determinação de Pequim em reintegrar Taiwan na "unidade nacional", ao abrigo do princípio "uma só China" (o que faz de Taiwan uma "questão interna" do país), sem excluir nenhum meio para alcançar esse objetivo;

    - terceiro, enquanto a Ucrânia, não sendo ainda membro da Nato, não pôde contar com a obrigação de intervenção desta em sua defesa, já no caso de Taiwan esta goza do compromissso político dos Estados Unidos de garantia da sua segurança contra Pequim, pelo que uma tentativa de invasão da ilha poderia levar a uma guerra, de consequências imprevisíveis, entre as duas potências;

    - por último, enquanto a questão da Ucrânia era uma questão urgente para a Rússia, dado o perigo de entrada daquela na Nato e o agravamento da situação nas províncias russófonas do leste do Páis, a questão de Taiwan pode esperar pela proverbial paciência chinesa, sem precipitações (como já sucedeu, aliás, com a integração negociada de Hong-Kong e de Macau). 

De uma coisa estou, porém, convicto: embora uma eventual invasão de Taiwan não suscitasse a condenação nem as sanções internacionais que a invasão da Ucrânia gerou (fica longe e não envolve a Europa...), as dificuldades e o custo desta guerra para a Rússia não podem deixar de ser levadas em conta pela China na sua eventual operação de reintegração de Taiwan

A guerra da Ucrânia (15): Ominosas previsões extrabélicas

Ninguém pode ignorar o inevitável efeito de ricochete das duras sanções financeiras e comerciais ocidentais aplicadas à Rússia, na sequência da invasão da Ucrânia, desde logo quanto ao preço dos combustíveis e outras commodities e quanto aos decorrentes efeitos sobre a economia (inflação, travagem do crescimento, eventual escassez de alguns produtos, etc.).

No entanto, mantém-se em aberto a estimativa sobre esse impacto negativo, que nas versões mais sombrias pode ir de uma situação de estagflação  - ou seja, estagnação económica acompanhada de inflação elevada, com a consequente perda de rendimentos reais para a maior parte da população - até uma perspetiva ainda mais pessimista, designadamente a de uma nova crise financeira global, equiparável à provocada pela falência do Lehmann Brothers em 2008, como se pode ler nas páginas do cirscunspecto Financial Times

Confiemos em que este último cenário não se venha a verificar...

segunda-feira, 14 de março de 2022

Concordo (21): Tributação extra dos "windfall profits"

Sufrago esta proposta da OCDE para um imposto extraordinário temporário sobre as petrolíferas, a reverter em benefício dos consumidores, para aliviar a enorme alta dos preços na atual conjuntura. Ela converge, aliás, com a solução que há pouco tempo AQUI adiantei, como alternativa market-friendly à fixação administrativa dos preços dos combustíveis, defendida por algumas forças políticas e interesses sociais.

Adenda
Um leitor defende uma descida transitória do IVA nos combustíveis. Discordo, por duas razões: (i) porque uma tal medida, que depois seria politicamente custoso reveerter, daria um sinal contraditório com as exigentes metas de descarbonização da economia, que passam necessariamente pelo preço dos combustíveis; (ii) porque, sendo o IVA uma das grandes fontes da receita do Estado, uma perda significativa dessa receita poderia pôr em risco as exigências do equilíbrio orçamental e da redução do peso da dívida pública. Por isso, penso que a própria redução do ISP deve findar logo que termine o presente surto na cotação do petróleio. A geração de CO2 não pode ser incentivada!

domingo, 13 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (14): Trilogia de perdição

1. Considerando "nojento" este meu artigo sobre a invasão da Ucrânia, que qualifica de "mal disfarçado panfleto pró Moscovo", um leitor irado protesta "não voltar a abrir" este blogue. 

Sendo obviamente abusiva a interpretação do leitor, e ultrajante a sua acusação, não lamento o seu afastamento - pelo contrário. No entanto, esta distorção primária dos factos e a acusação destemperada não passam de afloramento da atitude passional com que muita gente encara a guerra na Ucrânia, talvez por se travar à nossa porta e por as suas vítimas serem europeias e não as habituais (iraquianas, sírias, líbias, etc.). 

Pelos vistos, nem todas as guerras e nem todas as vítimas delas valem o mesmo...

2. Ainda assim, nada justifica este grau generalizado de simplismo, de maniqueísmo e de fanatismo político - a trilogia mental que envenena irremediavelmente a análise da guerra. 

O simplismo exclui à partida qualquer elaboração sobre o processo que culminou na invasão; o maniqueísmo faz extremar as posições, levando a esquecer a imprudência ocidental no agravamento do contencioso russo-ucraniano e a desqualificar totalmente as posições do adversário, por definição malévolas; o fanatismo russófobo - como se a Rússia fosse uma reincarnação agravada do comunismo soviético - leva a ver apenas um lado da guerra e a aceitar e justificar situações inadmissíveis em democracias liberais, como o ostracismo de desportistas e de artistas por causa da sua nacionalidade. (Também há o velho fanatismo antiamericano de alguns defensores da intervenção russa, mas são felizmente muito poucos).

