terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

“Borla e capelo”

Na Praia, Ivan Nunes transcreve longamente, com impiedoso gozo, um texto do ex-reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Rebelo, sobre as “insígnias”, ou seja, a borla e o capelo coloridos que a tradição prescreve aos professores da UC.
Sou dos que não usam tais insígnias, mas somente o simples traje académico preto. Por duas razões: primeiro, porque as acho demasiado “carnavalescas” no seu neobarroco revivalista; segundo, porque, confesso, não as tendo, fico dispensado de intervir nas cerimónias em que elas são exigidas, designadamente nos doutoramentos “honoris causa”, que frequentemente são uma "seca".
O ex-reitor acha que as insígnias são deslumbrantes. E há muita gente que se não sente verdadeiramente professor de Coimbra sem elas. Eu não partilho da primeira apreciação nem da segunda. Penso mesmo que é chegada a altura de uma reforma do trajo e das insígnias académicas, de modo a simplificar um e outras. É verdadeiramente incómodo o seu transporte para fora de Coimbra, e ainda mais para o estrangeiro (é preciso uma mala grande só para isso), bem como ter de mudar integralmene de indumentária para participar em qualquer evento académico (doutoramentos, agregações, cerimónias solenes, etc.).
Também penso que o trajo académico devia ser dispensado nas provas de doutoramento. O seu uso poderia ter algum sentido quando tais provas eram prestadas só por candidatos à carreira docente. Mas hoje essa conexão tem cada vez mais excepções, e ainda bem que assim é. Acho uma violência (e não só financeira...) que se exija esse atavio aos que não têm nenhum projecto de se dedicar ao ensino universitário. Tal como não se exige uniforme académico nas provas de mestrado, também deveria ser dispensado nas provas de doutoramento. [Na imagem: professores de Matemática da UC, 1900; traje académico, sem insígnias.]

Vital Moreira

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

O casino

Passo a vida a dizer aos meus alunos que os mercados não mentem. Prego-lhes os méritos da concorrência, do raciocínio estratégico e da teoria do valor accionista. Explico-lhes que existem mecanismos e indicadores tecnicamente inquestionáveis sobre a performance empresarial e que as cotações bolsistas reflectem a valorização presente e futura das sociedades. Tudo muito científico e transparente.

Volta e meia, não consigo evitar um desabafo pessoal e lá debito um comentário sobre as perversões, as contradições e as fragilidades do sistema. Mas depressa me lembro que sou pago para transmitir as mais modernas técnicas de gestão, de ciência certa, e não para atemorizar ou crivar de dúvidas os meus inexperientes alunos. E assim retomo o fio normal, by the book, na esperança de ter aberto uma nesga de perplexidade junto dos espíritos mais críticos e de os ter conseguido alertar para as armadilhas do mundo real.

No último fim-de-semana encontrei, no Porto, um antigo aluno meu do ISEG. Lançara-se, com razoável sucesso, num negócio ligado às novas tecnologias e estava esperançado em ultrapassar mais um mau ano económico sem ter de sacrificar activos ou fechar a empresa. A meio da breve conversa, atirou-me: “O que me diz desta valorização anómala do papel da Sonae Indústria [mais de 90 por cento nas últimas quatro sessões]? Alguém mudou a fórmula de determinação do valor accionista sem que me tenha apercebido?”. Falho de informação precisa sobre os últimos episódios do mercado bolsista, prometi responder-lhe mais tarde, logo que reunisse os elementos suficientes.

Uma vez em campo, percebi que o fenómeno era, afinal, encarado com toda a normalidade pelo mercado financeiro (investidores, analistas, bancos, imprensa económica e outros agentes dinâmicos da nossa praça). As cotações tinham disparado devido a rumores de reorganização industrial no grupo Sonae. Fiquei esclarecido. O meu ex-aluno é que não.

Luís Nazaré

Quem lhe passou procuração?

Num comício do PP espanhol, em que participou em Madrid, Durão Barroso é citado como tendo dito: «O PSD e Portugal estarão ao lado de Mariano Rajoy [o candidato da direita à chefia de governo nas próximas eleições] e do próximo Governo de Espanha».
Ora, a que título é que Barroso pôde invocar o nome do País na sua solidariedade partidária? Quem lhe passou procuração? De duas uma: ou ele falava na sua qualidade de primeiro-ministro num comício partidário (e nessa qualidade é referido pelo repórter do "Público"), o que seria um inaceitável abuso de funções; ou ele falou naturalmente como líder partidário, e então só podia comprometer o PSD. A invocação de Portugal constitui um lamentável “acto falhado”, do mesmo tipo que há dias o levou a acusar o PS de, ao votar contra uma proposta governamental, ter “votado contra o País”, o que provocou a justa ira de Ferro Rodrigues, que o acusou de um tique autoritário.
De facto, Durão Barroso devia abster-se de invocar o nome do Portugal em vão, sobretudo no estrangeiro. Ele não é o País. Como primeiro-ministro ele só representa o Governo do País (a representação institucional deste cabe ao Presidente da República); como chefe partidário, só representa os seus militantes e porventura os seus votantes.
Há lapsos que desqualificam. Que diria Durão Barroso se o líder do PS fosse também a Madrid anunciar ao líder do PSOE o “apoio de Portugal”?

Vital Moreira

Entidades supramunicipais e regionalização

Há dias, nas “cartas” do Público, o antigo Ministro e actual presidente da CCDR do Norte, Arlindo Cunha, expunha um ponto de vista essencialmente convergente com o que tenho defendido sobre a relação entre a criação de entidades territoriais supramunicipais, que está em curso, e a questão da regionalização, que ficou indefinidamente adiada desde o referendo negativo de 1998. Vale a pena transcrever:

«Referi, porém, que qualquer que fosse o mapa final resultante deste debate, (...) o novo sistema de entidades supramunicipais, apesar das suas interessantes potencialidades, não dispensava, em caso algum, a reabertura do debate sobre a regionalização. Foi nesse contexto que afirmei que os argumentos agora utilizados para defender comunidades urbanas com dimensão e massa crítica suficientes para serem fortes e competitivas, se aplicavam integralmente à defesa [da regionalização], no futuro, quando esse debate voltar a ser aberto - o que me parece inevitável.»

Por mim só sublinharia mais este ponto: as “entidades supramunicipais”, agora em vias de constituição, se não "descarrilarem", não precludem a futura criação das regiões de escala maior, para o desempenho de tarefas que a requeiram, desejavelmente correspondentes às cinco NUTS II que constituem a base territorial das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Podem até facilitar o caminho para elas, ao mostrar que as entidades supramunicipais não são feitas à custa dos municípios, que foi um dos argumentos contra a regionalização.

