quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Pandemia (32): Vale mesmo a pena?

1. Uma eventual obrigação de instalação da app StayawayCovid - tal como o Governo anunciou que vai propor à AR - tem suscitado objeções de constitucionalidade, por uma tal medida se revelar uma excessiva invasão da privacidade, não passando, portanto, o teste constitucional da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais. 

Não me parece, porém, um argumento convincente, visto que, se tal medida se mostrasse eficaz para levar as pessoas dos grupos críticos selecionados a instalá-la e assim combater eficazmente a difusão da pandemia, então seria de considerar que o elevado fim coletivo em vista bem pode justificar o moderado sacrifício do valor pessoal em causa.

2. O problema que se pode sucitar é de saber se essa medida passa o teste constitucional da sua adequação ao fim em vista, tendo em conta especialmente a previsível dificuldade da sua implementação e do seu enforcement. Para além de que a obrigação só vincularia obviamente quem tem smartphone, não se vê como é que ela poderia ser implementada eficazmente em relação a estes. 

Como é que seria? A polícia teria o poder de exigir às pessoas a exibição dos seus aparelhos e a prova de instalação da app? E teria também o poder de consultar as listas de infetados e exigir-lhes a prova de que registaram a infeção na app? E a fiscalização policial seria feita na rua, nos cafés e noutros lugares públicos? Poderia entrar nas escolas e locais de trabalho para esse efeito? E quantos efetivos seriam precisos para uma fiscalização razoavelmente ampla?

Tudo indica, portanto, ser altamente improvável - por demasiado intrusivo e oneroso - um enforcement minimamente relevante dessa obrigação, suscitando além do mais acusações de seletividade e de discriminação por parte das pessoas apanhadas em falta. Ora, não havendo meios de fazer cumprir essa obrigação em larga escala nos grupos-alvo, ela deixa de satisfazer o critério da adequação ao fim em vista, pelo que deixa de se justificar a restrição à liberdade pessoal que ela impõe.

sábado, 10 de outubro de 2020

Aplauso (17): Travar a fragmentação do território


(Número de freguesias; fonte Pordata)

1. Ainda bem que, segundo o Expresso (que se tornou um canal de comunicação suplementar do PR...), o Presidente da República vai vetar a eventual lei de recriação de centenas de freguesias, que aqui denunciei como uma manobra de oportunismo político de grosso calibre, em vista das eleições locais do próximo ano.

A confirmar-se este anúncio, oxalá esta travagem da lei por Belém consiga o mesmo efeito que há mais de 20 anos o Presidente Jorge Sampaio conseguiu, ao parar a irresponsável deriva demagógica para a criação de dezenas de novos municípios, nessa altura também apoiada pelo PS (a que naturalmente me opus decididamente). 

Eis um campo privilegiado para o exercício do poder de veto presidencial, no cerne do poder moderador dos excessos das maiorias parlamentares: evitar as derivas políticas que ameaçam desestruturar o território.

2. Só comparavel, como erro político, com a promessa  de 2015 de repor as 35 horas de trabalho semanal na função pública (que foi levada a cabo, com enormes custos orçamentais e alargando o fosso entre a função pública e o trabalho no setor privado), esta proposta de fragmentação do território (que MRS teria qualificado, justamente, como "loucura" política), iria inutilizar em grande parte uma reforma do território que era necessária e é globalmente digna de aplauso, conferindo dimensão crítica a muitas freguesias que a não tinham.

Para além dos seus custos orçamentais, a fragmentação da freguesias é um atentado qualificado à racionalidade e eficiência da administração local.

3. Se o veto do Presidente merece todo o aplauso, já é puramente farisaica a resposta do Ministério da Reforma do Estado, argumentando que a proposta de lei se limita a estabelecer o quadro geral de criação de freguesias e que sua criação efetiva dependerá dos interessados, das assembleias municipais e da AR, .

Torna-se evidente que a lei é feita para a "desbunda" e que, logo que ela fosse aprovada, haveria uma corrida à criação de todas as freguesias possíveis, sem que ninguém tivesse a coragem para travar a vaga populista, limitando-se a  AR no final a carimbar as propostas. 

Como se mostrou no caso dos municípios há um quarto de século, o mal nestas coisas de fragmentar o território é abrir uma brecha no dique de contenção. Depois, é "fartar vilanagem".

4. Se a proposta de lei do Governo só merece ser rejeitada, o PCP ainda a acha pouco ambiciosa, defendendo que todas as freguesias extintas por agregação em 2013 devem ser restauradas, se tal for a vontade das populações interessadas. Mas esta proposta do PCP só pode qualificar-se como aquilo que é: irresponsabilidade política de primeiro grau. 

Por vontade do PCP, voltaríamos às mais de 4 000 freguesias do antigo regime! Que importa que muitas delas não tivessem o mínimo de população e de recursos para sobreviverem, se isso significasse mais umas dezenas de freguesias sob gestão comunista? 

Cada vez mais confinado na gestão municipal, o PCP aposta num último reduto de gestão paroquial. E o Governo serve de prestimoso comissário...

Não com os meus impostos (3): Haja decência!

Um dirigente sindical queixa-se de que o Governo não avança com nenhuma proposta de aumento das remunerações na função pública. Mas só pode lamentar-se a insistência dos sindicatos nesse aumento e louvar-se a sensatez política e orçamental do Governo em recusá-lo. 

Quando o défice orçamental dispara sob o impacto financeiro da pandemia e da crise económica e quando a generalidade dos portugueses fora do Estado sofrem perda de rendimentos, seria um verdadeiro escândalo político e social que houvesse aumento das remunerações do setor público, à custa dos impostos de todos e de mais endividamento público.

Haja decência!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Antologia do nonsense político (13): Moeda açoriana!

O porta-voz do Livre nos Açores e candidato às próximas eleições regionais propõe nada menos que a criação de uma moeda regional nos Açores, paralela ao Euro, invocando os seus efeitos positivos sobre o emprego, o crescimento económico e o desenvolvimento verde! 

Proposta original, pode ser; tonteria política, de certeza que é! 

Resta saber se este milagre de engenharia monetária e de afirmação da soberania monetária regional é subscrito pela direção nacional do Partido, que nas eleições legislativas nacionais do ano passado conseguiu eleger uma deputada, entretanto perdida.

Assim se vão descredibilizando, pelo ridículo, os partidos políticos...

