quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (10): Paralelo descabido

1. No debate de ontem na RTP entre todos os candidatos presidenciais, o candidato Vitorino Silva ("Tino de Rans") defendeu a tese da ilegimidade das eleições, se a participação eleitoral não fosse superior a 50%, invocando o regime constitucional dos referendos, que exige tal quorum para o seu resultado ser vinculativo.

Mas o paralelo não tem nenhum cabimento. A razão por que a Constituição estabelece tal quorum para a vinculatividade dos referendos tem a ver com o facto de eles costituírem uma derrogação da democracia representativa, podendo obrigar o parlamento a aprovar ou rejeitar uma lei contrária à vontade maioritária da AR.

Não é possível, portanto, comparar as eleiçoes com os referendos. Não vem mal nenhum ao mundo, se um referendo não for vinculativo; mas pode vir muito mal, se uma eleição tivesse de ser repetida por falta de quorum, aliás sem garantia nenhuma de que este exista na eleição seguinte...

2. Note-se que, se a Constituição exige maioria absoluta de votos (qualquer que seja o número de eleitores) para a eleição presidencial, só contam, porém, os votos expressos e válidos, desconsiderando, portanto, os votos brancos e os nulos. Não basta, por isso, ir votar, para contar na escolha do Presidente.  

Numa democracia liberal como a nossa, em que o voto não é obrigatório, votam os cidadãos que sentem que as eleições e o seu voto são relevantes ou que entendem a participação eleitoral como uma obrigação cívica. Quem prefere abster-se, não conta eleitoralmente. Quem se abstém deixa aos outros a decisão da eleição. O sufrágio é também uma responsabilidade cívica.


Corporativismo (20): 12-anos-12!

1. Ficamos a saber por esta notícia que a Ordem dos Médicos demorou 12 anos a punir disciplinarmente um médico que foi condenado criminalmente por abuso sexual de doentes seus.  

É um escândalo revelador da incúria no desempenho da principal função das ordens profissionais, que é zelar pelo cumprimento das obrigações deontológicas dos seus membros em relação aos utentes de serviços profissionais, mas que as ordens em geral ignoram, tornando-se cúmplices da impunidade. 

A autodisciplina profissional é entre nós uma ficção, com que o Governo e a AR compactuam, numa comprometedora conspiração de silêncio.

2. É certo que nesta história há outra instituição com largas "culpas no cartório", que é o Ministério Público, o qual, tendo poderes legais para desencadear a ação displinar junto das ordens profissionais, devia fazê-lo por dever de ofício sempre que um profissional seja condenado num tribunal por condutas ilícitas no exercício de funções.

Mas não há notícia de que o MP cumpra essa obrigação elementar de defesa da legalidade e dos interesses dos utentes de serviços profissionais. E também ninguém se preocupa em saber porque é que as coisas são o que são. 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Memórias acidentais (13): Carlos Brito

1. Não foi sem emoção que assisti à tocante entrevista de Fátima de Campos Ferreira a Carlos Brito, ontem na RTP 1 (que só pude ver hoje). 
Tendo passado sete anos da minha militância no PCP junto dele em São Bento, entre 1975 e 1982 (ele como presidente do grupo parlamentar e eu como vice-presidente), posso testemunhar a sua convicta dedicação à frente parlamentar (quando o Partido a menosprezava), a sua inteireza de caráter, a sua amizade e compreensão para com as minhas crescentes divergências em relação à orientação do Partido e, em especial, as minhas críticas à URSS.
Em vários ocasiões em que lhe manifestei a minha incapacidade para acompanhar as posições de voto filossoviéticas do PCP, como, por exemplo, aquando da retirada da cidadania a Sakharov, dizia-me discretamente para não participar na votação, o que era uma prova de inequívoca cumplicidade pessoal.

2. Foi ele quem, no verão de 1979, na Ilha de Faro, me convenceu a desistir da intenção que lhe tinha transmitido de deixar a AR e de regressar a Coimbra, para ultimar o doutoramento que eu interrompera em 1974, tendo-me persuadido a aceitar o desafio de ser cabeça-de-lista por Aveiro, meu distrito natal. Contra as previsões, visto que o PCP ficara longe de eleger alguém quer em 1975 quer em 1976, fui eleito folgadamente, repetindo a eleição nas eleiçoes do ano seguinte, o que me permitiu intervir ativamente na revisão constitucional de 1982.
Foi aí que se deu o meu desencontro decisivo com o PCP. Ultimada a votação da revisão constitucional na especialidade, defendi, junto com Veiga de Oliveira, que o Partido não votasse contra a revisão, devendo abster-se. Apesar de a nossa posição ter encontrado algum eco no grupo parlamentar, onde o debate era franco e aberto (outro mérito de Brito), o secretário-geral do Partido impôs o voto contra sem margem para quaquer discussão. Perante esta situação, transmiti a Carlos Brito a minha decisão de renunciar ao mandato, o que fiz no dia seguinte à votação da revisão constitucional. 
Confessadamente entristecido com minha saída, disse-me esperar que um dia voltasse. Mas adivinhava, tão bem como eu, que era uma despedida - como foi.