Vital Moreira

O líder atrás da Espanha

Deixem-me passar, tenho de os seguir, eu sou o líder’
Ledru Rollin (1807-74, advogado e político francês)

Se um dia houver algum conflito de Espanha com outro pais, estaremos ao lado da Espanha’ segundo o ‘Público’, de 13 de Fevereiro, citando o PM Durão Barroso em Madrid, no Forum do ‘Wall Street Journal’, depois de explicar que ‘Portugal se sentiu muito bem nas Lajes porque estava com três aliados: a Espanha, o aliado mais próximo, a Inglaterra, o nosso aliado tradicional e os Estados Unidos, o nosso aliado mais forte’.Lê-se e não se acredita. Será possível que um Primeiro Ministro de Portugal se deixe inebriar pelo ‘glamour’ da audiência, se deixe entusiasmar em desvelo subserviente, se deixe deslumbrar pela sua projecção pessoal e hipoteque assim, de uma penada, a independência do país aos humores belicosos de quem quer que ordene em Espanha?
A propósito, Ana Sá Lopes, no ‘Público’ de ontem, denuncia o ‘aliadismo’ como marca da política externa de Durão Barroso e antecipa que em caso de conflito Madrid-Rabat pelo rochedo de Perejil já sabemos que os nossos homens avançarão sobre Marrocos. Mas como decidirá o Dr. Durão Barroso, se o conflito for entre Madrid e Londres, a pretexto de Gibraltar, por exemplo? Com quem alinharemos, segundo a doutrina duro-barrosista, com o mais próximo ou com o mais tradicional aliado?
Seria para rir, se não fosse tremendamente sério e não desse vontade de chorar a quem trabalhou para projectar no estrangeiro a imagem de um Portugal digno, democrático e respeitador da legalidade internacional.
Princípios, valores, interesse nacional, direito, razões, história, diferenciação estratégica – tudo Durão Barroso manda às urtigas, para adular poderosos e ficar num canto da fotografia, mesmo desfocado, no engodo vassalo de reflectir a glória dos senhores que serve. Desespera ainda por pôr pé no rancho texano, embora nem sirva para figurar na lista dos coligados no discurso sobre o Estado da União. Conforta-o que se lembrem dele para abrilhantar comícios do aspirante a sucessor de Aznar.
Com o Iraque ficámos a saber que se os aliados o mandam atirar a um poço, Durão Barroso obedece. Mas em Espanha, excedeu-se: proclamou que, se e quando o abismo chegar, ele já estará, de dorso dobrado, prontinho, em postura para mergulhar. Deu-lhe para emular Miguel de Vasconcelos? Cuidado que na tumba o Dr. Salazar se revira! E justamente.
A patologia vem nos livros: sede de reconhecimento social, combinada com o fervor do convertido. Já assim era quando rapaz, no MRPP, encabeçava manifestações da ‘linha vermelha’ contra a ‘linha negra’ esquecida de celebrar o aniversário de José Estaline, como há dias foi recordado. Mas há trinta anos a exaltação era inconsequente. Para Durão Barroso e para o país. Agora, porém, não se precipita apenas ele, precipita o país.
Portugal não nasceu ontem, nem vai afundar-se amanhã, por muito que o prognostiquem uns serôdios impotentes a quem deu agora para se angustiar com a inevitabilidade da Ibéria. Portugal tem tolos, parolos, novos-ricos e vendidos para dar e revender, mas não lhe falta também identidade, dignidade, discernimento e memória. Não está dominado pelos complexos e reflexos de inferioridade do Dr. Barroso. Portugal já percebeu que o Primeiro Ministro arenga contra directórios para disfarçar a submissão aos seus «diktats», venham de onde vierem - traçado TGV, acordo PAC, devassas da nossa zona económica exclusiva, «Prestiges», PECs, Lajes, aí estão para o provar.
Portugal vive e convive com Espanha e gosta das Espanhas, ali ao lado. Não teme Madrid, diligencia em conjunto em Bruxelas e onde convier, mas se for preciso também resiste a quem se arme em mandão em Leão ou Castela, não engole tudo o que asneiem Aznares ou Filipes. Portugal percebe que tem de trabalhar em Espanha e com Espanha. Precisa de um governo e de um Primeiro-Ministro que promovam sinergias com Madrid e as Autonomias, mas batam o pé sempre que necessário, para recusar transvases ou barragens que nos sequem rios, centrais nucleares que nos tramem e arrastões que nos devastem pesqueiros. Que combatam entraves às nossas empresas para competir lá, como as espanholas fazem por cá. Portugal precisa de empresários dignos desse nome que insistam e invistam no mercado vizinho, em vez de rifar empresas aos ‘nuestros hermanos’, sob a benção do Dr. Barroso e ‘sus muchachos’ sequiosos de lugares na administração da banca espanhola.
Durão Barroso não governa Portugal, desgoverna. Não mostra sentido de Estado, faz sentir o estado em que pôs o país. Durão Barroso embaraça Portugal. Os portugueses tratarão de se desembaraçar dele.

Ana Gomes

domingo, 15 de fevereiro de 2004

Memórias acidentais (2)

O caderno local do Público referente à região centro (que lamentavelmente não está on-line, diferentemente dos demais cadernos locais...) deste Domingo trazia na sua habitual secção de fotos antigas das cidades da região uma bela imagem do antigo Café Mondego, na cidade da Guarda, há umas décadas atrás. Apesar de terem passado mais de 40 anos desde que deixei a cidade, com destino a Coimbra, lembro-me bem do velho Mondego. As molduras de granito nas portas e janelas, os belos painéis de azulejos etnográficos no interior, o bilhar do lado direito ao fundo, as duas esplanadas no Verão, uma no passeio em frente, outra no pátio adjacente, do lado sul.
Como o jornal recorda, era o café da oposição. Passei lá muitas horas, até porque morava perto, na Praça Marquês de Pombal, ao pé dos correios. No Verão estanciavam por aí alguns espanhóis e os escassos turistas de além Pirinéus que se atreviam a viajar de automóvel para Portugal e que tinham posses para se alojarem no Hotel de Turismo, a dois passos dali.
O Café ficava situado junto ao jardim principal da cidade, na estrada que a atravessava, vinda da Covilhã, e ao fundo de uma rua estreita, íngreme, às curvas e sem passeios que descia do Liceu, situado lá em cima, perto do morro do castelo [na imagem]. No Inverno, nos belos dias de nevão (pareciam sempre belos nessa altura...), descíamos a ladeira deslizando pela neve, sentados em cima das pastas escolares, em vertiginoso “slalom”, rés-vés das casas. Algumas vezes, por erro na condução, acabava-se a aterrar dentro de alguma casa ou oficina de sapateiro, com algumas contusões. Nada que dissuadisse a repetição da aventura na próxima oportunidade.
Desde há vários anos – informa o jornal –, no lugar do desaparecido Café Mondego encontra-se instalada uma agência bancária. Os bancos foram os principais predadores dos cafés de outrora, cujo desaparecimento marcou o fim de uma forma de característica de convívio urbano. Apetece praguejar: “raios partam os bancos”!
Mas ao rever a imagem pergunto-me o que seria das nossas memórias sem a fotografia.