Sucede que esta guerra verbal e ideológica não mata os seus guerreiros, mas infelizmente ajuda a matar mais gente entre os beligerantes no terreno, quer pelo clima hiperbélico que alimenta, quer por dificultar a criação das condições políticas para o termo do conflito, que somente um compromisso negociado e reciprocamente satisfatório pode alcançar.

Adenda
Pior do que ignorar a imprudência ocidental no agravamento do contencioso russo-ucraniano (que referi AQUI) é acusar os líderes políticos europeus que menos contribuíram para isso, como Angela Merkel, de terem sido responsáveis por uma política de "apaziguamento" para com a Rússia suscetível de ser equiparada à de Chamberlain em Munique. Há comparações históricas que o simples bom-senso político deveria afastar na "imprensa de referência"...

Adenda 2
Felizmente, no meio da insanidade politica dominante no debate sobre a guerra, ainda há quem consiga pensar racionalmente (sem simplismo, maniqueísmo nem fanatismo) na necessária "saída para o conflito". Subscrevo (até porque converge com o que tenho defendido desde o início)!

sábado, 12 de março de 2022

Este País não tem emenda (27): Fragmentação autárquica

Enquanto em Espanha dois municípios da Estremadura decidiram fundir-se por iniciativa própria, criando o terceiro maior da Comunidade, e em muitos países europeus (e mesmo no Brasil) tem havido reformas tendentes a reduzir a fragmentação do poder local, em Portugal ninguém ousa sequer propor a fusão de municípios manifestamente inviáveis, por perda de população (havendo dezenas de municípios com menos de 5000 habitantes) e vai ser implementada a reversão da concentração das freguesias, efetuada há uma década, para satisfação dos candidatos às novas juntas de freguesia!

No entanto, é fácil ver que a fragmentação autárquica, o paroquialismo político e autarquias territoriais sem massa crítica põem em causa o poder local e a boa gestão dos escassos recursos públicos. Qaunto mais fragmentado, menos relevante!

Adenda
Quando digo acima que «ninguém ousa sequer propor a fusão de municípios manifestamente inviáveis» quero dizer "nenhum partido". Não têm faltado propostas pessoais, incluindo AQUI. Há uma mesquinha contabilidade política - o número de municipios de cada partido e a correlação de forças política na ANMP - que inibe qualquer evolução nesse tema.

Contra a invasão da Ucrânia (13): Nem tudo são más notícias

Como noticia o bem informado Financial Times, enquanto a devastação da guerra prossegue, as negociações entre a Rússia e a Ucrânia parecem abrir perspetivas de solução diplomática, centrada sobre um estatuto de neutralidade ucraniana e abandono da entrada na Nato (a principal reivindicação russa), acompanhada de efetivas garantias de segurança recíproca -  afinal, a solução aqui preconizada desde o início. Segundo o jornal britânico (texto reservado a assinantes), «the two warring countries still seem to suggest that talk of neutrality might help silence the guns»

Infelizmente, nem as televisões nem o "comentariado" que as domina deram qualquer relevo a este desenvolvimento. Decididamente, a ideia de "silenciar as armas" não merece tempo de antena!

Adenda
Um leitor duvida que a via diplomática produza efeitos a curto, pois a Rússia só vai parar a invasão com a rendição da Ucrânia (o que não é para dias) e os Estados Unidos estão interessados no prologamento da guerra para fazer pagar um preço alto a Moscovo pela invasão. Sim, há o risco de os ucranianos se tornarem "carne para canhão" numa guerra que, de facto, se trava no seu território entre a Rússia e a Nato (embora sem intervenção aberta desta).

Contra a invasão da Ucrânia (12): Não é só a "esquerda iliberal"

1. Não é preciso integrar a "esquerda iliberal" para não alinhar em tudo com o coro hagiográfico dominante sobre a guerra da Ucrânia.

Também os que, como eu - pessoa de esquerda, assumidamente liberal e crítico recorrente da esquerda iliberal -, podem criticar tanto o incentivo da Nato, e especialmente dos Estados Unidos, ao abandono pela Ucrânia do seu estatuto de neutralidade em 2014 e ao pedido de adesão à Nato - o que não podia deixar de ser visto pela Rússia como um grave risco para a sua segurança (como seria para Washington um pacto militar entre o México e a Rússia ou a China...) - como a complacência ocidental com o gritante incumprimento do acordo de Minsk sobre a autonomia das províncias russófonas do Leste da Ucrânia, a qual, em vez disso, as manteve sob permanente assédio militar.

Ou seja, se a invasão da Ucrânia é ilegítima e só merece condenação, isso não impede de considerar legítimas as preocupações de Moscovo naqueles dois pontos. Há obviamente um país agressor e um país invadido, mas, tal como nas relações interpessoais, também aqui nada justifica a prevalecente atitude maniqueísta que vê no primeiro uma encarnação diabólica e na segunda um poço de virtude e que "cancela" como ilegítima toda a divergência ou opinião heterodoxa em relação à verdade assumida.