Um pouco mais de jornalismo, sff (17): Comparação disparatada


Nesta notícia diz-se que o apoio do Estado ao lay off das empresas durante a pandemia - que permitiu manter centenas de milhares de empregos e salvar muitas empresas - é muito inferior ao montante da ajuda pública ao Novo Banco. 
A notícia, porém, não se limita a comparar dimensões incomparáveis, pois, no primeiro caso, só estão contabilizadas as despesas até junho, enquanto no segundo trata-se do montante da ajuda ao novo banco durante o ano. O mais grave é que a notícia, induzindo deliberadamente os leitores em erro, se "esquece" de dizer que, enquanto o primeiro valor é despesa efetiva do Estado, o segundo é um empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, que vence juros e que terá de ser reembolsado, logo que o Fundo tenha recursos suficientes através das contribuições dos bancos. 
Trata-se, portanto,  de uma comparação disparatada, imprópria de um jornalismo responsável.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Est modus in rebus (1): O caso do Presidente do Tribunal de Contas

1. Confesso que me irrita cada vez mais, como cidadão, o excesso verbal, o sectarismo ideológico, os ataques pessoais e a leviandade de juízos no debate político entre nós, de que é caso exemplar o debate sobre a nomeação do novo presidente do Tribunal de Contas, onde valeu tudo e onde não faltaram as acusações de "despotismo governamental", de "conspiração" entre o PM e o PR contra o regime, sem falar na tentativa de enlameamento pessoal do novo Presidente. Um comentador mais incontido foi ao ponto de ver neste episódio a prova da "podridão" do regime! 

Mas nada disto tem qualquer fundamento.

2. É certo que a Constituição não estabelece explicitamente nenhuma limitação dos mandatos do presidente do TdC - mas devia fazê-lo. O princípio essencial do Estado de Direito é o da independência dos juízes face ao poder político (ou qualquer poder externo), o que exige que um juiz não possa sentir-se pressionado na sua atuação para obter a recondução no cargo por parte dos órgãos políticos competentes.

Tal é de resto a regra constitucional em relação aos demais juízes, que ou são de nomeação vitalícia, como sucede com os dos tribunais judiciais e administrativos, ou têm um único mandato, como sucede com os do Tribunal Constitucional.

Por consequência, a solução do mandato único é a mais conforme aos princípios constitucionais.

3. Não havendo nenhuma norma explícita a proibir a recondução, nada impede, porém, o Primeiro-Ministro - a quem cabe a indigitação ao Presidente da República - de adotar esse critério, desde que o anuncie publicamente e se comprometa a respeitá-lo. 

Foi, aliás, o que sucedeu. O facto de até agora não ter sido assim é irrelevante. Nunca é tarde para mudar para melhor. Só há que elogiar o PM pela decisão a favor de um mandato único, esperando que ela inaugure uma prática política mais consentânea com os princípios constitucionais.

A alternativa ao mandato único é a indefinição quanto ao número de mandatos, que convida ao cambalacho político ou pessoal ou à inércia e à manutenção em funções de quem lá esteja, indefinidamente, até o titular se decidir a sair, como já sucedeu. Mesmo que não houvesse o referido princípio da independência dos juízes, há sempre o princípio republicano que afasta a ocupação de cargos públicos por tempo indeterminado.

4. Todavia, uma vez adotado, e bem, o princípio do mandato único, torna-se conveniente alargar a sua duração, atualmente limitada a quatro anos, talvez por equiparação ao mandato-regra dos governos. A referência pode ser a da duração do mandato do PR (cinco anos), do das autoridades reguladoras independentes (6 anos) ou do dos juízes do TC (nove anos).

Por isso, justifica-se incluir esse tema na próxima revisão constitucional, no sentido de : (i) estabelecer explicitamente o mandato único; (ii) ampliar a duração do mandato; (iii) acabar com a atual possibilidade de exoneração do cargo por proposta do PM e decisão do PR (hipótese nunca verificada), que contraria o essencial princípio constitucional da irremovibilidade dos juízes.

Adenda

Um leitor irritado com a expressão latina pergunta porque não utilizo um equivalente em Português. A expressão latina significa literalmente "haja moderação nas coisas!" e o melhor equivalente poderia ser algo como "um pouco de moderação, por favor!". Mas não é a mesma coisa!

Adenda 2

Outro leitor defende que o anterior Presidente do TdC só não deveria ter sido reconduzido se tivesse desempenhado mal o cargo, o que não é manifestamente o caso. Mas isso só seria assim, se se entendesse, erradamente, que quem ocupa um cargo público tem direito à recondução após terminar o mandato (o que poderia levar à sua permanência vitalícia no cargo...). Quando muito pode ter essa expectativa pessoal, mas não há nenhuma obrigação de recondução. Se a Constituição não proíbe a recondução (apesar de ser inconsistente com o princípio da independência judicial), muito menos a impõe.

Corporativismo (16): Coutadas profissionais

1. Este pedido da organização regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, tendente ao encerramento de uma empresa de cobrança de dívidas, por alegada violação do exclusivo de "atos próprios" dos advogados (definidos na Lei nº /2004, de 24 de agosto), pode ser uma boa ocasião para debater o fundamento invocado, quer em termos de liberdade profissional (que é um direito fundamental protegido pela Constituição), quer em termos de concorrência na prestação de serviços profissionais qualificados numa economia de mercado (que é baseada numa e noutra).

Tradicionalmente, a crítica às Ordens profissionais apontava sobretudo as restrições ao acesso às profissões e a consequente limitação da "concorrência endógena", que a chamada Lei-Quadro das ordens profissionais de 2013 (Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro) veio tentar reduzir, sem o ter conseguido inteiramente (até porque foi logo derrogada pelos estatutos de algumas Ordens, incluindo a dos advogados). Todavia, a questão do protecionismo profissional, através da excessiva reserva de atividades, pode ter efeitos ainda mais graves, pois o monopólio profissional injustificado de uns significa impedimento profissional para todos os outros, eliminando a concorrência interprofissional.

2. Na verdade, ao longo deste anos veio-se ganhando uma consciência mais aguda dos custos dessas restrições, não apenas quanto ao sacrifício indevido de direitos fundamentais, mas também quanto aos efeitos negativos, quer sobre o desempenho da economia, que é crescentemente baseada nos serviços e na "servicização" geral da atividade económica, quer sobre o welfare dos utentes de serviços.

Ainda há pouco anos, a OCDE, em colaboração com a Autoridade da Concorrência nacional, elaborou e publicou um relatório altamente crítico sobre as restrições existente em algumas profissões autorreguladas em Portugal, incluindo a advocacia, o qual era acompanhado de recomendações de correção da situação, em alguns casos radicais, que não tiveram qualquer seguimento político ou legislativo.

