quarta-feira, 20 de abril de 2022

Não dá para entender (33): Faltam "senadoras" no PS?

1. Depois do brilharete da paridade entre homens e mulheres na composição ministerial do novo Governo, o PS dá uma cambalhota no que respeita à igualdade de género no desempenho de cargos políticos, propondo na AR somente candidatos masculinos ao Conselho de Estado (acrescentando agora Sampaio da Nóvoa aos repetentes Carlos César e Manuel Alegre). 

É caso para dizer que as mulheres interessam para os pesados cargos governamentais, onde a imagem do Governo conta politicamente, mas já são descartáveis quando se trata de honras e sinecuras institucionais.

2. A questão óbvia que se coloca é a de saber se no Largo do Rato existe alguma desconhecida norma de "reserva de masculinidade" quanto à composição do Conselho de Estado ou se não existe em todo o PS nenhuma "senadora" com perfil adequado para aquela discreta função consultiva do Presidente da República. 

Curioso vai ser saber se as deputadas do PS vão endossar politicamente esta surpreendente desconsideração do princípio por que tanto se tem batido o Partido (e as mulheres socialistas em especial)...

Adenda
Devo acrescentar (i) que defendo o equilíbrio de género no desempenho de cargos políticos desde há muito, quando mesmo as poucas mulheres politicamente ativas se inibiam de o defender, tendo tido intervenção na revisão constitucional de 1997 (que abriu caminho à "ação positiva" nessa área) e na preparação da legislação que posteriormente a concretizou e (ii) que entendo que um partido progressista como o PS não pode limitar-se às obrigações estabelecidas na lei, que necessariamente são um compromisso minimalista com outros partidos (também nada obriga na lei ao equilíbrio de género na composição do Governo...).

Adenda 2
Um leitor pergunta provocadoramente se o PS tem «mulheres à altura do cargo». Bom, bastaria um, mas ocorrem-me logo os nomes de Edite Estrela (deputada, vice-presidente da AR e antiga eurodeputada), Maria de Lurdes Rodrigues (Reitora do ISCTE e antiga ministra da Educação) e Francisca van Dunen (juiza-conselheira jubilada e ex-ministra da justiça), sem desprimor para outros nomes. O que não falta no PS são mulheres elegíveis para qualquer cargo público.

Guerra na Ucrânia (33): Más notícias na frente económica

1. Duas notícias preocupantes para a economia alemã: (i) a acentuada descida na previsão de crescimento pelo FMI para este ano, agora reduzida para 2,3% (a mais baixa das economias desenvolvidas, como mostra a tabela acima); (ii) a enorme subida dos preços na produção, a maior de que há registo estatístico há décadas, o que prenuncia um agravamento da inflação, que já vai em mais de 7%.

Atribuída essencialmente ao aumento da energia e das matérias-primas oriundas da Rússia e da Ucrânia, por causa da guerra e das sanções, esta degradação da situação económica na Alemanha, torna cada vez mais improvável o boicote à importação de gás russo, como Kiev exige, para o qual não existe alternativa num curto prazo.

2. Sendo a maior da UE, a evolução desfavorável do desempenho da economia alemã quanto a crescimento e inflação - aliás, também verificada no caso da França e da Itália - não pode deixar de repercutir-se nas demais, dada a sua profunda integração no mercado interno.

Por isso, são de esperar duas consequências: (i) uma revisão das perspetivas orçamentais nacionais na generalidade dos países, ou seja, menos receita e mais despesa pública e, portanto, mais défice e mais dívida pública e (ii) maior pressão sobre o BCE para a "normalização" da política monetária e para aumento da taxa de juro, a fim de travar a escalada inflacionista, o que vai contribuir para reduzir o crescimento económico.

As más notícias para a Alemanha (e outras grande economias europeias) são também más para Portugal, tornando problemático o enquadramento macroeconómico do orçamento ainda pendente de aprovação na AR.

3. O prolongamento da guerra, sem fim à vista, e o agravamento das sanções à Rússia não permitem mais considerar como conjuntural e passageira a deterioração da situação económica na UE, apesar da cornucópia de fundos do PRR. Como aqui se tem assinalado, fora os beligerantes, a União é a principal "vítima colateral" da guerra, enquanto os Estados Unidos e a China se contam entre os principais beneficiários.

