quinta-feira, 4 de abril de 2019

Privilégios (12): Remunerações e pensões judiciárias

Podendo haver razões para um aumento extraordinário da remuneração dos juízes dos tribunais superiores, o que não se veem são as razões pelas quais esse aumento há de implicar automaticamente aumentos correspondentes nas pensões dos juízes já aposentados nem arrastar medida afim nos vencimentos e pensionistas dos niveis equiparados do Ministério Público.
Na verdade, isso sucede porque (i) ao contrário dos demais pensionistas, os juízes "jubilados" gozam do privilégio de ter uma pensão igual à última remuneração e sempre atualizada com esta, enquanto as pensões dos demais cidadãos são sempre inferiores (cada vez mais) à última remuneração, sendo também independentes das atualizações desta, e (ii) os procuradores do Ministério Público gozam de um estatuto legalmente equiparado aos juízes, incluindo o regime privilegiado de pensões, apesar da diferente natureza e exigência das funções.
A meu ver, nenhuma das referidas situações se conforma com o princípio da igualdade, quer quando este exige tratamento igual para situações iguais (as pensões), quer quando ele requer o tratamento diferenciado de situações desiguais (juízes e procuradores).

Não vale tudo (5): O estigma socratista

No seu editorial de hoje, da responsabilidade de Ana Sá Lopes, o Público condena a lista do PS às eleições europeias sobretudo por ela incluir o antigo ministro dos governos de Sócrates, Pedro Silva Pereira.
Ora, para além de não pender sobre ele nenhuma acusação relacionada com o processo penal do antigo primeiro-ministro, a verdade é que Silva Pereira não se candidata como antigo ministro mas sim recandidata-se como atual eurodeputado, aliás com bom desempenho no PE, eleito na lista do PS que ganhou as eleições europeias de há cinco anos.
Que a oposição antissocialista, à falta de melhor, insista em explorar politicamente os crimes por que Sócrates é acusado como se fossem responsabilidade coletiva imprescritível de todos os membros dos seus governos (só faltando exigir que usem uma estrela amarela em público, expiando a sua culpa...), ainda pode levar-se à conta dos costumes de baixa política, quando se não tem melhores argumentos políticos. Mas que órgãos de referência jornalística se dediquem também a explorar esse filão, já não tem nenhuma justificação.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Praça da República (19): Advogados-deputados (II)

Quando se procede neste momento à revisão do estatuto dos deputados à AR, não se deve esquecer que também cabe ao legislador nacional definir, em grande parte, o estatuto dos deputados ao Parlamento Europeu.
Ora, inicialmente o estatuto legal dos eurodeputados estipulava a dedicação exclusiva, o que se compreendia, não somente pelas exigências especiais da função (distância e deslocações internas e externas), mas também pela elevada remuneração. Inexplicavelmente, a exigência de dedicação exclusiva foi suprimida subrepticiamente, à margem do respetivo estatuto, sem sequer se prever um diferencial de remuneração entre dedicação exclusiva e falta dela (que, aliás, não está prevista no estatuto remuneratório do PE).
O mínimo que se exige, porém, é que as incompatibilidades e condições de exercício do mandato de deputado nacional, por menores que sejam (se algumas!), se tornem também extensivas aos eurodeputados.

Praça da República (18): Advogados-deputados

1. A propósito do lamentável recuo na AR sobre as incompatiblidades dos deputados-advogados, recordo que defendo há muito uma incompatibilidade geral entre o cargo de deputado e a profissão de advogado, em especial os advogados de negócios (e não somente quando se trate de litigar contra ou a favor do Estado, onde existe um manifesto conflito de interesses).
Por várias razões:
   - primeiro, por causa do princípio de separação de poderes: quem intervém no poder judicial e na aplicação das leis não deve participar na feitura das leis (Locke dixit);
    - segundo, pelo risco de conflito de interesses, quer influenciando leis em função dos interesses dos seus clientes, quer funcionando como lobby dos mesmos interesses junto do Governo e da Administração;
    - terceiro, por uma questão de concorrência: os advogados-deputados prevalecem-se da sua função e da sua notoriedade como deputados para promoverem a sua atividade como advogados, pelo que a própria Ordem deveria estabelecer essa incompatibilidade;
    - por último, porque a acumulação das duas atividades só favorece, mais uma vez, os advogados de Lisboa e arredores, que podem facilmente dar uma "saltada" a São Bento para assinar o ponto e votar, antes de irem reunir com os seus clientes, o que não está alcance dos deputados de fora.
Por conseguinte, os deputados-advogados deveriam suspender o exercício da profissão.

2. A atual compatibilidade faz com que os advogados-deputados e afins constituam o maior grupo profissional na AR e engrossem o número de deputados em tempo parcial (muitos em "tempo pontual"), em prejuízo do desempenho do parlamento, tanto mais que o prémio de dedicação exclusiva (ou desconto do tempo parcial) é escandalosamente reduzido (10%).
A manter-se o regime de tempo parcial, o mínimo que se exige é aumentar a diferença de remuneração para, pelo menos, 33%, a fim de tornar mais atrativa a dedicação exclusiva ao desempenho da missão para que os deputados são eleitos.

Praça da República (17): "Kakistocracia"?

[Fonte: aqui]
1. A meu ver, não pode ser destinada ao sistema político português a acusação de kakistocracia (= "governo dos piores", por oposição a aristocracia = "governo dos melhores") , nem mesmo a título de excesso caricatural, como faz Nuno Garoupa neste artigo.
Uma coisa é o alegado "fechamento" do sistema e a sua suposta blindagem contra o aparecimento de novos atores políticos, outra é a conclusão de que isso leva à seleção dos piores. Basta a lista dos nossos presidentes da República e dos nossos primeiros-ministros, incluindo as suas credenciais e os cargos internacionais que vários deles vieram a exercer depois, para não autorizar tal juízo. A elite governante em Portugal não perde no confronto internacional.

