Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
quarta-feira, 30 de março de 2022
Praça da República (64): "Upgrade" governativo dos assuntos europeus
terça-feira, 29 de março de 2022
Bicentenário da Revolução Liberal (35): Um tentativa falhada de abortar a Revolução
«Ao tempo da Revolução Liberal (1820), as Cortes portuguesas já não reuniam há mais de um século e a ideia de as convocar de novo suscitou uma acesa disputa por parte das duas forças em conflito – a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino (sediada no Porto) e a Regência do Reino (sediada em Lisboa). Do lado revolucionário, a convocação das Cortes destinava-se a dotar o país de uma Constituição e resgatá-lo do despotismo da monarquia absoluta. No entanto, a Regência do Reino decidiu contra-atacar e convocar as Cortes tradicionais para frear o avanço do movimento revolucionário. Este livro analisa esta tentativa falhada de ressuscitar as antigas Cortes e a subsequente querela político-doutrinária sobre a legitimidade para as convocar, que tem passado praticamente despercebida na historiografia da Revolução Liberal, apesar de dela ter resultado a primeira lei eleitoral portuguesa.»
O livro tira partido de um conjunto de documentos inéditos, entre eles as instruções da Regência para a eleição dos procuradores municipais às ditas Cortes -, ou seja, a primeira lei eleitoral portuguesa (ainda que sem aplicação efetiva)!
2. A derrota desta operação da Regência, em desespero de causa, "forçou" a junta do Porto a assumir explicitamente a rutura com a constituição tradicional do Antigo Regime e a invocar a legitimidade revolucionária para convocar, à margem do rei, um novo tipo de Cortes, com poderes constituintes, baseadas na soberania da Nação, investida na coletividade dos cidadãos, agora libertos da submissão à monarquia absoluta.
Um momento-chave para o triunfo da Revolução!
segunda-feira, 28 de março de 2022
Razões para inquietação (2): Ainda é reformável o SNS?
1. Importa refletir sobre esta lista de «reformas [no SNS] que façam reduzir os tempos de espera no acesso, o excesso de urgências ou o desperdício crónico de recursos (de pessoas mas, sobretudo, de instalações e equipamentos subutilizados)», da autoria de um conhecido administrador hospitalar com um longo currículo (além de ter sido secretário de Estado da Saúde no 1º Governo de António Costa), endereçada à ministra da Saúde neste novo mandato governativo, agora num Governo com maioria absoluta.
Mesmo sem ser surpreendente, o elenco das causas apontadas de ineficiência e desperdício no SNS não deixa de impressionar, desde o constrangimento no acesso aos cuidados primários e o congestionamento das urgências até às carências na saúde mental, passando pela escandalosa insuficiência dos sistemas de informação e pela utilização a meio tempo de instalações e equipamentos. Um retrato preocupante!
2. Entre as soluções aventadas pelo autor (que, porém, não deixou grande registo reformista quando foi governante...) não constam naturalmente algumas que terá considerado fora da equação política dominante - herdeira dos acordos no seio da "Geringonça" -, nomeadamente a reabertura da gestão de hospitais do SNS a "parcerias público-privadas" (que a Lei de Bases do SNS praticamente baniu) e um sistema credível de avaliação de desempenho de gestores e profissionais (desde a assiduidade ao output), com consequências na remuneração e na carreira.
Mas não se vê como é que é possível velar pela eficiência de qualquer organização, sem uma séria avaliação de desempenho.
3. Em contrapartida, o autor insiste na proposta de envolver as ordens profissionais do setor na reforma do SNS, o que vai no sentido contrário ao que deve ser seguido, que é de reconduzi-las estritamente à sua missão legal de regulação, disciplina e deontologia profissional, qualquer que seja o enquadramento profissional dos seus membros (SNS ou clínica privada), sem qualquer intervenção nas relações laborais ou na organização dos serviços em que estes exercem a sua profissão.
Como expressão do mais retinto corporativismo profissional ("malthusianismo" profissional, defesa de interesses de grupo à margem do interesse público, etc.), as ordens são naturalmente inimigas de qualquer reforma tendente a conferir maior eficiência ou equidade ao SNS. Contar com elas é um contrassenso.
Guerra na Ucrânia (26): "Vade retro", putinistas!
1. Cumpre alertar contra esta nefanda "carta aberta" sobre a guerra da Ucrânia, que nada menos de 20-vinte-20 assumidos putinistas portugueses, onde pontificam alguns notórios expoentes da "esquerda iliberal", ousaram publicar e fazer circular entre nós, pondo em causa a bem-aventurada cruzada ocidental contra a autocrática Rússia e o seu ditador Putin (um "carniceiro", como diz, com toda a justeza, o Presidente Biden, inquestionado líder da coligação da civilização liberal-democrática ocidental contra a barbárie do novo despotismo oriental).
É manifesto que, apesar de os autores começarem hipocritamente por condenar a invasão da Ucrânia, em nome do direito internacional (como se pudéssemos acreditar na sua sinceridade!), o que os move é o óbvio propósito de enfraquecer o heroico esforço de resistência ucraniana às hordas do Kremlin, começando por questionar - atrevendo-se mesmo a invocar em vão a CRP - as justíssimas medidas de legítima defesa ocidental contra a circulação dos meios de propaganda russa e contra os artistas e desportistas russos, que, por definição, não podem deixar de ser agentes ou, pelo menos cúmplices, de Putin.
Em tempo de guerra, nenhum deles é confiável. Todos reenviados para a Moscóvia, já!