O que é estranho é que, em vez de pressionar para uma solução política negociada do conflito - única forma de lhe pôr termo -, a UE continue a acicatá-lo e a apostar numa derrota da Rússia por «falência económica», por efeito das sanções, o que, mesmo que não seja pouco provável, não está seguramente para ocorrer a breve trecho (as projeções do FMI acima referidas não apontam para aí...), tendo também um preço elevado para a União, tanto maior quanto mais durar a guerra. 

domingo, 17 de abril de 2022

Ainda bem! (7): Se não geramos, importemos portugueses

1. Neste gráfico, retirado do Expresso desta semana, mostra-se que mais de 5% dos estrangeiros residentes em Portugal se naturalizam portugueses, somando mais de 30 000 em 2020, com brasileiros à cabeça, seguidos de cabo-verdianos, ou seja, cidadãos de países de língua portuguesa. É uma percentagem muito acima da média da União Europeia, só superada pela Suécia.

Trata-se de uma boa notícia, comprovando o bom desempenho do mecanismo da naturalização entre nós (lei e prática)

2. Há dois aspetos positivos nesta situação.

Por um lado, sendo a taxa de natalidade em Portugal muito baixa (uma das mais baixas da Europa), a naturalização de estrangeiros (residentes ou descendentes de portugueses) ajuda a conter a perda de população nacional e modera a taxa de envelhecimento, que coloca em risco o sistema de pensões; acresce que esses novos portugueses têm em geral mais filhos do que os portugueses originários. Por outro lado, com esses novos portugueses oriundos de outras geografias, Portugal fica mais plural, étnica e culturalmente, contrariando a estúpida teoria racista sobre a origem "caucasiana" dos portugueses.

Se não produzimos originarimente portugueses em número suficiente, ao menos que saibamos importá-los.

sábado, 16 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (32): Abastardamento bélico da linguagem

1. Costuma dizer-se que a primeira vítima das guerras é a verdade, mas há outra vítima não menos evidente, que é o abastardamento bélico de noções carregadas de sentido acusatório, como sucede hoje em dia, na guerra da Ucrânia, com a banalização da noção de genocídio

Instrumentalizada primeiro pela Rússia para justificar a invasão da Ucrânia, com base numa alegado "genocídio" da minoria russa no Dombass, a noção é agora utilizada como arma de guerra ideológica por Kiev e por Washington, com base numa alegado "genocídio" do povo ucraniano às mãos do invasor. 

Ora, por maior que tenha sido a flagelação ucraniana da minoria russófona no Dombass desde 2014 e por maior que seja a violência das tropas russas sobre a população ucraniana nas cidades sob ataque, a verdade é que nenhuma dessas situações preenche a noção de genocídio.

2. Com efeito, no seu significado corrente "genocídio" designa a destruição (ou tentativa) de uma etnia ou grupo nacional; e na definição do correspondente "tipo legal de crime" no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e na lei penal nacional a noção significa os atos de violência contra civis «praticados com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso, enquanto tal».  

Sublinhei as palavras "intenção", "grupo" e "enquanto tal", porque eles são essenciais na definição, não deixando dúvidas sobre os casos históricos mais dramáticos, como o genocídio judaico às mãos do nazismo alemão, que vitimou milhões de pessoaos, por serem judeus, ou o genocídio no Ruanda, em 1994, que vitimou mais de meio milhão de pessoas da etnia tutsi.

Ora, parece evidente que nem no caso ucraniano nem no caso russo se verificam os referidos elementos da noção de genocídio, pois nem a Ucrânia visava aniquilar a minoria russófona, enquanto tal, mas sim submetê-la politicamente, nem a Rússia se propõe dizimar o povo ou a nação ucraniana, enquanto tal, mas sim conseguir do governo ucraniano concessões políticas bem identificadas.

Entre os malefícios da guerra, bastam a destruição de vidas, de haveres e de património, não sendo preciso acrescentar o abuso ou a banalização de conceitos bem tipificados, que só perdem força ao serem descaracterizados.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Aplauso (23): A disciplina orçamental é de esquerda

1. Até há poucos anos, a frase do novo Ministro das Finanças, hoje em manchete no Expresso, de que «ter contas certas é uma política de esquerda», seria uma enorme heresia política, na boca de um dirigente socialista. 