2. Quanto ao referido fechamento - normalmente fundamentado no monopólio eleitoral dos partidos políticos e na falta de voto pessoal nos candidatos -, deve notar-se que entre nós não se exige muito para criar novos partidos e que é relativamente fácil obter representação parlamentar, tendo em conta o limiar virtual no círculo de Lisboa, inferior a 2% (que, aliás, considero excessivamente baixo, por poder levar a uma excessiva fragmentação parlamentar).
Ora, não estando na agenda política abrir as eleições parlamentares a "grupos de cidadãos", já outro tanto não se pode dizer das diversas modalidades de personalização da eleição dos deputados que fazem parte habitual dos programas eleitorais dos principais partidos há várias décadas e que poderia reforçar o poder político dos cidadãos na escolha do parlamento e, indiretamente, da classe política.
Em todo o caso, a "endogamia do sistema político" é essencialmente produto da cultura política estabelecida e da estabilidade das opções eleitorais, pelo que, ressalvado qualquer imprevisível choque político, ela é relativamente imune a mudanças institucionais.

terça-feira, 2 de abril de 2019

+Europa (14): Poupança-reforma europeia

Integrado no plano de criação de uma mercado único de capitais (em paralelo com a criação da união bancária), a União Europeia aprovou a criação de um produto de poupança-reforma ao nível da União, podendo ser subscrito em qualquer Estado-membro.
Além de reforçar a oferta de planos de poupança pessoal para as pensões de aposentação, complementando os instrumentos públicos (segurança social) e os fundos empresariais de pensões, este novo instrumento pode atrair uma significativa fonte de apoio ao crescimento económico, através da aplicação desses fundos na "economia real".
A Comissão Europeia calcula um acréscimo de 700 000 milhões de euros aos fundos de pensões existentes na Europa, no horizonte de 2030, caso o novo produto beneficie dos estímulos fiscais propostos por Bruxelas.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Praça da República (16): A iniciativa legislativa popular

1. A Assembleia da República aprovou recentemente uma lei para a manutenção da farmácia do Hospital de Loures, com base numa iniciativa externa de cidadãos interessados, aumentando o número de leis oriundas de iniciativas legislativas dos cidadãos, previstas na Constituição e e reguladas por uma lei de 2003 (revista em 2016).
Independentemente da discussão sobre o mérito político deste caso concreto (que, a meu ver, não é conviencente), ele testemunha a vitalidade da "iniciativa legislativa popular" entre nós.

2. De facto, numa democracia representativa o papel político dos cidadãos não tem de limitar-se às eleições e, ocasionalmente, ao voto nos referendos, quando estes têm lugar. Há também as variadas manifestações da "democracia participativa", pelas quais os cidadãos contribuem para a tomada de decisões das instituições políticas.
Todas elas visam envolver os cidadãos na gestão da "coisa pública" e na definição da agenda política e combater o tendencial "fechamento" do sistema político sobre os seus próprios agentes.

3. Entre elas avulta justamente a iniciativa legislativa dos cidadãos (ILP),  pela qual um certo número mínimo de cidadãos (20 000) pode apresentar à AR uma proposta de lei, que o parlamento tem de votar, podendo assim tornar-se lei da República.
Sucede que a lei que regula essa instituição (Lei nº 17/2003, revista em 2016) é um tanto limitativa quanto aos assuntos que podem ser objeto de ILP, proibindo, por exemplo, que ela verse as matérias de reserva absoluta da AR, que abrangem os mais importantes temas legislativos, como, por exemplo, as leis eleitorais. Penso que não há justificação para tal restrição.
Por isso, é de sufragar o projeto do deputado independente, Trigo Pereira, no sentido de alterar a lei, ampliando o âmbito da ILP.

4. É evidente que, frequentemente, tanto a ILP como as demais modalidades de democracia participativa são acionadas por "grupos de interesse" e descambam para a defesa de interesses corporativos ou locais, como sucede a relativa à farmácia do hospital de Loures.
Embora não conheça nenhum estudo sobre a prática da instituição, tenho a impressão que isso sucede a maior parte das vezes. Essa contrariedade não anula, porém, as virtudes da instituição, sendo um modesto preço a pagar. No final, aliás, quem decide soberanamente é a AR, como titular supremo do poder legislativo, rejeitando ou validando a iniciativa externa, com ou sem alterações. A democracia representativa prevalece sempre, como deve ser.

Praça da República (15): "Endogamia política" e afins

1. Perante a enorme confusão de situações muito diversas no presente debate sobre a alegada "endogamia do PS" (com situações semelhantes ocorridas no passado em relação a outros partidos de Governo), penso que vale a pena separar os diferentes tipos de nomeações, de acordo com a seu diferente grau de censurabilidade ética e/ou política.
Julgo que se deviam distinguir as situações proibidas, as eticamente censuráveis e, por último, as que devem ser deixadas ao juízo político da opinião pública.

2. Assim, penso que deviam ser consideradas proibidas, por violação do princípio da imparcialidade das escolhas públicas, as nomeações de familiares mais próximos para gabinetes governativos ou para cargos externos, designadamente cônjuges ou equiparados, parentes até ao 3ª grau (tios e sobrinhos) e os afins até ao 2º grau (cunhados, ou seja, irmãos do cônjuge).
Deviam ser consideradas eticamente censuráveis - e por isso afastados, salvo autorização do Primeiro-Ministro mediante justificação bastante - as nomeações de outros parentes ou afins dos próprios membros do Governo, assim como de cônjuges, parentes até ao 3º grau ou afins até ao 2º grau de outros membros do Governo, ou de deputados.
Por decorrerem de atos discricionários de nomeação política, devem ser deixados ao livre julgamento político da opinião pública as relações familiares entre membros do Governo, entre deputados ou entre dirigentes partidários, ou entre uns e outros.
Note-se que em Portugal não é corrente a nomeação dos próprios familiares, pelo que a situação mais problemática é a segunda (nomeação de de familiares de outros membros do Governo).