Vital Moreira

"Ou há moralidade..."

O Ministro das Obras Públicas acaba de anunciar que a auto-estrada A 25 – resultante da duplicação da actual IP 5 (Aveiro - Vilar Formoso) – terá portagens reais, pagas pelos utentes, e não portagens virtuais, pagas pelo Estado. Nada tenho contra essa regra do utente-pagador nas auto-estradas, que tenho defendido publicamente, tanto mais que ela vale para outras auto-estradas de acesso a Espanha, nomeadamente a do Minho (IP 1) e a do Alto Alentejo (IP 7) –, mas não a do Algarve. Por outro lado, não teria sentido que se pagasse portagem, por exemplo entre Coimbra e Figueira da Foz, como hoje já sucede, e não se pagasse entre Viseu e Aveiro.
Contudo, por isso mesmo, este princípio deve aplicar-se em princípio a todas as auto-estradas e não somente às novas. Havendo portagens na nova IP 5, que sentido tem a gratuitidade da auto-estrada da Beira Baixa (IP 6 – IP 2), que também converge para a saída de Vilar Formoso? O trânsito Lisboa para o Norte de Espanha e França, por essa via, continuará gratuito para os utentes, e já o não será o trânsito do Porto, Aveiro ou Coimbra para o mesmo destino, pelo IP 5?
“Ou há moralidade ou comem todos...”

Vital Moreira

"Compromisso Portugal"

Só agora tive oportunidade de ler na íntegra as conclusões da iniciativa “Compromisso Portugal", realizado há dias.
Vistas em conjunto, não é caso nem para louvor hagiográfico nem para anátema condenatório. Adoptando uma perspectiva manifestamente "neoliberal", favorável à diminuição do papel do Estado na economia e na prestação de serviços públicos, há lá de tudo: propostas ousadas no campo financeiro e fiscal que a esquerda não hesitará em aplaudir, quase todas; propostas de liberalização do mercado de trabalho (nomeadamente liberalização dos despedimentos), que fazem parte da receita patronal desde sempre; propostas deveras indigentes em matéria de “coesão social”, que lá estão só para prestarem “lip service” a essa noção; e finalmente propostas muito pouco pensadas e mesmo contraditórias com o próprio espírito do programa geral.
Entre elas últimas contam-se seguramente as que dizem respeito às escolas em geral e universidades em particular, como já assinalou no seu blogue o sempre atento João Vasconcelos Costa. Em especial quanto ao governo das escolas e universidades, os autores propõem o seguinte:
«Definir para cada Escola e Universidade conselho de “trustees“, nomeados pelo Estado / Administração Local (com participação mínima de cidadãos independentes, conhecedores da região respectiva e seus problemas, bem como da natureza dos cursos ministrados e com experiência de gestão relevante) que em conjunto com o Ministério da Educação e ouvindo os representantes das Escolas ou Universidades nomeiem as equipas de gestão destas instituições de ensino para mandatos bem definidos, acompanhando anualmente o seu desempenho.»
Ora está bom de ver que isto não passa da importação acrítica do modelo de governo universitário norte-americano, mas aplicado somente às escolas e universidades públicas e com uma inegável e surprendente marca governamentalista, que poria em causa o próprio conceito de autonomia universitária. Para além de inconstitucional e impraticável, por falta do necessário “environment” cultural e institucional entre nós, esse modelo implicaria voltar a entregar a responsabilidade pelo governo das universidade ao Estado, por intermédio do tal "conselho de trustees", abolindo qualquer dimensão de auto-governo, o que se afigura verdadeiramente despropositado na tradição europeia. Par além disso, esse conselho ficaria com o duplo papel de escolher os gestores das escolas e fiscalizar o seu desempenho, com os previsíveis problemas de informação e de controlo sobre os gestores.
Francamente era de esperar melhor reflexão e mais ponderação.

Vital Moreira

sábado, 14 de fevereiro de 2004

Sharon também merece

Vem nas agências de notícias que Bush & Blair estão entre os candidatos propostos para o Prémio Nobel da Paz, que deve ser anunciado em Outubro deste ano. Acho bem, visto que o melhor caminho para a paz é aniquilar pela guerra os inimigos, mesmo sem motivo. Só não estou de acordo em que eles o recebam sozinhos, o que seria uma injustiça: é evidente que Ariel Sharon, por exemplo, merece tanto como eles –, ou até mais, visto que os palestinianos são um osso bem mais duro de roer do que Saddam Hussein.
Para dar plena consistência às candidaturas aos prémios Nobel deste ano, só falta mesmo propor um prémio de direitos humanos “ad hoc” para o antigo presidente do Iraque...

Ir ao Engano, e outras ideias perversas

O meu primeiro livro de poesia foi olimpicamente ignorado pela crítica literária nacional, facto que despertou em mim meia dúzia de pensamentos e uma ideia. Os pensamentos oscilaram entre cortar os pulsos com uma lâmina ardilosamente surripiada a Prado Coelho, minutos depois deste aparar a jubilosa barba pela manhã, e a sensação melancólica de não existir. Coisa agradável quando somos um fantasma mas bastante menos quando se alimenta a expectativa de que nos comprem o livro de forma a que possamos aspirar a um próximo, e aí por diante. Confrontado com reflexões de tal quilate, eis que surge a ideia.
Tinha eu já pronto um segundo livro de poesia, "Canções para uma Mulher em Particular". Questiono o título. Palavroso, a atirar para o épico, comercial talvez sob o ponto de vista dos utentes do Jumbo de Odivelas e de senhoras de meia idade possuidoras da obra completa de Cristina Caras Lindas. Nada mau, pensei. Já pagava a edição.
Mas resolvi ser ambicioso. Os planos para a minha carreira de autor são, neste momento, os seguintes. Começar humildemente com um livro de contos intitulado "Prémio Branquinho da Fonseca, e outras histórias"; partir daí para o dito cujo volume de poesia - com o mesmo conteúdo mas título novo. Qualquer coisa como "Prémio Poesia APE 2004". Avançar seguro para uma compilação de short-stories com o pézinho a fugir para a novela, sob o título "Booker Prize"; nesse ponto então arriscar o primeiro romance. Título... Hmm... deixem cá ver... Já sei! "O Prémio Pullitzer"; e assim, no auge de uma profícua carreira literária, lançar enfim o meu opus maior, o meu "Retrato de Dorian Gray", a história de um rapaz ignorado pela crítica que sacou uma grande ideia de marketing e editou o romance: "Vencedor do Nobel", de Luís Filipe Borges.
Alguém me quer esclarecer sobre eventuais problemas com a lei dos direitos de autor?