2. De resto, a crítica da Nato no caso da Ucrânia não pode considerar-se à partida como de motivação "iliberal", por três razões elementares.

Em primeiro lugar, as convicções liberais não exigem uma atitude acrítica ou seguidista perante posições aventureiras ou irresponsáveis de potências liberais, só por o serem, mesmo quando têm por alvo países autocráticos. Pelo contrário, isso seria antiliberal.

Segundo, a Nato não constitui propriamente um clube de democracias liberais, como mostra o facto de Portugal ter sido país fundador, sendo então uma ditadura parafascista, e de hoje em dia serem membros países tão pouco demoliberais como a Turquia, a Hungria ou a Polónia; nascida como pacto militar ocidental contra a União Soviética, independentemente do regime político dos seus membros, só trocou a URSS pela Rússia como adversário, depois do desaparecimento daquela.

Por último, como já escrevi antes, a invasão russa da Ucrânia não tem que ver com o suposto regime demoliberal desta - pois nem sequer parece exigir a mudança do seu Governo -, pelo que a guerra pode vir a terminar desejavelmente com um acordo entre as partes (com garantia plurilateral) que dê uma resposta satisfatória à Rússia nequeles dois aspetos, a troco naturalmente da garantia da soberania e da segurança da própria Ucrânia, sem afetar a conservação do regime político ucraniano nem, muito menos, transformar o País num "satélite" ou "protetorado" de Moscovo.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Concordo (20): Um pequeno alívio

Perante a extraordinária subida da cotação internacional do crude, representada no gráfico acima (colhido aqui) - em consequência da guerra na Ucrânia e das sanções ocidentais contra a Rússia -, é bem-vinda a redução da carga fiscal sobre os combustíveis anunciada pelo Governo, baixando o ISP (cujo montante é fixado por portaria governamental, não precisando de ir ao Parlamento, atualmente dissolvido).

Mas é evidente que se trata somente de uma pequena mitigação, que fica longe de neutralizar o impacto da enorme subida da matéria-prima (e do seu transporte), até porque há que ter em consideração o importante contributo dessa receita fiscal para as finanças públicas e para o cumprimento das metas orçamentais, também colocadas sob pressão pelo previsto travamento do crescimento económico (sem excluir a estagnação), da subida dos custos da dívida pública e do aumento das despesas militares...

Se há algo que temos de interiorizar é que a guerra (e as sanções contra a Rússia) vêm alterar profundamente o quadro económico, financeiro e orçamental, assim como as previsões de crescimento e de inflação - e tanto mais, quanto mais durar o conflito. O orçamento e o PEC do corrente ano vão ter de levar uma volta (e, felizmente, há maioria parlamentar para o fazer)...

Adenda
Um leitor argumenta que todos os países vão sofrer o mesmo impacto negativo. Mas não é bem assim: se todos vão ser mais ou menos afetados pelo aumento dos combustíveis e das commodities agrícolas, a UE, como já referi anteriormente, é especialmente vulnerável aos efeitos negativos da guerra e das sanções (muito mais do que os Estados Unidos e a China), dada a sua proximidade do conflito (desde logo, os refugiados) e o peso das relações comerciais com a Rússia e a Ucrânia. 

Adenda 2
Outro leitor objeta que, mesmo com este alívio, Portugal vai provavelmente continuar a ter a mais elevada carga fiscal sobre combustíveis na Europa. Mas não tem razão: mesmo antes dele, havia vários países com maior carga fiscal (como se pode ver aqui) e, portanto, com combustíveis mais caros. A diferença com a Espanha só é tão marcada, porque o pais vizinho tem uma carga fiscal muito baixa, inferior à média da UE.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (11): Não ao cancelamento do debate sobre o conflito

1. Não é preciso concordar com tudo para saudar o artigo de Boaventura Sousa Santos, Para uma autocrítica da Europa, hoje no Público, sobretudo porque ele ousa quebrar o atual "cancelamento" sistemático do debate sobre a guerra da Ucrânia, desde as suas origens até às possíveis vias de solução negociada.

Na verdade, para além da condenável proibição de média russos, no âmbito das sanções ocidentais contra a invasão, privando os cidadãos do acesso ao ponto de vista do outro lado do conflito, instalou-se um clima generalizado de condenação liminar e de denúncia como "filoputinista" de toda a opinião que se desvie da pauta de sagração das posições ocidentais e de deslegitimação absoluta de qualquer argumento adverso.

Ora, como tenho procurado mostrar nesta série de textos, é possível condenar sem ambages a invasão e a destruição da guerra, como deve ser, sem, porém, endossar acriticamente as posições da Ucrânia e ocidentais que lhe serviram de pretexto e sem deixar de refletir sobre os termos de uma solução negociada para o conflito, que, garantindo a soberania e a segurança da Ucrânia, satisfaça também as legítimas preocupações da Rússia quanto à sua própria segurança e quanto ao estatuto da minoria russófona.