2. Particularmente repugnante é o paralelismo que procuram sub-repticiamente estabelecer entre o sofrimento dos ucranianos sob a criminosa agressão imperialista russa e o dos iraquianos e outros alvos de justa intervenção civilizadora ocidental, como se houvesse alguma semelhança entre mortos e refugiados de um país europeu e cristão e os de países bárbaros e muçulmanos!
Abaixo as falsas equivalências!
3. Se lamentavelmente, por justa precaução, a Nato não pode entrar diretamente em guerra contra o agressor russo, pelo menos podemos declarar uma "guerra nuclear" em todos os outros planos: não somente económica, financeira e comercial, mas também mediática, internética, cultural, desportiva. Boicote geral a tudo o que é russo! Uma guerra total, até à rendição de Putin!
É certo que quem sofre os desastres da guerra real, em destruição e morte, é a Ucrânia. Prestemos-lhe a nossa sentida homenagem pelo seu supremo sacrifício pela causa e estimulemo-los a resistir até ao último homem. A "paz negociada" ou a "solução política" em que insistem os putinistas não passa de uma armadilha sonsa para dar vantagens "na secretaria" a Moscovo. Negociação seria rendição!
Esta carta aberta não passa, portanto, de um provocatório panfleto filoputinesco, que só pode merecer repúdio, com os seus autores (e seguidores!) lançados à execração pública e interditados académica e profissionalmente, como medida de segurança!
Guerra na Ucrânia (25): A UE paga pesada fatura
1. É já evidente que a guerra da Ucrânia vai traduzir-se numa pesada fatura para a UE, mesmo não sendo beligerante direta: aumento do custo da energia (dada a sua dependência das importações da Rússia, como mostra o quadro acima, colhido AQUI), impacto das sanções económicas (incluindo sobre as muitas empresas europeias que deixam de fazer negócio na/com a Rússia) e das contrassanções russas (incluindo a obrigação de pagamento das importações de energia em rublos), apoio aos milhões de deslocados ucranianos. Se acrescentarmos a necessária ajuda posterior à reconstrução da Ucrânia, não são precisas grandes estimativas para imaginar o gigantesco custo económico e financeiro da guerra para a União.
Ora, é fácil ver a enorme assimetria entre a União e os Estados Unidos quanto a este ponto, por causa da proximidade europeia com o conflito e da maior integração económica (trocas comerciais e investimento) com a Rússia. Ou seja, a UE é a principal vítima colateral de um conflito que é essencialmente uma guerra indireta entre a Rússia e os Estados Unidos no palco ucraniano.
2. Como é bom de ver, os encargos europeus com a guerra serão tanto maiores, quanto mais esta se prolongar: mais destruição na Ucrânia, mais refugiados, mais impacto das sanções (e contrassanções) económicas na economia da União.
Por isso, em vez de alinhar servilmente com Washington, como até aqui, na escalada do conflito (incluindo a irresponsável escalada verbal do Presidente Biden há dias em visita à Europa) - que só alimenta a escalada russa na guerra -, é tempo de a União assumir institucionalmente uma inequívoca postura de pressão sobre os beligerantes para um cessar-fogo e uma solução política negociada do conflito,
Os esforços políticos da União contra a guerra não podem nem devem limitar-se a uns telefonemas avulsos entre Macron e Putin. É através das suas instituições que a União tem de se exprimir e assumir as suas responsabilidades.
Eis uma mudança que perde pela demora. Quanto mais durar a guerra, mais árduo e mais moroso será conseguir a paz.
sábado, 26 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (24): Informação e propaganda
Gostaria de ter escrito isto: «Acontece que em nenhuma outra circunstância, como na guerra, o choque entre a informação e a propaganda é tão frontal». Cumpre ler o resto.
sexta-feira, 25 de março de 2022
Praça da República (64): A baixa remuneração ministerial limita as escolhas
Ora, a área de recrutamento ministerial não pode ficar tendencialmente limitada aos políticos de carreira ou às pessoas suficientemente ricas para se permitirem dedicar generosamente uns anos de "serviço cívico" num Governo em que se sintam confortáveis. Para sacrifício pessoal em prol da República, já basta a exigência do cargo, a interrupção da vida profissional e a exposição mediática a que ele obriga...
2. Penso, por isso, que o novo Governo, gozando de uma maioria absoluta, deveria ter a coragem de enfrentar o miserabilismo popular dominante sobre esta matéria e elevar a remuneração dos ministros (e secretários de Estado).
Em concreto, proponho as seguintes medidas:
- eliminar finalmente a redução de 5% aplicada pelo governo Sócrates II, em 2010, que foi a primeira "medida de austeridade orçamental" adotada, sendo a única que até agora não foi revertida, quando a situação que a ditou foi há muito ultrapassada;
- elevar as remunerações para a média das remunerações governamentais dos países da UE, medidas em paridade de poder de compra.
Para graduar o impacto desta última alteração, proponho que o aumento seja repartido por frações de 25% nos próximos quatro anos.
3. Outra situação remuneratória iníqua tem a ver com os membros dos gabinetes ministeriais, quando não são de Lisboa ou arredores, visto que não têm nenhuma compensação pelas despesas adicionais da deslocação para a capital, nomeadamente as de alojamento, sendo uma importante barreira à aceitação de tais cargos.
Como é evidente, essa limitação contribui para a escandalosa "reserva" lisboeta dos gabinetes ministeriais, habitualmente recrutados em universidades, serviços públicos ou empresas da capital, em violação da regra constitucional de não-discriminação em função da residência. Como é sabido, as "discriminações indiretas" podem ser mais insidiosas do que as diretas...