Luís Filipe Borges

Macrocefalia lisboeta

Miguel Cadilhe, presidente da Agência Portuguesa pra o Investimento (API), rebelou-se contra a macrocefalia política e administrativo lisboeta, denunciando o caso da instalação em Lisboa da Agência Europeia de Segurança Marítima, que coube a Portugal na distribuição das agências europeias efectuada na cimeira de Bruxelas, em Dezembro passado. O antigo ministro defendeu que ela teria sido melhor situada, por exemplo, no Porto.
A reclamação faz todo o sentido e só pode merecer aplauso. Com efeito, a desconcentração geográfica das agências europeias não deve constituir um meio de reforçar a concentração político-administrativa a nível nacional, vindo agravar ainda mais o panorama nacional de enorme acumulação institucional na capital.
A decisão sobre a localização da referida agência parece que já não pode ser revertida, mas nem isso nem o desagrado do Governo contra Cadilhe lhe retiram razão no protesto. Ao menos, que este seja tido em conta no futuro.

Vital Moreira

O muro israelita

1. Uma carta
«O muro israelita [cfr. este post ] não devia existir. Certo.
Os comandos suicidas palestinianos não deviam existir. Certo.
Morrem inocentes todos os dias. Certo.
São cometidas as maiores atrocidades por palestinianos e israelitas todos os dias. Certo.
E poderia continuar sem qualquer problema , por mais cinquenta linhas , a constatar todos estes factos... Certos.
Só não o faço porque o conflito entre israelitas e palestinianos é uma mentira que ambas as partes teimam em prosseguir, talvez em nome da legítima defesa...»

(JLFS)

2. Breve comentário
A meu ver é preciso acrescentar duas ou três notas.
A ilegítima ocupação e a afrontosa colonização israelita dos territórios palestinianos devem cessar, pois elas são a fonte de todo o conflito.
Os palestinianos devem ter um Estado independente, ao lado de Israel, nas fronteiras internacionalmente reconhecidas dos territórios ocupados, com garantias suficientes de segurança mútua, pois só isso garante a paz.
Em vez disso, porém, Israel prefere jogar na força e no tempo para espoliar os palestianinos das suas terras e do seu direito a um país. Esse caminho não leva a lado nenhum, salvo a mais guerra, mais violência e mais ódio.

Vital Moreira

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

A morte

Num intervalo de pouco mais de 20 dias avolumam-se as notícias e, com elas, os receios. O país não está melhor, a morte de um jovem húngaro merece exéquias nacionais, honra que qualquer outro jovem, das obras à IP5, não merece.
Há, quanto a mim, uma explicação: o público já começava a ficar fatigado do processo da Casa Pia e reflectir sobre assuntos sérios ( o Orçamento, a Justiça, a nossa condição fiscal) era fastidioso para qualquer opinion maker.
Então as televisões assumiram-se entre o açougue e a agência funerária. Sabiam, à semelhança da decadente Roma, que a morte gloriosa, na arena, de um gladiador de luxo, ainda por cima louro como um trácio e soberbo como um gaulês, provoca mais emoções que a distribuição de trigo e vinho.
Os efebos na antiga Roma não eram notícia embora fossem objecto de prazer, concupiscência e alarde.
Os gladiadores eram disputados pelas melhores escuderias, sabendo que, em cada entrada na arena, arriscavam a vida ou arriscavam-se à fama.
Este país, hoje um pequeno resquício do decadente Império Romano, está mais interessado na fama do que na vida, no sucesso do que na realização. Este país multiplicou as arenas – dos campos de futebol, novos e antigos, aos estúdios de televisão, sofisticados ou kitsh, escondendo os estaleiros nauseabundos de ucranianos e negros, os escravos das minas romanas.
Ninguém é indiferente ao imediato.
O instante feliz é corrosivo e a justiça banalizada como um espaço lúdico no mal estar português. E escrevo espaço lúdico porque alimenta a morbidez e o voyeurismo que nos são, diria, ancestrais. Eu bem sei que a História não se repete, mas o nosso processo histórico é repetitivo.

Rogério Rodrigues

A casa

Acabei de montar o meu primeiro filme e a sensação é estranha. Uma sensação de vazio muito incomodativa onde as perguntas que ficam por fazer são muito superiores às respostas que tenho para dar. Durante mais de um ano parte da minha vida foi gasta na Casa de Saúde da Idanha, uma casa psiquiátrica de mulheres, e agora as minhas obsessões, fantasmas e pesadelos nocturnos estão concentradas numa pequena cassete com 80 minutos de fita.
Ao princípio, o grande desafio passava por saber se as ideias que tinha enquanto realizador podiam ser corporizadas num objecto artístico não contaminado pelo jornalismo ou por uma linguagem televisiva. Mas tudo isso passou a ser secundário no terreno, completamente secundário. A vida das minhas protagonistas tornou-se o espelho da minha própria vida. Espero que se possa tornar o espelho de grande parte das vidas de todos os que o puderem ver.
Acabei-o há cerca de uma hora. Vai chamar-se A Casa. É um filme documental sobre mulheres e também sobre cada um de nós. Naquela casa habitada por doentes mentais e espantosas freiras vivi uma extraordinária experiência de vida. Sinto-me completamente vazio, mas feliz.
Soube também que o Luís Filipe Borges se mudou para a Causa-Nossa; que Jorge Coelho está disponível para se candidatar à liderança do PS; que no futebol os cavalheiros continuam a tratar das suas fazendas e que Bush talvez tenha fugido à tropa. Nestes últimos dias de trabalho não consegui preocupar-me um segundo que fosse com a realidade do nosso mundo de ficção. Preferi a realidade da casa onde aquelas mulheres me continuarão a povoar os sonhos.

Luís Osório

50 000!

O contador do “Bravenet”, no fim desta página (o “Sitemeter”, esse, foi instalado recentemente), mostra que o Causa Nossa ultrapassou hoje a marca dos 50 000 “hits”, contados desde 25 de Novembro do ano passado, ou seja, em pouco mais de dois meses e meio. Não é nada mau para um blogue que começou algo hesitantemente e com o período “baixo” do Natal e ano novo de permeio.
Os números deixam entender que o CN conquistou um espaço relevante e uma audiência consistente, aliás em crescimento. Tão importante quanto isso, parece ter definido um estilo de expressão próprio e uma “personalidade” distinta na blogosfera nacional. O "feedback" dos leitores e as referências de outros blogues convergem nesse ponto. Por isso só existem razões para continuar. Parafraseando um antigo "slogan" publicitário de sucesso, também o CN “veio para ficar”.