3. De facto, em 1987, quando veio a público a dissidência assumidamente antimarxista-leninista do "Grupo dos 6", que eu integrava, Carlos Brito veio falar comigo, para me transmitir a sua preocupação com a situação e com o risco de a nossa eventual saída enfraquecer as posições reformistas dentro do Partido, de que - cuidou de enfatizar - os "seis" não eram os únicos representantes.
O resto da história é conhecida. A saída do "grupo dos seis" foi seguida da de outros grupos de dissidentes nos anos seguintes ("3ª via", etc.). E, apesar  de se ter mantido firme na sua inglória luta interna pela renovação do PCP, Carlos Brito não foi poupado a ser compelido a sair do Partido a que dedicou a sua militância política desde a juventude, sob a repressão da Ditadura
Com o seu afastamento, cessava simbolicamente qualquer esperança de abertura doutrinária e política do PCP. 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (9): Questõs complexas raramente têm solução simples

1. Há quem pense que não há questão que não tenha uma solução simples e expedita, como esta ideia de instaurar a todo o vapor o voto por correspondência ou o voto eletrónico a distância

Ora, para além de ser preciso uma revisão constitucional, que exige o seu tempo, sucede que as razões por que a Constituição impõe a votação presencial (proibindo o voto por correspondência ou por via eletrónica) ainda não estão decididamente superadas entre nós, nomeadamente quanto ao risco para o sigilo de voto, a liberdade de voto ou a compra de votos, a que se soma a segurança da votação no caso do voto eletrónico.

A opção pelo voto não presencial não é politicamente gratuita.

2. Uma coisa é abrir o debate sobre a questão e preparar os estudos necessários sobre o  impacto das várias alternativas e outra é enveredar a passo estugado pela revisão constitucional e pela alteração legislativa.

O pior que poderia suceder era avançar com reformas precipitadas que abalassem a atual confiança dos cidadãos no sistema de votação ou que permitissem gerar acusações de fraude sobre os resultados eleitorais (por mais infundadas que fossem), como sucedeu agora nos Estados Unidos.

Numa democracia eleitoral, a confiança no sistema de votação e de contagem eleitoral é um "bem público" ainda mais importante do que a confiança no sistema judicial ou no sistema bancário, não se podendo pôr levianamente em causa.

Decididamente, questõs complexas raramente têm soluções simples.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (8): Debate civilizado

Com exceção da baixeza provocatória de Ventura - que excedeu as piores expectativas -, os debates a dois entre os demais candidatos presidenciais na televisão pautaram-se em geral pela urbanidade, mesmo quando politicamente agrestes, e pela ausência de ataques ou insinuações pessoais -  como é de esperar numa democracia madura num país civilizado. 

A este respeito, foi pena Ana Gomes, no debate com Marcelo Rebelo de Sousa, ter cedido à tentação de trazer à liça a relação de amizade deste com Ricardo Salgado. Por um lado, nenhum político é responsável pela conduta de pessoas próximas; segundo, não existe nenhum indício de que MRS foi de algum modo influenciado por isso na sua missão presidencial. Não havia necessidade...

sábado, 9 de janeiro de 2021

Vontade popular (12): De novo, o voto eletrónico

[Fonte da iamgem: AQUI]

1. Em abril do ano passado, no primeiro surto da pandemia e antecipando a sua duração prolongada, propus um debate sobre o voto eletrónico, tendo mesmo sugerido que a AR «deveria solicitar à CNE um relatório sobre o assunto ou nomear uma comissão técnica para informar sobre ele, quanto aos aspetos técnicos e jurídicos»

O meu alerta não teve nenhum eco público e o parlamento ignorou o meu desafio. Talvez  seja diferente agora, que a questão é suscitada por Marques Mendes, que considera o voto eletrónico uma «questão essencialíssima»

2. No entanto, para além de anotar que a introdução do voto eletrónico remoto (pois também pode haver voto eletrónico presencial, como jé sucedeu experimentalmente entre nós em Évora nas últimas eleições europeias) carece de revisão constitucional, importa alertar que o voto eletrónico a distância suscita questões de segurança e de liberdade e segredo pessoal do voto que precisam de ser apropriadamente respondidas antes de qualquer medida legislativa.

O voto eletrónico remoto não é algo que possa ser precipitadamente adotado.

Presidenciais 2021 (7): Direito a votar

O direito de voto a votar é um direito a votar, tendo o Estado a obrigação de proporcionar a todos a possibilidade de o exercer. 

Por isso, concordo com esta opinião de que, se as pesssoas acolhidas em lares de idosos não podem ir às urnas de voto, por causa da pandemia, devem estas ir aos lares onde haja idosos que queiram votar, tal como vão às prisões recolher os votos dos presos que tenham manifestado vontade de votar. E isso pode ser feito ao longo de vários dias, em voto antecipado, que a Constituição não proíbe. Basta mudar a lei em procedimento de urgência e disponibilizar os meios logísticos necessários.

Em tempos excecionais, medidas excecionais.

Adenda
Um leitor comenta que nada disso seria necessário, se houvesse voto por correspondência, como nos Estados Unidos e outros países. Sucede, porém que a Constituição estipula expressamente o voto presencial nas eleições presidenciais em território nacional, o que inviabiliza o voto a distância, designadamente o voto por correspondência.