Por isso, é tempo de pôr fim à "conspiração de silêncio" (em que este blogue não tem manifestamente participado, como se vê pelo número de posts nesta série) e de abrir um debate político e legislativo sobre as restrições à liberdade profissional e à concorrência nas profissões autorreguladas (e nas outras...).

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Este país não tem emenda (23): Retrocesso

1. Respondendo aos clamores localistas, o Governo vai restaurar muitas das freguesias agregadas na reforma da geografia das freguesias em 2013, abdicando das vantagens da consolidação territorial e do reforço dos meios e recursos dessas autarquias locais de base. E não se trata de alguns ajuatamentos pontuais, estando prevista a restauração de nada menos de 600! Puro populismo político, com vista às eleições autárquicas do próximo ano!

Vai, portanto, aumentar o número de autarcas e a despesa pública nas novas coletividades territoriais, sem nenhum ganho para os habitantes, salvo o retorno das "suas" freguesias. De resto, uma vez aberta a "caixa de Pandora" das reivindicações territoriais, nada nos garante que na AR ao número de freguesias restauradas não venha aumentar ainda mais...

2. Infelizmente, o problema da descentralização territorial em Portugal (para além da falta das autarquias regionais constitucionalmente previstas) não está em haver em freguesias a menos mas sim municípios a mais, dado o significativo número de municipios com menos de 5 000 habitantes (quase cinco dezenas!) e, portanto, sem meios e recursos suficientes para desempenharem as suas missões, tanto mais que em Portugal as competências municipais não são diferenciadas conforme a dimensão e meios disponíveis dos municípios, como sucede em tantos outros países.

Já em 2013 o próprio Governo PSD/CDS e a sua maioria parlamentar meteram na gaveta o programa de assistência financeira que exigia a redução substancial do número de autarquias locais, sem distinguir entre freguesias e municípios, cortando somente no número de freguesias. Desde então a questão da agregação de municípios nunca mais voltou à agenda política, nem sequer ao debate político - uma verdadeira conspiração de silêncio. 

Decididamente, por mais necessárias que sejam, há reformas impossíveis entre nós.

Adenda

Um leitor acrescenta um argumento importante: «É um contrassenso a multiplicação de freguesias, quando muitas das que existem têm muitas carências que limitam o seu desempenho: intalações, equipamento, remuneração dos presidentes das juntas. Era aí que o Governo devia investir!» Tem toda a razão!

Ai, o défice (12): Défice bom versus défice mau

1. Quando oiço um governante dizer que o défice não é um "preocupação central" nas opções orçamentais, receio sempre que seja um understatement e que a orientação é mesmo para gastar mais sem nenhuma preocupação.

Ora, por mais voltas que se dê, défice é mais dívida, que paga juros e tem de vir a ser paga a seu tempo. E se a dívida dispara para níveis demasiado elevados, não são somente os correspondentes encargos que aumentam, podendo também criar receios nos investidores e dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida.

As regras de disciplina orçamental da UE estão suspensas por causa da pandemia, mas hão-de vir a ser repostas e, então, quanto mais elevada for a dívida, maior será o esforço para reduzir. Mais dívida é o caminho direto para mais impostos no futuro.

2. É evidente que na situação de recessão económica por causa da pandemia, pode ser virtuoso o défice necessário para apoiar a economia e manter empresas viáveis em funcionamento até que a crise passe, assim como para aumentar o investimento público, que tão maltratado tem sido na política orçamental, sacrificado à prioridade dada ao aumento da despesa corrente ao longo destes últimos anos.

Já não vejo nenhuma justificação económica para aumentar a despesa pública e o défice com aumentos extraordinários de salários no setor público e das pensões, primeiro porque o consumo vai continuar retraído enquanto durar a incerteza da pandemia e depois porque grande parte dele se dirige a aumentar as importações, sem impacto sobre a economia e degradando o saldo da balança comercial

Além disso, não é socialmente justo (pelo contrário) que quem depende do Estado tenha aumento de rendimentos, à conta do défice, quando a generalidade dos portugueses têm redução dos seus.

Défice orçamental para investimento, sim; défice para aumentar a despesa corrente e para agravar assimetrias sociais, não!

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Pobre Língua (19): Um pouco mais de zelo, sff

1. Que no falar corrente muita gente diga "ir de encontro a" (=ir contra, chocar contra) em vez de "ir ao encontro de" (= caminhar na direção de, concordar com) é lamentável. Mas que tal confusão conste com alguma frequência na imprensa (hoje no JN), é inaceitável. Por vezes, o erro pode ser assaz embaraçoso, como acontece aqui.

Com efeito, neste caso a notícia pretende dar conta de um comunicado ministerial, podendo induzir a ideia de que o erro provém do comunicado, o que não é verdade, como se pode ver pelo texto oficial deste, onde tal frase não consta. Portanto, enquanto o comunicado diz que a nomeação do Procurador está de acordo com a deliberação do CSMP, a infiel versão jornalística do comunicado diz que a nomeação contraria a tal deliberação. Exatamente o oposto!

2. Desde há muito que lamento o desaparecimento dos antigos revisores das redações dos jornais, que corrigiam não somente as "gralhas" tipográficas, mas também os lapsos ortográficos e gramaticais dos textos a publicar. Como parece que as escolas deixaram de ensinar Português a sério, as probabilidades de "pontapés na Língua" aumentaram muito.

Decididamente, impõe-se um pouco mais de zelo com a Língua na imprensa

+ Europa (30): Adesão à Convenção Europeia de Direitos Humanos

É de saudar a retoma do dossiê da adesão da UE à CEDH, agora anunciada em comunicado conjunto do Conselho da Europa e da Comissão Europeia, visto que essa adesão constitui um mandado constitucional do Tratado da União Europeia há mais de 10 anos (Tratado de Lisboa). Importa superar os obstáculos levantados pelo Tribunal da Justiça da União ao acordo inicialmente estabelecido entre a União e o Conselho da Europa há alguns anos.

Quanto a CEDH perfaz 70 anos (1950) e a Carta de Direitos Humanos da União completa 20 anos (2000), eis uma conjunção oportuna para retomar esse procedimento.

Se todos os Estados-membros da UE estão vinculados à CEDH e à jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) em Estrasburgo, não há nenhuma razão para a União não estar sujeita às mesmas obrigações. Não são somente os Estados-membros que podem eventualmente infringir os direitos protegidos pela CEDH através da sua legislação ou ação administrativa.