4. Por último, urge diferenciar devidamente a remuneração dos deputados, conforme exerçam, ou não, o mandato em dedicação exclusiva, ampliando o ridículo prémio de 10% atualmente em vigor, o que, além de não incentivar devidamente a dedicação exclusiva à causa pública, também favorece mais uma vez os deputados de Lisboa em part time, que podem passar pelo parlamento a marcar a presença, antes de irem para o seu escritório ou local de trabalho.
Como é bom de ver, esta elevação do "prémio" de dedicação exclusiva - que proponho não seja inferior a 33% - nem sequer exigira mais despesa orçamental, bastando adicionar à dedicação exclusiva o montante que se pouparia na redução da remuneração dos deputados em part time.
quinta-feira, 24 de março de 2022
Praça da República (63): Um novo Governo inovador
Eleições parlamentares 2022 (26): Merecida punição
Seis semanas depois da anulação das eleições no círculo da Europa, a sua repetição, que custou 5 milhões de euros, reforçou a maioria absoluta do PS, que elegeu ambos os deputados em disputa, e traduziu-se numa humilhante derrota do PSD, que perdeu o deputado que teria elegido, se não tivesse provocado a repetição das eleições. Um epílogo arrasador para a liderança de Rio, que já tinha anunciado a sua saída a seguir à derrota de 30 de janeiro.
Recorde-se que a anulação da primeira votação resultou de inesperada reclamação do PSD contra os muitos votos por correspondência que não vinham acompanhados de cópia do CC, desrespeitando um acordo entre os partidos no sentido de não suscitarem tal irregularidade (não tendo, porém, o PSD feito o mesmo no círculo de fora da Europa, onde idêntica irregularidade existia...). Uma merecida punição, portanto.
Há caprichos e precipitações políticas que se pagam caro. Mesmo depois de demissionário, o líder do PSD não deixa de acumular derrotas comprometedoras.
quarta-feira, 23 de março de 2022
Regionalização (6): Repetir os erros?
1. Só pode causar surpresa a inopinada declaração da Ministra da Reforma Administrativa, Alexandra Leitão, sobre uma «premente» necessidade de criar uma nova unidade territorial regional (NUTS II), do Oeste e Ribatejo, abrangendo provavelmente as sub-regiões (NUTS III) de Oeste, Médio Tejo e Lezíria do Tejo, hoje integradas na área de jurisdição territorial da CCDR de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) (imagem acima).
Em primeiro lugar, não se conhece nenhum estudo sobre essa matéria, que fundamente a proposta apresentada "clandestinamente" à Comissão Europeia em princípio de fevereiro(!). Em segundo lugar, não se compreende que uma tal decisão venha a ser feita à beira do fim do atual mandato governativo, sendo óbvio que a Ministra não pode deixar essa tarefa específica ao Governo que se segue. Por último, é incompreensível que, tendo o Governo anunciado explicitamente a retoma do processo de regionalização na base das cinco CCDR existentes - cuja jurisdição territorial coincide em geral com as cinco NUTS II e cujos presidentes o Governo fez eleger pelos autarcas das respetivas regiões, antecipando a sua desgovernamentalização -, venha o mesmo Governo propor a criação de mais uma NUTS II, à última da hora!
A questão é saber se se tratou somente de precipitação e insensatez política da Ministra...
2. É certo que as futuras autarquias regionais podem compreender mais do que uma NUTS II, pelo que a criação de mais uma não implicaria necessariamente a criação de mais uma autarquia regional.
Mas é preciso ser muito ingénuo para não ver que essa autonomização de mais uma NUTS II levaria imediatamente à exigência local da criação da correspondente autarquia regional, reduzindo a atual região de LVT à Área Metropolitana de Lisboa (AML). E depois viria do Norte igual pretensão de separar a AMP do resto da atual região Norte. Em vez das cinco regiões teríamos sete, e provavelmente mais, pondo em causa a necessária massa crítica das autarquias regionais e o compromisso de não aumentar nem o pessoal político nem os custos financeiros da regionalização.
3. Ora, é preciso não ignorar que um dos temas que mais contribuiu para a derrota do referendo da regionalização em 1998 foi a infundada fragmentação do mapa regional, para contemplar interesses locais, e que reabrir essa questão pode ser a receita para um novo desastre.
Penso, por isso, que o líder do PS e Primeiro-ministro deve assertivamente atalhar esta deriva antes que seja tarde e garantir que na AR (que tem de aprovar o mapa regional) e fora dela o PS não vai contribuir para mais uma derrota da regionalização (que seria obviamente definitiva).
[revisto]
terça-feira, 22 de março de 2022
Assim vai a política (11): O novo Governo PS
1. Não concordo com a opinião de Marques Mendes, de que pode ser «um erro enorme» meter no Governo todos os quatro putativos candidatos à futura sucessão de António Costa. Pelo contrário, penso que o erro estaria em deixar algum de fora. Por várias razões:
- porque todos eles apresentam credenciais suficientes para integrar o Governo, pelo que deixar algum de fora poderia dar lugar a uma suspeita de discriminação por parte do primeiro-ministro;
- porque, integrando o Governo, todos estão obrigados a respeitar a liderança de Costa, como chefe do Governo, sem se poderem demarcar deste, nem terem espaço nem tempo para se dedicarem a mobilizar o aparelho partidário para a futura competição entre eles;
- porque o desempenho de funções governamentais constitui um excelente teste sobre as capacidades de liderança num "partido de governo" como o PS, podendo constituir um relevante critério para os militantes do Partido na futura escolha.
Por conseguinte, é de apoiar essa provável opção de A. Costa sobre a composição do Governo.
2. Só não me parece boa ideia a nomeação de uma deles para ministro das Finanças, sendo dada como certa nos "mentideros" políticos a nomeação de Fernando Medina para o cargo.