Adenda 2
Um leitor argumenta que, por razão de igualdade, os idosos que estão em casa também deviam beneficiar do voto no domicílio. Mas não é a a mesma coisa. Os que estão em lares vivem em comunidade e ficam em quarentena se saírem, para não correrem o risco de serem infetados e contaminarem os demais, o que os impede de ir votar -, o que não sucede com quem mora em casa

Livres & iguais (55): "Tradições culturais" contra os direitos humanos

[Fonte da imagem AQUI]

Saudemos esta primeira condenação em Portugal da multilação genital feminina, desde que a punição dessa prática bárbara foi autonomizada criminalmente em 2015.

A punição penal da MGF simboliza bem o facto de a proteção dos direitos humanos  não visar somente as violações efetuadas pelo Estado mas também as perpetradas na "sociedade civil" e no âmbito familiar, em nome de práticas culturais atávicas, que lesam a integridade fisica e moral das pessoas, neste caso das crianças do sexo feminino. O Estado não tem somente a obrigação de respeitar ele mesmo os direitos humanos, mas também a obrigação de protegê-los contra a sua violação por terceiros (respect and protect).

Que este seja o primeiro passo para combater decididamente esse flagelo em algumas comunidades de origem africana entre nós.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Falsas boas ideias (2): Revisão constitucional inútil

Penso que não faz nenhum sentido a ideia de uma revisão constitucional relâmpago para permitir a votação da eleição presidencial em mais do que um dia

De facto:

       -  havendo estado de emergência declarado, é imposssível aprovar qualquer revisão constitucional neste período, que é expressamente proibida pela Constituição; 
       - não é a Constituição, mas sim a lei eleitoral, que impõe a eleição presidencial num só dia, pelo que não é necessário alterá-la para esse efeito (de resto, a lei eleitoral já permite o voto antecipado, em certos termos, assim como a votação em dois dias no estrangeiro);
       - não é por haver mais do que um dia de votação que a previsível abstenção elevada vai diminuir, pela simples razão de que - como AQUI mostrei - ela se vai ficar a dever-se a diversos factos que não têm a ver com a duração do período da votação, a saber (i) as eleições terem um vencedor antecipado, (ii) falta de empenhamento dos dois principais partidos nas eleições; (iii) não haver campanha presencial por causa da pandemia e (iv) o receio de contaminação pela COVID nas assembleias eleitorais.

Em suma, uma revisão constitucional ad hoc não adiantaria nada.

Adenda
Também não leva a nada, por inviável, a ideia de adiamento das eleições, mesmo que tal fosse defensável politicamente, como alguns propõem (a meu ver, erradamente). Primeiro, nem a Constituição nem a lei eleitoral preveem a remarcação das eleições; segundo, de acordo com a Constituição, o novo PR tem de estar eleito até ao termo do mandato em curso (9 de março), havendo que descontar três semanas para uma eventual segunda volta (por menos verosímil que seja tal hipótese), pelo que a primeira votação teria de ocorrer até 14 de fevereiro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Assim vai a política (4): Instrumentalização política da justiça

1. Por menos feliz e oportuna que tenha sido a acusação de António Costa sobre uma alegada "campanha internacional contra Portugal" por parte de alguns dirigentes e militantes do PSD, a propósito da nomeação do membro português na Procuradoria da União, tal não pode justificar a ideia de uma queixa-crime contra o Primeiro-Ministro, como defende a própria direção do PSD, apadrinhando a posição dos seus dirigentes.

Sendo manifestamente descabida, por não haver nenhum ilícito criminal, uma tal iniciativa não passa de uma lamentável operação de intrumentalização da justiça para efeitos políticos imediatos, destinada a impressionar cidadãos menos bem informados e a alimentar as "redes sociais" durante algumas horas.  

2. Numa democracia liberal, as acusações políticas devem ser combatidas na esfera política e não no foro judicial. Os juízes não devem ser chamados a adjudicar o combate político entre a oposição e o Governo. No combate político, mesmo os ataques de natureza pessoal - que neste caso nem sequer existem - só em casos-limite são criminalmente relevantes.

A judicialização da política, sobretudo quando promovida pelos próprios políticos, degrada tanto a justiça como a política. E não enobrece quem a promove. 

Adenda
Como seria de esperar, os visados no deslocado ataque do Primeiro-Ministro declinaram qualquer propósito de queixa-crime (que, aliás, não levaria a nada...), revelando mais sensatez política do que a tonta e precipitada decisão da comissão permanente do PSD.

Adenda (9/1)
Se acusação de António Costa aos militantes do PSD foi infeliz e inoportuna, é manifestamente excessiva e despropositada a crítica de Ana Gomes ao líder socialista, "equiparando-o a Orbán". Além do mais, este não é seguramente o melhor mod0 de cativar o voto socialista para a sua candidatura presidencial...

Praça da República (43): Os pontos nos ii

1. Faz bem o Primeiro-Ministro em lembrar uma regra essencial da responsabilidade política ministerial no sistema de governo estabelecido na Constituição, que o Presidente da República e muitos observadores políticos por vezes esquecem, a saber: «É perante o Primeiro-Ministro que cada ministro responde». 

Daí que só a ele, como chefe do Governo, caiba decidir sobre a demissão dos seus ministros, assumindo a correspondente responsabilidade política, devendo o PR abster-se de tomadas de posição públicas sobre tal assunto.

2. Mas, da mesma maneira, o PM deveria recordar publicamente uma outra regra constitucional que é consequência dessa, ou seja, que é somente ao PM (e não aos ministros, individualmente) que incumbe informar o PR sobre a condução das políticas governamentais, pelo que é politicamente descabida e constitutionalmente ilegítima a chamada de ministros a Belém (como AQUI mostrei). 