No bicentenário da Revolução Liberal (20): "De súbditos a cidadãos"


No próximo dia 15 de outubro, vamos falar da conquista e construção da cidadania em Portugal desde 1820 à atualidade, neste colóquio integrado no programa das comemorações do bicentenário da Revolução Liberal organizadas pelo Município do Porto (assim como no programa de investigação da Universidade Lusíada-Norte sobre constitucionalismo eleitoral em Portugal).

O programa do colóquio pode consultar-se aqui: http://www.ulusiada.pt/constitucionalismoeleitoral/#links 

Pela minha parte vou abordar o seguinte tópico: "Cidadãos somos" – A principal conquista da Revolução Liberal. [A frase entre aspas pertence a uma proclamação de Garrett em 1820, como quintanista de Direito da Universidade de Coimbra, encabeçando uma luta pelo direito de voto dos estudantes nas eleições cosntituintes de dezembro desse ano.]

Aplauso (16): Ética republicana, reclama o PR

1. Fez bem o Presidente da República em reclamar o respeito da ética republicana nas comemorações dos 110 anos do 5 de de outubro, não somente pela pertinência da data, mas sobretudo para assinalar que os titulares de cargos públicos, assim como os funcionários públicos, não estão somente vinculados pela lei, mas também pela deontologia republicana, esteja ou não vazada em códigos de conduta formais. 

Ao contrário do que um ministro uma vez proclamou, a ética republicana é mais do que o cumprimmto da lei, desde logo porque a lei deixa aos decisores públicos uma larga margem de poder discricionário, que pode ser objeto de desvios ou de abusos, se não houver outras normas a respeitar.

2. A ética republicana tem a ver essencialmente com os seguintes aspetos: (i) a primazia absoluta do interesse público sobre os interesses privados; (ii) a separação estrita entre cargos públicos e interesses privados e a prevenção rigorosa de conflitos de interesse; (iii) o não aproveitamento de cargos públicos para benefício pessoal ou de familiares ou amigos, rejeitando o favoritismo e o nepotismo; (iv) a gestão prudente e parcimoniosa dos dinheiros públicos e do património público (v) o cumprimento escrupuloso das obrigações públicas, nomeadamente no plano fiscal.

A ética republicana é, antes de tudo, uma ética de serviço público.

3.  Tal como certas profissões estão sujeitas a uma deontologia profissional própria, que os profissionais devem aprender na sua candidatura à profissão, assim também o acesso a cargos públicos deveria passar por uma avaliação do seu conhecimento da deontologia do serviço público.

Uma errada perspetiva da função pública, promovida pela chamada "nova gestão pública", tendeu a reduzir a relação de emprego público a um normal contrato de trabalho e a equiparar os cargos públicos a cargos de gestão empresarial, esquecendo as especificidades da coisa pública. Ao contrário do que sucede na gestão privada, os funcionários e titulares de cargos públicos não cuidam dos seus interesses, sendo fiéis curadores do interesse público.

Urge resgatar a ética de serviço público, à luz da ética republicana da virtude ao serviço do interesse geral.

Adenda

Um leitor entende que os funcionários públicos e titulares de cargos públicos deveriam prestar, na sua tomada de posse, um juramento de cumprimento não somente da Constituição e da lei, mas também do código de ética do serviço público, ficando, portanto, vinculados também por um compromisso moral. Concordo.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Ainda bem! (6): O "mea culpa" de um antiausteritário

1. Em 2011 Olivier Blanchard, então economista-chefe do FMI, foi um dos economistas que sufragaram a tese de que a austeridade orçamental imposta pela troika a Portugal iria sufocar a capacidade de crescimento e de recuperação da economia, prolongando a crise económica.

Passados estes anos eis o que diz, numa entrevista ao Diário de Notícias (reservada a assinantes):

Em 2017 escrevi um artigo no qual dizia que a austeridade fiscal iria abrandar a economia portuguesa e que eu faria as coisas mais lentamente. E estava errado. As coisas acabaram por ser melhores por duas razões: a austeridade não foi tão forte como a retórica e Portugal teve sorte porque teve um crescimento muito maior do que se estava à espera, em parte porque as exportações foram muito maiores do que o que estava nas previsões. Acabou por correr tudo bem. Mea culpa por ter sido demasiado pessimista em 2017. 

(Sublinhados acrescentados. A referência a 2017 é um óbvio lapso: ele queria dizer 2011, como se vê nesta entrevista ao Expresso). 

2. O que Blanchard não diz é que a principal razão para a sólida recuperação da economia, logo a partir do final de 2013, que foram as exportações, se ficou a dever justamente à "desvalorização interna" provocada pela política de austeridade (contenção de salários e redução de outros custos empresariais).

E os nossos fogosos antiausteritários, que vaticinaram uma prolongada catástrofe económica da austeridade, também vão seguir o exemplo de Blanchard e ter a honestidade política e intelectual de fazer mea culpa?!

História constitucional de Portugal (1): O que devemos à República de 1910

 

1. Quando celebramos os 110 anos da Revolução Republicana (5 de outubro de 1910), importa recordar o que lhe devemos em termos de edificação da democracia constitucional em Portugal, através da Constituição de 1911. Não é pouco!

Em primeiro lugar, devemos-lhe obviamente a mudança da "forma de governo", da Monarquia para a República, deixando o Chefe de Estado de ser um monarca vitalício e hereditário reservado à dinastia de Bragança - e que além das funções próprias de chefe do Estado tinha também um papel decisivo na função legislativa e governativa na Carta Constitucional -, para passar a ser um Presidente da República com legitimidade democrática própria, sendo eleito pelas duas câmaras do Parlamento, de entre os cidadãos portugueses em geral, e com mandato temporário e não renovável imediatamente.

A par desta mudança essencial houve também a eliminação da antiga Câmara dos Pares, nomeada pelo Rei e composta por representantes da nobreza e do clero, sendo substituída por um senado eletivo, de representação territorial.

Ainda no plano da democracia, importa sublinhar o reconhecimento enfático da autonomia e do autogoverno municipal.

2. Não foi menor a contribuição da I República para a igualdade política dos cidadãos.

A primeira e decisiva medida foi a eliminação dos "foros da nobreza" e dos  títulos nobiliárquicos e a fim da distinção entre nobres e plebeus. 

Depois vem o reconhecimento da liberdade religiosa, a separação entre a  Igreja e o Estado e o fim da discriminação religiosa entre portugueses.

