domingo, 18 de junho de 2023

Corporativismo (45): Perda de oportunidade

Propondo a revisão dos estatutos de todas as ordens profissionais existentes, para os adaptar à nova Lei-quadro e para reconsiderar o âmbito do exclusivo profissional de cada uma delas (que a Lei-quadro remeteu para os estatutos de cada uma), o Governo perdeu a oportunidade de extinguir várias delas - designadamente as dos economistas, dos despachantes oficiais, dos nutricionistas e do serviço social -, que não têm nenhuma justificação, quer por essas profisssões não estarem sujeitas a nenhuma regulação exigente, quer por os seus clientes serem essencialmente empresas ou instituições, não havendo, portanto, o problema típico da profunda "assimetria de informação" entre prestadores e clientes e a necessidade de proteção reforçada destes, que justificam a autorregulação oficial das ordens tradicionais, baseada na supervisão de normas técnicas e deontológicas pelos próprios pares.

Ao mantê-las todas, sem reapreciar os fundamentos da sua existência, o Governo e a AR coonestam politicamente a oportunista vaga de ordens profissionais das últimas décadas, como se tivesem um direito de continuar só por terem sido criadas, e prescindem de conferir ao congestionado universo das ordens profissionais a coerência que manifestamente deixou de ter.

sábado, 17 de junho de 2023

Aplauso (24): Basta de cedências!

O meu aplauso para decisão do Governo de dar por encerradas a negociações com os sindicatos dos professores.

Penso que era óbvio, desde o início, que, face ao intratável maximalismo sindical, era impossivel alcançar um acordo, apesar de o Governo ter ido demasiado longe nas muitas cedências que fez - incluindo quanto à recuperação parcial do tempo de serviço para efeitos de progressão na carreira -, as quais, além de financeiramente muito onerosas, aprofundam o privilégio dos professores, que são beneficiários de uma carreira "plana", onde a progressão depende essencialmente do decurso do tempo, dada a ausência de avaliação de desempenho digna desse nome.

O Governo não podia dispor-se a continuar sob a chantagem sindical de paragem da escola pública, tanto mais que os excessos das greves e o boicote dos serviços mínimos decretados (culminando na infame manifestação de ódio de 10 de junho na Régua) alienaram o apoio de que a luta dos professores chegou a dispor na opinião pública.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Assim, não (5): O PSD à deriva (II)

1. O PSD vai de mal a pior quanto à consistência da sua ação política. 

Apesar das sensatas e autorizadas considerações do seu ex-dirigente, Paulo Mota Pinto, sobre o SIS, em entrevista ao Público há dois dias, o PSD não só votou favoralmente o leviano inquérito parlamentar promovido pelo Chega e pela IL - impondo mesmo disciplina de voto! -, mas também veio proclamar, pela voz do próprio líder, o abandono do tradicional consenso com o PS (ou seja, os dois partidos de governo) acerca da direção e da supervisão dos serviços secretos.

2. Trata-se de uma enorme irresponsabilidade política, quer por não haver nenhuma justificação para tal reação, e não dever haver lugar nesta matéria para birras ou caprichos temperamentais, quer por expor à luta interpartidária um tema tão delicado como o serviço de informações de segurança, que devia ficar sempre à margem da guerrilha política. 

Mais do que qualquer outro tema, o governo dos serviços secretos deveria continuar a beneficiar do discreto entendimento bipartidário até agora vigente, mas que o líder do PSD preferiu romper inopinadamente, para justificar a constituição de uma frente de direita com a IL e o Chega nesse tema politicamente ultrassensível. 

Decididamente, o PSD não vai por bom caminho.

Assim vai a economia: Bons augúrios

1. Continuam a ser revistas em alta as previsões para o crescimento económico entre nós no corrente ano, muito superior ao da zona euro. Sendo certo que na base desse bom desempenho está a retoma do turismo e o volumoso investimento financiado pelo PRR da União, não é menos certo que Portugal supera mesmo os países que beneficiam relativamente mais desses mesmos fatores, como a Itália.

Com maior crescimento vem mais emprego, mais salários e mais rendimento, e também mais receita fiscal e mais contribuições para a segurança social, consolidando as contas públicas e reduzindo o recurso à dívida pública (não se justificando qualquer défice este ano!).

2. Mas, com mais crescimento também vem mais poder de compra e mais despesa agregada, pressionando os preços e travando a descida da inflação, bem como a tentação de o Governo abrir os cordões à bolsa e aumentar a despesa em salários e transferências sociais - tanto mais que no ano que vem há eleições europeias -, com o inerente risco, quer para a inflação, quer para a estabilidade das finanças públicas.

A prudência política aconselha a não entrar em deslumbramento, mantendo a prioridade no controlo da despesa, para reduzir do peso da dívida pública e baixar a inflação...

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Não dá para entender (31): O PSD à deriva

1. Numa manobra altamente demagógica, o PSD vem juntar-se ao PCP e ao BE na crítica à redução dos juros dos certificados de aforro, acusando o Governo de «favorecer a banca».

Antes de mais, apesar da redução dos generosos juros dos certificados de aforro - a qual obviamente só se aplica às novas subscrições -, eles continuam a render muito mais do que os juros dos depósitos bancários, pelo que o aforro vai continuar a fugir destes, enquanto a banca não subir a remuneração (o que, aliás, não vai apressar-se a fazer, enquanto não precisar de liquidez...). Estamos numa economia de mercado, e os bancos não são instituições de beneficência. 

Por conseguinte, não se vê onde é que há o tal "favorecimento da banca".

2. Pior do que isso, um partido de governo, como o PSD, tradicionalmente defensor do rigor das finanças públicas e, em especial, da contenção da despesa pública, não pode vir defender contraditoriamente que o Estado remunere a dívida acima do que é necessário para obter financiamento, aumentando desnecessarimente os já pesadíssimos encargos da divida pública. Se há despesa pública que importa reduzir é justamente a dos juros da dívida pública, libertanto recursos para outras despesas mais virtuosas, incluindo os serviços públicos e a proteção social de quem precisa mais do que os aforradores (que, aliás, têm outras alternativas de investimento). 

A verdade é que depois de ter defendido anteriormente uma redução geral dos impostos - beneficiando quem mais ganha e dificultando a luta contra a inflação -, mais esta nova tirada demagógica mostra que o PSD está disposto a sacrificar os princípios da boa gestão financeira pelo mais pedestre oportunismo político que a conjuntura proporcione, mesmo em más companhias. 

Assim, não merece voltar ao Governo tão cedo.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (38): Instrumentalização do Conselho de Estado

1. A expectativa, deliberadamente criada pelo PR, sobre a reunião do Conselho de Estado em julho, para fazer o «ponto de situação (...) sobre a evolução da economia, sobre a situação social e sobre a situação política», é mais do que problemática em termos constitucionais. 