3. Como é evidente, não é necessário legislar sobre estas diferentes situações, que podem e devem ser deixadas para autorregulação de cada Governo, até porque uns podem ser mais exigentes do que outros.
O que é importante é criar nesta matéria uma cultura política mais exigente do que a que até agora tem prevalecido, castigada, aliás, por uma opinião pública que, por falta de critério e por demagogia dos média, tende a condenar toda e qualquer ligação familiar na vida política, por mais irrelevante que seja, pondo em causa os direitos políticos dos cidadãos.

Adenda
No Brasil, o STF determinou, por interpretação da Constituição, a proibição do nepotismo, nomeadamente as nomeações do tipo das referidas no 1º e 2º parágrafo do nº 2 acima.

Adenda (2) (3 de abril)
O caso da demissão do adjunto de um Secretário de Estado que era seu primo revela a vantagem de haver um prévia orientação deontológica sobre o nepotismo nas nomeações governamentais. Primeiro, para definir antecipadamente o âmbito da incompatibilidade: e se fosse um primo em segundo grau (6º grau de parentesco) ou um primo da mulher do governante(4º grau de afinidade) ou um familiar do respetivo Ministro? Em segundo lugar, se houvesse essa orientação prévia, a sua violação implicaria naturalmente a responsabilidade do próprio membro do Governo em causa.

Adenda (3) (5 de abril)
António Costa tem razão em colocar estas questões sobre o âmbito das incompatibilidades familiares nas nomeações. Mas, não bastando o "bom senso", por demasido subjetivo, para lhes dar resposta, esta só pode vir por duas vias: (i) por via de lei, tornando-as ilícitas em geral e/ou (ii) por via de norma deontológica adotada por cada órgão político relevante, nomedamente os governos (nacional, regionais, locais). O problema é que entre nós não se pratica nenhuma dessas respostas, sendo que a segunda nem sequer depende de terceiros...

domingo, 31 de março de 2019

Aplauso (9): Entrevista do PR

1. Tendo criticado o PR diversas vezes quando ao exercício das suas funções presidenciais, apraz-me manifestar o meu aplauso à sua entrevista de hoje no Público, centrada sobre o estado e os problemas que enfrenta a União Europeia (desde o Brexit às relações com a China), que revela profundidade, inteligência e equilíbrio.
Nunca é demais sublinhar, como insistiu o Presidente, que a União não é somente um mercado integrado, mas também um projeto político assente num conjunto bem identificado de valores: paz, liberdade, bem-estar e coesão económica, social e territorial.

2. Muito bem equacionadas estão, igualmente, as razões por que, tendo passado pela amarga experiência da recessão económica e da assistência financeira externa entre 2011 e 2014, Portugal conseguiu sair dela sem uma profunda clivagem política ou social e também sem um surto de populismo e sem arruinar o seu sistema partidário tradicional, ao contrário de vários outros países da União, que nem sequer passaram por provação semelhante.
Por isso, acrescento eu, em Portugal as próximas eleições europeias, sem prejuízo das previsíveis alterações, não vão testemunhar nenhuma mudança dramática em relação às de 2014, nomeadamente no que se refere à representação de forças antieuropeístas. É bom verificar esta estabilidade nacional em relação à União.

Não vale tudo (4): Fake news

1. Num conhecido programa de debate da TV (Quadratura da Círculo) desta semana, um dos comentadores (Lobo Xavier) afirma assertivamente que a mulher de Pedro Marques, ex-ministro e atual cabeça do PS às eleições europeias, também foi nomeada para um gabinete ministerial. FALSO!
Há poucos dias, o diário espanhol El País, numa crónica de Lisboa, informa que a Ministra Ana Paula Vitorino é filha do antigo Ministro e atual diretor da Organização Mundial dos Migrações, António Vitorino. FALSO.
Ontem, numa reportagem da SIC, alguém afirma, sem contradita, que Pedro Marques e M. M. Leitão Marques, os dois primeiros candidatos do PS às eleições europeias, são familiares um do outro. FALSO.
São demasiadas situações concentradas no tempo para não ver por detrás disto uma central de fake news a alimentar este caudal de acusações sobre a alegada "endogamia política" no PS, com base em simples coincidências patronímicas.

2. O que é surpreendente é que personalidades com as responsabilidades públicas de Lobo Xavier e órgãos de informação de referência como a SIC ou o EL Pais caiam nesta tentação de veicular tais falsidades, abusando da credulidade do público, sem um mínimo de verificação, que logo as revelaria falsas, tanto mais que algumas seriam mesmo impossíveis. Por exemplo, à data do nascimento de A. P. Vitorino,  o fictício "pai" António Vitorino teria 5 anos!
É certo que há sempre o direito ao desmentido dos visados e à correção dos média (como fez a SIC, em relação à notícia de ontem, com pedido de desculpa aos visados). Mas nem os desmentidos nem as correções apagam o mal feito, por não cobrirem o mesmo auditório.

3. Este padrão de manipulação da informação é tanto mais preocupante quanto é certo que, segundo um inquérito da Comissão Europeia, os portugueses contam-se entre os menos preocupados com as fake news nestas eleições europeias.
Penso, por isso, que está na altura de a ERC, como autoridade de supervisão dos média, e a CNE, como autoridade de supervisão dos processos eleitorais, virem a público alertar contra campanhas sujas como esta.

Adenda
Um leitor pergunta se também é falso que eu seja marido da ex-ministra e atual candidata nas eleições europeias, Maria Manuel Leitão Marques. Sendo isso público (há mais de três décadas), também é público que nenhum de nós é membro do PS, pelo que não podemos ser arrolados como prova da questionada endogamia política socialista. Pelo contrário, somos prova da sua exogamia política...