Por último, mas não menos importante, há o reconhecimento constitucional do direito à educação, através da instituição do ensino primário obrigatório e gratuito, tendente a acabar, a prazo, com a básica distinção entre alfabetizados e analfabetos, principal obstáculo à fruição dos direitos de cidadania.

3. No plano da edificação do Estado de direito constitucional, cumpre destacar três medidas:

        -  a consolidação do direito à liberdade pessoal (reforço das garantias penais, entre as quais o habeas corpus);

        - a consagração dos "crimes de responsabilidade" pelos atos governativos, tendo a condenação por consequência a perda do cargo e incapacidade para exercer funções públicas;

        - a instituição da fiscalização judicial da constitucionalidade das leis, confiando a todos os tribunais o poder de, nos casos submetidos ao seu julgamento, desaplicar as normas que considerassem desconformes com a Constituição.

Adenda

Na sua mensagem sobre a revolução republicana no site so PS, Ferro Rodrigues credita-lhe também a conquista da cidania, através da passagem "de súbditos a cidadãos". Mas não é bem assim, pois essa conquista deve ser imputada à Revolução Liberal e à Constituição de 1822, que aliás FR menciona, justamente, como um dos fundamentos da Revolução republicana. 

De resto, se a República contribuiu decisivamente para estabelecer a igualdade na cidadania, como referido acima, já retrocedeu, por exemplo, quanto ao direito de sufrágio, mais restrito do que o vintismo, pois enquanto este adotou tendencialmente um sufrágio universal masculino, a República não só manteve a exclusão das mulheres, mas também afastou os analfabetos, que ainda eram uma proporção elevada da população. Ora, o direito de voto é o mais eminente direito de cidadania. Nesse aspeto, portanto, houve um recuo da cidadania republicana em relação a 1820.

Praça da República (36): O custo das alianças à esquerda

1. O problema das alianças de governo à esquerda, como a que parece estar na forja entre o Governo PS, o BE e talvez o PCP, não é somente o seu elevado custo orçamental (aumento da despesa pública permanente e redução da receita, por exemplo, nas propinas do ensino superior e outras taxas dos serviços públicos) e o abandono de instituições testadas e de obrigações assumidas (como as PPP na saúde ou os empréstimos ao Fundo de Resolução do Novo Banco, respetivamente).

Tanto ou mais importante do que isso é o cancelamento de reformas de que o País há muito carece, como a reforma fiscal, a revisão do insustentável regime das carreiras especiais na função pública, a condição de meios em todas as prestações sociais não contributivas, o destino da ADSE, o sistema de pensões, isto para não falar de reformas do sistema político com décadas de atraso, como a reforma eleitoral e do sistema de governo das autarquias locais.

2. Com efeito, contrariamente aos acordos pontuais (por exemplo, sobre um orçamento), que se esgotam aí e podem ser de geometria política variável, os acordos de governo de maior fôlego temporal implicam não somente compromissos políticos sobre as políticas públicas e a ação do Governo, mas também, por via de regra, o reconhecimento de um poder de veto do parceiro negocial sobre os pontos do programa de governo (ou do programa político do partido de governo) com que não concorda. 

Por conseguinte, mais uma legislatura perdida quanto às referidas reformas.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pandemia (30): Comparativamente bem

 

1. Esta tabela (cortesia de Rosalvo Almeida) representa o número de infeções verificadas nas últimas semanas por milhão de habitantes em vários países do ocidente europeu e mostra que, embora estando a subir, como em quase todos os outros, os números de Portugal comparam bem com outros países, nomeadamente com a Espanha, a França, a Bélgica e os Países Baixos, embora menos bem com a Itália, a Suécia e a Alemanha. 

São, portanto, descabidas, por enquanto, as ideias de "descontrolo" da pandemia e a insegurança que elas alimentam.

2. Importa também não esquecer, como têm observado fundadamente vários analistas, que os números de agora não podem comparar-se com os de março e abril, como os média fazem todos os dias, pela simples razão de que hoje a realização de um número muito maior de testes deteta muito mais infetados assintomáticos do que antes, pelo que os números do pico da pandemia estavam seguramente muito subestimados. 

É essa, aliás, a principal razão por que hoje há muito menos internados e menos óbitos proporcionalmente aos infetados.

Adenda
Um leitor objeta, porém, que os números estão a crescer e que se não houver cuidado, uma segunda vaga pode ser uma relidade próxima. Tem razão.

White House 2020 (2): Punir a indecência política

Duas sondagens de hoje nos Estados Unidos mostram que Biden alargou o avanço sobre Trump depois do lamentável debate entre ambos. Elas mostram um record na diferença entre os dois candidatos desde o início, uma com 10 pontos percentuais e outra com 14 pontos. Um dos dados mais significativos diz respeito aos idosos, grupo em que Trump ganhou há quatro anos com 7pp de avanço e onde agora Biden lidera com 27pp! 

Este resultado mostra que felizmente nos Estados Unidos a indecência política ainda não deixou de ser punida pelos eleitores e reforça as possibilidades de Biden vir a ser o próximo Presidente dos Estados Unidos, devolvendo a seriedade política à Casa Branca e aos Estados Unidos. Espero obviamente que Trump venha a ser vencido nas urnas pelos cidadãos americanos e não pela COVID!

Adenda 
Proposta de um amigo meu para uma divisa anti-Trump: Let's Make America Decent Again!

Adenda 2
Um leitor observa que se Portugal participasse nas eleições presidenciais norte-americanas, Trump perdia aqui por 90% a 10% e que ninguém o apoia fora do Chega e de alguns colunistas do Observador. Por minha parte, penso que, se não votamos, somos pelo menos interessados, dado o peso político dos EUA no mundo em geral e em Portugal em especial, pelo que ao menos devemos "torcer" para que Trump seja despedido a Casa Branca. A bem da decência política.

sábado, 3 de outubro de 2020

Um pouco mais de rigor sff (69): A "geringonça"

Há quem continue a usar a noção de "Geringonça" para designar um eventual acordo de governo duradouro do PS com os partidos à sua esquerda, ou seja, com o BE, ou o PCP, ou ambos. 
No entanto, eu penso que o principal motivo para essa designação de "governo esquisito" ou "fora do normal" em 2015 era o facto de a aliança entre os três partidos ter visado afastar o Governo do partido (e coligação) que tinha ganhado as eleições (PSD+CDS), fazendo aprovar pela primeira vez na nossa história constitucional e parlamentar um governo minoritário do segundo maior partido parlamentar (o PS) e que, portanto, só se sustinha por ter o apoio dos partidos da Geringonça. 
Tal não é o caso agora, sendo o governo do PS apenas mais um "normal" governo minoritário do partido que ganhou as eleições sem maioria absoluta, solução com vários precedentes desde 1976. De facto, são nada menos do que cinco os governos desse tipo, antes do ataul (1976, 1985, 1995, 1999, 2009), sendo quatro deles do PS (agora cinco), que é assim o campeão dos governos minoritários. Por conseguinte, julgo ser de abandonar a noção de "geringonça", por deixar entender erradamente que se trataria de repetir a solução de 2015-19.