Com efeito, tal como já aqui chamei a atenção há dois anos, o Conselho de Estado, como órgão consultivo do PR, só deve ser chamado a pronunciar-se sobre matérias da competência presidencial, que estão devidamente enunciadas na Constituição, e não sobre a condução da política do País, que constitui competência exclusiva do Governo. 

Por isso, é inteiramente descabido convidar o Conselho de Estado a pronuncuiar-se sobre a orientação geral do Governo, sobre políticas sectoriais, sobre prioridades orçamentais e, muito menos, sobre a composição ou a consistência do Governo. Sucede que o Governo só responde politicamente perante o parlamento, não perante o PR, muito menos perante o seu órgão consultivo

2. O Conselho de Estado não é uma segunda câmara parlamentar (e, de resto, na generalidade das democracias parlamentares com parlamentos bicamarais, a responsabilidade política dos governos é efetuada somente perante a câmara baixa). 

A convocação do Conselho de Estado para "fazer o ponto político" após do debate do Estado da Nação na AR (marcado para 19 de julho), como se fora uma segunda volta desse debate, constitui manifestamente uma tentativa de desconsiderar o escrutínio parlamentar, dando a última palavra aos conselheiros do Presidente - em cuja composição, et pour cause, há um claro desequilíbrio entre a direita e a esquerda, em favor da primeira -, com o óbvio eco na imprensa.

Esta ilegítima instrumentalização do Conselho de Estado e dos seus membros inscreve-se claramente no projeto, que já várias vezes aqui denunciei, de subverter o regime político-constitucional de separação de poderes num sentido presidencialista, dando ao PR um papel de tutela política sobre o Governo, que ele constitucionalmente não pode ter

Adenda
Perguntam-me como apurei a inclinação político-partidária no Conselho. Levei em conta somente os membros com filiação partidária pública (os do PSD e CDS e os do PS), não incluindo, portanto, os membros partidariamente independentes. Em todo o caso, esse ponto é relativamente irrelevante na minha crítica, que tem a ver com a abusiva transformação do Conselho num forum oficial paralelo de escrutínio político, à margem da sede própria - o parlamento.

domingo, 11 de junho de 2023

Assim, não (4): A escola pública não pode ser isto

Se os grevistas que têm conduzido a luta sindical dos professores, sempre "em defesa da escola pública" (como reivindicam, mas que metodicamente afundam...), são os arruaceiros que ontem, na Régua, resolveram organizar uma manifestação para perturbar gravemente as comemorações do 10 de junho e insultar soezmente o primeiro-ministro, então dá vontade ser ser contra tal escola pública e de recusar que os nossos filhos e netos sejam "ensinados" por energúmenos daqueles.

Lamentavelmente, nem o Presidente da República - que tão assertivo se tem manifestado em defesa da dignidade das instituições -, nem os partidos da oposição - que deviam definir limites quanto à decência política das formas de protesto antigovernamenetal que apoiam - acharam por bem condenar a manifestação e o insulto, nem sequer demarcar-se dele. Decididamentre, o respeito pelas instituições está a deixar de ser um critério de julgamento do combate sindical e político em Portugal...

Adenda
Um dia depois, a Fenprof veio demarcar-se do insulto, mas não consta que, como organizadora da manifestação, tenha sequer tentado isolar e dissociar-se dos díscolos. Um "lavar de mãos" tardio e hipócrita, portanto.   

Adenda 2
A IL também se veio demarcar hoje à tarde. Quanto aos demais partidos, entre os quais o PSD e o BE, "moita, carrasco". Uma vergonha!

Adenda (3)
Um leitor pergunta «porque deveriam os partidos demarcar-se de cartazes exibidos durante uma manifestação que não era deles, nem tinha qualquer relação direta nem indireta com eles». A meu ver, deveriam fazê-lo por duas razões: a) porque os partidos não devem deixar de censurar a violação das regras mais elementares do combate político, sob pena de eles próprios virem a ser os próximos alvos e a luta política se tornar numa selva; b) por a ofensa ao PM ter ocorrido em clara perturbação de uma celebração nacional oficial presidida pelo PR, que se viu gravemente manchada pelos manifestantes. Penso que a degradação do espaço político não aproveita a ninguém, salvo ao populismo anti-institucional.

Adenda (4)
Sempre ao lado da luta dos professores contra o Governo, enquanto estes afundam metodicamente a escola pública, o Presidente da República veio tentar atenuar a gravidade do ocorrência, apesar de ela ter ferido a dignidade das comemorações do 10 de Junho, a que ele presidiu. Lastimável.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Sistema eleitoral (6): Uma boa ideia, mas...

1. Há muito tempo que, tal como Ascenso Simões neste artigo de hoje no Expresso, defendo a substituição dos antigos distritos administrativos pelas novas comunidades intermunicipais (CIM), como circunscrição territorial dos círculos eleitorais, pela elementar razão de que aqueles, que eram autarquias locais em 1974, desapareceram como circunscrição relevante, deixando de ser um fator de identidade territorial.

No entanto, divergindo dele, entendo que não há necessidade nenhuma de mexer na Constituição para esse efeito, por duas razões: (i) atualmente, ela deixa essa matéria para a lei, mediante aprovação por maioria de 2/3, ou seja, exigindo o mesmo apoio interpartidário da revisão constitucional; (ii) tal mudança no sistema eleitoral deve ser enquadrada numa revisão mais ampla da lei, não sendo a revisão constitucional a sede mais apropriada para a efetuar.

2. Também estou de acordo em que os círculos eleitorais devem ter limites mínimos e máximos de deputados a eleger, mediante a nessária desagregação das CIM maiores, acabando com a enorme assimetria hoje existente, que vai de dois deputados (Portalegre) a 49 (Lisboa). 

Mas penso que o intervalo proposto pelo autor - entre dois e cinco - é inaceitavelmene baixo, pois daria resultados muito pouco proporcionais e tenderia a reduzir a representação parlamentar a três ou quatro partidos. Tenho proposto entre um mínimo de três e um máximo de sete, sendo, porém, essa mudança acompanhada de mais duas importantes alterações:

   - a criação de um círculo nacional sobreposto, elegendo um décimo dos deputados (23), para o qual contariam todos os votos a nível nacional, reduzindo o atual excesso de votos desperdiçados e alargando a representação partidária no parlamento;

   - a adoção do voto preferencial, dando aos eleitores a possibilidade de, dentro da lista partidária em que votam, escolherem também o(s) canditato(s) da sua preferência (para o que os boletins de voto passariam a incluir também a lista dos candidatos de cada partido).