PESC Lisboa-Washington

A maioria governamental chumbou um voto de protesto contra a construção do muro israelita na Cisjordânia, universalmente condenado, salvo em Washington, um protector de todas as arbitrariedades de Telaviv. Ficámos a saber que a dependência da actual maioria governamental em relação aos Estados Unidos é tal, que agora até os mimetizamos no seguidismo em relação a Sharon. Em vez de termos uma PESC europeia temos uma PESC com a Secretaria de Estado norte-americana.
São actos destes que encorajam Israel na sua opção guerreira e que tornam a guerra infinita. Não se pode esperar dos palestinianos que não resistam à violência bruta da ocupação com a violência. Trata-se de elementar legítima defesa.

Vital Moreira

Fuga para a frente (II)

O texto de Pacheco Pereira (ver post precedente) é provavelmente um dos mais impressionantes depoimentos sobre a grande mistificação da guerra do Iraque. Ele declara compartilhar das «outras razões» – ou seja, as verdadeiras e escondidas – «por que Bush e Blair quiseram ir para a guerra antes sequer de encontrarem o enganoso pretexto e legitimação nas ADM». A culpa do comprometedor engano, subentende-se, foi dos Powell e outros “multilateralistas” que condicionaram a determinação dos Rumsfeld/Wolfowitz e obrigaram Bush a procurar pretextos susceptíveis de impressionar os aliados e as Nações Unidas. A conclusão a tirar, nesta lógica, é que os Estados Unidos foram demasiadamente condescendentes com a opinião alheia...
Por mim, sempre entendi que a guerra foi desencadeada por motivos diferentes dos que foram invocados, designadamente uma afirmação imperial de força perante o mundo árabe, a vingança do 11 de Setembro sobre o "bode expiatório" mais vulnerável, a alteração da relação de forças no Médio Oriente, aliviar Israel da pressão palestiniana, assegurar o controlo dos recursos do petróleo da região, penetrar na esfera de influência da Europa e da Rússia, etc. Só que essas razões ou não podiam ser confessadas ou não davam para fazer “passar” a guerra. Por isso ela foi feita com base em motivos inventados – as ADM e as ligações ao terrorismo internacional – que a pudessem legitimar.
A pergunta crucial que resta é: numa democracia podem os governos enganar assim, de forma tão deliberada e acintosa, os parlamentos e a opinião pública numa decisão tão crucial como a de fazer a guerra?

Vital Moreira

Fuga para a frente

Ontem no Público, José Pacheco Pereira reconhece finalmente que Bush & Blair e todos os que apoiaram a guerra contra o Iraque (entre eles o próprio JPP) estão em maus lençóis porque o pretexto das ADM, «um dos principais argumentos a favor da guerra, era falso». E «lamenta muito todos os enganos à volta das ADM, em que quem defendeu a guerra participou».
Contudo, em vez de concluir que a guerra não devia ter sido feita, desde logo porque ilegítima, JPP conclui que o que esteve errado foi a invocação das ADM e não a guerra, devendo esta ter sido feita na mesma, mas somente com base nos seus verdadeiros motivos, ou seja, no seu entender, o 11 de Setembro e a luta contra o terrorismo.
Trata-se de uma evidente fuga para a frente.
Primeiro, sem o argumento das ADM não teria sido possível “vender a guerra” nem ao Congresso dos Estados Unidos nem muito menos ao Parlamento britânico, para não falara da "comunidade internacional". Só as ADM podiam “legitimar” a guerra, por que permitiam invocar o suposto “incumprimento” das resoluções da Nações Unidas por parte do Iraque – e é por isso que a falta delas não pode deixar de a deslegitimar.
Segundo, eram igualmente desprovidas de fundamento as acusações de ligação de Bagdad ao 11 de Setembro, à AlQaeda e ao terrorismo internacional. De resto, sabe-se hoje que a decisão de fazer a guerra é anterior ao 11 de Setembro. Invocar em primeira linha o problema do terrorismo, além de não chegar para justificar a guerra, teria tido o mesmo efeito deslegitimador quando se verificou que também era um falso pretexto. Agora, depois da ocupação, é que o Iraque se tornou um viveiro de terroristas!
Em conclusão havia as "boas" razões e as verdadeiras razões para justificar a guerra. Só que as "boas" razões não eram verdadeiras e as verdadeiras não eram "boas".

Vital Moreira

A estrela de Kerry

Depois das recentes vitórias destacadas em Estados do Sul (Virgínia e Tennessee) na campanha para a nomeação democrata às eleições presidenciais de Novembro nos Estados Unidos, J. F. Kerry tem praticamente garantida a ambicionada nomeação na convenção partidária de Boston, em Julho. Os seus concorrentes vão desistindo (agora o General Clark). O próximo a sair da corrida poderá ser a anterior favorito, Howard Dean, se Kerry o vencer, como parece certo, no Wisconsin, um Estado tradicionalmente alinhado com a esquerda democrata, e onde aquele parecia levar vantagem à partida.
Kerry passa portanto a ser o depositário das esperanças dos que apostam na derrota de Bush. A sua fulgurante ascensão desaponta a estratégia bushista, que apostava numa prolongada e debilitante luta dentro do campo adversário.
Vale a pena começar a seguir o candidato democrata. Aqui está o seu website oficial, bem como o seu blogue.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

Prado Coelho e a ironia de Mello

Mas não foi apenas este cruzamento de experiências no Corte Inglés (ver post abaixo) que me levou a referir a crónica de Prado Coelho. É que este meu velhíssimo amigo fez questão de aproveitar a insólita oportunidade para mostrar a sua discordância com aqueles que têm criticado as declarações de José Manuel de Mello sobre a dissolução de Portugal na Ibéria. Pelos vistos, a suposta e penetrante ironia de Mello teria passado completamente despercebida aos espíritos obtusos como eu. Ora, o meu problema não foi ter achado que Mello defendia a União Ibérica (até sou insuspeitíssimo na matéria, pois já fui insultado como suspeito de iberismo) mas não ter achado graça absolutamente nenhuma à boçalidade das suas larachas – e à sobranceria do estilo com que um herdeiro do proteccionismo industrial salazarista mostra hoje o seu ressentimento.
O que acho espantoso é como um intelectual sofisticado e cosmopolita como Prado Coelho se mostra sensível a um “nonsense” tão grosseiro. Será que leu mesmo a entrevista de Mello ao Expresso? Ou será que não a tendo lido ficou triste por ter perdido a oportunidade de ser o primeiro a reagir ao que nela se diz? A culpa será mesmo do inevitável “sistema mediático”, de que Prado Coelho é hoje, aliás, um dos cronistas mais visíveis (como Pacheco Pereira, esse outro crítico feroz do dito sistema)? Ou será ainda que, afinal, o sr. Mello e os intelectuais que o incensam têm uma capacidade de sedução a que não escapa o tão volúvel Eduardo?