Adenda
Parecendo evidente que o PCP não está agora disponível para nenhum acordo de apoio ao governo - basta ver as suas propostas propositadamente inviáveis -, a hipótese de um acordo fica limitada ao BE (o que, aliás, não facilita a sua conclusão, visto que os bloquistas tenderão a ser mais exigentes, para não serem acusados pelo PCP de "cedências à direita"). Sendo assim, mais uma razão para deixar de utilizar a noção de "geringonça". Falar em "meia geringonça" faz ainda menos sentido...

Gostaria de ter escrito (26): O caso do Professor Doutor Aguilar

Sobre o escandaloso caso do Professor Aguilar, que espuma ódio antifeminista nos seus escritos académicos (?), merece ser lido este texto da jornalista Fernanda Câncio, no Diário de Notícias (reservado a assinantes). Um excerto:

No país em que se assiste a um cortejo de gente a bramar contra uma disciplina de Cidadania na escola, alegando "objeção de consciência" contra o ensino da igualdade de género e da liberdade de orientação sexual e de identidade de género, no país em que há gente a acreditar que dizer a crianças que não estão condenadas a seguir papéis tradicionais de género é um crime, um professor pode portanto apresentar as feministas como criminosas e defender a inferioridade e a submissão das mulheres numa revista da Faculdade de Direito pública e nada daí resultar.  

Por que não haveria então um engenheiro de apresentar no congresso de um partido de extrema-direita, e vê-la aceite para discussão, uma moção para mutilar mulheres que abortam? Porque não há de esse partido querer submeter no parlamento uma proposta de revisão constitucional que prevê, à moda dos talibãs, a mutilação como pena de crimes?

Subscrevo!

Adenda

A diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa veio publicamente condenar as ideias de Aguilar como "xenófobas" e "misóginas". É de saudar esta condenação pública. Mas o mais grave está em que, sabe-se agora, o dito Professor as expendeu repetidamente no seu ensino e nos seus escritos académicos antes de terem vindo a público. O "corporativismo académico" não pode coonestar situações desta gravidade.

Bloquices (12): Contra o capital financeiro vale tudo

O Bloco de Esquerda propõe que o Estado viole o contrato sobre a capitalização do Novo Banco através do Fundo de Resolução, alimentado por contribuições anuais do setor bancário e, na insuficiência destas, por empréstimos do Estado (obviamente remunerados e até um teto ainda não atingido), como vem sendo feito até aqui, sem problemas. Em alternativa defende que novas necessidades de capitalização do NB sejam financiadas diretamente pelos demais bancos, tornando-se acionistas daquele!  

É evidente que, para além da flagrante violação das obrigações contratuais e políticas do Estado, uma tal solução seria rejeitada pela banca e nunca passaria no BCE, em Frankfurt. Mas, além de tornar evidente o radicalismo e a leviandade política do Bloco, essa proposta realiza pelo menos um dos seus objetivos, manter o NB sob mira dos mercados, gerando incerteza e dificultando a sua recuperação. 

A ideia é manifestamente estoirar com o Novo Banco, como elo mais fraco do capital internacional em Portugal, mesmo se criando um novo foco de instabilidade sistémica que afetaria toda a banca nacional.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Presidenciais 2021 (4): Sondagem

1. Segundo sondagem hoje divulgada pelo Expresso (edição para assinantes e que aparecerá na edição impressa de amanhã), se as eleições presidenciais fossem agora, Marcelo Rebelo de Sousa ganharia folgadamente com 65%, seguido de Ana Gomes com 12%, André Ventura com 8%, Marisa Matias com 7% e João Ferreira com 6%.

Não há nestes resultados nenhuma grande surpresa e é de admitir que os resultados finais, em janeiro próximo, salvo algum desenvolvimento inesperado, não se afastem muito destes números. É de admitir, porém, que Ana Gomes venha a melhorar o seu score, se, como é de esperar, o PS vier a dar liberdade de voto aos seus membros, o que poderia aumentar consideravelmente o apoio da candidata dentro do seu próprio partido, onde nesta sondagem só alcança 15%.

2. De resto, afastada à partida qualquer dúvida séria sobre o vencedor, as incógnitas destas eleições consistem em saber até onde vão as votações de MRS (para verificar a medida do êxito da "presidência dos afetos"), de Ana Gomes (para ver até que ponto ela consegue entrar no eleitorado socialista, vencendo o "anátema" da liderança do Partido, e no eleitorado do BE) e de Ventura (para verificar até onde vai o apoio eleitoral da direita populista entre nós).

Não é pouco!

Ai o défice (11): Imprudência orçamental

1. Tudo indica que o orçamento para 2021 vai mais uma vez ser aprovado à esquerda e, portanto, mais uma vez vai implicar um aumento substancial da despesa pública em salários do setor público e em pensões (além das novas medidas de proteção social impostas pela crise pandémica). 

A imprensa fala em mais de 300 milhões de euros, mas é de recear que a "fatura" venha subir face à chantagem esquerdista, à medida que a data de aprovação do orçamento se aproxima.

2. Poderá dizer-se que o aumento de tal despesa pública já foi o paradigma orçamental da anterior legislatura, sem danos de maior, salvo o sacrifício do investimento público e maior lentidão na consolidação orçamental. 

Mas as diferenças são gritantes. Nos anteriores quatro anos a economia crescia, o desemprego diminuía, os impostos e as contribuições sociais "bombavam" receita pública, a despesa social reduzia-se (menos subsídios de desemprego e outras prestações sociais), o défice orçamental caía até ao equilíbrio orçamental, o peso da dívida pública aliviava. Agora, porém, tudo é ao contrário: a economia está em profunda recessão, apesar de ligada ao oxigénio das ajudas públicas, o desemprego aumenta, muitas empresas entram em falência, a receita fiscal e contributiva cai, o Estado aumenta a contratação de mais pessoal (sobretudo no SNS), o défice orçamental dispara, a dúvida pública sobe para o "record" absoluto. 