Houve tempos em que 11-em-cada-10 pesssoas de esquerda consideravam o rigor orçamental e a disciplina das finanças públicas como dogmas da direita, com que a esquerda não podia alinhar, e em que a direita acusava as políticas de esquerda de só poderem ser financiadas com défice orçamental e com dívida pública, pondo em causa a estabilidade financeira do País. 

Sempre considerei essa tese ultrajante para a esquerda, cabendo aos governos socialistas desmenti-la na prática, provando, pelo contrário, que a responsabilidade orçamental é vital para uma política de esquerda.

2. Desde 2015, primeiro com Centeno e depois com Leão como ministros das Finanças, os governos do PS, apesar da "Geringonça", fizeram do equilíbrio orçamental e da diminuição da dívida pública condições essenciais para a redução dos encargos do financiamento do Estado e da economia. Um extraodinário desafio, globalmente bem sucedido, que a pandemia abalou mas não reverteu, como mostra o défice inferior a 3% no ano orçamental de 2021.

Além de se propor respeitar e coninura a seguir essa linha estratégica, Fernando Medina tem o mérito de a explicitar publicamente como credo doutrinário assumido da gestão financeira do PS no Governo. Uma frase para a história da esquerda-de-governo em Portugal. 

Agora, há que assegurar que a prática respeita a teoria e que a consolidação orçamental é para prosseguir com determinação.

Adenda
O principal problema deste orçamento é, como assinalou o Ministro, o elevado grau de incerteza sobre a evolução do quadro económico (inflação, clima económico, etc.), em consequência da guerra na Ucrânia - que ameaça prolongar-se e que afeta especialmente a UE. Preocupante é o facto de o BCE não acompanhar o endurecimento da política monetária de outros bancos centrais  no combate à inflação (EUA, Reino Unido, etc.), com o argumento do risco de «deterioração da confiança dos agentes económicos», a qual pode reduzir as perspetivas de crescimento económico que estão na base das previsões orçamentais e, consequentemente, pôr em causa as metas da consolidação orçamental.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (31): Ideias estapafúrdias

O partido Livre descobriu a pólvora para uma alternativa ao embargo às importações de combustíveis russos (gás, petróleo, etc.), que a UE não pode equacionar, por oposição de vários países (a começar pela Alemanha), que não podem prescindir dessas importações, sob pena de profunda recessão: o deputado Rui Tavares vem propor que a Europa deixe de pagar essas importações à Rússia e o dinheiro seja depositado numa conta que depois poderia vir a servir para pagar reparações de guerra à Ucrânia.

Um verdadeiro ovo de Colombo! Como é que até agora nenhum líder europeu se tenha lembrado dessa? Pois não é óbvio que o Conselho Europeu vai aprovar essa brilhante ideia a correr? Está-se mesmo a ver que a Rússia continuaria a fornecer gratuitamente o petróleo e o gás, aceitando tranquilamente o confisco do seu pagamento!

O curioso é a proposta invocar em seu favor o Direito Internacional, como se os contratos internacionais de fornecimento pudessem ser livremente incumpridos por uma das partes, sem que a outra rescinda licitamente o contrato. Que se saiba, a União ainda não declarou guerra à Rússia...

Com esta brilhante ideia, o Livre candidata-se ao prémio da ideia mais estapafúrdia para punir a Rússia pela invasão da Ucrânia!

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Antologia do nonsense político (19): "Austeridade", acusa o PSD

1. A acusação do candidato a líder do PSD sobre a alegada "austeridade" da proposta do orçamento para o corrente ano merece figurar numa seleção de despropósito político, tanto mais que aquela noção tem um sentido bem marcado entre nós, com referência ao período de assistência externa da troika (2011-2014), equivalendo a corte profundo na despesa pública (investimento e serviços públicos) e "aumento brutal de impostos", redução de pensões, de remunerações e de prestações sociais, etc.

Por isso, é uma contradição qualificar como "austeritário" um orçamento que faz justamente o contrário: aumenta a despesa e o investimento público, reduz a carga fiscal (IRS), eleva as pensões, amplia prestações sociais (abono de família, creches gratuitas, etc.), sobe as dotações para saúde, a educação e a cultura e toma um conjunto de medidas de apoio, no valor de várias centenas de milhões de euros, às empresas e aos consumidores para atenuar o atual surto inflacionista (combustíveis) e para apoiar o rendimento das famílias mais vulneráveis.