O PM é a única interface entre São Bento e Belém.

A degeneração da democracia constitucional começa quando, por deferência ou oportunismo político, se consentem práticas à margem da Constituição, por mais "inocentes" que pareçam à primeira vista.

Adenda

Na versão do Primeiro-Ministro sobre o caso da Ministra da Justiça há um aspeto que não "cola", que é a ideia de que as "incorreções" constantes da nota curricular enviada pelo MJ para Bruxelas eram "irrelevantes" para a escolha do candidato em causa, que se baseava na hierarquização dos candidatos pelo CSMP. Se assim fosse, não faria sentido enviar tal nota adicional, bastanto invocar a seleção feita pelo CSMP e o CV oficial do candidato que constava do processo do Conselho da União em Bruxelas (e que não continha nenhuma das mencionadas incorreções). É óbvio, portanto, que o MJ procurou reforçar a sua opção perante Bruxelas com elementos novos sobre o candidato escolhido, infelizmente infundados, sem o cuidado mínimo de verificar a sua veracidade.

White House 2021 (7): A demência trumpista

Incitada por um Presidente tresloucado pela derrota eleitoral, uma multidão furiosa de apoiantes invadiu o Capitólio (Congresso) em Washington, perante a irresponsável imprevisão da polícia, e interrompeu a cerimónia de contagem oficial das eleições presidenciais. Um dia negro para a democracia estadunidense.

Não podia terminar da pior maneira o mandato de um dos piores e mais rancorosos presidentes da história dos Estados Unidos. Só por isso ele merecia ser destituído e condenado por sedição.  Uma vergonha nacional e internacional!

Adenda

Vale a pena ler este editorial do New York Times.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

João Cutileiro (1937-2021): Uma grande perda


 Grata recordação de um almoço em Coimbra, 1999.

Presidenciais 2021 (6): Sem escrúpulos

Como AQUI se defendeu, o STA rejeitou liminarmente a ação judicial interposta pelo deputado André Ventura para obrigar o Presidente da AR a suspender o seu mandato parlamentar. O Tribunal considerou corretamente que, independentemente da substância do caso, «o STA não é uma instância de controlo jurídico-político dos atos [políticos] do Governo ou do Parlamento».

No entanto, num comentário provocatório, Ventura insinuou que o STA tem "receio" da AR e ameaçou voltar à via judicial depois de haver um decisão parlamentar sobre o caso. Decididamente, há uma aposta clara em provocar as instituições. Já inundado com processos, o STA não pode ser politicamente abusado, de má fé, para servir os mesquinhos objetivos mediáticos de um candidato presidencial sem escrúpulos políticos nem deontologia profissional como advogado.

Era conveniente saber a reação dos restantes candidatos presidenciais a este condenável espisódio.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Assim vai a política (3): Não há como desvalorizar

Não há como desvalorizar a gravidade do envio ao Conselho da União de uma nota curricular com vários erros importantes sobre o percurso profissional do candidato que Portugal propôs para a Procuradoria da União Europeia

Mesmo que o referido papel não tenha tido influência na escolha - que se baseou solidamente no facto de o referido candidato ter sido classificado em 1º lugar pelo Conselho Superior do Ministério Público -, a situação é constrangedora e pode ser explorada para pôr em causa a confiança de Bruxelas nas informações vindas de Lisboa.

Não basta a Ministra da Justiça vir reconhecer os erros e imputá-los a lapso dos serviços; importa saber quando é que teve conhecimento da situação e que medidas tomou para apurar responsabilidades e para reparar a incorreção da informação prestada ao Conselho da União.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Praça da República (42): Contradições oportunistas

1. Esta proposta oportunista do PSD, à boleia do caso Ventura, para alargar os casos de suspensão do mandato parlamentar a pedido dos próprios deputados, por razães de conveniência pessoal, invoca um alegado propósito de "desproletarizar" [sic] a função parlamentar, mas o seu resultado traduz-se numa inequívoca descaraterizaçao da natureza do mandato parlamentar, como obrigação política que deve ser. 
Os demais titulares de cargos políticos (alguns de duração mais longa) também não podem suspender o mandato por vontade pessoal. A conveniência pessoal dos deputados não pode sobrepor-se ao exercício do mandato que assumiram. 

2. Desde logo, pode questionar-se a necessidade de admitir a suspensão do mandato por motivos da vida pessoal, profissional ou política dos deputados num regime em que o função não é exclusiva e em que os deputados podem acumular livremente com outras tarefas. 
Mas a principal objeção tem a ver com o facto de a suspensão voluntária se traduzir num verdadeiro incumprimento do mandato político, que é de natureza pessoal. Embora eleitos em listas partidárias, os deputados são eleitos pelo voto popular, segundo a ordem da lista de candidatos, que é pública.  O nome dos deputados conta! 
Fomentar a instabilidade na composição parlamentar por motivos pessoais só reforça a partidocracia parlamentar e alimenta a pulsão populista contra a elite política.