As minhas objeções são as seguintes: (i) penso que, em qualquer caso, esse cargo ministerial não deve ser ocupado por um político de carreira, sempre mais vulnerável a pressões político-partidárias para deixar derrapar a despesa pública e ser menos exigente com a disciplina e a consolidação orçamental, que é essencial nas atuais circunstâncias; (ii) o ministério das finanças é, por definição, o mais importante na estrutura do Governo depois do PM, pelo que confiá-lo a um dos putativos candidatos à liderança do Partido poderia ser interpretado como favoritismo; (iii) com ou sem razão, o ministro poderia ser acusado de usar o seu poder de "czar" orçamental (alocação de verbas, autorização, ou não, de despesa, etc.) para prejudicar os seus possíveis competidores colocados em outras pastas ministeriais, podendo ficar inibido de tomar medidas mais exigentes.
Por estas razões, entendo que o PM deveria observar um estrito princípio de level-playing field entre os possíveis candidatos à sua sucessão na liderança do PS.
segunda-feira, 21 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (23): Uma UE mais a leste e mais à direita
1. Não se percebe como é que vários Estados-Membros da UE defenderam uma adesão expedita da Ucrânia à União, quando é evidente que esse país não preenche os "critérios de Copenhaga" para a entrada, nem se vê como é que os pode vir a cumprir em poucos anos, além de que nunca poderia ultrapassar os vários candidatos balcânicos, que esperam há vários anos.
De resto, depois da má experiência da Hungria e da Polónia, a União não pode permitir-se aceitar a entrada de países que não ofereçam garantias adicionais de não afrontarem os princípios do Estado de direito e da democracia liberal.
2. Em qualquer caso, pela sua posição geográfica, dimensão territorial e população, a eventual entrada da Ucrânia - a que se juntaram apressadamente as candidaturas da Moldova e da Geórgia -, implicaria não somente a deslocação da fronteira da UE para o extremo leste da Europa, mas também uma sensível deslocação do centro territorial, económico e político da União no mesmo sentido, "continentalizando" ainda mais a União e desvalorizando a sua frente atlântica, já fortemente debilitada com o Brexit.
Por conseguinte, junto com a Irlanda, Portugal e Espanha iriam tornar-se ainda mais periféricos na União, pelo que não se compreende que estes países, contra os seus interesses, deem o seu acordo a qualquer aceleração privilegiada da entrada da Ucrânia (ou de outros países do Leste).
3. A entrada da Ucrânia alteraria também a relação de forças políticas no Parlamento Europeu, pois com os seus 43 milhões de habitantes (passando a ser o quinto maior Estado-membro da União, a seguir à Espanha) teria direito a mais de 50 deputados, os quais, a julgar pela composição política do Parlamento ucraniano, seriam esmagadoramente dos partidos de direita e de centro, com pequena representação da esquerda (aliás, como já sucede em muitos dos atuais Estados-membros do leste europeu).
Neste quadro, seria estranho que os partidos socialistas e social-democratas que integram o Partido Socialista Europeu, e em especial os maiores, como os da Alemanha, Espanha e Portugal, viessem apoiar entusiasticamente um tal reforço da direita no Parlamento Europeu (tal como no Conselho e na Comissão).
sábado, 19 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (22): A China, e os Estados Unidos, ganhadores da guerra
1. Na sua coluna de hoje no Público, J. Almeida Fernandes pergunta: "E se a China ganhar a guerra"?
Ora, como escrevi logo no início, penso que, qualquer que seja o desfecho da guerra, a China ganha sempre: (i) porque é a única potência político-económica que se mantém fora dela (pois os Estados Unidos e a União apoiam ativamente a Ucrânia), tirando partido político desse não-envolvimento; (ii) porque, dadas as punitivas sanções económicas ocidentais a Moscovo, Pequim vai beneficiar da energia e das matéria-primas russas em condições vantajosas; (iii) porque, embora os EUA e a UE não sejam beligerantes diretos, ambos vão sofrer (mais a segunda do que os primeiros) um impacto económico assaz negativo, travando o seu crescimento, permitindo à China aproximar-se do seu objetivo de se tornar a maior economia economia mundial a breve prazo. Uma vitória sem custos, "na bancada"!
Mais um passo no sentido de tornar o séc. XXI no século da China.
2. O outro ganhador da guerra na Ucrânia, seja quem for o vencedor, são os Estados Unidos.
Também por várias razões: (i) mesmo que a Rússia vença a guerra e consiga os seus principais objetivos (neutralização militar da Ucrânia e estatuto da minoria russa no País), ela sairá muito debilitada, tanto por causa do enorme esforço militar, como por efeito das devastadoras sanções ocidentais; (ii) porque a UE sofrerá um maior impacto negativo da guerra e das sanções, quer por estar mais perto, quer por depender mais da Rússia economicamente (combustíveis, matérias primas, etc.), tornando-se mais dependente dos Estados Unidos; (iii) porque a guerra reforça a Nato, liderada pelos Estados Unidos, e vai recriar na Europa um duradouro fosso político e económico entre a UE e a Rússia, que não beneficia nenhum deles.
Eis como, à distância e por interposta Ucrânia, Washington também vai sair ganhador da guerra, mesmo que a Moscovo acabe por vencer Kiev.
Puerta del Sol (7): Madrid sacrifica o Sahara Ocidental
1. Ao sufragar oficialmente o "estatuto de autonomia" concedido por Marrocos ao Sahara Ocidental, o governo espanhol reconhece a integração da antiga colónia espanhola por Rabat (em 1976), abandonando o direito à autodeterminação desse "território não-autónomo" reconhecido pelas Nações Unidas (para o que a Frente Polisário propunha a realização de um referendo). Em troca, a Espanha vê desde já satisfeita a sua exigência de colaboração por Marrocos no controlo da pressão emigrante sobre Ceuta e Melilla.