Vicente Jorge Silva

Aventuras no Corte Inglés

O meu querido amigo Eduardo Prado Coelho escreve hoje uma inspirada crónica no Público sobre a sua experiência metafísica numa “descida helicoidal” no parque de estacionamento do Corte Inglès lisboeta. Como não tenho automóvel nem possuo sequer carta de condução não pude aceder a tal aventura aterradora. Em contrapartida, vivi ali outra experiência digna do “Playtime” de Tati, quando as máquinas registadoras electrónicas se avariaram em todo o centro comercial e o pagamento com cartão de crédito se tornou inviável.
Perguntei se não havia aquelas velhas e simpáticas maquinetas manuais que ainda existem em alguns restaurantes. Não, não havia. Era uma coisa ultrapassada, impensável até, numa catedral de consumo moderníssima como aquela. Limitaram-se a propor-me que escrevesse a protestar e a apresentar sugestões. A hipótese era apenas – uma vez que eu não dispunha de euros suficientes na carteira – o pagamento por cheque. E por improvável que parecesse, eu ainda tinha um caderninho de cheques na minha pasta.
Preenchi um, apresentei o meu bilhete de identidade, declinei o meu número de telefone e a morada, mas pelos vistos a minha aparência não oferecia garantias suficientes de credibilidade e liquidez bancária. Passou-se um tempo razoável de inquirição e pedidos de esclarecimento até que, já irritado, vi-me coagido a recorrer a uma arma que rarissimamente utilizo: o meu cartão de deputado. Consegui então efectuar o pagamento, entre sorrisos amarelos de vendedor e consumidor, mas jurando a mim mesmo nunca mais voltar a pôr ali os pés. Será este o preço da modernidade, quando as funções electrónicas entram em colapso e o consumidor fica desamparado face à desconfiança humana do vendedor (e que foi certamente instruído para isso)?

Vicente Jorge Silva

Madeira: Garajau contra Jardim

Desde 15 de Janeiro, publica-se na Madeira um quinzenário "sério e cruel", com vocação crítica e satírica em relação ao sistema jardinista. É a primeira iniciativa do género a ser tentada em muitos anos naquela região autónoma (mas que autónoma só o é para assegurar a inimputabilidade do tiranete local). As duas primeiras edições foram um sucesso assinalável: a primeira vendeu mais de 5 mil exemplares, a segunda terá vendido mais de 3 mil, o que constitui um facto digno de nota à escala madeirense. Garajau, nome de um pássaro associado aos tempos da descoberta da ilha.
O jornal chama-se "O Garajau" e ainda não se vende fora da Madeira, por razões óbvias. Dificilmente teria leitores fora do círculo mais familiarizado com o quotidiano regional. Mas valeria a pena conhecê-lo, mesmo assim. É um gesto raro e corajoso, protagonizado por dois cavaleiros andantes do inconformismo madeirense: Gil Canha e Eduardo Welsh. E para abrir o apetite, permito-me citar alguns excertos de uma crónica da secção Cartas de Cuba, que enviei para a terceira edição do Garajau, amanhã nas bancas do Funchal e arredores.

O prisioneiro de si mesmo
Percebo que muita gente queira ver Jardim pelas costas (...) e persista em alimentar a ilusão de que só com a sua passagem à reforma, na cena madeirense, será possível a nossa terra enfrentar o futuro a partir de bases novas, mais saudáveis, mais democráticas e mais libertas da hipoteca de um poder pessoal asfixiante e autoritário.
Mas, como todas as ilusões, esta tem um preço: se Jardim saísse de cena no momento escolhido por ele, deixando atrás de si um rasto de homem invencível e providencial, a Madeira estaria condenada por tempo indefinido a viver à sombra do seu mito, ainda mais prisioneira dele do que foi até agora.
Se Jardim saísse de cena com a marca da infalibilidade política, entregando a gestão dos custos do seu reinado aos que lhe sucedessem na governação (fossem eles quais fossem), correríamos o risco de o ver lembrado e desejado como uma espécie de D. Sebastião. Ora sabemos como o sebastianismo se tornou uma doença mórbida que alimenta a fixação dos portugueses na fatalidade, na impotência, na descrença ou na espera de alguém que possa resolver, por artes mágicas, os seus problemas.
A Madeira só se libertará de Jardim e do jardinismo se souber assumir a necessidade da sua rejeição, se perceber finalmente que o rei vai nu, que o sistema implantado na Região ao longo dos últimos vinte e sete anos é um sistema podre, autoritário e clientelista, uma rede de interesses em que um punhado de parasitas e sanguessugas fez do enriquecimento fácil e do servilismo político à vontade do chefe o único modo de vida com sucesso garantido no arquipélago.
A Madeira só se libertará de Jardim se souber e quiser exprimi-lo através do voto popular – por mais condicionadas que estejam (como efectivamente estão) as condições de exercício da democracia na Região. E a verdade é que hoje são cada vez mais visíveis os sinais de desencanto e cansaço com o poder jardinista. As próximas eleições regionais constituem, por isso, uma oportunidade de mostrar, pelo menos, um claro cartão amarelo, não apenas a Alberto João Jardim mas ao sistema que ele fabricou – e de que se tornou, finalmente, prisioneiro.
Já se percebeu que Jardim não sai, apenas porque não pode sair. Porque não tem saídas, porque se tornou prisioneiro de si mesmo e da rede que teceu à sua volta. Encerrado na sua Bastilha de cartão e de cordel, rodeado pelos seus soldadinhos de chumbo, Jardim está condenado a ver a ilusão do jardinismo esboroar-se à sua frente. Está nas mãos nos madeirenses libertarem-se definitivamente disso.

Vicente Jorge Silva

Por uma boa causa

Fico sempre intrigado quando uma mulher diz que se vai despir por uma boa causa. Acho curioso, por exemplo, que essa pergunta seja habitual em questionários de vedetas. Reparem: a resposta nunca é negativa. "Considera a hipótese de se deixar fotografar nua?", "Sim, se for por uma boa causa". O que deixa implícito que a interrogada já considerou o assunto, já ponderou os prós e os contras e concluiu, sim, sim, sem dúvida, estou disposta a despir-me toda à frente de pessoas que não conheço e aparecer em público aos olhos de muitos mais desconhecidos e alguns conhecidos, como o avô, a mãe e o vizinho do 2º-esq que costuma mandar-me uns olhares estranhos.

Estranho é que esta pergunta não seja feita a homens. Mesmo em revistas especializadas em bikinis, literatura light e densamente documentadas sobre todas as vantagens de um evax ultra fina e segura, a questão não é colocada a homens, o que nos faz pensar. Não pode um homem despir-se por uma boa causa? Porque não? Se me apetecer despir todo para que o Benfica ganhe o campeonato, não haverá uma revistinha disposta a publicar o exclusivo? E ser estritamente para mulheres é sintoma misógino ou, ao contrário, um último reduto severamente protegido por um movimento secreto de emancipação feminina? O mistério continua.