Adenda (2) (2 de abril)
A acrescentar aos dislates irresponsáveis dos média nesta novela do parentesco na política, há a acrescentar a TVI, que ontem noticiava que a nova juíza do Tribunal Constitucional, uma reputada especialista em direito constitucional, é filha do "antigo deputado", Gomes Canotilho. Ora, o Professor Canotilho, conhecidíssimo professor de Direito Constitucional em Coimbra, nunca foi deputado. Bastava ir à Wikipédia, caramba! Decididamente, os média estão a dar muito má conta de si neste folhetim.

sábado, 30 de março de 2019

Não concordo (9): Imunidade penal da difamação jornalística?

[Fonte: aqui]
1. O preceito do art. 183º do Código Penal, que manda punir com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias o crime de difamação cometido por meio da comunicação social, acaba de ser julgado incompatível com a CEDH pelo TEDH, no que se refere à punição com pena de prisão.
Assim decorre de uma recente decisão do Tribunal, que considerou desproporcionada, e por isso lesiva da liberdade de imprensa, uma decisão judicial italiana que condenou a prisão um jornalista que acusara falsamente de aborto forçado várias pessoas (incluindo pais, ginecologista e um juiz de família), acrescentando que todos deveriam ser punidos com a pena de morte pelo alegado crime. Além da difamação, estava em causa também a invasão da privacidade da mulher em questão.
O Estado italiano acabou condenado a indemnizar o jornalista por causa da tal condenação judicial!

2. Discordo mais uma vez do TEDH, quando opta por uma proteção fundamentalista dos jornalistas, quando não está a defesa da liberdade de imprensa contra o poder político (em que a proteção deve ser máxima), mas sim em casos de difamação contra terceiros.
Tradicionalmente, o Tribunal tinha firmado jurisprudência no sentido de uma tendencial imunidade jornalística pela alegada difamação de políticos ou outras personalidades públicas. Nesta decisão, aliás com precedentes, vai mais longe, decretando que tais crimes não podem dar lugar a pena de prisão, mesmo que os difamados sejam pessoas comuns, falsamente acusadas de um crime infamante (um aborto forçado).
Isto quer dizer que, se o mesmo crime for cometido à volta da mesa de um café, pode ser punido com pena de prisão, mas que, se for cometido através da imprensa, portanto com muito maior impacto e mais intensa lesão da honra dos lesados, só pode ser punido com pena de multa. Não faz sentido este privilégio!

3. A liberdade de imprensa protege tanto a liberdade de opinião como a liberdade de informação, mas esta não inclui a liberdade de divulgar, salvo de boa fé, factos falsos lesivos da honra de terceiros. Além disso, como todas as liberdades, a liberdade de imprensa, mesmo quando protegida, pode ter de ser objeto de compressão quando conflitue com outros direitos ou liberdades fundamentais de terceiros.
A radical proteção da liberdade de imprensa traduz-se na óbvia desproteção das vítimas do seu abuso.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Concordo (6): A propósito de "endogamia política"

Não posso concordar mais com esta afirmação de António Costa, de que "as pessoas não pensam [politicamente] da mesma maneira por serem marido e mulher". Nem são precisas evidências pessoais!
O mesmo, de resto, se pode dizer, aliás por maioria de razão, da relação política entre pais e filhos...

Adenda
A escolha dos ministros e outros membros do Governo é um poder exclusivo do Primeiro-Ministro (ressalvado algum excecional veto informal do PR). Excluídos obviamente os seus próprios familiares, o PM não está impedido de nomear membros do Governo que sejam familiares uns dos outros, o que não é ilícito, nem sequer censurável em termos de ética política (por isso, não incluí estas situações no meu anterior post sobre esse tema). Politicamente, porém, é de admitir que, para além dos eventuais problemas de gestão interna do Governo que isso possa acarretar (problema do PM...), a repetição de situações destas possa não cair bem na opinião pública, em geral avessa à acumulação de familiares nos mesmos órgãos do poder político...

Dinheiro Vivo (7): Sim a impostos próprios da UE


Aqui está o cabeçalho do meu artigo da semana passada no Dinheiro Vivo - o suplemento de economia do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias -, onde defendo a criação de impostos próprios da União, de modo a permitir aumentar os seus recursos orçamentais, reduzindo ao mesmo tempo as atuais contribuições orçamentais dos Estados-membros.
Para mim, a questão é simples: assumindo que a União só pode fazer mais com mais dinheiro, entre permitir-lhe tributar rendimentos que hoje fogem à tributação nacional, como por exemplo os lucros das empresas digitais globais, ou fazer os contribuintes nacionais pagar mais para a União, não tenho dúvidas em optar pela primeira solução.

SNS, 40 anos (16): À conta do SNS

1. Mais uma vez, o concurso para médicos recém-especialistas do SNS não conseguiu preencher todas as vagas existentes (cerca de 10% de défice), sobretudo fora dos grandes centros urbanos. Apesar dos incentivos entretanto criados, a alternativa privada prevaleceu nesses casos, tanto mais que muitos já acumulavam nos dois lados enquanto internos no SNS (como a lei indevidamente admite).
É a lei da oferta e da procura: quando a primeira fica aquém da segunda, fica por satisfazer a procura menos atrativa, neste caso as vagas dos hospitais públicos, apesar de os médicos deverem a sua formação ao SNS.

2. Penso há muito que, para além de uma possível agilização da formação e dos concursos, faz sentido equacionar duas soluções para responder à situação descrita: (i) primeiro, transferir para o setor privado o encargo de formação dos seus próprios especialistas, obviamente sob escrutinio do Estado, aliviando o SNS dessa responsabilidade e dos seus custos; (ii) estabelecer uma obrigação de os médicos formados em hospitais públicos permanecerem no SNS durante um certo tempo e concorrerem às vagas abertas para o efeito.
Não se justifica que o SNS assuma o encargo da formação dos médicos especialistas, para os ver logo após passarem-se de armas e bagagens para o setor privado, sem nenhuma compensação ao setor público. Também neste aspeto o setor privado não deve poder continuar a viver à conta do SNS.