Como "prova de vida" do principal partido da oposição, deixa muito a desejar.

2. O que o orçamento não faz - porque nenhum Governo minimamente responsável (que, pelos vistos, não é o caso do PSD!) o faria - é aumentar remunerações e pensões antecipadamente, em função da inflação prevista, como alguns propõem, porque uma tal medida, para além do seu impacto orçamental e sobre a dívida pública, colocaria ainda maior pressão sobre os preços, podendo gerar um espiral inflacionista, de que, no final, trabalhadores e pensionistas seriam as principais vítimas.

No final do ano orçamental saber-se-á o verdadeiro nível da inflação verificada e ter-se-á uma perspetiva mais fiável sobre a sua evolução, cabendo ao(s) orçamento(s) do(s) ano(s) seguintes(s) prever as medidas necessárias para ir recuperando o poder de compra perdido, sem pôr em causa o controlo da inflação e a consolidação orçamental.

Adenda
quem entenda que «um orçamento com medidas sociais não deixa de ser de austeridade se não corrige a perda de poder de compra de milhões de portugueses». Mas é de perguntar: como é que o Estado poderia compensar a perda de poder de compra de quem não é funcionário público e pensionista!? Através de subsídios? De quantos milhares de milhões de euros? À custa de que défice orçamental? E com que efeitos sobre a inflação? É pena estas perguntas nem sequer terem sido enunciadas...

Guerra na Ucrânia (30): As outras vítimas

A Organização Mundial do Comércio (OMC/WTO) baixou em um terço a previsão de crescimento do comércio internacional de bens para este ano e alerta para a gravidade do aumento das cotações dos combustíveis e dos bens agrícolas (trigo, óleos vegetais, etc.) na situação alimentar dos países mais pobres, sobretudo em África, muito dependentes das importações desses bens da Rússia e da Ucrânia. A Organização chega a dizer que, a prolongar-se esta situação, ela poderá causar «fome generalizada» nos países em desenvolvimento.

Entretanto, com exceção da Turquia, não se veem esforços exteriores aos beligerantes, especialmente da UE (também vítima indireta da guerra), a favor de negociações para uma solução política para o conflito, entretanto suspensas, enquanto os confrontos se intensificam no Leste do país. Preparemo-nos para o prolongamento da guerra e para o agravamento dos seus efeitos, tanto na Europa, como especialmente nos países mais pobres.

Adenda
Para um preocupante panorama sobre os possíveis efeitos da guerra sobre os países em desenvolvimento, ver este relatório das Nações Unidas sobre o "Impacto global da guerra na Ucrânia nos sistemas de alimentação, energia e finanças". Um exemplo: o disparo dos preços dos bens alimentares, neste gráfico da Organização para a Aliemntação e a Agricultura, das Nações Unidas (FAO): 


terça-feira, 12 de abril de 2022

Campos Elíseos (8): O voto da extrema-esquerda na extrema-direita

1. Como se mostrou aqui, a sorte das eleições presidenciais francesas, a decidir na 2ª volta, a 24 de abril, está nas mãos dos eleitores de Mélenchon, o candidato da extrema-esquerda que ficou en 3º lugar na 1ª volta, com mais de 20%.

Ora, há já estimativas de que apenas cerca de 1/3 desses eleitores se propõem votar em Macron, enquanto cerca de 23% (quase um em cada quatro) tencionam mesmo votar na candidata da extrema-direita, Le Pen, optando a metade restante pela abstenção ou pelo voto branco ou nulo. O que é que pode explicar que tantos eleitores de Mélenchon apoiem Le Pen ou se recusem a contribuir para a sua derrota, não tomando partido? 

A explicação só poder ser esta: para esses eleitores o que une a extrema-esquerda à extrema-direita - ou seja, o antiliberalismo e o protecionismo (aversão à União Europeia e à globalização) - é mais forte do que aquilo que as separa.

2. Neste quadro, o que se decide no próximo dia 24 em França não é uma vulgar questão de alternância governativa numa democracia constitucional, mas sim uma verdadeira opção de regime, entre a democracia liberal, a economia de mercado e a integração europeia, de um lado, e o autoritarismo, o intervencionismo estatal e o recuo na integração europeia, do outro.

Por isso, não é só somente o futuro próximo da França que está em jogo, mas também o da União Europeia e o lugar da França no Mundo. 