2. Lamentavelmente, este cancelamento do debate é acompanhado pela complacência pública, se não pelo aplauso, de atitudes inaceitáveis de ostracização de atletas e artistas russos, como se também eles fossem "agentes de Putin", transformando ilegitimamente o desporto e a cultura em extensões da guerra.

Ora, também aqui a necessária solidariedade com a Ucrânia e o apoio aos deslocados pela guerra não tem de exigir o estímulo de um clima populista de "racismo" antirrusso, tornando todos os cidadãos russos em corresponsáveis pela conduta do seu governo. As sanções ocidentais já identificam devidamente os responsáveis. 

Não pode deixar de considerar-se preocupante que, para além da miséria e da destruição da guerra, uma das suas sequelas possa ser a criação de uma generalizada russofobia, que envenenaria duradouramente as relações com a Rússia, com a qual coabitamos na Europa, na nova guerra-fria pós-bélica que se perfila

quarta-feira, 9 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (10): Efeitos colaterais positivos

Mesmo as guerras podem ter efeitos colaterais positivos, ainda que surpreendentes, como sucede com este súbito flirt de Washington com Maduro, a quem até agora não reconhecia sequer como Presidente da Venezuela, com a qual tinha cortado relações diplomáticas. 

Alguns cínicos verão nesta aproximação uma exibição do mais pedestre oportunismo político, tanto de Biden, motivada pelo petróleo venezuelano e pela decisão de cortar a importação de petróleo russo, como de Maduro, um aliado da Rússia. Mas o apaziguamento internacional em relação à Venezuela vale bem a incongruência política...

E a UE, será que vai seguir as pisadas de Washington, como tem feito sempre neste crise, enviando também uma delegação amistosa a Caracas?

Adenda
Comentando que a guerra da Ucrânia «começa a ser virtuosa na América», um leitor interroga-se sobre se o próximo passo apaziguador de Washington é descongelar as relações também com Cuba, "namorando" outro aliado da Rússia (mas duvida, por Havana não ter petróleo...). Quem sabe?!

Contra a invasão da Ucrânia (9): Receita para o desastre

A fuga para a frente nas sanções contra a Rússia cada vez mais impactantes sobre a economia - como a proibição norte-americana de importação de petróleo e de gás russo -, a que Moscovo responde com contrassanções ainda mais disruptivas - como a proibição de exportação de matérias primas e outros produtos -, é uma espiral que ameaça tornar-se uma receita para o desastre económico, mas não apenas da Rússia: entre dois fogos, a UE, incapaz de assumir uma linha autónoma, arrisca-se a tornar-se uma importante vítima colateral de uma guerra de que não é parte ativa...

Adenda
O Primeiro-Ministro alerta para os efeitos de ricochete das sanções ocidentais contra a Rússia, a que se pode acrescentar as contrassanções russas. Sucede, porém, que não era difícil antecipar tais consequências, como se alertou AQUI. O masoquismo político tem consequências...

Adenda 2
Um leitor acha que se está a «exagerar o impacto negativo da guerra e das sanções» na economia da UE. Penso que não tem razão: desde o início do ano, a cotação internacional do gás subiu cerca de 140%; a do petróleo, cerca de 40%; e a do trigo, cerca de 25%. Estas subidas vão obviamente repercutir-se sobre toda a economia, em inflação e em perda de crescimento (e também sobre as finanças públicas, quer pela redução da receita fiscal, quer pelo aumento da despesa para tentar amenizar o impacto da subida do preço da energia). Não é de excluir que a situação se agrave, à medida que a guerra se prolonga e que as sanções e contrassanções produzem efeito.

terça-feira, 8 de março de 2022

Bloquices (18): A intolerável economia de mercado

Revelando mais uma vez a sua aversão à economia de mercado, o Bloco de Esquerda vem novamente defender a fixação administrativa dos preços dos combustíveis, fingindo ignorar que, por princípio, onde há concorrência, não tem cabimento a regulação política dos preços. 

O combate aos eventuais carteis (ou seja, a combinação anticoncorrencial dos operadores à margem do mercado) incumbe à Autoridade da Concorrência, que, aliás, tem mostrado mão bem pesada na sua punição, o que só é de louvar. E os lucros extraordinários (windfall profits) resultantes das condições atuais do mercado (invasão da Ucrânia, sanções ocidentais) devem ser combatidos com medidas fiscais conjunturais sobre as empresas, cuja receita deve reverter em benefício dos consumidores.

Mas, como é vidente, isto são "pormenores" que o Bloco prefere ignorar, no seu anticapitalismo primário.

Adenda
Um leitor argumenta que (i) «o aumento dos combustíveis [é] um autêntico esbulho aos consumidores que conduz ao enriquecimento ilícito das petrolíferas», (ii) que «não há verdadeira concorrência, [pois] os preços praticados são idênticos, muitas vezes à milésima de Euro» e que (iii) «para a AdC actuar, é preciso provar que houve cartelização, combinação de preços entre os vários operadores» -, pelo que concorda com a fixação política de preços máximos. A minha resposta é que (i) a fixação administrativa de preços, para além de contrariar essencialmente a lógica da economia de mercado, é sempre um instrumento grosseiro, especialmente num setor muito volátil, como o dos combustíveis, em que as cotações mudam ao dia, e que (ii), começando pelos combustíveis, o risco seria avançar para a intervenção nos preços em outros setores. Por isso, prefiro o ataque fiscal aos sobrelucros das companhias, que são mais fáceis de estimar e de tributar.