3. De resto, numa altura em que a exigência de personalizaçao das eleições parlamentares sobe na opinião pública - sendo, aliás, uma proposta oficial do PSD desde há muito -, retomar a "fungibilidade" e a rotação dos deputados eleitos é uma insanável contradição.
Tendo sido apresentada por um vice-presidente da bancada parlamentar, com provável apoio de Rui Rio, esta proposta insensata do PSD agrava o sentimento de desorientação política e doutrinária em que se acha o principal partido da oposição.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Assim vai a política (2): Brincar com as instituições

1.  Esta intimação judicial contra o Presidente da AR requerida pelo Deputado André Ventura para obter a suspensão do seu mandato parlamentar não faz nenhum sentido.

Como jurista qualificado que é, ele sabe bem que (i) os atos da Assembleia da República ou do seu Presidente relativos ao governo do parlamento não são atos administrativos, sendo por isso insuscetíveis de escrutínio pela justiça administrativa e que (ii), como atos singulares que são, também não podem ser impugnados junto do Tribunal Constitucional, ressalvados os atos mencionados no art. 223º da CRP.

As normas constitucionais ou legais pertinentes são "normas imperfeitas", à margem de sanção judicial. Com algumas exceções, a Constituição deixou o escrutínio de atos políticos (do PR, da AR, do Governo) exclusivamente à esfera política, assim evitando a judicialização da política e, no caso da AR, respeitando o autogoverno parlamentar.  

2. É por saber isso, como qualquer estudante de Direito Constitucional sabe, que o deputado Andre Ventura só pode estar de ma fé quando recorre à justiça administrativa, numa óbvia operação de provocação das instituições para efeitos políticos. 

Por isso, além da rejeição liminar da descabida pretensão, o STA deveria equacionar a condenação por litigância de má fé.

Adenda
Um leitor pergunta o que penso sobre a suspensão do mandato de Ventura enquanto for candidato a Presidente da República. Apesar de não prevista no Estatuto dos Deputados, penso que faz sentido e entendo mesmo que poderia  ser automática, independentemente da vontade do deputado e de decisão paralamentar. Trata-se, a meu ver, de uma óbvia lacuna de previsão da lei.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ai, Portugal (7): Os comboios não votam

1. Segundo este relato do estado das obras de renovação da ferrovia, anunciadas em 2016 e que deviam estar concluídas quase todas em 2020, a maior parte delas já foram recalendarizadas para serem concluídas somente em 2023, sem contar com o abandono de três delas (uma vetada pela UE e outras duas retiradas).

Como é óbvio, o principal fundamento para esta derrapagem temporal tem a ver com falta de financiamento, por causa da redução do investimento público durante estes anos, vítima "colateral" da prioridade orçamental dada ao aumento da despesa corrente (pensões. salários, prestações sociais), por causa da aliança governamental à esquerda ("Geringonça"). 

Manifestamente, os comboios não votam.

2. Outro aspeto típico, "à portuguesa", deste plano ferroviário foi a aventureira previsão de uma nova linha, entre Aveiro e Mangualde, passando por Viseu, um projeto ultraoneroso (675 milhoes de euros!) - que, aliás, duplicava a linha da Beira Alta existente - e que era manifestamente inviável, como a Comissão Europeia mostrou duas vezes, tendo sido incluída no plano ferroviário apenas para satisfazer interesses localistas. 

Assim se planeam, irresponsavelmente, infraestruturas em Portugal...

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Praça Schuman (11): Problemático e inoportuno

1. Parece estar iminente o anúncio da conclusão de um acordo de investimento direto estrangeiro entre a UE e a China, em negociação há vários anos.

Impõe-se, de facto, abrir a economia chinesa ao IDE europeu e garantir os direitos dos investidores europeus, corrigindo a assimetria existente (já que o investimento direto chinês na União encontra poucos obstáculos, como mostra o caso de Portugal).  Resta saber, porém, se o acordo está à altura das necessidades e se este é o momento politicamente oportuno para o anunciar.

2. Por um lado, as informações disponíveis não são concludentes quanto à substância dos ganhos obtidos pela União, em termos de "market access" e de solução de litígios sobre violação dos direitos dos investidores europeus na China. 

Por outro lado, é de questionar a oportunidade de anúncio deste acordo nas vésperas da tomada de posse do Presidente Biden nos Estados Unidos, sabendo-se que as falhas da China nesta campo (desproteção da propriedade intelectual, ajudas de Estado, privilégios das empresas estatais, preferências na contratação pública, etc.) só podem ser combatidas numa ação coordenada entre a União e os EUA. 

Anunciar neste momento um acordo com a China nesta área é dar um trunfo a Pequim contra Washington.

No bicentenário da Revolução Liberal (25): A Revolução e a Contrarrevolução em Braga

A JN HISTÓRIA nº 29 (novembro/dezembro) publica mais um artigo da já extensa série de textos da minha coautoria com o Professor José Domingues sobre a Revolução Liberal, desta vez sobre "A Revolução Liberal (e a contrarrevolução) em Braga".

Com base em fontes até agora inéditas, mostramos que, se a cidade foi essencial na organização e no apoio militar à Revolução do Porto, tanto no controlo do Minho como de Trás-os-Montes, já o apoio civil e institucional foi tardio e longe de entusiástico. Em contrapartida, quando a contrarrevolução chegou em 1823, Braga assinalou prontamente a sua adesão através de uma insólita e radical iniciativa, que foi a de convocar todos os cidadãos que tinham votado nas eleições das Cortes Constituintes de 1820 e das Cortes ordinárias de 1822, para revogarem individualmente o ato eleitoral!