Estou convencido de que estas duas mudanças respondem a dois problemas reais do atual sistema eleitoral e reduziriam a tendência para a abstenção.

Adenda
Ascenso Simões não está sozinho na incorreta suposição de que a reforma do sistema eleitoral tem de passar por revisão constitucional. Num recente estudo sobre o tema, inserido no Essencial da Política Portuguesa, o seu autor, Jorge M. Fernandes, também afirma que «a reforma do sistema eleitoral em Portugal exige uma alteração da Constituição». Ora, ressalvado o metodo de Hondt, a CRP deixa uma ampla margem de manobra ao legislador para mudar os principais componentes do sistema eleitoral  (número de deputados, tamanho e configuração dos círculos eleitorais, incluindo a admissão de círculos uninominais e de um círculo nacional, possibilidade de voto preferencial, etc.). Trata-se, portanto, de uma tese sem fundamento.

Adenda (2)
Um leitor objeta que com a minha proposta o sistema eleitoral deixaria de dar resultados proporcionais, sendo por isso «inaceitavelmente antidemocrática» e, mesmo, anticonstitucional. Mas não tem razão. Quanto ao primeiro ponto, a noção de proporcionalidade é relativa: seguramente a minha proposta tornaria o sistema eleitoral menos proporcional, mas ele continuaria a ser proporcional, bem diferente dos sistemas maioritários. Quanto ao segundo ponto, o conceito de democracia representativa nem sequer supõe necessariamente um sistema eleitoral proporcional, pois, de outro modo, teríamos de excluir os países de sistema maioritário, como o Reino Unido ou a França. A Constituição garante um sistema eleitoral proporcional, mas não impõe um grau superlativo de proporcionalidade, nem muito menos uma proporcionalidade perfeita, que, aliás, não existe.

Adenda (3)
Outro leitor pergunta porque proponho um limite superior tão baixo para o tamanho dos círculos eleitorais territoriais (sete deputados), embora corrigido em parte pelo círculo nacional. A principal razão tem a ver com a minha proposta de voto preferencial (dentro das listas partidárias) nos círculos territoriais, o que, a meu ver, requer listas de candidatos reduzidas, para caberem no boletim de voto e, sobretudo, para que os eleitores os possam identificar a todos e fazer uma escolha informada. Além disso, porém, convirjo com a perspetiva de um influente texto de Carey e Hix, de 2011, que consideram a solução dos círculos eleitorais de baixa magnitude (na sua proposta, entre três e oito deputados) como o «sweet spot eleitoral».

Adenda (4)
À pergunta sobre a minha perspetiva sobre a «viabilidade política de uma reforma do sistema eleitoral», a minha resposta é de franco ceticismo, por várias razões: (i) porque o sistema eleitoral vigente não dá sinais de crise grave, apesar da crescente abstenção e da fragmentação parlamentar; (ii) porque os dois principais partidos nem querem ouvir falar em voto preferencial, continuando o "namoro" com o sistema alemão, que nem na sua pátria de origem funciona bem; (iii) porque o PSD continua a condicionar qualquer revisão à sua obsessão pela redução do número de deputados, o que o PS não pode aceitar (e bem). Demasiados e elevados obstáculos.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Corporativismo (44): O grémio dos advogados

1. Menos de 6% dos advogados portugueses (2000 em mais de 35 000), muitos deles votando por representação, aprovaram, por maioria, uma moção de repúdio contra a aplicação à advocacia da reforma em curso da regulação das profissões liberais e das respetivas ordens profissionais, sendo o principal alvo de contestação a redução da esfera de atos exclusivos da profissão, os chamados "atos próprios".

Pela sua básica motivação protecionista, esta rebelião corporativa dos advogados faz lembrar a revolta há poucos anos dos taxistas contra a admissão da Uber pelo Governo, pondo em causa o monopólio económico daqueles. Mas há duas diferenças essenciais: 

    - no caso dos taxistas, estava em causa a perda de todo o seu exclusivo profissional, passando a ter a concorrência da Uber e outras plataformas, enquanto que no caso dos advogados não está em causa o núcleo duro do seu exclusivo profissional, o patrocínio judiciário, que ninguém contesta;

    - a agremiação dos taxistas é uma associação privada de defesa de interesses profissionais, com ampla liberdade de protesto, enquanto a OA é uma entidade pública, dotada de atribuições oficiais pelo Estado, o que exclui condutas de tipo sindical, como algumas das indicadas no referido manifesto.

Por isso, para além de imprópria da profissão, esta ameaça de rebelião da Ordem dos Advogados é manifestamente ilegítima, não tendo nenhuma sustentação constitucional.

2. Não deixa de ser especialmente censurável que, embora reclamando-se de defensora do Estado de direito e de protetora dos direitos, liberdades e garantias individuais, a Ordem se proponha não somente organizar manifestações à porta dos tribunais, mas também perturbar deliberadamente o funcionamento destes e a prática de atos judiciais, instrumentalizando para fins pessoais o mandato recebido dos clientes, assim como fazer greve a atos urgentes em processo penal, tomando os cidadãos interessados como reféns inocentes da sua ação reivindicativa -, o que é intolerável.

Por mais razão que tivessem os advogados no seu protesto (e, a meu ver, não têm nenhuma...), há certas linhas vermelhas que não podem ser ignoradas por uma entidade pública contra o Estado, ao qual deve, aliás, a sua criação.

3. Para ver a leviandade com que esta moção foi aprovada, basta referir dois pontos.

Em primeiro lugar, a Ordem invoca o direito de resistência, que a Constituição garante aos particulares para defesa dos seus direitos, liberdades e garantias, quando não seja possível recorrer à autoridade pública. Ora, por um lado, nem a Ordem nem os advogados têm nenhum direito fundamental aos "atos próprios" atualmente enunciados na lei (salvo o patrocínio judiciário); pelo contrário, o que está em causa é diminuir a grande restrição da liberdade de profissão que esse excessivo monopólio profissional representa. Por outro lado, é evidente que tanto a Ordem como os advogados individualmente podem impugnar judicialmente os atos de aplicação da nova legislação, invocando a inconstitucionalidade desta -, pelo que também não se verifica o segundo pressuposto do direito de resistência.

Em segundo lugar, a Ordem anuncia a intenção de recorrer ao Tribunal de Justiça da União, por alegada violação de uma Diretiva, quando todo o jurista sabe que isso não faz sentido, pois é aos tribunais nacionais que cabe julgar sobre a conformidade das normas nacionais com o direito da União. De resto, a meu ver, não existe nenhuma desconformidade.

Estas duas pretensões sem base jurídica mostram que a Ordem nem sequer cuidou de defender a sua reputação como representante oficial dos profissionais de consultoria jurídica...