Adenda
Um leitor comenta que também muitos eleitores do PCF se passaram para a direita nacionalista há muito tempo e que se trata do «refúgio das vítimas do neoliberalismo e da globalização». Sim, o neoliberalismo e a globalização têm as costas largas, mas há dois argumentos contra esse simplismo explicativo; por um lado, a França é seguramente um dos países que manteve um Estado social mais forte e um conjunto importante de empresas públicas com peso internacional; por outro lado, noutros países, onde o liberalismo económico e a abertura ao comércio internacional foram mais longe, como a Alemanha ou os Países Baixos, não se verifica um peso da extrema-direita populista tão grande como em França, nem muito menos o quase-desaparecimento dos partidos de centro-direita e de centro-esquerda tradicionais.

Adenda (2)
Uma sondagem de hoje, no Financial Times (12/4), prevê a vitória de Macron com cerca de 5 pp sobre Le Pen (52,7% contra 47,3%). A ser este o resultado nas urnas, trata-se de uma vantagem muito menor do que há cinco anos, confirmando a forte progressão da extrema-direita nacionalista. Um perigo!

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (29): Duplicidade de Washington não ajuda

1. Os esforços de Washington para levar Putin a julgamento no Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra na Ucrânia padecem de uma fatal contradição que não ajuda a credibilizá-los.

De facto: (i) os EUA (tal como a Rússia) não ratificaram o Tratado que instituiu o TPI, não aceitando a sua jurisdição; (ii) aprovaram uma lei a proibir qualquer financiamento ou apoio às atividades do Tribunal; (iii) pressionaram vários países que ratificaram o Tratado a excluirem a jurisdição do Tribunal sobre casos envolvendo americanos; (iv) chegram a aplicar sanções ao procurador e a outros oficiais do TPI contra iniciativas de investigação de eventuais crimes de guerra na Palestina e no Afeganistaão

Embora no Conselho de Segurança das Nações Unidas Washington tenha apoiado a investigação e acusação de certos crimes de guerra no TPI, fizeram-no sempre seletivamente, excluindo Israel, além de que nunca naturalmente permitiriam a acusação de um nacional seu.

2. Por isso, ao contrário dos países europeus, incluindo Portugal, que ratificaram convictamente o Tratado e financiam o seu funcionamento, a agressiva hostilidade de Washington ao TPI não lhe dá nenhuma credibilidade para exigir o julgamento de Putin e dos seus generais na Haia (o que, aliás, sempre estaria excluído, por a Rússia também não estar vinculada ao Tratado). 

Em matérias sensíveis como estas, a duplicidade política não ajuda. Uma potência não tem legitimidade para exigir a submissão de outra à justiça internacional que ela própria rejeita.

domingo, 10 de abril de 2022

Campos Elíseos (7): Macron leva de novo a melhor

1. Com avanço semelhante ao de há cinco anos, Macron bateu de novo Le Pen na 1ª volta das eleições presidenciais francesas (gráfico acima com resultados provisórios), ficando bem colocado para vencer a 2ª volta e ser reeleito, se, como se espera, vier a contar com a maioria dos votos da esquerda e da direita republicana contra a candidata da extrema-direita, Le Pen.

Depois de em 2017 ter destroçado o PSF, deste vez a principal vítima de Macron foi a direita republicana. A candidata dos Les Republicains (Pécresse) obtém menos de 5% (em 5º lugar), enquanto a candidata socialista (Hidalgo) agrava a queda do PS, ficando agora com apenas 2% (em 10º lugar). 

Trata-se de uma hecatombe política para os dois partidos que foram os protagonistas políticos da V República durante décadas, tendo sempre elegido o Presidente da República

2. É o fim de uma era em França, em que o confronto político se travava entre a direita moderada e a esquerda moderada, agora reduzidas à mínima expressão eleitoral!

Para isso contribuiu não somente o sucesso da via centrista de Macron, mas também a radicaliação política do voto, traduzida na elevada votação dos três candidatos da extrema-direita (que somam mais de 30%) e do candidato da extrema-esquerda, Mélenchon (em 3º lugar, com mais de 20%), humilhando os demais candidatos da esquerda.

Com este quadro político, embora a provável reeleição de Macron torne previsível a vitória do partido presidencial (LRM) nas próximas eleições parlamentares, a composição do Parlamento e a correlação pós-eleitoral de forças políticas torna-se uma incógnita política. Aguardemos o II acto!