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Free and fair trade (18): Uma falha corrigida

1.  Como se esperava, o acordo comercial entre a UE e o Reino Unido, concluído in extremis, mantém o comércio de produtos entre ambas as economias (incluindo indústria, agricultura e pescas) isento de tarifas aduaneiras e de restrições quantitativas, como antes (mas agora sujeitos a controlos fronteiriços).

Todavia, o que há de inovador no acordo não é a sua amplitude pouco ambiciosa (que tem pouco cobertura quanto aos serviços), mas sim aquilo que se veio a designar nas negociações como level playing field, ou seja, a proibição de as partes degradarem os seus padrões laborais e ambientais e de recorrerem a ajudas de Estado para aumentarem artificialmente a sua competitividade recíproca nas trocas comerciais entre eles.

Nunca se tinha ido tão longe nesta preocupação. Como mostrei anteriormente, Londres não poderia gozar de melhores condições de acesso ao mercado interno da União depois de sair do que antes.

2. Note-se, no entanto, que desde há duas décadas, os acordos comerciais da União já incorporavam uma cláusula laboral e ambiental, com o mesmo objetivo. A diferença estava em que até agora essas cláususlas eram desprovidas de mecanismos de enforcement, pelo que a sua violação não era suscetível de sanção, nomeadamente através da aplicação de tarifas aduaneiras compensatórias ou retaliatórias.

Há muito que eu criticava esta falha da política de comércio externo da União, designadamente no meu livro de 2014 sobre o assunto (capa em epígrafe). Apraz-me verificar que, finalmente, essa falha foi corrigida, sendo de esperar que a solução encontrada passe a ser uma regra em todos os futuros acordos comerciais da União.

Assim vai a política: Hegemonia socialista?

1. Esta sondagem eleitoral, da responsabilidade do Observador (acesso reservado a assinantes), confirma que as coisas continuam a correr politicamente bem ao PS, por mérito próprio na gestão da pandemia, demérito alheio (nomeadamente do BE e do PSD) e muita ajuda da UE (bazooka financeira, vacinas, acordo sobre o Brexit).

A próxima passagem tranquila das eleições presidenciais (de que deliberadamente se alheou oficialmente) e da presidência do Conselho da União (cujos principais dossiês foram resolvidos pela presidência alemã), assim como a perspectiva de controlo da pandemia antes do verão e da concomitante retoma económica - tudo aponta, salvo algum imprevisto acidente, para um bom ano político para António Costa.

A ideia de um "fim de ciclo político", que ainda há poucas semanas entretinha alguns comentadores precipitados, releva de excesso de imaginação política.

2. Em contrapartida as coisas não correm de feição para o PSD nem para a direita no seu conjunto.  

Com este resultados, as direitas somadas teriam menos deputados do que o PS sozinho (dado o efeito da fragmentação da votação por quatro partidos) e muito menos do que as esquerdas juntas. Ou seja, continuam muito longe do poder.

Ora, sem perspectiva de mudança do clima político a nível nacional e sem apresentar uma alternativa de governo credível (que Rio parece incapaz de formular), as eleições autárquicas do próximo ano podem constituir mais um sério revés para o PSD.

3. Outra "ideia feita" que as recentes sondagens contrariam é a da imparável tendência para a fragmentação da representação parlamentar e para uma maior dificuldade de reformas de fundo, por falta de maioria de 2/3 por parte do PS e do PSD.

Com efeito, segundo esta sondagem, os dois partidos somam quase 70% dos votos, muito acima do 2/3 de deputados necessários para a revisão constitucional e outras reformas políticas que carecem dessa maioria (como a reforma da lei eleitoral), sem poder de veto de nenhum outro partido. 

Torna-se evidente que só não há tais reformas (e outras) porque o PS as não quer, por causa da sua aliança política com o PCP, reconhecendo-lhe um implícito poder de veto político.

No bicentenário da Revolução Liberal (24): A Revolução em Coimbra


Apresentação pública do livro 'Há Constituição em Coimbra' - No bicentenário da Revolução Liberal, ontem, na Câmara Municipal de Coimbra, ladeado por Carina Gomes, vereadora da Cultura, e Manuel Machado, Presidente.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Não dá para entender (26): Regulador público contra o interesse público?

O debate público em curso sobre as redes de 5G, entre a ANACOM e os operadores instalados, tem rodado à volta da legalidade ou ilegalidade dos privilégios conferidos aos "novos entrantes" no concurso aberto pela entidade reguladora, para facilitar o aumento de operadores no mercado, a fim de alegadamente proporcionar mais concorrência entre eles. 

Ora, este texto sobre as novas redes de 5G mostra que não se trata somente de uma questão de legalidade. De facto, depois de mostrar que «a existência de 4 operadores vai conduzir a uma menor qualidade de experiência dos utilizadores», o autor remata: 

«Como se vê, a existência de 3 ou 4 operadores não é exclusivamente uma questão de concorrência. Se analisarmos os 9 países europeus com população da ordem de grandeza de Portugal (entre 7 e 12 milhões de habitantes), apenas 2 (22%) possuem 4 operadores (todos os outros possuem 3). Adicionalmente, países como Estados Unidos da América, Japão e Alemanha, com mais de 80 milhões de habitantes, possuem 3 operadores.
Em conclusão, relativamente ao número de operadores em 5G, “technology matters”.»