Adenda
Contribuição de um leitor: «(...) O mesmo ocorreu [pouco antes], aliás em pior escala (30% de vagas por preencher), com o concurso para médicos de clínica geral».

quinta-feira, 28 de março de 2019

Terra brasilis (4): Elogio oficial da ditadura

Dando curso à revisão da história recente do Brasil de acordo com a sua visão reacionária, o Presidente Bolsonaro decidiu ordenar às Forças Armadas a comemoração da data do golpe militar de 1964 que instalou a ditadura dos generais no Brasil por mais de duas décadas, incluindo não somente a supressão das liberdades públicas e da democracia, mas também a cassação de direitos, o exílio e a repressão violenta dos opositores, incluindo inúmeros casos de tortura e de assassínio.
Recusando mesmo reconhecer que se tratou de um golpe e de uma ditadura, o negacionismo de Bolsonaro fundamenta a relegitimação oficial desse período negro da história do Brasil, mais de três décadas depois da restauração da democracia e da Constituição de 1988.
Em Washington, Trump já deve ter saudado a iniciativa do seu devotado admirador e correligionário do Sul, recordando porventura a bênção e o apoio que outrora os Estados Unidos concederam às ditaduras militares latino-americanas, incluindo a brasileira, contra o alegado "perigo comunista".

Praça da República (15): Ética republicana

1. São conhecidos os quatro pilares essenciais da ética republicana (ou simplesmente ética política) no exercício de cargos públicos: (i) escrupuloso cumprimento das obrigações legais inerentes ao cargo; (ii) primazia absoluta do interesse público sobre os interesses particulares, em geral, e os interesses pessoais, em especial; (iii) integridade e recusa de vantagens ou favores pessoais; (iv) rejeição das relações familiares (nepotismo) ou de amizade (amiguismo) como critérios de decisão no governo da coisa pública.
A ética republicana vai muito para além do respeito da lei, regulando também a margem de livre decisão deixada pela lei. Sem constrições éticas a res publica corre riscos desnecesários.

2. As coisas tornam-se mais complicadas quando se trata de constituir equipas de trabalho, onde prevalece a liberdade de seleção dos colaboradores e onde os fatores de conhecimento, confiança e lealdade pessoal têm o seu lugar, favorecendo a escolha nos círculos de conhecidos, de amigos e de correligionários. É inevitável e compreensível, mas a prudência aconselha contenção e parcimónia no recrutamento nesses círculos, mesmo quando não esteja em causa a experiência e saber dos escolhidos.
O problema aumenta exponencialmente quando entram em jogo as relações familiares e quando a frequência das ocorrências deixa perceber um padrão de conduta comprometedor (o número conta).
Hoje em dia, os novos meios de informação e o maior escrutínio e maior sensibilidade do público tornam estes assuntos especialmente delicados. Toda a imprudência será castigada.

3. Estando em causa juízos translegais e não devendo eles ser deixados ao desamparo dos próprios interessados nem à demagogia dos média e das redes sociais, a solução passa pela elaboração de códigos de conduta ou códigos de ética que recomendem normas de comportamento e pela instituição de comissões de ética, incluindo personalidades externas, que permitam derimir os casos duvidosos ou conteciosos .
Infelizmente, entre nós, em vez de se prevenirem as situações, tendemos a correr atrás do prejuízo.

Adenda
Um leitor observa que recentemente desempenhei uma missão pública de nomeação governamental, sendo minha mulher ministra (embora alheia a tal missão). Assim foi, mas a tal missão - comissário para as comemorações dos 70 anos da DUDH - foi inteiramente gratuita, incluindo o não reembolso de qualquer despesa. Não creio que a ética republicana proíba o financiamento pessoal de missões públicas...

Adenda 2
Propositadamente, não nomeei nenhuma situação concreta, mas é óbvio que, ao contrário do que aqui e aqui se diz apressadamente, não visei a composição do Governo nem sufrago, relativamente aos gabinetes ministeriais, o precipitado inventário a esmo de situações muitos diferentes que vai pela imprensa, incluindo várias que não são suscetíveis de nenhuma censura ética. Não foi por acaso que me referi acima à "demagogia dos média e das redes sociais"...

Adenda 3
Respondendo a outro leitor, não mencionei a alegada "endogamia" na composição do Governo porque não compartilho dessa acusação. Sendo certo que não deixam de ser invulgares as duas situações há muito apontadas - porque existentes desde a origem do Governo -, não é menos verdade que este Governo pede meças na abertura a independentes e a personalidades oriundas de fora da "classe política", pelo que melhor se diria que ele é caracterizado por uma elevada "exogamia" política.

Adenda 4
Às listas que misturam tudo nas redes sociais, há a acrescentar as fake news com imputações de nomeações inteiramente falsas, com a agravante de serem veiculadas por pessoas em geral credíveis. Quando a demagogia freme, até as pessoas decentes claudicam. Aqui está em causa a ética pessoal, tout court...

quarta-feira, 27 de março de 2019

Euroeleições (9): Levar a sério a cidadania europeia

1. As eleições do Parlamento Europeu são uma manifestação da cidadania europeia e da democracia representativa da União. Têm direito de participar nelas, como eleitores e como candidatos, todos os cidadãos europeus, onde quer que residam na União, podendo exercer esses direitos no país onde residem.
Por isso, em Portugal estão abrangidos os numerosos cidadãos de outros países da União residentes entre nós. Não se trata de uma concessão nacional, como sucede com o voto de estrangeiros nas eleições domésticas, mas sim um direito consagrado nos Tratados da União e na sua Carta de Direitos Fundamentais, que os Estados-membros se limitam a respeitar, como lhes compete.