[revisto]

Adenda
A vitória do Presidente cessante na 2ª volta depende essencialmente dos eleitores de Mélenchon. Embora excluindo de todo o voto em Le Pen, o candidato da França Insubmissa anunciou uma consulta interna sobre a posição a tomar (voto em Macron ou voto em branco); há cinco anos, uma maioria dos seus eleitores pronunciou-se pelo voto em branco, o que não impediu a vitória de Macron. Confiemos em que desta vez suceda o mesmo, ainda que a maioria da extrema-esquerda prescinda de votar contra Le Pen. 

Adenda 2
Resultados oficiais AQUI, com pequenas diferenças em relação às previsões acima referidas.

sábado, 9 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (28): Reforço da Nato

Parece evidente que as coisas não estão a correr bem à Rússia, nem no plano militar (perdas em combate, retirada das proximidades de Kiev e arrastamento do conflito), quer no plano reputacional (crescentes indícios de crimes de guerra). 

Para agravar as coisas, mesmo que a Rússia acabe por obter um dos seus grandes objetivos, ou seja,  forçar a Ucrânia a desistir de entrar na Nato, reassumindo o seu estatuto de neutralidade, a verdade é que tudo indica que a organização de defesa ocidental vai sair reforçada, quer pela demonstração de unidade entre os EUA e a Europa, quer pelo compromisso de aumento das despesas militares dos países europeus, quer, sobretudo, pela perspetiva de adesão à Nato de países tradicionalmente neutrais, como a Finlândia e a Suécia, o primeiro com fronteira com a Rússia e o segundo, um dos mais antigos países neutrais do mundo. 

Um notável revés político da Rússia.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Social-democracia (8): Reduzir as desigualdades

Contrariando a crítica infundada do candidato a líder do PSD, Luís Montenegro, sobre um alegado aumento das desigualdades com os governos PS, esta análise mostra que entre 2015 e 2019 melhorou a repartição social do rendimento nacional e diminuiu o risco de pobreza após transferências sociais. 

Embora o crescimento económico tenha obviamente contribuído para esse resultado (menos desemprego e mais receita pública), não é lícito escamotear a importância decisiva das políticas sociais adotadas (quanto a salário mínimo, pensões mínimas e outras transferências sociais).

Ou seja, a social-democracia a funcionar.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Não concordo (32): Contradições

1. Discordo desta medida de redução suplementar da carga fiscal sobre os combustíveis (incluindo a taxa sobre o carbono!), que me parece contraditória com os objetivos de descarbonização da economia, de descongestionamento do tráfego urbano e de preferência pelos transportes coletivos. 

Em vez de gastar dezenas de milhões de euros (em perda de receita) a favor dos automobilistas - que não são seguramente a secção mais pobre dos portugueses -, o Governo faria bem melhor em desviar essa verba para reforçar nesta emergência inflacionista o apoio à parte mais vulnerável da população, que vê aumentar perigosamente o preço do cabaz de compras essencial, assim como para subsidiar a utilização dos transportes coletivos.

Entre a elevada carga fiscal nacional, a tributação dos combustíveis é seguramente a parte mais justa, em termos sociais e ecológicos.

2. Acresce que a subida da cotação internacional dos combustíveis começou antes da guerra na Ucrânia, não tendo nesta a sua única explicação (nem, porventura, a principal), pelo que não desaparecerá com o desejável fim desta. 

Sendo assim, é errado responder a alterações estruturais do preço do crude e do gás natural com medidas de apoio aos consumidores, de elevado custo orçamental (subsídios gerais, baixas de impostos indiretos), que porventura teriam justificação se se tratasse de um pico transitório.

Adenda
Considero absolutamente despropositada a ideia de o Estado devolver aos contribuintes em geral os impostos que vai cobrar a mais por causa da inflação, designadamente em sede IVA e de impostos especiais sobre o consumo. Se é certo que a receita fiscal vai aumentar por causa do aumento de preços (mesmo que o respetivo consumo sofra alguma redução), também vai aumentar a despesa pública com a aquisição de bens e serviços mais caros e com o investimento público, sem contar com a redução da previsão de receita de outros impostos (por causa da redução do crescimento económico), com a subida dos juros da dívida pública e com a necessidade de financiar o apoio extraordinário ao consumo em bens essenciais (energia, cabaz de compras) das famílias mais pobres. Não faz sentido a ideia de que a inflação gera um "enriquecimento injustificado" do Estado por via de impostos.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Bloquices (18): Gasolina no fogo

1. Sem surpresa, o Bloco de Esquerda veio anunciar as suas propostas para "combater a inflação", um menu, porém, que, em vez de parar o aumento do custo de vida, não faria senão provocar uma espiral inflacionista. 