Adenda
Um leitor, advogado, que até nem concorda com «a reação desproporcionada da Ordem», acha, porém, que é «despropositada» a equiparação com os taxistas, e entende que, se a decisão é ilícita, então «devia ser impugnada pelo Ministério Público». Quanto ao primeiro ponto, não vejo onde esteja o despropósito da comparação com os taxistas, pois trata-se da mesma situação: duas profisssões a lutar pela preservação da sua "coutada" de negócio. Quanto ao segundo ponto, penso que, depois de a OA ter realizado um referendo sobre o regime de pensões dos advogados (matéria que não faz parte das suas atribuições), sem nenhuma reação da PGR, aquela deve gozar de um estatuto de imunidade, pelo que não é de esperar nenhuma impugnação. Quem não deveria deixar de impugnar, são os membros da OA que não podem deixar de se sentir incomodados com a conduta "sindicalista" e "patuleia" da atual Bastonária, a tentar emular o presidente do STOP na luta dos professores.

Adenda 2
Outro leitor acusa-me de quer «negar aos advogados o direito de defender os seus interesses coletivos da mesma maneira que outras atividades profissionais», mas não tem razão. Os advogados têm esse direito, mas não por via da Ordem, só podendo fazê-lo, tal como outras profissões, através de sindicatos, associações profissionais, "comissões de luta", etc.. Sendo entidades públicas, os poderes das ordens são somente os que a lei enuncia, onde não se contam atos de protesto que afetam os serviços públicos e os direitos dos utentes.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (22): Notícias subvertidas pela opinião

Ao contrário da generalidade dos outros media (por exemplo, AQUI e AQUI), que sublinharam a revisão em alta, pela OCDE, da previsão de crescimento para este ano em Portugal - para mais do dobro da previsão anterior da mesma organização internacional -, o Jornal de Notícias preferiu escolher como manchete referir um suposto «colapso» do crescimento... no ano que vem!

Ora, para 2024, a OCDE também prevê um crescimento de 1,5% para o nosso País, o que, além de não ser obviamente nenhum "colapso" económico, ainda fica acima do crescimento previsto para a zona euro (1,4%).

Editorialmente, o JN pode obviamente ter a orientação política que quiser. Mas, como indicam as regras do jornalismo, não deve inquinar as notícias com opinião.

terça-feira, 6 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37): Presidencialização do sistema político?

1. Estando de acordo com a tese principal deste artigo de J. Conde Rodrigues sobre a função presidencial entre nós - a saber, que «num Estado de Direito, a vontade do titular [de um órgão político] nunca se deve sobrepor à norma [constitucional]» -, já não o acompanho, porém, quanto à leitura do sistema de governo constitucionalmente estabelecido desde a revisão constitucional de 1982.

Na minha opinião, a alteração principal (mas não única) dessa revisão nessa área - que foi a de abandonar a responsabilidade política do Governo perante o PR, perdendo este o poder de demissão discricionária do executivo - não foi somente um «afastamento ligeiro» em relação ao modelo semipresidencial francês, como entende o autor, mas sim uma substancial alteração, que retirou ao sistema de governo a "natureza mista" que tinha na versão originária da Constituição, em que o Governo dependia politicamente tanto da AR como do PR.

2. Com efeito, com essa alteração, o Governo passou a ser o único titular da condução política do país e a derivar a sua legitimidade política das eleições parlamentares, respondendo politicamente somente perante o parlamento - preenchendo, portanto, as condições básicas do sistema de governo parlamentar -, e o PR passou a ser um "poder moderador" neutral, exterior à dialética Governo-oposição, não compartilhando do poder executivo e não podendo interferir na orientação política e na atuação do Governo e ficando encarregado sobretudo de velar pelo regular funcionamento das instituições.

No quadro constitucional vigente - que obviamente vincula o titular de Belém -, este não governa nem cogoverna, nem tem tutela política sobre o Governo. Em suma, a revisão constitucional de 1982 retirou ao sistema de governo a principal característica do chamado "semipresidencialismo", em sentido estrito, que é, no dizer de vários autores, o "executivo dual"

Por isso, a chamada "presidencialização" do sistema de governo, por que alguns dirigentes políticos anseiam e que alguns comentadores aplaudem, não tem cabimento constitucional.
 [Mudada a rubrica]

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Era o que faltava (9): Boas causas não justificam todos os meios

Pelos vistos, chegou até nós o movimento anti-SUV dos "tire-extinguishers", que atacam os seus alvos, esvaziando os pneus das viaturas e deixando uma nota afixada no para-brisas a justificar o ataque. 
O curioso é que a PSP publicou uma nota a dizer que até agora não teve queixas e que entende que tais ações não constituem crime. Ora, segundo o Código Penal, pratica crime de dano «quem (...) tornar não utilizável coisa (...) alheia», o que, para um não-penalista, como eu, parece ser o caso, visto que a viatura fica obviamente inutilizável até à susbstituição das rodas esvaziadas, o que pode não ser fácil, se for mais do que uma. 
Em todo o caso, seja crime ou não, e embora concordando com a crítica aos SUV, pelo seu excessivo consumo de energia, não posso aceitar que essa crítica possa justificar estas formas de "ação direta" de "ativistas" autoerigidos em justiceiros do clima, tal como ja se tinha verificado na ocupação de escolas na recente greve dos estudantes pelo clima. A complacência policial só encoraja estas condutas à margem da lei.

domingo, 4 de junho de 2023

Guerra na Ucrânia (56): O tempo do compromisso ainda não chegou

A imediata rejeição ocidental do plano de paz apresentado numa conferência internacional pelo ministro da defesa da Indonésia (e provável presidente do país no próximo ano) - que propõe um cessar fogo monitorizado pelas Nações Unidas e um referendo nos territórios em disputa, e que, no essencial, converge com a minha própria sugestão de há tempos - mostra que o tempo do compromisso ainda não chegou na guerra na Ucrânia e que os aliados desta continuam a desconsiderar inteiramente as duas principais razões russas para o invasão, ou seja, a sua própria segurança, face ao cerco da Nato, e a segurança da população russófona no leste da Ucrânia, durante anos hostilizada por Kiev.

Não sendo previsível superar este impasse no curto prazo, só resta esperar a continuação indefinida das hostilidades, e das suas vítimas, sem excluir o risco de uma escalada bélica...