O facto de ser uma área onde "menino não entra" torna-se ainda mais perturbante quando pensamos no leque de causas pelas quais as mulheres parecem dispostas a despir-se: do cancro da mama à venda de peles de animais, passando por campanhas que incentivam a beber leite ou manifestações contra a guerra, é notável observar que há sempre uma ou um milhar delas dispostas a despir-se pela boa causa. Infelizmente, a vida tem ironias tramadas. Ou muito me engano - e uma vez que as guerras são normalmente feitas por homens - ou, se continuar a haver milhares de mulheres nuas contra a guerra, é provável que esta continue. Com um sorrisinho nos lábios.

Infelizmente, e apesar da diversidade, ainda há boas causas que não mereceram o privilégio de ter quem se dispa por elas. Interrogo-me ansioso: para quando o dia em que Ferreira Leite fará topless em nome do défice, Odete Santos marcará posição pelo Teatro de Revista, para quando um Morais Sarmento nu pela subida de audiências do canal 2, Durão despido pelo TGV ou Ferro em pelota pela inocência de Pedroso? Até porque nem todos os políticos têm votado esta matéria ao ostracismo. Aliás, está a chegar a altura do ano em que Alberto João Jardim apresenta ao país as suas novas ceroulas. Embora mantenha segredo sobre as causas por que o faz.

Contrariando o eventual nojo que o leitor possa estar a sentir pelo parágrafo anterior, aqui vai uma singela imagem para desopilar: Marisa Cruz nua para levantar a moral portuguesa. Notem bem que nem sempre as palavras "nua" e moral" surgem tão harmoniosamente na mesma frase.

O que me leva à definição dos dicionários Porto Editora para a palavra "causa". Das duas uma, ou é tudo o que determina a existência de uma coisa ou acontecimento; ou é tudo aquilo que produz um efeito. Ora bem, a mim sucede que a visão de mulheres sem roupa provoca, de facto, um efeito evidente - mas atormenta-me pensar que tal ocorrência possa não corresponder exactamente ao fim que as ditas cujas tinham em mente quando se despiram. Deixará a causa de ser boa por causa disso? Deixo esta pergunta para reflexão.

Luís Filipe Borges

Duzentos anos depois de Kant

Passam dois séculos sobre morte de Imanuel Kant (1722-1804), um dos maiores e mais influentes filósofos da modernidade, que como nenhum outro deu estatuto filosófico ao Iluminismo e que consolidou as bases do racionalismo, da autonomia individual, da moral universal, dos direitos humanos, do Estado de Direito e mesmo da ideia da “cidadania universal”.
Os centenários do nascimento e da morte são desde há muito ocasiões privilegiadas para revisitar e reavaliar os grandes pensadores do passado (e não só). O Público de hoje dedica atenção devida ao autor da “Crítica da Razão Pura” (ed. revista, 1787). Duzentos anos depois do desaparecimento, na antiga cidade alemã de Koenigsberg, no Báltico oriental (hoje o enclave russo de Kaliningrad), onde nasceu e passou toda a vida, o seu pensamento mantém-se incontornável, porventura engrandecido. Se existem filósofos cujas ideias tenham tido influência relevante na esfera da “vida prática”, entre eles avulta seguramente o idealismo kantiano, ainda mais visível depois do eclipse do pensamento marxista, por natureza dotado de uma inerente vocação para a acção.
Na Internet está tudo sobre o grande filósofo. A título de exemplo: esta excepcional página de Steve Palmquist, em inglês, e esta da "Sociedade Kant Brasileira", em português, bem como este novíssimo site da Universidade de Colónia, com um "Kant-Korpus" on line, em alemão.

Vital Moreira

Crime sem pena

A proposta hoje feita na Visão pelo Prof. Freitas do Amaral sobre a questão do aborto verbaliza a ideia de despenalização sem descriminalização (para além dos limitados casos já contemplados no Código Penal), mediante o recurso a uma presunção de "estado de necessidade desculpante" em favor da mulher, presunção que só seria elidida por "prova concludente em contrário" do Ministério Público.
No entanto, não é provável que a sugestão tenha êxito, devendo ser rejeitada tanto pela direita, que não quer despenalização nenhuma, como, sobretudo, pela esquerda, que quer afastar desde logo o estigma da criminalização do aborto, o qual permaneceria como ameaça sobre as mulheres, dada a margem de incerteza sobre a eficácia da tal presunção (para além da humilhação do próprio procedimento penal). Tal como noutras matérias, aparentemente os tempos não são propícios para a metodologia do "consenso possível".
É pena, sobretudo para as vítimas da actual situação.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

"Boticário de província"

O meu artigo na 3ª feira no Público sobre as restrições legais na criação de novas farmácias desencadeou a fúria trenga de um “boticário de província”, o qual, depois de me acoimar contraditoriamente de «comuna empedernido» e «liberal empedernido», entre outros mimos – como certa gente pensa que o ataque pessoal gratuito pode substituir a vacuidade dos argumentos próprios!... –, se esforça depois ingloriamente para alinhar duas ou três considerações irrelevantes para defender o actual regime.
É fácil desmontar o débil aranzel, o qual de resto silencia os pontos mais comprometedores da situação existente (como a insuficiência de farmácias, os muitos casos de propriedade fictícia e o seu valor especulativo no mercado).
Assim, como refere hoje mesmo o Diário Económico, um estudo encomendado pela Comissão Europeia revela que Portugal está entre os países onde o acesso à actividade farmacêutica (incluindo o regime de criação de farmácias) é dos mais restritivos. Tirando o caso especial da Suécia, onde as farmácias constituem um monopólio do Estado, trata-se de países do sul da Europa, onde a tradição corporativista e proteccionista é mais forte. Nos países onde essas restrições são maiores, nomeadamente as de carácter geográfico e populacional, elas estão a ser atacadas pelas respectivas autoridades da concorrência (Espanha, Itália, por exemplo).
O argumento de que essas restrições visam garantir a existência de farmácias no interior e nas zonas rurais é perfeitamente hilariante. É evidente que só existem candidatos nessas zonas porque elas são rentáveis mesmo aí. A abolição das restrições só faria aumentar o seu número. Há muitos farmacêuticos que gostariam de ter a sua farmácia, mesmo com reduzida rentabilidade.
Nas minhas controvérsias sobre este assunto costumo lançar um desafio aos defensores do “status quo”: por que não um referendo a todos os farmacêuticos sobre o assunto?
Não conheço nenhum beneficiário de um privilégio que não defenda que não se trata de privilégio, mas antes de uma forma de defesa do “interesse público”. De vez em quando, os privilégios corporativos podem ter certas vantagens sociais como "efeitos colaterais". Neste caso, nem isso. O malthusianismo na criação de farmácias não favorece ninguém, a não ser os actuais proprietários, com prejuízo de toda a gente, designadamente os demais farmacêuticos, o público em geral e o Estado. Pura vantagem particular; pura lesão do interesse público.
A abolição dos referidos limites só teria dois efeitos: (i) aumentar o número de farmácias e fomentar a competição entre elas, para bem do público; (ii) diminuir o valor especulativo do trespasse de farmácias, facilitando a sua transmissão e pondo fim a um escandaloso enriquecimento sem justa causa dos seus proprietários.
Desnecessário será dizer que prefiro um mercado bem regulado do que um arcaico corporativismo protegido, que é o que temos no sector farmacêutico desde o Estado Novo. Como deixa entender o referido estudo da Comissão Europeia, este regime não tem muito futuro à sua frente e os seus beneficiários sabem-no. Por isso perdem a tramontana sempre que alguém mostra a sua irracionalidade.