Ou seja, em vez de um ciclo de bem-aventurança orçamental entrámos num período de emergência orçamental.

3. Aliás, avolumar a despesa pública permanente com aumentos de pensões e salários no setor público não é só orçamentalmente imprudente, agravando o défice público e a dívida pública. É também injusto socialmente, pois os trabalhadores do setor privado e a generalidade dos portugueses vão ver os seus rendimentos estagnados ou reduzidos (sem falar nos novos desempregados). Neste contexto, beneficiar o setor público é um contrassenso socialmente descabido.

Nada, portanto, justifica tal aumento da despesa pública permanente, e tudo a desaconselha.

Adenda

Um leitor argumenta que com a "pipa de massa" grátis que aí vem da UE os problemas orçamentais desaparecem. Não concordo. O Fundo de Recuperação da União destina-se a financiar investimentos em projetos aprovados pela União e durará apenas alguns anos; depois disso a despesa permanente do Estado mantém-se e tem de ser financiada por impostos ou pelo endividamento público, o qual no final deste ciclo recessivo vai ficar pelos 140%! 

Seria lamentável que, entretanto, o Estado aproveitasse para reduzir o investimento financiado por receitas nacionais, a fim de gastar mais em despesa corrente!


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Não é a mesma coisa (1): O referendo sobre a despenalização da eutanásia.


1. Segundo o Público, os defensores do referendo sobre a despenalização da eutanásia já têm uma proposta de pergunta fazer, que é a seguinte 
“Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias?”
Não sei se vai ou não haver referendo - o que a AR vai decidir em breve. Mas se houvesse, de certeza que essa não seria a pergunta a colocar pela AR aos cidadãos portugueses. Primeiro, porque a pergunta proposta pelos opositores da despenalização é uma malévola caricatura do que está em causa; segundo, porque essa pergunta é constitucionalmente inviável. 

2. Com efeito, a Constituição só permite referendos sobre propostas de alteração da ordem jurídica vigente, não para confirmar soluções legais em vigor. O que está em discussão na AR é a despenalização da eutanásia em certas circunstâncias. É sobre isso que deve incidir o referendo, a existir.
Por isso, o referendo teria de perguntar às pessoas algo como isto:  
«Concorda com a despenalização da morte medicamente assistida, a instância de quem não tenha esperança de vida e esteja em situação de grande sofrimento, se realizado em estabelecimento de saúde credenciado, nas condições estabelecidas na lei para assegurar a pertinência, genuidade e consistência do pedido»?
Não é obviamente a mesma coisa, pois não?


quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Amanhã vou estar aqui (6): A Revolução Liberal ao Vivo


 Adenda

Quando os livros são maiores do que os autores!



Presidenciais 2021 (3): A posição do PS

1. Penso que Pedro Nuno Santos tem razão quando diz que quem deve definir a posição socialista sobre as eleições presidenciais é o PS, nas instâncias próprias, e não o Governo. Mas, por isso mesmo, entendo que tanto ele como Santos Silva antes dele deveriam abster-se de se pronunciar publicamente sobre o assunto enquanto ministros ou fora do âmbito partidário. O facto de serem membros do Governo não lhes confere nenhuma posição qualificada sobre os demais militantes no debate que se impõe. O mesmo vale para outros titulares de cargos públicos do PS. 
Nesse ponto, concordo com António Costa, quando pediu aos membros do Governo discrição pública sobre o tema (embora ele próprio devesse ter seguido essa regra, em vez de antecipar publicamente, enquanto Primeiro-Ministro, a recondução de Marcelo Rebelo de Sousa, com os equívocos que essa intempestiva declaração gerou...). 

 2. Mantendo o que já escrevi anteriormente, penso que o mais provável é que, colocado entre a candidatura de Ana Gomes, uma qualificada (mas não consensual) militante socialista, e a preferência de muitos dirigentes pelo atual titular do cargo, o PS acabe por decidir não ter posição oficial, para não estabelecer uma clivagem política dentro do Partido, e deixe liberdade de voto aos seus membros -, o que, aliás, nem seria inédito. 
De resto, não sendo as candidaturas presidenciais de origem partidária, a opção de voto é eminentemente individual e não partidária.

Adenda
Considero exagerada esta interpretação, mas parece-me óbvio que a gestão da candidatura presidencial pela liderança do PS não tem sido propriamente feliz.

Praça da República (36): Sim, mas...

1. Parece-me evidente que um projeto de revisão constitucional que admite a pena de castração (química ou física) e a prisão perpétua choca com os limites materiais de revisão constitucional, estabelecidos na CRP, por afrontar garantias essenciais atualmente asseguradas na "Constituição penal", nomeadamente a enfática proibição de penas cruéis, infamantes ou degradantes e da prisão perpétua.

Mas não tenho a mesma certeza, pelo contrário, sobre a possibilidade de controlo preventivo da constitucionalidade desse projeto pela AR, para efeito de não ser admitido. Essa possibilidade radical não está prevista no procedimento de revisão constitucional e parece-me excessivo negar desse modo o poder de iniciativa da revisão constitucional.

Além dos mais, é desnecessário ir por aí, visto que, uma vez aberto o procedimento de revisão constitucional, basta rejeitar liminarmente tal projeto.

2. O que este projeto de alteração da Constituição vem pôr em destaque é o risco de admitir (i) que a iniciativa de revisão constitucional possa ser tomada por um único deputado (em vez de se exigir um número mínimo) e (ii) que o procedimento de revisão constitucional seja automaticamente aberto pela apresentação de um projeto de revisão, sem necessidade de uma deliberação parlamentar para o efeito.

É de esperar que na próxima revisão constitucional este dois aspetos sejam corrigidos.

Torna-se evidente que a entrada de partidos de direita radical no parlamento alterou os dados com que até agora se contava sobre a consensualidade da ordem constitucional liberal-democrática estabelecida em 1976.


Adenda (1/10)

Estou de acordo com o projeto de parecer da deputada Isabel Moreira, que vai no sentido acima defendido: a AR não pode recusar-se liminarmente a admitir projetos de revisão constitucional por motivo de inconstitucionalidade (ou seja, por violação dos limites materiais de revisão).

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Concordo (16): Direitos de cidadania

1. Tem razão o Presidente da Assembleia da República quando rejeita, por manifesta inconstitucionalidade, um projeto de lei que reservava o acesso a cargos governativos para os portugueses originários (ou seja, pelo nascimento), excluindo todos o que tenham adquirido nacionalidade portuguesa por outro título (casamento, adoção, naturalização). 