Adenda
Um leitor pergunta porque é que «todas as propostas de mediação do conflito vindas de terceiros países são logo apelidades de "pró-russas" e liminarmente rejeitadas não só pela Ucrânia, o que se compreende, mas também pelos EUA e pela UE». Penso que os países da Nato, que começaram por boicotar as conversações inicialmente realizadas entre os beligerantes sob a égide da Turquia, forçando a Ucrânia a abandoná-las, continuam fixados na idea de que é possível vencer a guerra, incluindo a recuperação da Crimeia, humilhando política e militarmente a Rússia. Uma ideia que pode ser muito perigosa...

sábado, 3 de junho de 2023

Mais União (73): A Polónia, de mal a pior

A nova lei polaca que cria uma comissão, de nomeação parlamentar, para investigar e punir a alegada "influência  russa" ou as supostas posições "contra a segurança da Polónia", com poderes para suspender durante anos titulares de cargos políticos ou administrativos, é um puro instrumento de perseguição política da oposição ao atual governo e tem por alvo imediato o líder da oposição democrática, Donald Tusk, da Plataforma Cívica, não podendo deixar de ser qualificada como um gravíssimo atentado ao Estado de direito naquele País.

Depois da subversão da independência judicial, devidamente sancionada pela União Europeia, incluindo o TJUE, por atentado aos seus valores fundamentais, esta celerada lei constitui uma provocação política de alto gabarito. A reação da União não pode limitar-se a uma frouxa posição da Comissão europeia. O Parlamento Europeu tem de assumir a sua responsabilidade política na defesa dos princípios constitucionais da União, não podendo deixar de denunciar mais este passo na transformação da Polónia num Estado policial, ao serviço da perseguição e da repressão política da oposição

Terra brasilis (11): Atavismo de esquerda

O governo de Lula da Silva acaba de comunicar à Organização Mundial do Comércio (OMC) que recua na adesão do País ao tratado plurilateral sobre compras públicas, que abre o mercado de compras do Estado (bens, serviços, concessões, etc.) entre os países contratantes. Paralelamente, o Governo anunciou também reservas quanto ao mesmo capítulo no acordo de comércio entre o Mercosul e a UE, ainda pendente de conclusão (o que esta posição brasileira não vai facilitar...).

A resistência, sob pressão das empresas domésticas, à abertura do mercado interno de compras públicas à concorrência de empresas de outros países tem duas consequências nefastas: (i) aumenta o seu custo para o orçamento do Estado, penalizando as contas públicas, e (ii) veda o acesso das melhores empresas nacionais, numa base de reciprocidade, ao importante mercado de compras públicas dos países desenvolvidos (como a UE), prejudicando o seu crescimento e o das exportações nacionais. 

Infelizmente, o protecionismo comercial e a hostilidade contra a concorrência externa contam-se entre os mais arreigados atavismos ideológicos da esquerda, e não somente no Brasil.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (36): O poder desestabilizador

1. Acusando o Presidente da República de «estar ele próprio a transformar-se num fator de instabilidade [política]», e de «estar obcecado com eleições antecipadas e crise política» - tendo falado em dissolução parlamentar cerca de 20 vezes (!!) nos últimos meses -, o colunista do Jornal de Negócios, Pedro Sousa Carvalho, invoca um recente estudo universitário sobre os custos de uma crise política, baseado em mais de cem casos, calculando que «cada evento de mudança de governo reduz a taxa de crescimento anual do PIB per capita real em 2,39 pontos percentuais [em média]» - o que é uma perda impressionante.

Ora, mesmo que a crise política acabe por não se consumar, parece evidente que o clima prolongado de instabilidade política alimentado pelo PR e o receio de que a crise venha a ocorrer afetam, só por si, o clima de confiança ecónomica, com impacto negativo no crescimento económico.


2. Tal como outros autores, desde há muito que qualifico como "poder moderador" o papel do PR no triângulo dos órgãos do poder político previstos na Constituição, junto com a AR e o Governo, o qual consiste designadamente em velar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições democráticas, incluindo o respeito pelos poderes constitucionais do Governo e pelos direitos da oposição.

A missão constitucional do Presidente deve estar, por isso, ao serviço da estabilidade política e do cumprimento dos mandatos políticos, prevenindo os fatores de instabilidade e ajudando a superá-los, quando surjam.  Em vez disso, porém, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se vindo a tornar um fator quotidiano de instabilidade, por causa do seu "ativismo presidencial" à margem da Constituição, que afeta o desempenho governativo e esvazia o papel da oposição, através da permanente ingerência pública nos assuntos governativos, da referida obsessão com a dissolução parlamentar e do mais recente frenesi sobre uma remodelação governamental (que só ao PM cabe decidir).

Infelizmente, em vez de poder moderador, o atual PR tem preferido converter-se em verdadeiro poder desestabilizador -, com os inerentes custos para o País.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Praça da República (74): A política criminal pertence ao foro político

Além de inconstitucional, esta ideia do PCP de transferir para o Ministério Público a definição das prioridades da política criminal não faz nenhum sentido numa democracia representativa, como a nossa, baseada na separação de poderes e, em especial, na separação entre política e justiça.

Em primeiro lugar, tal proposta vai contra norma explícita da Constituição (art. 219º), que atribui a definição da política criminal aos órgãos de soberania competentes, ou seja, a AR e o Governo, ao qual incumbe a conduta da política geral do País e que por ela responde perante aquela; segundo, essa proposta retiraria da esfera do debate e da responsablidade política essa importante política setorial, confiscando aos cidadãos o poder de pedir contas por ela; por último, ela transformaria a PGR num órgão político, para o que carece obviamente de legitimidade democrática, passando a política criminal a ser objeto, irresponsavelmente, de disputa sindical dentro do MP. 

Num Estado de direito democrático, o MP executa, mas não pode definir, a política criminal, que pertence ao foro político. É a maioria parlamentar-governamental que deve responder por ela perante o País, no final do seu mandato.

Adenda
Um leitor objeta que «em Portugal, é de facto o Ministério Público quem decide o que investiga ou deixa de investigar, quando e como lhe apetece. Aparentemente, o MP manda em si próprio; aliás, cada procurador manda em si próprio e ninguém manda neles, nem a própria Procuradora-Geral controla o que eles fazem». Estou inteiramente de acordo: o MP define as suas próprias prioridades, sem ser "chamado à pedra" pela Assembleia da República e pelo Presidente da República, que deve velar pelo regular funcionamento das instituições (sendo ele, aliás, quem nomeia e demite o/a PGR, sob proposta do Governo). No fundo, com esta proposta, o PCP, que tem um peso sindical desproporcionado no MP, quer "legalizar" essa situação, à margem da Constituição e da lei...

Revisão constitucional (7): Obviamente rejeitada!

A proposta do PSD de introduzir no sistema político-constitucional mais um órgão nacional consultivo, a acrescentar ao CES, designado como Conselho da Coesão Territorial e Geracional (sic!), era uma das ideias mais estapafúrdias e demagógicas apresentadas nesta revisão constitucional

Que ela tenha sido incluída no projeto de revisão constitucional do PSD, tal poderia ser eventualmente atribuído a alguma precipitação na elaboração do projeto; mas que tenha sido defendida pelos seus autores como se fora uma prioridade do partido, não deixa de ser preocupante sobre o sentido de responsabilidade institucional de um partido fundador do atual regime constitucional, há quase meio século.