Enquanto na Europa, a Espanha apoia, e bem, a independência da Ucrânia face à invasão e eventual ocupação russa, em África sacrifica o direito à autodeterminação de uma antiga colónia sua (à qual deveria ter dado a independência em devido tempo), reconhecendo a sua ocupação pela força e a sua integração pelo País ocupante.
2. Washington dera o mote em 2020, com o reconhecimento da soberania marroquina sobre o território pelo Presidente Trump. Agora foi a vez de Madrid. Quanto tempo vai demorar para que a própria UE - normalmente tão "principialista" nas relações internacionais (o que é de louvar!) - siga a peugada espanhola, contrariando a firme posição do TJUE?
Pelos vistos, quando convém, a visão "realista" das relações internacionais triunfa sobre a perspetiva "normativista", sacrificando os mais fracos aos interesses dos mais fortes...
Má sorte nascer africano!
sexta-feira, 18 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (21): Ajudas que comprometem
Campos Elísios (6): Macron bis
1. A três semanas da primeira volta das eleições presidenciais francesas, tudo indica que o atual incumbente, Emanuel Macron, vai ser eleito para um segundo quinquénio, como mostra o quadro de previsões acima, colhido no The Economist desta semana, que lhe dá perto de 100% de hipóteses de ganhar à segunda volta, mais uma vez contra a candidata da extrema-direita, Marine Le Pen.
Trata-se de um feito político, não somente porque os últimos presidentes não tinham conseguido a reeleição (Sarkozy, Hollande), mas também porque, apresentando-se ao centro, Macron quebra pela segunda vez a lógica da bipolarização esquerda-direita que era tradicional na V República. Macron consegue atrair grande parte do eleitorado tradicional da direita republicana (cuja candidata, V. Pécresse, aparece em 5º lugar nas sondagens) e, ainda mais, do Partido Socialista (cuja candidata, A. Hidalgo, se fica pelos 2%). Um triunfo convincente!
2. A eleição de Macron é boa para a França e para a UE. Para a França, porque é a vitória do reformismo liberal-democrata sobre a ameaça da direita populista e xenófoba (que em conjunto ultrapassa os 30%); para a UE, porque permite ver a França a investir no reforço da integração europeia, à luz do conceito de "soberania europeia", que o próprio Presidente francês cunhou logo no início do seu 1º mandato, tanto mais importante quanto a guerra na Ucrânia levanta novos desafios económicos e políticos à União.
Resta saber se o partido que ele fundou, La Republique en Marche (LRM), também vai repetir a maioria absoluta nas eleições parlamentares que se seguem, condição para que o Presidente possa levar a cabo o seu programa reformista.
quinta-feira, 17 de março de 2022
Guerra na Ucrânia (20): Um favor a Putin
1. A exclusão da Rússia do Conselho da Europa, por causa da invasão da Ucrânia e pelos fortes indícios de violação do direito da guerra na condução das operações militares, afasta também o País da jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).
Ora, essa exclusão vai privar os cidadãos russos da proteção dos direitos garantidos na Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), de que até agora gozavam, através do direito de queixa individual para Estrasburgo - tendo a Rússia sido condenada numerosas vezes. Sem acrescentar nada à proteção dos direitos dos ucranianos, a exclusão da Rússia desprotege os cidadãos do maior país europeu. Tem razão a Amnistia Internacional, quando considera isto uma «tragédia para as vítimas de abusos do Kremlin»
Ou seja: uma penalização dos cidadãos russos e um desnecessário favor a Putin!
2. Esta precipitada "libertação" da Rússia da jurisdição do TEDH ocorre quando esta se tornava mais necessária, tendo em conta que uma das consequências mais prováveis desta guerra vai ser o endurecimento do regime e um maior constrangimento das liberdades civis e políticas no País. A qualificação dos críticos internos da invasão como "traidores" e como "escumalha", que importa denunciar para "depuração" da Rússia, não augura nada de bom.
Lamentavelmente, a exclusão da Rússia do Conselho da Europa, a título de justa punição pela invasão da Ucrânia, pode acabar por facilitar o caminho para a autocracia em Moscovo, sendo mais um tijolo no novo muro que ameaça voltar a dividir duradouramente a Europa.
Praça Schuman (12): Reciprocidade no comércio externo da União
1. Após um longo e difícil processo legislativo, que demorou quase uma década, a Comissão Europeia vai ser dotada de meios para fazer observar um princípio de reciprocidade no acesso de empresas entrangeiras ao importante mercado de compras públicas dentro da UE - ou seja, compra de bens e serviços, obras públicas, etc. -, penalizandao as empresas de países que não abram correspondentemente o seu mercado de compras públicas às empresas europeias.
Este novo mecanismo visa sobretudo grandes empresas de países como a China ou a Índia, que tiram partido da abertura do public procurement na União, enquanto esses países mantêm elevadas barreiras à entrada de empresas europeias no seu próprio mercado, beneficiando, portanto, de uma situação de concorrência desleal.
Como é bom de ver, estando a União constitucionalmente obrigada a reduzir/elimnar as barreiras ao comércio internacional e ao investimento direto estrangeiro, não se trata de uma medida protecionista, mas sim de uma alavanca política para pressionar outros países a reduzirem o seu próprio protecionismo.
2. No pileline legislativo da Bruxelas em matéria de comércio externo - que é uma competência exclusiva da União - está também uma proposta da Comissão para aplicar às importações de produtos mais intensivos na produção de CO2 (como aço, cimento, alumínio, etc.) uma tarifa compensatória, quando oriundos de países que não tenham em vigor medidas equivalentes de limitaçao do carbono.