2. Lamentavelmente, porém, nenhuma das listas dos principais partidos às eleições de maio próximo integra candidatos de outras nacionalidades, ao contrário do que sucede em alguns outros países da União, como é o caso da lista da LRM em França (o partido do Presidente Macron).
A sua inclusão poderia ajudar a mobilizar o voto dos cidadãos europeus residentes em Portugal, fazendo destas eleições uma efetiva manifestação de representatividade transnacional, como deve ser. De resto, os eurodeputados não representam os seus países no PE, mas sim todos os cidadãos europeus, independentemente da nacionalidade, a começar pelos que votaram neles nos seus países.
Penso que é de equacionar a hipótese de a lei eleitoral da União vir a estabelecer uma obrigação de as listas nacionais incluírem um número mínimo de candidatos de outros nacionalidades, nomeadamente das mais numerosas em cada país.

terça-feira, 26 de março de 2019

Bloquices (7): Desfaçatez

1. Há poucos dias a eurodeputada do BE, Marisa Matias, declarou enfaticamente que o Bloco não defende nem nunca defendeu a saída do euro. Mas não é essa a verdade, pelo contrário: ainda há menos de dois anos, a líder do partido, Catarina Martins, disse exatamente o contrário.
Pura desfaçatez política, portanto; ou o Bloco a imitar o descaramento que aponta aos "partidos burgueses".

2. Mesmo admitindo que agora o Bloco, face à recuperação da zona euro e ao amplo apoio à moeda única em Portugal e lá fora, tenha abandonado publicamente esse objetivo revolucionário, a verdade é que ele mantém, no fundo, o mesmo objetivo de forçar a saída de Portugal do euro, através de medidas que tornariam a nossa permanência insustentável, como, por exemplo, quando defende a reestruturação unilateral da dívida pública ou o abandono do Tratado Orçamental, a que todos os países do euro estão vinculados.
Rabo escondido com o gato de fora...

segunda-feira, 25 de março de 2019

Euroeleições (8): Inverter o ciclo da abstenção

Penso que estas eleições europeias vão ser mais concorridas do que as anteriores, invertendo o recorrente aumento de abstenção. Por duas razões:
    - primeiro, pela visibilidade e pelo debate paneuropeu de temas como a imigração, o Brexit, os atentados ao Estado de direito na Polónia e na Hungria;
    - segundo, pela ascensão das forças antieuropeístas em vários países, o que, para além de mobilizar o seu eleitorado, pode também provocar uma contramobilização do eleitorado europeísta em defesa da União.
Olhando para trás, não me recordo de eleições que a esta distância do dia da votação tenham suscitado tanta atenção pública como estas.

sexta-feira, 22 de março de 2019

Praça da República (14): Igualdade eleitoral

1. Tal como o Presidente da República, também entendo que não faz sentido que o novo regime, mais exigente, de igualdade de género nas candidaturas às eleições nacionais (europeias, parlamentares e locais) não se aplique também as eleições dos parlamentos regionais dos Açores e da Madeira.
No entanto, a justificação é tão simples quanto incontornável: é que, segundo a Constituição, a legislação das eleições regionais, embora da competência da AR, só pode ser alterada por iniciativa das próprias regiões, pelo que não pode sê-lo por iniciativa dos deputados nacionais nem do Governo da República, como foi o caso em relação à "lei da paridade" agora promulgada.

2. É de admitir que os órgãos do poder regional escutem devidamente a pertinente queixa presidencial. Infelizmente, porém, não é a primeira vez que as regiões autónomas não seguem as boas soluções legislativas adotadas a nível nacional quanto ao funcionamento do sistema político. É o custo da autonomia!
Mas cabendo ao PR também o poder de supervisão sobre o sistema político das regiões autónomas, assiste-lhe toda a legitimidade para apontar essas situações de assimetria legislativa.

Regionalização (3): Défice de descentralização

1. Como mostra o quadro junto, colhido AQUI, ao contrário do que por vezes se ouve, Portugal não está entre os países mais centralizados, nem na UE nem na OCDE, tomando como critério a repartição da despesa pública entre o Estado central e as entidades territoriais subnacionais.
Mas é evidente que, nesse ranking da descentralização, Portugal está bem abaixo tanto da média da UE como, ainda mais, da OCDE, com menos de 50% de despesa não centralizada.
De resto, a posição de Portugal neste ranking é ilusoriamente menos má por causa dos Açores de da Madeira, onde grande parte da despesa pública é da responsabilidade das regiões autónomas e não do Estado. No Continente o défice de descentralização deve ser bem mais acentuado.

2. É provável que o processo de descentralização municipal e intermunicipal em curso atenue este défice, porém sem o corrigir.
Ora, uma vez esgotada a margem de descentralização para os municípios e entidades intermunicipais, por falta de escala destas unidades territoriais, o único meio de aprofundar a descentralização é a criação de autarquias territoriais supramunicipais, a saber, as regiões.
Não é por acaso que no quadro junto a maior parte do países com mais elevado grau de descentralização tem um (ou dois) níveis de descentralização territorial entre o Estado e os municípios.

quinta-feira, 21 de março de 2019

+Europa (13): Enfrentar as empresas globais

A Comissão Europeia acaba de punir de novo a Google com mais uma elevada coima de 1.500 milhões de euros por abuso de posição dominante, desta vez por abusar do seu hegemónico poder de mercado para prejudicar os concorrentes em matéria de publicidade.
Com esta sanção, a UE mostra mais uma vez que constitui a única instância política com poder para fazer valer as regras da concorrência contra as mais conspícuas empresas globais, em defesa do mercado e dos consumidores, perante a complacência interessada dos Estados Unidos nesta matéria.
Eis um dos mais evidentes valores acrescentados da União, que os soberanistas e nacionalistas querem anular. É óbvio que nenhum Estado-membro da União isolado teria a capacidade para investigar estas complexas violações da concorrência, nem a força política necessária para tomar tais medidas.