Na verdade o art. 50º da Constituição garante o direito de acesso a cargos públicos a “todos os cidadãos (...), em condições de igualdade e liberdade”. O único cargo político que a Constituição reserva a cidadãos portugueses originários é o Presidente da República, nos termos do art. 122º. 

Aliás, é fácil ver que pode ter maior ligação a Portugal e ser mais genuinamente português alguém que tenha nascido em Portugal, mas só mais tarde tenha adquirido a nacionalidade, do que um português de origem nascido no estrangeiro e que nunca tenha vivido em Portugal.

2.  De resto, a Constituição também não distingue conforme os cidadãos tenham ou não outra nacionalidade, o que a lei portuguesa da nacionalidade permite. Portanto, os portugueses podem ser membros do Governo mesmo que também tenham outra nacionalidade .

 Acresce que nem só os portugueses têm direito de acesso a cargos governativos, pois desse direito gozam também os cidadãos lusófonos residentes que tenham estatuto de equiparação, tal como estatui o art. 15º-2 da CRP, que só exclui dessa abertura o Primeiro-Ministro (entre outros cargos políticos excepcionados). Por conseguinte, a nacionalidade não é condição absoluta para o exercício de direitos de cidadania em Portugal.

Notoriamente, o nacionalismo político, populista ou não, dá-se mal com a "cidadania cosmopolita" da Constituição.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Não concordo (17): Aposentações antecipadas, não!

1. No seu comentário político de ontem, Marques Mendes veio defender um «programa de rejuvenescimento» da função pública, argumentando que «a Administração Pública está muito envelhecida [pelo que é] preciso um programa de reformas antecipadas»
Discordo de todo em todo desta solução, por várias razões.
Primeiramente, é desde logo questionável a noção de "envelhecimento" da Administração Pública; hoje não se é velho para trabalhar aos 60 anos (nem aos 70!). Aliás, as áreas em que se justifica ter pessoal mais jovem no setor público (defesa, segurança e outros) já estão devidamente cobertas por regimes especiais.
Em segundo lugar, não faz sentido que o Estado tenha decretado há cerca de 15 anos a subida da idade de aposentação, tendo em conta a esperança de vida, e depois venha ele próprio contornar essa prudente medida de gestão financeira através de um programa de aposentações antecipadas, que iria aumentar ainda mais a despesa pública com pessoal (pensões mais remunerações), tanto mais que tal programa implicaria obviamente a desaplicação do "fator de sustentabilidade" no cálculo das pensões de aposentação antecipada. 
Ora, para subida estrutural de despesa pública já basta o que o COVID-9 impõe nos serviços de saúde e outros. Repetir o erros dos nos 80 e 90 com as reformas antecipadas é que não.

2. Mais do que de funcionários mais jovens, o que a Administração Pública precisa para ser mais eficiente é de ter melhores funcionários e de capacidade para atrair melhores funcionários, sobretudo quanto aos cargos dirigentes e quadros superiores, o que tem a ver sobretudo com formação e qualificação dos que estão em atividade, com maior mobilidade interna, com uma ética de serviço público a sério, com avliação de desempenho e menor tolerância em relação ao absentismo, coma  revisão do insustentável regime das carreiras especiais e com melhores condições de recrutamento, especialmente ao nível da remuneração.
Apesar das conhecidas vantagens da função pública (menor horário de trabalho, estabilidade no emprego, ADSE, mais férias e "tolerância de ponto", liberalismo na acumulação com empregos privados, etc.), o Estado dificilmente pode competir eficazmente naqueles níveis com o setor privado ou sequer com as empresas públicas e entidades reguladoras públicas (que não estão sujeitas ao regime da função pública).
Rejuvenescer por rejuvenescer a função pública não altera nada!

Praça da República (35): Contra o presidencialismo

1. Numa entrevista ao Diário de Notícias (acesso condicionado), o politólogo J. Adelino Maltez afirma que «foi um erro diminuir os poderes presidenciais» [na revisão constitucional de 1982] e que «devíamos ter mantido mais presidencialismo»
Não posso discordar mais desta tese, por entender, passados 40 anos, que foi oportuna e certeira a decisão de abandonar o sistema de governo "semipresidencialista" da versão originária da Constituição, em que o governo dependia cumulativamente da confiança política do PR e da AR, podendo ser demitido por ambos, e em que o Presidente acumulava a chefia do Estado com a presidência do Conselho da Revolução e com a chefia do Estado-Maior-General das Forças Armadas. 
Era demais! 

2. Na primeira legislatura da AR, aliás incompleta (1976-1979), em que o PS tinha uma maioria relativa na AR, houve nada menos do que cinco governos em menos de quatro anos, três deles "de iniciativa presidencial" e sem base parlamentar, depois da demissão do 2º governo pelo PR; em contrapartida, dois dos governos de iniciativa presidencial foram demitidos pela AR! 
Considero que dificilmente haverá pior sistema de governo do que aquele em que o poder governativo é compartilhado pelo PR e por um governo, simultaneamente responsável perante ele e perante o parlamento. De duas uma: (i) ou o governo pertence à mesma linha política que o PR - e então corre-se o risco de este tomar conta do Governo, desconsiderando a AR, ou de o Presidente se apagar perante o primeiro-ministro; (ii) ou o governo e o PR estão em campos políticos diversos - e então corre-se o risco de instabilidade governativa, por efeito do conflito entre ambos. 
Um governo não poder servir dois senhores. Ou depende do PR, sem depender do parlamento (sistema presidencialista) ou depende do parlamento, sem depender do Presidente (sistema parlamentar). 
 Misturar as duas coisas pode ser a receita para o desastre. 

3. De resto, se a revisão Constitucional de 1982 retirou o PR da esfera governativa e acabou com a responsabilidade política do Governo perante o Presidente, manteve, porém, um papel político próprio do PR como "poder moderador", com a função constitucional de assegurar o "regular funcionamento das instituições", incluindo a moderação do excesso das maiorias parlamentares e a defesa dos direitos da oposição, bem como a faculdade de o Presidente funcionar como "provedor dos cidadãos" nas suas queixas contra o poder político.
O mínimo que se pode dizer desse arranjo constitucional do sistema político, que assegurou quase quarenta anos de estabilidade institucional e de razoável estabilidade governativa, é que se tratou de uma decisão bem-sucedida.