Com esse carbon border adjustment mechanism (CBAM), como são conhecidas essas medidas, a União Europeia - que seria a primeira potência comercial a introduzi-las, apesar de controvertidas quanto à sua compatibilidade com as regras do GATT - visam-se dois objetivos: (i) eliminar a vantagem comercial desses produtos importados sobre os produzidos na União, cujo preço incorpora as exigentes medidas de redução do CO2 em vigor nas Europa e, de caminho, obstar à tentação das empresas europeias de se deslocalizarem para geografias menos exigentes no combate às alterações climáticas; (ii) contribuir para a descarbonização global da economia, pressionando os demais países a adotarem medidas equivalentes, a fim de poderem exportar sem penalização para o imporatnte mercado da União.
Como é bom de ver, a receita desssa "tarifa CO2" deve reverter para o orçamento da União, como genuína "receita própria", tal como, aliás, sucede desde sempre com as demais tarifas aduaneiras.
Guerra na Ucrânia (19): Acordo de paz a caminho?
1. Há informações confirmadas sobre importantes avanços nas negociações para a paz entre os beligerantes, nomeadamente na questão crucial da neutralidade da Ucrânia, condição considerada essencial pela Rússia para a sua segurança.
Penso que do lado da Ucrânia, tendo de ceder o necessário para ir ao encontro da duas preocupações de Moscovo (segurança e estatuto das minorias russas), será primacial obter em contrapartida garantias firmes quanto à sua própria soberania e segurança e quanto à sua autonomia em matéria de sistema político e económico e das suas alianças em ambas essas dimensões.
De resto, nos objetivos explícitos da invasão, Putin não incluiu nenhuma exigência incompatível com essses pontos. Não há nenhuma indicação sobre um suposto propósito de "mudança de regime", ou da transformação da Ucrânia num "protetorado" russo, muito menos da sua anexação e reintegração na Rússia, objetivos que muitos comentadores imputaram ao Presidente russo, sem fundamento credível.
2. Vislumbram-se, portanto, condições para uma negociação bem-sucedida.
No entanto, como tenho referido várias vezes, o acordo de paz não deve envolver somente os dois beligerantes, mas também um conjunto de outros protagonistas, selecionados por acordo entre as partes, que possam avalizar o respeito dos compromissos assumidos. O exemplo do acordo de Minsk, cujo incumprimento constituiu um dos fatores desta guerra, não pode repetir-se.
Se a metáfora não for descabida, o acordo de paz tem de ser "à prova de bala" e da má-fé, vinculando os países e não somente os governos da hora.
quarta-feira, 16 de março de 2022
A guerra da Ucrânia (18): Um "agente de Putin" em Chicago!?
Depois deste artigo de John Mearsheimer, prestigiado professor da Universidade de Chicago, publicado na revista liberal britânica The Economist, já não é mais posssível sustentar que só os adeptos da "esquerda iliberal" e uns abencerragens do "anti-imperialismo americano" é que ousam falar na responsabilidade ocidental na crise ucraniana - ou seja, o processo de integração da Ucrânia na Nato, que não podia deixar de ser considerada por Moscovo como uma ameaça séria à segurança da Rússia - e considerar a guerra da Ucrânia como uma guerra indireta entre a Rússia e a Nato em solo ucraniano (e à custa dos ucranianos).
Tenho a certeza de que este artigo do conhecido especialista em relações internacionais, obviamente imune a qualquer suspeição de russofilia, não vai suscitar as habituais acusações de "desamor pela democracia liberal" e de "cumplicidade com o imperialismo russo", com que são mimoseados todos os que se atrevem a beliscar o "consenso Washington-Bruxelas" sobre a guerra. O mais provável é ser deliberadamente ignorado...
Um leitor queixa-se de que o referido artigo do professor de Chicago está reservado a assinantes do Economist, pelo que os não-assinates têm de aguardar pela edição semanal impressa (que sai no sábado que vem e que também recebo, mas com vários dias de atraso). Uma opção mais célere (e mais barata) é mesmo assinar a edição digital da revista, cuja leitura considero obrigatória (concordando ou discordando) para todos os liberais, de direita ou de esquerda.
terça-feira, 15 de março de 2022
A guerra da Ucrânia (17): Não ao cancelamento do desporto e da cultura
Saúde-se o editorial do El País de hoje, que, sem deixar de condenar incondicionalmente a invasão da Ucrânia e de apoiar as sanções políticas, económicas e financeiras da UE à Rússia, condena igualmente o "cancelamento" generalizado dos desportistas e artistas russos, como se todos os russos, só por o serem, também fossem coletivamente responsáveis pela guerra. (O New York Times acrescenta o boicote dos cientistas russos...).
Mesmo que a União estivesse diretamente em guerra com a Rússia - e não está! -, esta perseguição ao desporto e à cultura russa e a cumplicidade com a gestação de um clima de russofobia primária, sem precedente na "Guerra Fria", são indignas da democracia liberal. Infelizmente, não há muitos jornais como o El País...
A guerra há de findar, Putin há de passar, mas a Rússia e o povo russo ficam, e a sua cultura (literatura, música, património, etc.) vai continuar a fazer parte integrante da grande cultura europeia.
Antologia do nonsense (18): Reativar centrais a carvão!?
As ideias estapafúrdias podem surgir de onde menos se espera, como esta proposta da SEDES de reativar as centrais elétricas a carvão, a pretexto do risco de abastecimento de gás, por causa da guerra da Ucrânia.