Contra a invasão da Ucrânia (8): Cedência ucraniana?

1. Se sincera, esta abertura de Zelensky, numa entrevista um canal de TV norte-americana, a concessões quanto a dois dos principais fatores que motivaram a invasão russa na Ucrânia - ou seja, a desistência de entrada na Nato e o reconhecimento de um estatuto especial para os territórios russófonos do leste do país - pode abrir uma perspetiva negocial para a paz. 

De resto, se feita antes, essa abertura negocial bem poderia ter evitado a invasão em curso. O problema é que, com o imprudente apoio dos Estados Unidos e da UE, Kiev optou pela intransigência nacionalista desafiadora do ressentimento russo.

2. É certo que, depois de iniciada a invasão, Moscovo subiu a parada: não apenas a não entrada na Nato, mas também a desmilitarização e a "desnazificação" da Ucrânia; não somente o autogoverno das províncias do Leste, mas sim o reconhecimento da sua independência, assim como da anexação russa da Crimeia. Todavia, tendo em conta os pesados custos que a guerra também impõe à Russia, não é de excluir a possibilidade de um compromisso russo-ucraniano na base daqueles dois pontos fulcrais, em troca da garantia da soberania e da segurança da Ucrânia.

Neste novo quadro, em vez do seguidismo acrítico que tem mostrado em relação aos Estados Unidos, a UE, sem deixar de condenar firmemente a invasão e de apoiar a Ucrânia, deveria encorajar todos os sinais que possam representar janelas de oportunidade para uma solução negociada do conflito. Para bem dos ucranianos, que sofrem as agruras da invasão, e da própria União, que também vai pagar uma fatura pesada pela guerra (enquanto os Estados Unidos e a China dela beneficiam).

Adenda
Um leitor argumenta que «nenhum tradado de paz pode ser assinada pela Ucrânia se não incluir o retorno da Crimeia à sua soberania». Estou de acordo. Mas penso que a anexação da Ucrânia pela Rússia em 2014 foi uma reação à viragem antirrusssa em Kiev nesse ano e ao pedido de integração na Nato, o que poderia pôr em risco a base russa de Sabastopol, pilar essencial da defesa marítima da Rússia, pelo que é de admitir um compromisso que passe pela devolução da península à Ucrânia, com um estatuto de região autónoma, e pela confirmação, sem termo, da jurisdição russa sobre Sebastopol

Adenda 2
Não deixa de ser surpreendente que esta importante declaração do líder ucraniano tenha passado sem o devido destaque nos média e praticamente sem referência pela legião de comentadores que a toda a hora debitam opiniões sobre a guerra. Será porque ela não condiz com a narrativa belicista que têm persistentemente "vendido" sobre o conflito?

Adenda 3
Comentário de um leitor: «Depois desta estrevista, Zelensky arrisca-se a passar de herói a traidor e a ser despedido por Washington». Muito provável...

Adenda 4
Um leitor comenta que «Zelenski não é fiável e que (...) não tem real poder. Há na Ucrânia forças nacionalistas muito poderosas. Mesmo que Zelensky ceda, essas forças não cederão. E mesmo que Zelensky aceite acordar a paz, essas forças insistirão na via da guerra.» Pode ser que tenha razão, mas declarações destas não são gratuitas e devem ser exploradas a favor de uma solução de paz negociada.


segunda-feira, 7 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (7): Entre a paixão e a razão

Sendo claro que, passadas quase duas semanas do início da invasão, ela só vai terminar com a derrota e ocupação da Ucrânia e que, quanto mais durar a guerra, mais destruído ficará o país, não será altura de a União Europeia, sem prejuízo da condenação da invasão e da solidariedade com Kiev, reponderar a sua atitude passional e de alinhamento acrítico com Washington, atirando gasolina para a fogueira, e encarar a possibilidade de se tornar num fator ativo de moderação, em prol de um cessar-fogo e do início de negociações para a paz?

Não parece já evidente que, embora não sendo beligerante, a UE vai ter de suportar enormes custos da guerra (refugiados, preços da energia, inflação, travagem dos crescimento económico, nova guerra-fria duradoura com a Rússia) e que a China e os Estados Unidos vão ser os seus principais beneficiários? Não será altura de a UE (e em especial os governos social-democratas) introduzir um módico de racionalidade e de self-interest na avaliação da guerra?

Adenda
Manifestando a sua concordância, um leitor habitual acrescenta: «Eu acrescentaria que, para o efeito pretendido, a UE tem todo o interesse em começar a aligeirar as sanções sobre a Rússia, as quais constituem um impedimento maior a que esta aceite qualquer solução negociada. Algumas sanções são supinamente estúpidas - como banir os meios de comunicação russos e como banir artistas ou desportistas russos - e deveriam ser imediatamente eliminadas. E tem que se dar à Rússia a perspetiva de que as outras sanções também serão eliminadas, desde que haja uma solução negociada.» Penso que, salvo as duas referidas (que, a meu ver, envergonham a União), as sanções devem manter-se como pressão sobre a Rússia para uma solução negociada.