Adenda
Como declaração de interesses, é público que dei a um dos operadores um parecer no sentido da ilegalidade/inconstitucionalidade do Regulamento da ANACOM. É bom saber que ele não padece somente dessa mancha.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Não com os meus impostos (4): Pôr os contribuintes a pagar a ADSE, não!

1. É claro que os beneficiários da ADSE, que financiam integralmente esse subsistema de saúde - e assim deve ser -, têm razão quando consideram injusto terem de pagar pelas isenções de quotização dos aposentados com pensões mais baixas, que nada justifica. 

A ADSE não é um direito, a par do SNS; é uma prerrogativa facultativa que deve ser paga por quem dela beneficia, como se impõe. Os aposentados do setor privado, se quiserem ter um seguro de saúde, têm de o pagar, não se vendo razão nenhuma para seja diferente para os aposentados da função pública. No caso da ADSE, aliás, o cálculo "prémio" do seguro até os favorece, pois é uma percentagem do rendimento, sendo, portanto, baixo para quem tem menor rendimento.

2.  O que não faz sentido é exigir do Governo que passe a ser o Estado, ou seja, os contribuintes em geral, a financiar essas isenções da ADSE dos pensionistas públicos, quando todos já têm de pagar o SNS, único sistema de que beneficiam. Espero que o Governo responda com um rotundo "não". De resto, com  o novo regime, o número de isentos até vai baixar. 

E se os beneficiários-pagadores (entre os quais me conto...) não quiserem continuar a suportar ess encargo adicional, não são obrigados a permanecer. Há privilégios que têm ónus associados. Duvido que alguém saia por causa disso!

É evidente que, se fossem todos os contribuintes a pagar, seria muito mais leve suportar esse encargo, do que sendo somente os beneficiários da ADSE a fazê-lo. Mas seria socialmente iníquo pôr a cargo de todos o pagamento dos privilégios adicionais da função pública.  Com os meus impostos, não.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

No bicentenário da Revolução Liberal (22): A contribuição de Coimbra


1. Acaba de ser publicado este livro da minha coautoria com José Domingues sobre a  participação de Coimbra na Revolução Liberal, há 200 anos, desde a entrada das forças liberais na cidade em finais de agosto de 1820, festivamente acolhidas, até às eleições na cidade para as Cortes Constituintes, em dezembro desse ano, marcadas pela vigorosa luta da academia de Coimbra pelo direito de voto dos estudantes, liderada por Almeida Garret, então finalista de Leis.

Trata-se de um relato de páginas brilhantes nos anais da Revolução Liberal e da história da cidade de Coimbra, até agora pouco conhecidas, baseado em documentos em grande parte inéditos.

O curioso título do livro - "Há Constituição em Coimbra" - provém de uma informação "em código" que um partidário do antigo regime comunicou para Lisboa sobre a adesão de Coimbra à Revolução, utilizando para tal o seu principal objetivo, que era a aprovação de uma Constituição.

2. O livro, numa cuidada edição da Câmara Municipal de Coimbra - que colocou todo o empenho nesta iniciativa -, encontra-se disponível para venda ao público em três locais culturais municipais: na Bilblioteca Municipal, na Casa da Escrita e no Museu do Chiado. 

Da nossa parte, como autores (falando em nome dos dois), apraz-nos termos tido esta oportunidade de investigar estes episódios gratificantes da história conimbricense, que oferecemos graciosamente ao Município. Supomos que é a única monografia publicada neste ano do bicentenário sobre as vicissitudes da Revolução Liberal numa das cidades em que ela teve maior expressão (depois do Porto e antes de Lisboa). 

Infelizmente, o atual surto da pandemia inviabilizou a sessão pública de lançamento que tínhamos programado com aparticipação de um reputado historiador da Revolução Liberal. Ficará para ocasião mais oportuna. 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Presidenciais 2021 (6): "Ficção presidencial"

1. Concordo com esta análise de M. Vilaverde Cabral sobre a previsível abstenção elevada nas eleições presidenciais, que vão ser afetadas por três razões: (i) a pandemia, que afasta os cidadãos das eleições e não permite uma campanha eleitoral normal; (ii) o facto de a eleição ter vencedor antecipado, por larga margem; (iii) a falta de empenho dos dois principais partidos, visto que o PS não tem candidato próprio e o PSD não apoia MRS entusiasticamente.

Portanto, estas eleições têm tudo para serem pouco mobilizadoras, salvo para a disputa do segundo lugar entre setores minoritários do eleitorado.

2. Mas não acompanho MVC quanto à alegada culpa daquilo que ele designa por "ficção presidencial", ou seja, o argumento de que a eleição direta não se justifica face aos poucos poderes políticos do PR.

Na verdade, continuo a entender que no nosso sistema constitucional, apesar da estrita separação de poderes entre PR e Governo, há justificação para a eleição direta do Presidente, dada a importante função que lhe cabe de supervisão do sistema político e de contenção de abusos das maiorias parlamentares, designadamente quanto ao poder de veto legislativo, a partilha do poder de nomeação de importantes titulares de cargos públicos, a convocação de referendos, a declaração do estado-de-sítio e do estado-de-emergência e, em última instância, a dissolução parlamentar. Não vejo como é que estes poderes independentes poderiam ser legitimamente exercidos sem que o PR tivesse legitimidade eleitoral direta.