Não há nenhuma razão para isso: primeiro, a guerra não provocou nenhuma pertubação no fornecimento de gás natural russo e a cotação do gás até tem vindo a baixar em relação ao pico atingido depois do início da invasão da Ucrânia; segundo, Portugal só depende em 10% do abastecimento de gás russo, que pode ser facilmente substituído por outras fontes.
Pelo contrário, o que há a fazer é reforçar a apostar na autonomia energética do País e na descarbonização da economia por meio das energias renováveis (água, vento e sol). Carvão nunca mais!
Não concordo (30): Estimular a inflação
Embora provavelmente exagerado pelos interessados, o panorama de subida de preços de muitos produtos no retalho alimentar e de escassez de alguns deles não vai tardar a gerar reivindicações de subsídio público dos preços e de restrição no seu abastecimento.
A subsidiação não me parece boa ideia, não somente pelo seu custo orçamental, mas sobretudo porque o subsídio ao consumo de bens escassos apenas vai estimular a subida dos respetivos preços, agravando a pressão inflacionista, em prejuízo de todos os consumidores. Melhor será preparar medidas de ajuda às pessoas mais carenciadas e, se for caso disso, atuar preventivamente sobre as tentações de açambarcamento e de especulação, que as situações de insegurança quanto ao abastecimento sempre geram.
A guerra da Ucrânia (16): Paralelo despropositado da Ucrânia com Taiwan
Há quem pergunte se a invasão da Ucrânea pela Rússia pode prefigurar uma eventual invasão de Taiwan pela China.
Parece-me, porém, ser de todo descabida a similitude de situações insinuada nesta tese, por vários motivos:
- em primeiro lugar, enquanto a Ucrânia é um país soberano desde há três décadas, reconhecido pela própria Rússia e sendo membro das Nações Unidas, a separação de Taiwan nunca foi reconhecida pela RP da China (Pequim) nem por muitos outros países, não sendo um país integrado na ONU;
- em segundo lugar, enquanto no primeiro caso, ao contrário de algumas especulações, não se verifica nenhum propósito da Rússia de anexação ou de reintegração da Ucrânia, já não há a mínima dúvida acerca da determinação de Pequim em reintegrar Taiwan na "unidade nacional", ao abrigo do princípio "uma só China" (o que faz de Taiwan uma "questão interna" do país), sem excluir nenhum meio para alcançar esse objetivo;
- terceiro, enquanto a Ucrânia, não sendo ainda membro da Nato, não pôde contar com a obrigação de intervenção desta em sua defesa, já no caso de Taiwan esta goza do compromissso político dos Estados Unidos de garantia da sua segurança contra Pequim, pelo que uma tentativa de invasão da ilha poderia levar a uma guerra, de consequências imprevisíveis, entre as duas potências;
- por último, enquanto a questão da Ucrânia era uma questão urgente para a Rússia, dado o perigo de entrada daquela na Nato e o agravamento da situação nas províncias russófonas do leste do Páis, a questão de Taiwan pode esperar pela proverbial paciência chinesa, sem precipitações (como já sucedeu, aliás, com a integração negociada de Hong-Kong e de Macau).
De uma coisa estou, porém, convicto: embora uma eventual invasão de Taiwan não suscitasse a condenação nem as sanções internacionais que a invasão da Ucrânia gerou (fica longe e não envolve a Europa...), as dificuldades e o custo desta guerra para a Rússia não podem deixar de ser levadas em conta pela China na sua eventual operação de reintegração de Taiwan.
A guerra da Ucrânia (15): Ominosas previsões extrabélicas
Ninguém pode ignorar o inevitável efeito de ricochete das duras sanções financeiras e comerciais ocidentais aplicadas à Rússia, na sequência da invasão da Ucrânia, desde logo quanto ao preço dos combustíveis e outras commodities e quanto aos decorrentes efeitos sobre a economia (inflação, travagem do crescimento, eventual escassez de alguns produtos, etc.).
No entanto, mantém-se em aberto a estimativa sobre esse impacto negativo, que nas versões mais sombrias pode ir de uma situação de estagflação - ou seja, estagnação económica acompanhada de inflação elevada, com a consequente perda de rendimentos reais para a maior parte da população - até uma perspetiva ainda mais pessimista, designadamente a de uma nova crise financeira global, equiparável à provocada pela falência do Lehmann Brothers em 2008, como se pode ler nas páginas do cirscunspecto Financial Times.
Confiemos em que este último cenário não se venha a verificar...
segunda-feira, 14 de março de 2022
Concordo (21): Tributação extra dos "windfall profits"
Sufrago esta proposta da OCDE para um imposto extraordinário temporário sobre as petrolíferas, a reverter em benefício dos consumidores, para aliviar a enorme alta dos preços na atual conjuntura. Ela converge, aliás, com a solução que há pouco tempo AQUI adiantei, como alternativa market-friendly à fixação administrativa dos preços dos combustíveis, defendida por algumas forças políticas e interesses sociais.
domingo, 13 de março de 2022
Contra a invasão da Ucrânia (14): Trilogia de perdição
1. Considerando "nojento" este meu artigo sobre a invasão da Ucrânia, que qualifica de "mal disfarçado panfleto pró Moscovo", um leitor irado protesta "não voltar a abrir" este blogue.
Sendo obviamente abusiva a interpretação do leitor, e ultrajante a sua acusação, não lamento o seu afastamento - pelo contrário. No entanto, esta distorção primária dos factos e a acusação destemperada não passam de afloramento da atitude passional com que muita gente encara a guerra na Ucrânia, talvez por se travar à nossa porta e por as suas vítimas serem europeias e não as habituais (iraquianas, sírias, líbias, etc.).
Pelos vistos, nem todas as guerras e nem todas as vítimas delas valem o mesmo...