Vital Moreira

«O novo espaço público dos blogues»

Numa das apostilas ao seu original artigo de hoje no Diário de Notícias sobre a regulação do "direito ao amor", Miguel Poiares Maduro, hoje no Luxemburgo como "advogado-geral" no Tribunal de Justiça da Uinão Europeia, discorre com propriedade sobre os blogues nacionais.
Vale a pena registar a sua opinião neste mesmo "espaço público" a que ele se refere:

«Os Blogs
Nesta coluna de "blogs" nunca falámos dos verdadeiros blogs, os originais! E, no entanto, este é um dos fenómenos mais interessantes dos últimos anos em Portugal: a emergência de uma nova comunidade crítica e de uma opinião livre de uma marca política partidária. Sejamos honestos, muita da melhor opinião que se escreve em Portugal hoje em dia encontra-se nos blogs. Importados dos Estados Unidos, começaram por trazer uma nova opinião de direita ao espaço público português, mas hoje parecem ser os blogs de esquerda que estão mais activos (a isso não será estranho o facto de, felizmente, muitos dos bloguistas de direita terem passado a colaborar, igualmente, na imprensa escrita, o mesmo não tendo sucedido, da mesma forma, à esquerda). Se quisesse ser provocador, diria que a direita chegou primeiro mas se aburguesou e que a esquerda chegou mais tarde mas é mais resistente. O que mais admiro no espaço público dos blogs, no entanto, é que a defesa de um discurso ideológico marcado e transparente coincide com a manifestação de uma notável liberdade face aos campos tradicionalmente definidos pelo discurso partidário e da opinião escrita dominante em Portugal. Simultaneamente, o assumir claro de um debate ideológico não impede a emergência de um notável respeito recíproco entre bloguistas com posições bem diferentes (que, inclusive, desenvolvem amizades e se citam mutuamente). Se há um verdadeiro espaço público em Portugal (no sentido Habermasiano de procura de um espaço de discurso universal, livre e transparente) ele encontra-se, paradoxalmente, no espaço virtual da nossa Internet.»

O império do futebol

Num jantar em casa de amigos brasileiros, a residir temporariamente em Portugal, fiquei estupefacta com esta revelação: a maior surpresa que tinham tido quando há dois anos aqui desembarcaram foi o excesso de futebol no nosso quotidiano. Tendo em mente o relevo do futebol no Brasil, até pensei que não tinha ouvido bem. Pedi que repetissem. Era isso mesmo. Confirmado. Adivinhando a razão do meu espanto, explicaram-me:
“Os brasileiros entusiasmam-se até mais do que vocês, mas com um jogo, um campeonato. No final, desligam, vão à vida. Aqui é o que conta no dia do jogo, no dia seguinte, todos os dias. São os jornais que se vendem. É a obsessiva presença na televisão. É o peso que tem na vida política. É o que se discute no café, em casa, no autocarro, na escola, onde quer que seja. É o tema sobre o qual mais pessoas têm mais informação. É aquilo que mais vos mobiliza, vos apaixona, a toda a hora, sempre. Dir-se-ia que o futebol é a única causa verdadeiramente nacional em Portugal”.
Ontem, ao ouvir o relevo dado a umas declarações de Pinto da Costa ao vivo (sem Bobby e sem Tareco), repetidamente pré-anunciadas com um chamativo «Ao Ataque» no noticiário principal da RTP 1, “a televisão de serviço público”, lembrei-me desta história. Sabe-se lá porquê!

Maria Manuel Leitão Marques

Se fosse eu, inquietava-me

1. Mudar o treinador que ganha?
Depois de Jorge Coelho se ter disponibilizado há dias para liderar o PS num futuro não especificado, foi agora a vez de João Soares anunciar também a sua pré-candidatura, este já com calendário para o desafio. Curiosa é a justificação. Segundo ele, «a questão da liderança do PS deve colocar-se no final deste ano, após o PS sair vitorioso das eleições europeias e regionais».
Segundo as regras da experiência, se uma equipa ganha não há razão para mudar de treinador. Pelos vistos no PS esta regra não goza de universal acolhimento.

2. Alfobre de candidatos
No PS não faltam candidatos autopropostos para tudo e mais alguma coisa. «Estão a acontecer coisas esquisitas no PS», diz Clara Ferreira Alves a propósito disso. Ela carrega naturalmente nas tintas. Mas se eu fosse do partido inquietava-me. Mesmo não sendo, preocupo-me...

3. Sousa Franco?
Parece confimar-se que a lista do PS para as eleições europeias vai ser encabeçada por Sousa Franco, que foi Ministro das Finanças do primeiro Governo de António Guterres, tendo saído bastante zangado. Há-de haver alguma lógica convincente nessa escolha. Mas como ela não está à vista, seria bom que alguém a explicasse...

Vital Moreira

Post Scriptum

Diferentemente do que pressupõe o Post Scriptum (um blogue recente, infelizmente anónimo), quando diz – benevolamente, aliás – que o nosso CN é «um blogue tipicamente PS», nós não somos todos do PS, nem sequer a maioria. De resto, não nos importamos de o ver qualificado como «livre, desorganizado, amigável». É para ser assim mesmo. Depois, cá por mim, entendo que acreditar «em princípios e ideias» não é «péssimo para quem quer ser governo». Bem pelo contrário, é a falta deles e delas, e de políticas correspondentes, que costuma ser a receita para uma efémera passagem por S. Bento. Por último, embora não sendo prosélitos de nenhuma missão, acredito porém que a convicção nos princípios e a razão das ideias constituem a melhor alavanca para o persuasão dos outros. Não escrevemos para os peixes...

Maria Manuel Leitão Marques