Obviamente, só podia ter como destino a rejeição liminar!

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Memórias acidentais (22): Carlos de Oliveira

1. Acabo de ver na RTP1 o filme a Hora dos Lobos, realizado por Maria João Luís, baseado no romance de Carlos de Oliveira, Alcateia, de 1944. 

Apaixonei-me cedo, logo nos anos 60 do século passado, pela obra deste escritor (incluindo a Alcateia, que ele depois "enjeitou"), não somente pela singularidade da sua escrita no panorama da literatura neorrealista (Casa na Duna, Uma Abelha na Chuva, etc.), mas também pela evocação da paisagem geográfica e humana da Gândara, que me era familiar, pelas frequentes deslocações de bicicleta desde a minha adjacente aldeia bairradina até Cantanhede e à praia de Mira, por entre pinhais e lagoas perdidas no meio deles.

Por isso constituiu para mim um grande momento a oportunidade de o conhecer pessoalmente, em 1975, numa visita à sua casa em Lisboa - acompanhado do escritor Jorge Reis (autor de Matai-vos uns aos outros, 1962), que também só conheci depois da Revolução, no regresso do seu longo exílio em Paris. Recordo com emoção essas horas de conversa, ouvindo-o recordar os tempos de Coimbra e da Gândara dos anos 40, e o ambiente cultural e político que gerou a obra literária que eu tão bem conhecia e tanto admirava

2. Em 1982, a revista Vértice  - uma revista crucial na história do neorrealismo, de que ele fora colaborador, como todos os demais escritores identificados com o movimento -, de cuja redação eu era membro desde o final dos anos 60, resolveu organizar um número especial de homenagem a Carlos de Oliveira, falecido no ano anterior, que ajudei a planificar e para o qual contribuí com um estudo, intitulado Paisagem Povoada: a Gândara na obra de Carlos de Oliveira.

Muitos anos depois, em 2003,  tive oportunidade e o gosto de reeditar em livro uma versão revista desse texto, numa edição da Câmara Municipal de Cantanhede, acompanhada de uma antologia de textos seus (a começar pela Alcateia) e ilustrada com fotos minhas da região gandaresa. 

E, sempre que posso, regresso ao prazer da leitura da Finisterra ou da Micropaisagem, que estão entre o que de melhor nos legou o neorrealismo, no romance e na poesia

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Conhecer Coimbra (1): Quando não sobra uma pedra...

Estive hoje nesta palestra sobre o antigo castelo de Coimbra, da arquiteta Teresa Anjinho, uma especialista na história das fortificações da cidade, que conseguiu reconstruir a sua imagem no passado.

Não se pode ficar indiferente ao facto de não ter restado uma pedra à vista da imponente fortaleza, depois da sua destruição ao longo dos séculos e, por último, para dar lugar à horrenda obra da nova cidade universitária sob o Estado Novo, nos anos 50 e 60 do século passado, a cuja fase final ainda assisti - o maior dos crimes de lesa-património da ditadura. 

Como é que um regime nacionalista e tradicionalista, que alegadamente cultivava o legado histórico e as glórias passadas, não hesitou em arrasar quase toda a velha cidade alta, incluindo igrejas, colégios universitários e o que restava da muralha e do velho alcácer da cidade!?

Memórias acidentais (21): Amizades improváveis

1. Na sua habitual e excelente coluna sobre livros e escritores na "Revista" do Expresso de hoje, o ex-editor Manuel Alberto Valente, meu condiscípulo no curso de direito em Coimbra, nos anos 60 do século passsado, recorda um episódio dessa época com Francisco Lucas Pires, igualmente estudante de direito, o qual, sendo candidato proeminente da lista derrotada da direita estudantil nas eleições para a direção da AAC, em 1965, decidiu ir felicitar os vencedores da lista de esquerda, o que, no ambiente politicamente crispado da academia sob o salazarismo, era um gesto de nobreza política pouco comum.

Esse episódio com aquele que, após o 25 de Abril, se viria a notabilizar politicamente (primeiro como militante e depois presidente do CDS, do qual viria a sair, para aderir ao PSD nos anos 90), fez-me recordar um dos momentos mais tocantes da minha longa relação de amizade com ele, apesar das fundas divergências políticas no início, ele na direita nacionalista radical e eu na esquerda marxista. Já depois de licenciados, e ambos assistentes da Fduc na mesma secção de Direito Público, passámos a conviver lado a lado diariamente numa das salas de estudo da Faculdade, preparando as nossas teses do "curso complementar" da licenciatura, o mestrado de então, o que gerou uma relação de cumplicidade pessoal nessa época pouco provável.

2. Um certo dia, em 1968, convidei-o a ir ao meu quarto de estudante para buscar um livro em que ele estava interessado. Como era frequente nessa altura nos estudantes de esquerda, o meu quarto estava forrado de cartazes políticos, incluindo, no meu caso, grandes retratos de Che Guevara e de Ho Chi Min. 

Não estando claramente à espera, ele ficou por momentos especado à entrada, olhando as paredes, e depois dessa hesitação, declarou num tom grave: «Pois, a grande diferença é que nós, à direita, não temos os ícones heroicos nem as gestas revolucionárias que vos mobilizam; é por isso que a nossa luta é muito mais ingrata». Foi a minha vez de parar para meditar sobre aquela inesperada reflexão, que registei para sempre.

Depois de 1974 a vida voltaria a juntar-nos em outras circunstâncias, como no tardio serviço militar nas Caldas da Rainha ou, depois, na Assembleia da República, frente a frente, ele na bancada do CDS, eu na do PCP. Mas o respeito mútuo e a estima recíproca nascidos em Coimbra ficaram para sempre.

Meio século depois, dez anos após o seu prematuro desaparecimento, não deixei de lhe prestar publicamente a homenagem pessoal que lhe devia.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Corporativismo (43): Uma reforma que morre na praia?

O Governo aprova hoje o primeiro pacote de projetos de revisão dos estatutos das muitas ordens profissionais que proliferaram entre nós nas últimas décadas, cujo ponto fulcral é a revisão da esfera de "atos próprios", ou seja, exclusivos, de cada profissão, cuja redução é essencial para levar a bom termo esta grande reforma na prestação de serviços profissionais qualificados, que é essencial nas economias de mercado contemporâneas. 