2. Ainda assim, nada justifica este grau generalizado de simplismo, de maniqueísmo e de fanatismo político - a trilogia mental que envenena irremediavelmente a análise da guerra.
O simplismo exclui à partida qualquer elaboração sobre o processo que culminou na invasão; o maniqueísmo faz extremar as posições, levando a esquecer a imprudência ocidental no agravamento do contencioso russo-ucraniano e a desqualificar totalmente as posições do adversário, por definição malévolas; o fanatismo russófobo - como se a Rússia fosse uma reincarnação agravada do comunismo soviético - leva a ver apenas um lado da guerra e a aceitar e justificar situações inadmissíveis em democracias liberais, como o ostracismo de desportistas e de artistas por causa da sua nacionalidade. (Também há o velho fanatismo antiamericano de alguns defensores da intervenção russa, mas são felizmente muito poucos).
Sucede que esta guerra verbal e ideológica não mata os seus guerreiros, mas infelizmente ajuda a matar mais gente entre os beligerantes no terreno, quer pelo clima hiperbélico que alimenta, quer por dificultar a criação das condições políticas para o termo do conflito, que somente um compromisso negociado e reciprocamente satisfatório pode alcançar.
sábado, 12 de março de 2022
Este País não tem emenda (27): Fragmentação autárquica
Enquanto em Espanha dois municípios da Estremadura decidiram fundir-se por iniciativa própria, criando o terceiro maior da Comunidade, e em muitos países europeus (e mesmo no Brasil) tem havido reformas tendentes a reduzir a fragmentação do poder local, em Portugal ninguém ousa sequer propor a fusão de municípios manifestamente inviáveis, por perda de população (havendo dezenas de municípios com menos de 5000 habitantes) e vai ser implementada a reversão da concentração das freguesias, efetuada há uma década, para satisfação dos candidatos às novas juntas de freguesia!
No entanto, é fácil ver que a fragmentação autárquica, o paroquialismo político e autarquias territoriais sem massa crítica põem em causa o poder local e a boa gestão dos escassos recursos públicos. Qaunto mais fragmentado, menos relevante!
Contra a invasão da Ucrânia (13): Nem tudo são más notícias
Como noticia o bem informado Financial Times, enquanto a devastação da guerra prossegue, as negociações entre a Rússia e a Ucrânia parecem abrir perspetivas de solução diplomática, centrada sobre um estatuto de neutralidade ucraniana e abandono da entrada na Nato (a principal reivindicação russa), acompanhada de efetivas garantias de segurança recíproca - afinal, a solução aqui preconizada desde o início. Segundo o jornal britânico (texto reservado a assinantes), «the two warring countries still seem to suggest that talk of neutrality might help silence the guns».
Infelizmente, nem as televisões nem o "comentariado" que as domina deram qualquer relevo a este desenvolvimento. Decididamente, a ideia de "silenciar as armas" não merece tempo de antena!
Contra a invasão da Ucrânia (12): Não é só a "esquerda iliberal"
1. Não é preciso integrar a "esquerda iliberal" para não alinhar em tudo com o coro hagiográfico dominante sobre a guerra da Ucrânia.
Também os que, como eu - pessoa de esquerda, assumidamente liberal e crítico recorrente da esquerda iliberal -, podem criticar tanto o incentivo da Nato, e especialmente dos Estados Unidos, ao abandono pela Ucrânia do seu estatuto de neutralidade em 2014 e ao pedido de adesão à Nato - o que não podia deixar de ser visto pela Rússia como um grave risco para a sua segurança (como seria para Washington um pacto militar entre o México e a Rússia ou a China...) - como a complacência ocidental com o gritante incumprimento do acordo de Minsk sobre a autonomia das províncias russófonas do Leste da Ucrânia, a qual, em vez disso, as manteve sob permanente assédio militar.
Ou seja, se a invasão da Ucrânia é ilegítima e só merece condenação, isso não impede de considerar legítimas as preocupações de Moscovo naqueles dois pontos. Há obviamente um país agressor e um país invadido, mas, tal como nas relações interpessoais, também aqui nada justifica a prevalecente atitude maniqueísta que vê no primeiro uma encarnação diabólica e na segunda um poço de virtude e que "cancela" como ilegítima toda a divergência ou opinião heterodoxa em relação à verdade assumida.
2. De resto, a crítica da Nato no caso da Ucrânia não pode considerar-se à partida como de motivação "iliberal", por três razões elementares.
Em primeiro lugar, as convicções liberais não exigem uma atitude acrítica ou seguidista perante posições aventureiras ou irresponsáveis de potências liberais, só por o serem, mesmo quando têm por alvo países autocráticos. Pelo contrário, isso seria antiliberal.
Segundo, a Nato não constitui propriamente um clube de democracias liberais, como mostra o facto de Portugal ter sido país fundador, sendo então uma ditadura parafascista, e de hoje em dia serem membros países tão pouco demoliberais como a Turquia, a Hungria ou a Polónia; nascida como pacto militar ocidental contra a União Soviética, independentemente do regime político dos seus membros, só trocou a URSS pela Rússia como adversário, depois do desaparecimento daquela.
Por último, como já escrevi antes, a invasão russa da Ucrânia não tem que ver com o suposto regime demoliberal desta - pois nem sequer parece exigir a mudança do seu Governo -, pelo que a guerra pode vir a terminar desejavelmente com um acordo entre as partes (com garantia plurilateral) que dê uma resposta satisfatória à Rússia nequeles dois aspetos, a troco naturalmente da garantia da soberania e da segurança da própria Ucrânia, sem afetar a conservação do regime político ucraniano nem, muito menos, transformar o País num "satélite" ou "protetorado" de Moscovo.