Lisbon first (16): E o Porto a seguir

1. O Primeiro-Ministro veio asseverar que a redução de preços dos transportes urbanos é programa nacional e beneficiará 85% da população.
Que é "programa nacional", bem o sabemos do lado do financiamento, pois que pago por todos os contribuintes; mas não é "programa nacional" pelo lado dos beneficiários, não só por causa dos tais 15% que ele não toca, mas também pela escandalosa assimetria entre os gastos em Lisboa e no Porto e no resto do País.
Pago por todos, o programa não beneficia todos, nem beneficia os que beneficia de modo minimante equânime. Todos pagam e poucos levam quase tudo! A extensão ao resto do País foi apenas uma habilidade para justificar politicamente mais uma enorme subvenção do País às duas áreas metropolitanas.

2. O subsídio público aos transportes urbanos é uma excelente medida social e ambiental. Mas, tratando-se de uma tarefa de natureza e âmbito eminentemente local, deve ser financiada pelos municípios interessados e não pelos contribuintes de todo o País, incluindo os que nem sequer têm transportes urbanos.
Não existe nenhuma razão para que, por exemplo, os munícipes de Miranda do Douro subvencionem os de Lisboa e do Porto que, aliás, já beneficiam do financiamento nacional do respetivo metropolitano (que também deveria ser uma competência municipal).
Também aqui deve valer o princípio beneficiário-pagador.

quarta-feira, 20 de março de 2019

"Dinheiro Vivo" (5): Liberalizar os táxis

Aqui está o cabeçalho da minha coluna de opinião da semana passada no Dinheiro Vivo - o suplemento de economia do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias -, desta vez dedicada ao projeto de lei de liberalização dos táxis apresentado no Parlamento pelo PSD.
Depois da "lei da Uber", impõe-se submeter às regras do mercado também o próprio serviço de táxis, incluindo liberdade de entrada na atividade e concorrência na qualidade e nos preços, revogando o regime protecionista que vem desde o regime corporativo do "Estado Novo", que sobreviveu incólume a mais de quatro décadas de economia de mercado!
Decididamente, os privilégios corporativos custam a morrer.

SNS, 40 anos (15): Um dever de defender a própria saúde?

1. Não vejo onde é que está a alegada inconstitucionalidade de uma norma que estipule a responsabilidade individual pela proteção da saúde própria e alheia, como esta que consta da proposta governamental de Lei de Bases da Saúde.
Por duas razões fundamentais:
    - primeiro, a própria Constituição estabelece explicitamente um dever de defender e proteger a saúde e não distingue entre a saúde própria e a de terceiros;
    - segundo, em matéria de direitos sociais não deve haver direitos individuais sem responsabilidade individual, visto que os direitos sociais são pagos por todos e a irresponsabilidade individual fica cara à coletividade.

2. Nem se diga que um tal dever não é suscetível de sanção, ou que poderia abrir caminho a sanções aburdas como a recusa de cuidados de saúde a quem infringisse tal obrigação (um argumento puramente terrorista).
Antes de mais, pode haver (e há) "normas imperfeitas", sem sanção, sem por isso perderem o seu sentido normativo, como "deveres cívicos", permitindo a censura comunitária sobre comportamentos que as ignorem. Por outro lado, não vejo, por exemplo, porque é que uma obrigação legal de vacinação não pode ser sancionada (por via contraordenacional, por exemplo) ou porque é que é que um fumador não há-de ser discriminado, por exemplo, no pagamento de taxas moderadoras pelos cuidados de saúde decorrentes da sua adicção.
É tempo de equilibar uma hipercultura de direitos contra o Estado e a sociedade com um módico de cultura de responsabilidade individual perante a coletividade. E se a moral social dominante não favorece essa responsabilidade individual (pelo contrário), que seja a lei a incentivá-la.

terça-feira, 19 de março de 2019

O que o Presidente não deve fazer (18): O "veto antecipado"


1. Em relação ao meu último post desta série, um leitor pergunta quais são os casos de interferência do PR no poder legislativo. Eis a minha resposta.
Por um lado, o Presidente da República vem-se permitindo pronunciar-se publicamente, com alguma frequência, sobre matérias pendentes de procedimento legislativo na AR (chegando a enviar notas ao Parlamento sobre leis em debate), desse modo condicionando diretamente o excercício da função legislativa, que cabe em exclusivo ao parlamento.
Ora, numa república parlamentar o debate legislativo cabe aos partidos políticos representados na AR e às organizações da sociedade civil (estes a título de "democracia participativa"), pelo que o PR se deveria manter à margem dele, tanto mais que no final lhe compete ajuizar, face à formulação concreta dos diplomas aprovados, sobre um eventual veto político, recusando a sua promulgação.

2. Neste quadro, são ainda mais problemáticos os casos em que o Presidente antecipadamente deixa entender ou indicia diretamente que não promulgará uma lei pendente de votação na AR, em função da solução legislativa em consideração ou caso não seja aprovada por maioria qualificada (como sucedeu em relação à lei de bases da saúde).
Como é evidente, estes casos de "veto antecipado" e, em especial, a exigência de aprovação de leis por maioria qualificada, nos casos em que a Constituição não a estipula, revestem maior gravidade do que as situações anteriores, por a perspetiva de veto presidencial levar as oposições a radicalizarem as suas posições na disputa legislativa, dispensando-as de negociar soluções de compromisso com a maioria governativa.
Por definição, o eventual veto legislativo só deve ser equacionado a posteriori, face ao resultado final do labor legislativo, não devendo poder fundar-se na falta de uma maioria qualificada que a Constituição não exige.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Regionalização (2): O fator perturbador da intermunicipalidade

1. Além do obstáculo do duplo referendo, referido em post anterior, a revisão constitucional de 1997 veio também introduzir um importante fator perturbador da regionalização, ao reforçar a institucionalização de entidades intermunicipais (associações de municípios), que hoje se consubstanciam nas duas áreas metropolitanas (AM) e nas 21 comunidades intermunicipais (CIM), que correspondem territorialmente às NUTS III (no mapa junto).
O problema é que a Constituição previu também que a lei lhes conferisse diretamente "atribuições e competências próprias" (além das transferidas pelos próprios municípios associados), abrindo assim caminho para a criação "furtiva" de um novo nível "intermunicipal" (mas na verdade supramunicipal) de descentralização territorial e conferindo-lhes um estatuto de "semiautarquias" territoriais (atribuições próprias, mas sem órgãos diretamente eleitos).