Mas as primeiras indicações não são tranquilizadoras, com a notícia de que, perante os protestos das respetivas ordens, o Governo recuou em relação aos cortes inicialmente previstos em relação ao atual monopólio profissional dos contablistas e dos psicólogos.

Se este espírito de cedência às corporações se verificar também em relação às profissões mais impactantes, como os advogados e os médicos, então é de recear que se mantenham as principais barreiras à liberdade profissional e à concorrência na prestação de serviços profissionais, por efeito da "captura" do Estado pelas principais corporações profissionais, o que quer dizer que a anunciada grande reforma pode "morrer na praia".

Adenda
Um leitor aconselha-me a não depositar muitas esperanças nessa reforma, uma vez que o Goveno e a AR estão cheios de membros das ordens (advogados, economistas, engenheiros, etc.), que naturalmente «não vão tomar decisões contra elas e contra os interesses coletivos da sua profissão». Entendo o argumento, mas penso que, apesar da pressão dos lobbies corporativos, as coisas políticas não são assim tão "mecânicas"...

Revisão constitucional (6): Tiro no pé

1. A ameaça de bloquear a revisão contitucional brandida por Luís Montenegro, alegando a indisponibilidade do PS para aprovar muitas das propostas do PSD, não faz nenhum sentido e não mostra grande responsabilidade democrática por parte de um líder da oposição que ambiciona vir a chefiar o Governo do País.

Antes de mais, por definição, a revisão constitucional takes two, sendo um exercício que, dada a necessária maioria de 2/3, exige a convergência dos dois partidos, quer quanto à sua oportunidade, quer quanto ao seu âmbito e extensão, quer quanto às alterações a adotar. Se o PS não aprova certas propostas do PSD, a vice-versa também é verdadeira. O PS até já cedeu muito, quando aceitou discutir propostas de alteração que caem manifestamente fora do âmbito inicialmente admitido para a revisão constitucional.

A revisão constitucional depende muito da capacidade de transação dos dois partidos e da sua disponibilidade recíproca para conceder nuns pontos para obter ganhos noutros. A birra partidária não faz parte da arte de negociar uma revisão constitucional.

2. De resto, o bloqueamento da revisão constitucional, por não ser suficientemente ambiciosa nos termos do PSD, implicaria que a Constituição ficasse como está, sem alterações, o que obviamente não pode ser o desejo do partido. O PCP agradeceria a cortesia.

Pessoalmente, entendo que, estando a Constituição quase a celebrar meio século e justificando-se o seu aggiornamento, tinha cabimento uma revisão constitucional bastante extensa, tendo-me dedicado a coligir e a fundamentar a minha proposta pessoal, que ainda me proponho publicar. Mas julgo que a revisão se justifica, mesmo que ela se limitasse aos dois ou três pontos sobre que existe largo consenso, a saber, permitir a suspensão da liberdade pessoal de movimentos em caso de crise sanitária grave, permitir o uso de metadados das comunicações pessoais na investigação criminal, e permitir a punição penal de maus tratos a animais domésticos.

Numa revisão constitucional nenhum partido pode obter tudo o que pretende, pelo que a ameaça de boicote constitui sempre um "tiro no pé".

Adenda
Um leitor comenta que «falta a Montenegro a dimensão de estadista», sem a qual a sua liderança política do PSD se limita a um taticismo sem vocação estratégica.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Aplauso (23): Notável desempenho

1. Há que saudar o Governo, e em especial o ministro das Finanças, pela descida significativa do peso da dívida pública, retirando Portugal do comprometedor trio dos países mais endividados da UE (junto com a Grécia e a Itália). De resto, o FMI prevê que esta descida não fique por aí, como mostra o gráfico junto.

Essa evolução traduz-se naturalmente na melhoria do rating pelas agências, na descida relativa do spread da emissão de dívida e na poupança de muitos milhões em juros mais baixos, melhorando o saldo orçamental - um círculo virtuoso, portanto. 

Sendo a descida do peso da dívida pública e a disciplina orçamental dois objetivos sempre apoiados neste blogue - como mostram as séries Ai, a dívida e Ai, o défice - é com particular satisfação que saúdo este notável desempenho orçamental.

2. É evidente que este bom resultado na frente financeira deve muito ao aumento das receitas públicas resultante da favorável evolução da economia - taxa de crescimento em alta (entre as mais elevadas da União), taxa de emprego elevada, confortável saldo da balança externa -, que os investimentos financiados pelo PRR, mas também o crescente investimento direto estrangeiro, têm ajudado a obter. 

Se a isto somarmos a descida consistente da inflação e a progressiva recuperação do poder de compra dos portugueses, é caso para dizer que a situação económica e social supera as melhores expectativas

3. Neste quadro económico e social favorável, a condição do Governo seria politicamente invejável, não fora a comprometedora perturbação política decorrente do inquérito parlamentar à TAP, encarniçadamente explorada pelas oposições, à falta de outros argumentos.

Em todo o caso, toda a conversa sobre eleições antecipadas, soprada a partir de Belém, afigura-se assaz artificial, não somente por isso ir ao arrepio dos referidos êxitos do Governo e pôr em risco a sua continuidade, mas também porque o principal partido da oposição não dá mostras de ser uma verdadeira alternativa, nem só nem (mal) acompanhado, o que ajuda a explicar o nervosismo que reina nas suas hostes (e nos seus numerosos comentadores mediáticos), que a recente intervenção militante do seu antigo líder, Cavaco Silva, apenas veio sublinhar.

Adenda
Um leitor pergunta se também acho «ilegítima a intervenção da Cavaco Silva». Ilegítima, não considero; mas, sem dúvida, pouco curial para um antigo PR, que, a meu ver, deve manter alguma reserva na expressão de posições político-partidárias. Não tendo sufragado também a militante ação de Mário Soares contra o Governo de Passos Coelho (embora ele não o tivesse feito num evento oficial do PS), entendo que para quem foi "presidente de todos os portugueses", voltar a vestir o fato de líder partidário e regressar ao combate político-partidário, aliás em termos agressivos e sectários, não me parece o modo mais apropriado de um ex-Presidente honrar o seu legado político de mais alto magistrado da República.

Adenda 2
Um amigo meu, igualmente conservador em matéria orçamental, receia que «uma vez terminado o novo ouro do Brasil que é o PRR, regressem o défice e a dívida como antes». O receio é legítimo, e é por isso que tenho alertado contra as medidas imprudentes que levam ao aumento substancial da despesa estrutural, designadamente aumentos de pensões e de salários do setor público (professores, pessoal de saúde, etc.) insustentáveis a longo prazo.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37) : Teoria da (ir)responsabilidade política

1. Referindo-se ao "caso Galamba" (embora sem o mencionar), o Presidente da República afirmou que não se pode ter poder político sem responsabilidade. Tem razão: num Estado de direito democrático e numa democracia representativa, o poder político, nomeadamente o Governo, como poder executivo, está sujeito a responsabilidade política, tendo de prestar contas e podendo ser sancionado.  