Adenda 2
Outro leitor também habitual deste blogue pergunta se estou «a sugerir uma política de "appeasement"», ou seja, concessões a um agressor para evitar conflitos. A resposta é obviamente negativa: primeiro, porque o conflito já está desencadeado; segundo, porque o que proponho é um compromisso negocial entre as partes, "abonado" por outras potências (incluindo a UE), em que as cedências da Ucrânia (renúncia à entrada na Nato e autogoverno das províncias russófonas) teriam como contrapartida a garantia pela Rússia da soberania e da segurança daquela.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (6): Erro de enquadramento

1. Há quem condene a invasão russa da Ucrânia, não por ser uma agressão à soberania territorial de outro Estado (como se isso não bastasse!), mas sim por se tratar do ataque de uma alegada "ditadura" a uma suposta "democracia liberal". 

Compreende-se o propósito implícito: uma invasão já não seria censurável se se tratasse de uma democracia liberal a uma ditadura, para mudar ao regime, tese que o chamado pensamento "neoconservador" norte-americano defendeu há poucas décadas, para justificar as intervenções dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, e que ressurge regularmente quando convém, como, por exemplo, para justificar as intervenções ocidentais na Síria e na Líbia, e chegou a ser encarado no mandato do Presidente Trump para justificar uma intervenção na Venezuela.

No entanto, não há invasões de um país por outro menos ilegais e condenáveis do que outras. À face do direito internacional, o respeito pela soberania territorial dos Estados e a proibição da agressão militar não dependem do regime político dos países em causa

2. Sucede que, tanto quanto é possível avaliar a partir da justificação russa para a invasão - proteção dos direitos da minoria russa, desmilitarização e "desnazificação" da Ucrânia -, ela não tem a ver com o regime político vigente em Kiev, podendo ter ocorrido mesmo que se tratasse de um regime autocrático.

Sendo lícito considerar que a principal razão russa para invasão visa impedir a jurisdição da Nato de chegar às fronteiras da Rússia, mantendo a Ucrânia como país-tampão neutral, também tem de concluir-se que não existe nenhuma identificação necessária entre a Nato e a democracia liberal: sendo verdade que a maior parte do países que integram a Nato são democracias liberais, tal não é uma condição (Portugal antes de 1974, Turquia e Hungria hoje), havendo várias democracias liberais europeias que a não integram, mantendo-se neutrais (Suécia, Suíça, Finlândia, Áustria). 

Por conseguinte, não sendo necessário para a condenar sem reservas, em nome do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, também não é politicamente correto enquadrar a invasão russa da Ucrânia como uma guerra entre a autocracia e a democracia liberai.


Contra a invasão da Ucrânia (5): O Estado ucraniano não pode ser posto em causa

1. Não conheço nenhuma indicação que a apoie a tese, hoje corrente na interpretação antirrussa da guerra, segundo a qual os objetivos da invasão não seriam apenas os declarados - ou seja, desarmar a Ucrânia, de modo a garantir a segurança da Rússia, e salvaguardar os direitos da minoria russa -, mas sim reintegrá-la na esfera russa, a que pertenceu durante séculos. E francamente, não se vê como é que um tal objetivo poderia ser realizado: uma coisa é atacar e vencer pelas armas um país vizinho, outra coisa é subjugar e absorver politicamente um país com a dimensão territorial e populacional da Ucrânia.

Aliás, se a Rússia nunca poderia reverter a independência da Ucrânia, que reconheceu há quase três décadas, a própria invasão russa e as perdas materiais e humanas infligidas pela guerra vão criar um clima de hostilidade, se não de ódio, ao ocupante, que tornaria impossível qualquer tentativa de reintegração pacífica do País. Isto, para além das sanções internacionais e do isolamento da Rússia na comunidade internacional.

2. Parecendo isto óbvio, não se compreende a insistência de Putin, antes e após a invasão, em afirmar a "unidade" da Rússia e da Ucrânia, que seriam "um só povo", como se esta fosse uma parte naturalmente integrante daquela e como se a secessão e a independência ucraniana há três décadas não fosse mais do que um "efeito colateral" acidental do desmoronamento da União Soviética e do comunismo, que fosse possível reparar agora.

Por mais que pudesse debater-se a questão da identidade nacional da Ucrânia - dadas as suas mutações territoriais e a sua diversidade étnica, linguística e religiosa -, a verdade é que é a própria invasão russa e a resistência ucraniana que vem fornecer ao País o cimento político e o sentido de unidade e identidade de que eventualmente pudesse carecer. Com a invasão, Putin veio proporcionar à Ucrânia aquilo que lhe negava!