2. A referida cláusula constitucional permitiu que a lei das autarquias locais cometesse às entidades intermunicipais importantes tarefas de âmbito supramunicipal, que caberiam naturalmente às regiões administrativas, se estas existissem. A recente lei-quadro da descentralização territorial também vai por aí, prevendo expressamente a "transferência de competências [do Estado] para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais".
Ao criar esse nível de descentralização territorial supramunicial (embora sem autarquias supramuncipais, por falta de órgãos diretamente eleitos), o legislador acabou por estabelecer uma espécie de "mesorregionalização", com base nas 23 NUTS III atuais, a qual vem reduzir o espaço entre o Estado e os municípios que a criação das regiões administrativas visava preencher.

3. As coisas complicam-se ainda mais, se for para a frente o projeto que estava no programa do atual Governo de fazer eleger diretamente os órgãos das áreas metropolitanas (Lisboa e Porto), que assim se transformariam em verdadeiras autarquias territoriais supramunicipais.Desse modo, e supondo que essa solução é constitucionalmente viável, nas áreas metropolitanas - que abrangem uma parte substancial da população do País -,  passaria a haver três níveis territoriais de administração infraestadual: freguesias - municípios - autarquias metropolitanas; com a hipotética criação das regiões administrativas, passariam a ser quatro níveis!
E provável que nem só os adversários da regionalização achem demais!

domingo, 17 de março de 2019

Social-democracia (6): "Dignidade económica"

1. Vale a pena ler este artigo do economista Gene Sperling - que trabalhou com Clinton e Obama na Casa Branca - sobre o principal objetivo que deve nortear as políticas económicas e sociais de um governo progressista, ou seja, a "dignidade económica" de todos, numa tríplice dimensão: (i) assegurar os meios suficientes para sustentar condignamente a família (incluindo crianças e idosos); (ii) realizar o potencial económico de cada um; (iii) participar na vida económica sem sujeições nem humilhações.

2. Isento do jargão marxista e tendencialmente anticapitalista que é típico dos debates europeus sobre o tema, este desafiante texto inscreve-se plenamente no filão do idealismo progressista norte-americano, que inspirou os avanços de Roosevelt, Kennedy, Clinton e Obama na regulação do mercado com objetivos sociais nos Estados Unidos, no contexto adverso de uma cultura política visceralmente individualista e antissocialista e na ausência de uma ancoragem constitucional dos direitos sociais, não tendo sido possível a adoção do "second bill of rights" que Roosevelt ambicionou (e não sendo por acaso que os Estados Unidos não ratificaram também o Pacto de Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, de 1966).

sábado, 16 de março de 2019

Horizonte 2023 (II): Regresso do défice comercial

O aspeto mais desfavorável do cenário económico e orçamental do Conselho das Finanças Públicas até 2023 é a continuação do crescimento das exportações abaixo das importações, consumindo a atual excendente comercial, voltando o País a uma situação de défice comercial já em 2020 (como aqui se antecipou anteriomente), que se torna maior nos anos seguintes, embora moderadamente.
Também aqui existem riscos de evolução mais negativa, se se agravar o abrandamento económico nos nossos principais mercados externos, se o Brexit correr mesmo mal, se as anunciadas guerras comerciais ameaçadas a partir de Washington se vierem a desencadear, etc..
Prognóstico reservado, portanto.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Horizonte 2023 (I): Riscos orçamentais

1. Apesar do abrandamento geral do ciclo económio, o Conselho das Finanças Públicas prevê para Portugal a manutenção do crescimento no horizonte de 2023 (à volta de 1,5% ao ano), o que perfaz um período de nove anos de expansão económica contínua (com início em 2014), sem paralelo desde 1974.
Num quadro de aumento sustentado das receitas orçamentais e de contenção da despesa pública, nomeadamente da despesa com juros da dívida pública, vai ser possível cumprir, num cenário de "políticas invariantes", as regras de consolidação orçamental da zona euro, quer quanto ao défice (chegando a prever um excedente orçamental em 2021!), quer quanto à redução do rácio da dívida pública no PIB (mas não quanto à redução do "défice estrutural").

2. No entanto, o CFP enuncia uma série de riscos para este cenário favorável, nomeadamente os seguintes:  (i) uma deterioração da economia mundial mais acentuada [do que o previsto], com efeitos no crescimento da economia portuguesa e consequentes impactos negativos ao nível da receita e da despesa; (ii) o impacto de novos apoios ao sector financeiro; (iii) a concretização de pressões orçamentais sobre as componentes mais rígidas da despesa pública (concretamente despesas com prestações sociais e despesas com pessoal); e (iv) a capacidade de manter o controlo do crescimento da despesa com consumos intermédios.
Ora, se os dois primeiros fogem ao alcance do Governo, já os dois últimos dependem essencialmente das condições políticas internas. A provável hipótese de um novo governo minoritáio a partir das eleições de outubro próximo, sem condições para um acordo parlamentar sobre a estabilidade orçamental, pode tornar o cenário mais problemático, em consequência da maior vulnerabilidade do Governo às pressões do setor público e a "coligações negativas" com impacto orçamental significativo.