No entanto, nos termos da Constituição, numa democracia parlamentar, como a nossa, o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente da República, que o não pode demitir nem censurar pela sua atividade política, mas sim perante o parlamento, e os próprios ministros, individualmente, podem ser alvo de interpelações ou de inquéritos parlamentares sobre a sua conduta política (como sucede neste momento ao referido ministro). De resto, as falhas graves de um ministro, se não for demitido, podem levar, em última instância, à apresentação de uma moção de censura ao próprio Governo, tendente à sua demissão. 

Com efeito, se há um poder sem imunidade política no nosso quadro político-constitucional, é o Governo, em geral, e os ministros, em particular.

3. Inversamente, quem não respeita o tal postulado poder político = responsabilidade política é o próprio inquilino do Palácio de Belém, que não responde politicamente pelos significativos poderes constitucionais que exerce, pois não pode ser escrutinado nem censurado pela AR, nem muito menos ser demitido ou ver o seu mandato revogado.

Por isso, além de dever exercer os seus poderes constitucionais com moderação, o PR não pode ingerir-se no exercício dos poderes políticos e legislativos do Governo (ressalvado o poder de veto), nem posicionar-se como tutor político deste, como tem sucedido, visto que não compartillha da responsabilidade política do Governo, e este não pode invocar a tutela presidencial para se isentar da sua responsabilidade perante a AR.

Embora constitucionalmente isento de responsabilidade política, o PR deve atuar como se o não fosse.


quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (21): Uma coisa e o seu contrário

Esta imagem foi colhida esta manhã no Diário Económico digital. Na notícia de baixo, às 7:00, informa-se que o IVA zero no cabaz de compras alimentares fez descer o custo deste em 11 euros; na de cima, escassos 12 minutos depois, dá-se curso à opinião de que o impacto daquela medida se reduz a «uns cêntimos». Óbvia contradição, que a proximidade temporal torna mais flagrante!

Eis os estragos que faz o jornalismo politicamente enviesado...

Pobre língua (26): Calinadas oficiais

Que pessoas ignorantes ou descuidadas usem "ter a haver com" em vez de "ter a ver com" na conversação corrente é preocupante. Mas que um serviço público central, como a direção executiva do SNS, incorra nessa calinada num comunicado oficial, isso brada aos céus!

Enquanto uns abencerragens continuam a lutar contra o Acordo Ortográfico, como se este fosse reversível e eles não tivessem o direito de não o usar, vão proliferando sem escândalo público atentados qualificados à correção linguística, como este e vários outros, os quais, pela sua frequência, mostram que a escola não está a cumprir a sua obrigação quanto ao ensino do Português. 

O que é especialmente inadmissível é que um serviço público faça publicar um texto sem revisão prévia por parte do seu responsável. O Ministério da Saúde deve corrigir imediatamente o texto e dar uma explicação pública.

Adenda 
Um leitor também acha estranho que o Diário de Notícias tenha transcrito textualmente essa passagem do comunicado oficial sem corrigir o disparate. A pior hipótese é não se terem apercebido do dislate...

Assim, não (3): Incoerência

Segundo o nosso comentariado económico, quando a economia vai mal, a culpa só pode ser do Governo; quando corre melhor do que o esperado, como agora, a causa só pode estar em fatores exógenos, apesar do Governo. 

Ora, como é bom de ver, a diferença de desempenho das economias da UE deve-se essencialmente  a diferentes conjunturas e circunstâncias nacionais, entre as quais se contam obviamente a política económica e a política orçamental (investimento público, incentivos públicos, contratos públicos, etc.). Por isso, mesmo não sendo hoje o Estado um agente económico decisivo, nem tendo uma tutela sobre as empresas, não faz nenhum sentido defender que o desempenho económico é alheio à acção governativa, para o bem a para o mal.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Concordo (27): Novas medidas antitabagistas

As propostas do Governo de novas medidas de restrição quanto aos locais de consumo e de aquisição de tabaco não visam somente refinar a proteção dos não-fumadores (por exemplo, a proibição de fumar em esplanadas ou na entrada de de estabelecimentos de uso coletivo), mas também travar o seu consumo e reduzir a adicção tabágica, por causa dos enormes custos do tabaco para o sistema de saúde, que a coletividade, incluindo os não fumadores, tem de suportar.

Parecendo-me necessárias e proporcionais para atingir os interesses públicos visados, e ficando longe de uma proibição generalizada de fumar no espaço público, entendo ser totalmente descabida a acusação de "fascismo higiénico", com que alguns críticos pretenderam fulminá-las.

Adenda
Penso que os deputados do PS que se preparam para "suavizar" as propostas governamentais deveriam apresentar uma declaração de como não são fumadores, nem tem outro interesse adverso ao regime proposto. Convém evitar conflitos de interesses.

Adenda 2
Um leitor entende que eu devo corrigir "adicção" para "adição", invocando em seu favor o uso corrente desta fórmula na imprensa. Mas não tem razão, como expliquei aqui. Infelizmente, quando o erro linguístico se torna dominante, transforma-se em norma...

sábado, 13 de maio de 2023

+ Europa (72): A AR à frente na cooperação parlamentar com a Comissão

1. Neste estudo sobre o papel dos parlamentos nacionais no funcionamento da União, a nossa AR surge destacada à frente no "diálogo político" com a Comissão Europeia, medido pelo número de tomadas de posição enviadas. Essa dianteira mantém-se mesmo se somarmos a contribuição das duas câmaras nos muitos países de bicamaralismo parlamentar (Alemanha, França, Itália, etc.). 

É um notável desempenho, que honra a AR e que muito deve ao zelo da sua Comissão de Assuntos Europeus e à liderança desta.

2. No sistema de "federalismo cooperativo" da UE, é crucial a intervenção das instituições políticas nacionais na ação das instituições da União, não se limitando à participação dos governos nacionais no Conselho Europeu e no Conselho da União. Também os parlamentos nacionais, como titulares do poder legislativo, devem poder transmitir as suas posições quanto ao exercício do poder legislativo da União junto das competentes instituiações (Comisssão Europeia, Parlamento Europeu e Conselho da União).

O Tratado de Lisboa, que inclui um protocolo específico sobre o assunto, veio institucionalizar e reforçar esse papel dos parlamentos nacionais, tanto quanto às iniciativas legislativas, como, em especial, no escrutínio do respeito pelo princípio da subsidiariariedade (no exercício das competências partilhadas com os Estados-memmbros). 

É bom saber que a AR leva a sério esse papel na construção da União.