De resto, não faltam países com sistemas de governo de tipo genuinamente parlamentar em que o PR não dispõe de tais poderes mas é eleito diretamente (Irlanda, Áustria, Finlândia, etc.). 

3. A ficção política que há muito existe entre nós, e demora a desaparecer (desde 1982!), é a ficção semipresidencialista quanto ao sistema de governo, pois, de facto, entre nós: (i)  o PR não governa, nem cogoverna, nem compartilha da função governativa; (ii) o órgão de condução da política nacional é o Governo e só ele; (iii) o Governo, cuja legitimidade política decorre das eleições parlamentares (via AR), não depende da confiança nem de tutela política do PR.

Neste sentido, ao contrário do que sucede nos regimes presidencialistas ou semipresidencialistas (em sentido próprio), as eleições presidenciais entre nós não afetam o Governo nem a política governamental. Mas, dependendo das circunstâncias e do Presdente eleito, elas podem alterar, e muito, não somente o quadro político em que os governos em funções se movem e conduzem as suas políticas, mas também a sua própria subsistência política (caso de dissolução parlamentar). 

É por isso que as eleições presidenciais não podem nem devem ser desvalorizadas.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Pandemia (44): Confusão legal

1. Inovando em relação às anteriores edições, o projeto de decreto do Presidente da República para a próxima renovação do estado de emergência, a partir de 24 de dezembro, prevê expressamente a punição como crime de desobediência para quem não cumprir as suas determinações.

O decreto remete explicitamente para o art. 7º da Lei do Estado de Sitio e do Estado de Emergência (Lei nº 44/86, na sua atual redação), que diz examente isto:«A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência»

De resto, como o decreto presidencial não é uma lei, não poderia criminalizar uma conduta que não estivesse já prevista e punida por lei.

2. A questão é saber se esse preceito legal, na sua expressão literal,  altera o definição do crime de desobediência, tal como consta do Código Penal (art. 348º), segundo o qual, para haver tal crime, não basta infringir uma obrigação legal ou regulamentar (desobediência à norma), sendo necessário haver o incumprimento de uma ordem concreta de uma autoridade legítima.

Ora, não pode deixar de considerar-se uma violência desproprocionada punir como crime e com pena de prisão a simples violação das obrigações decorrentes do estado de emergência (por exemplo, quanto a uso de máscara, limites à circulação ou horários de estabelecimentos), sem ter havido desobediência a uma cominação de autoridade que tenha ordenado a cessação da infração, como estabelece o Código Penal.

A violação de restrições legais de índole administrativa devem ser punidas como contraordenações, e não como crimes.

3. Por conseguinte, é de concluir que a nova cláusula do decreto presidencial não veio acrescentar nada, nem o pretendeu, pois não era preciso invocar expressamente a Lei nº 44/86, para ela se aplicar à violação das obrigações decorrentes do estado de emergência, sempre que declarado. 

Em contrapartida, porém, esse preceito legal suscitaria um sério problema de constitucionalidade, se fosse entendido à letra, no sentido de punir como crime de desobediência o simples incumprimento das normas do estado de emergência, sem desobediência à ordem concreta de uma autoridade policial, como exige o Código Penal.

Praça Schuman (10): Pôr os gigantes tecnológicos na ordem

1. Os grandes operadores digitais suscitam duas questões cruciais: (i) o descontrolo dos conteúdos disponibilizados (violação de direitos de autor, veiculação de terrorismo, fake news, etc.) e (ii) o abuso de posição dominante contra concorrentes e utilizadores, pondo em causa a concorrência.

É evidente que, tratando-se de operadores globais, dotados de enorme poder económico, nenhum país pode ter a ilusão de enfrentar sozinho tais problemas. Felizmente, há a União Europeia.

Ora, a Comissão Europeia acaba de avançar com dois novos instrumentos legislativos, destinados a atualizar e reforçar os mecanismos existentes, que se têm revelado insuficientes: o Digital Services Act (DSA), ou lei dos serviços digitais, e o Digital Markets Act (DMA), ou lei dos mercados digitais. Trata-se de propostas vigorosas, da responsabilidade conjunta de dois dos comissários mais asserivos do atual executivo da União, Verstager e Breton.

Os dois comissários explicam AQUI o essencial do novo regime proposto.

2.  Agora espera-se que as propostas venham a ser prontamente aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho e que os parlamentos nacionais - que podem pronunciar-se sobre todas as iniciativas legislativas da União - não fiquem de fora desta batalha pelos direitos individuais e a veracidade da informação online e pela concorrência nos serviços digitais no mercado interno da União. 

É preciso pôr os gigantes digitais em linha com os princípios do Estado de direito e a ordem económica da União. Já se faz tarde!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Barbárie tauromáquica (11): A "cultura" da tortura

Subscrevo inteiramente este texto sobre o absurdo de equacionar a proteção das touradas como "património cultural imaterial da humanidade" pela UNESCO.

No dia em que um Governo socialista, por oportunismo "lisboacêntrico", descesse à ignomínia de patrocinar ou apoiar uma tal candidatura, garanto que aí terminaria a minha confiança na integridade de uma política de esquerda. E se, por absurdo, a UNESCO caísse na vileza de considerar como património cultural da humanidade a sádica tortura sangrenta de animais indefesos para gáudio público, então eu concluiria que o mundo tinha ensandecido!