A história mostra que as tentativas de reintegração pela força de antigos territórios separados apenas legitimam e reforçam o seu sentido de independência.

terça-feira, 1 de março de 2022

Regionalização (5): A questão do referendo

1. Tendo voltado à agenda política, por iniciativa do governo do PS, a questão da descentralização regional no Continente (ou "regionalização"), mais de duas décadas sobre a rejeição da sua primeira versão no referendo de 1998, era inevitável que a questão do referendo regional, introduzido somente na revisão constitucional de 1997, viesse a ser de novo sujeita a debate público.

O que era menos esperado é que a abertura desse debate coubesse à nova presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, a socialista Luísa Salgueiro (presidente da CM de Matosinhos), a qual, embora sem pôr em causa a necessidade de referendo, imposto pela Constituição, avançou com uma proposta pública de alteração do regime constitucional do referendo quanto a dois pontos precisos

         - sujeitar a referendo somente o mapa regional geral, eliminando a segunda pergunta, relativa a cada área regional em especial;   

        - suprimir o requisito do quorum de 50% de participação no referendo como condição de vinculatividade da deliberação popular.

Embora na área do PS esta proposta não tenha suscitado comentários públicos, o mesmo não sucedeu no âmbito do PSD, como decorre desta recente peça noticiosa. Parece evidente que as ideias da presidente da ANMP não são consensuais à partida.

2. Das duas referidas propostas, a que faz mais sentido é a segunda, visto que a eventual exigência de participação de mais de metade dos eleitores no território nacional no referendo poderia vetar mais uma vez a criação das autarquias regionais, mesmo que o "sim" ganhasse por confortável maioria.

Note-se que o art. 256º da CRP não é líquido sobre essa questão. Se o nº 3 desse preceito constitucional remete para o regime geral do referendo (art. 115º), onde se inclui o requisito da participação de 50%, já o nº 1 daquele mesmo preceito apenas exige o «(...) voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta (...)», sem referir um quorum mínimo. Todavia, parece evidente que não pode convocar-se o referendo sem clarificar esta dúvida constitucional e ela não pode ser resolvida por consulta prévia ao TC.

Com efeito, nunca se conseguiu o referido quorum em nenhum dos referendos nacionais até agora realizados, nomeadamente no citado referendo regional de 1998, apesar da polémica a que deu lugar. Não há nenhuma razão para acreditar que desta vez seria diferente, tanto mais que a abstenção eleitoral cresceu desde então. A inclusão no recenseamento interno de muitos eleitores ausentes no estrangeiro (mas co morada indicada em Portugal) aumenta artificialmente a abstenção (calcula-se que em cerca de 10pp). 

Por isso, realizar o referendo sem afastar claramente essa condição é matar deliberadamente a regionalização à partida.

3. Ora, independentemente de se considerar exagerada essa condição para qualquer referendo - o que levaria a reduzi-la, como proponho (por exemplo, para 40%) -, penso que há bons argumentos para prescindir de qualquer exigência de participação mínima no caso deste referendo específico.

São eles os seguintes:

  - trata-se do único referendo obrigatório sobre a implementação de uma reforma institucional prevista desde o início na CRP, cuja ausência configura uma "inconstitucionalidade por omissão", ainda por cima numa questão-chave da arquitetura do Estado territorialmente descentralizado preconizado na Constituição;

  - trata-se do único caso em que a execução de uma lei da AR (aliás, uma "lei orgânica" aprovada por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções) fica dependente da sua subsequente ratificação em referendo, à revelia da lógica da democracia representativa;

  - este referendo não é sobre a regionalização em si mesma (pois esta está determinada pela Constituição), nem sequer sobre a lei-quadro em geral (atribuições, organização, etc.), mas sim somente sobre o mapa das autarquias regionais previamente definidas na referida lei;

  - uma vez que os residentes no estrangeiro não participam neste referendo, não se compreende que nele interfiram indiretamente, só pelo facto de muitos manterem indevidamente a sua morada em Portugal. 

Por conseguinte, não faz nenhum sentido que um referendo especial como este fique sujeito ao regime geral do referendo e que a vontade de uma maioria absoluta da AR e dos cidadãos votantes na consulta popular seja aniquilada pelos abstencionistas, que, por definição, não querem participar na decisão. Neste caso, a abstenção não pode ser contada como "não". 

É importante, por isso, que os partidos que apoiam a descentralização regional se pronunciem claramente e atempadamente sobre esta decisiva questão.

Adenda
Ao contrário do que se lê no título desta descuidada peça jornalística, Luísa Salgueiro não defendeu nenhum "referendo sem mapa", tendo defendido somente a supressão da segunda pergunta, sobre cada região em especial, de modo a evitar que alguma das autarquias regionais sujeitas a referendo fique por criar, caso seja rejeitada pelos respetivos eleitores (como poderá ser o caso de Lisboa e Vale do Tejo...).

Adenda 2
Um leitor pergunta se o PR pode recusar a convocação do referendo, quando proposta pela AR. Parece óbvio que não, justamente por se tratar de um referendo obrigatório para dar cumprimento a uma obrigação constitucional. Se o PR tiver alguma objeção à modalidade de descentralização regional adotada, o momento de a suscitar é na promulgação da lei da AR que cria as autarquias regionais, e que precede o referendo.

Sim, mas (9): Emergência sanitária

1. O Jornal de Notícias de hoje relata que o PS vai avançar com a prometida lei de emergência sanitária, a fim de enquadrar devidamente as medidas necessárias num quadro de pandemia, como sucedeu nos últimos dois anos.

Não tenho dúvidas da conveniência de uma tal lei, para autorizar restrições especiais a algumas liberdades individuais (como a liberdade de circulação, a liberdade de empresa, a liberdade de trabalho, a liberdade de reunião, a liberdade culto, etc.) e para impor certas obrigações excecionais (obrigação de uso de máscara, de testes sanitários, etc.), mas entendo que, sem uma mudança na Constituição, algumas medidas adotadas durante a recente pandemia, como a quarentena, o confinamento domiciliário ou o recolher obrigatório, só podem ser decretadas em estado de sítio ou estado de emergência, por se tratar de casos de verdadeira suspensão ou privação de direitos, e não da sua simples restrição, a qual não permite lesar o "núcleo essencial" dos direitos fundamentais afetadas, como ocorre nos referidos casos.

2. Houve quem, durante a pandemia, tentasse justificar constitucionalmente tais medidas, invocando a necessidade de proteger o direito à saúde de terceiros, também garantido na Constituição.

Todavia, tal como ensinam os constitucionalistas, um eventual conflito de direitos (entre o direito à saúde e o direito à liberdade pessoal) só poderia justificar a restrição de ambos, não a privação de um deles em benefício do outro, tanto mais que a Constituição cuida de enunciar explicitamente os casos excecionais de privação do direito à liberdade além da pena de prisão e da prisão preventiva (CRP, art. 27º), entre os quais não se conta o direito à saúde, o qual obviamente não pode ser acrescentado por suposta analogia. Foi este, aliás, o entendimento das decisões judiciais que concederam o habeas corpus em várias situações de quarentena fora de estado de emergência, por detenção infundada.

Por conseguinte, tal como tenho defendido várias vezes (por último, AQUI), a tal lei de emergência sanitária ficará aquém do necessário sem uma prévia revisão constitucional.

Contra a invasão da Ucrânia (4): "A Ucrânia não deve aderir à NATO"

Vale a pena recordar este artigo de 2014  sobre a Ucrânia de Henry Kissinger, que sabia a do que falava, onde defendia que o país deveria manter o estatuto de neutralidade, sem aderir à NATO (como aqui também defendi).

Adenda
Um leitor acusa-me de "desalinhar do consenso ocidental" de condenação sem reservas da agressão russa, mas não tem razão. Tendo condenado desde o início a invasão em termos inequívocos, só não tenho acompanhado o tal "consenso" político e mediático quando se trata de ignorar deliberadamente as responsabilidades euro-americana e ucraniana na criação dos fatores que deram à Rússia os pretextos para a invasão e sem consideração dos quais não se vislumbra a possibilidade de repor a paz na Ucrânia e restabelecer uma vizinhança pacífica entre a UE e a Rússia. Por isso, pareceu-me importante recordar este texto de Kissinger, que não pode seguramente ser acusado postumamente de "falta de alinhamento" com o Ocidente na relação com a Rússia pós-soviética. Os interesses políticos da UE na Europa - a que a Rússia pertence - não têm de coincidir sempre com os dos Estados Unidos.

Adenda 2
Também não sufrago a sanção de banimento de cadeias de informação russas do espaço mediático ocidental: primeiro, porque se trata de medidas de censura impróprias de democracias liberais e, segundo, porque não vejo motivo para privar os cidadãos de conhecerem o ponto de vista russo. Embora apoiando a Ucrânia contra a invasão russa, como devem, os EUA e a UE não estão em guerra com a Rússia, pelo que não devem recorrer a medidas mais próprias do "outro lado".

Este País não tem emenda (27): Calotes estudantis

Só por incúria das universidades e institutos politécnicos é que a dívida de propinas do ensino superior público pode atingir um tal montante.

Sabendo-se que as taxas do ensino superior baixaram substancialmente desde 2015 - um dos custos orçamentais da "Geringonça" - e que cresceu o número de estudantes beneficiários de bolsas de estudo - o que é de aplaudir -, não há nenhuma razão para este nível elevado de incumprimento, mesmo contando com algum impacto negativo da pandemia. E, em vez de se queixarem somente do seu subfinanciamento orçamental, as instituições de ensino superior públicas fariam bem a cobrar os seus créditos e robustecer o seu nível de autofinanciamento -  aliás, condição de uma maior autonomia face aos governos.

Sei bem que para os dirigentes estudantis as propinas nem sequer deveriam existir, apesar de atualmente só cobrirem uma pequena parte dos custos do investimento de que beneficiam, sendo o seu financiamento coberto na maior parte pelos contribuintes em geral. Mas, enquanto as propinas existirem - e eu espero que continuem a existir! -, devem ser cobradas.