Quando o surto inflacionista é movido sobretudo por constrangimentos na oferta, como é o caso agora (energia, bens alimentares, etc.), o congelamento administrativo de preços e o aumento automático de rendimentos tendem a gerar, respetivamente, mais escassez e mais inflação. Um círculo vicioso, onde os mais débeis perdem sempre. 

De resto, não faz sentido que, enquanto a política monetária do BCE encara agora a inflação seriamente, a nível interno fosse adotada uma política fiscal e orçamental e de rendimentos pró-cíclica, que só poderia alimentar mais inflação.

2. Todos estamos condenados a pagar, em erosão do poder de compra, a nossa parte côngrua do "imposto geral" que a inflação sempre implica. Por isso é que a inflação é sempre viciosa.

Como já aqui defendi há algumas semanas, o Governo deve concentrar-se num programa de ajuda às famílias mais vulneráveis (aliás, como já anunciado), para impedir que a inflação aumente os níveis de pobreza, acompanhado de tributação excecional sobre os windfall profits das empresas que tiram partido da escassez e da carestia de bens essenciais, cuja receita ajudaria a financiar aquele programa. 

Numa "economia social de mercado", o papel do Estado pode e deve ser o de moderar o impacto social negativo do surto inflacionista e não o de alimentá-lo e prolongá-lo com pretensas medidas de combate que só podem revelar-se contraproducentes.

Adenda
Um leitor acha que nos devemos felicitar por, depois de 30 de janeiro, «o Governo não estar dependente da irresponsabilidade política do BE e do PCP». Penso que, deixando de ter condições para obter compromissos políticos e orçamentais favoráveis no quadro da "Geringonça", esses partidos também se sentem mais livres de qualquer corresponsablidade governativa, para defenderem as suas posições mais radicais, sem inibições, como genuínos "partidos de protesto" que voltaram a ser.

Adenda 2
Na sua idiossincrásica vocação para a leviandade política - que o levou a alinhar com a extrema-esquerda parlamentar por exemplo na recuperação integral da antiguidade dos professores e na baixa das portagens nas antigas autoestradas SCUT - Rui Rio também veio reclamar a atualização dos salários pela inflação! Mais um político que parte sem deixar saudades políticas... 

domingo, 3 de abril de 2022

Eleições: Propostas votadas ao fracasso

1. No Jornal de Notícias de hoje (versão eletrónica reservada aos assinantes), o investigador Luís Humberto Teixeira calcula que nas eleições parlamentares de 30 de janeiro passado aumentou muito o número de votos desperdiçados, ou seja, os votos que não contam para eleger deputados, afetando sobretudo os partidos com menor representação parlamentar (gráfico à esquerda, curva vermelha).

Isso é consequência da existência de vários círculos eleitorais de tamanho reduzido (a que cabem poucos deputados), onde o "limiar de eleição" é elevado e onde, portanto, somente os dois maiores partidos conseguem eleger deputados. Dado o grande número de voto desperdiçados, o "preço" de cada deputado (em número de votos) nesses círculos é muito inferior aos círculos maiores, onde há maior proporcionalidade e menor perda de votos (como mostra a coluna à direita).

Por conseguinte, a atual divisão de círculos eleitorais gera o desperdício de demasiados votos e uma grande desigualdade do grau de proporcionalidade nos diferentes círculos.

2. Para corrigir esta situação, o autor aventa três soluções: (i) um círculo eleitoral único, como nas eleições regionais da Madeira; (ii) um círculo nacional de "compensação", ou seja, de recuperação dos votos não aproveitados nos círculos territoriais, como nas eleições regionais dos Açores; (iii) aumentar o tamanho dos círculos eleitorais, substituindo no Continente os 18 círculos de base distrital, por cinco círculos de base regional (NUTS II).

No entanto, além de a primeira hipótese ser manifestamente inconstitucional - pois a CRP prescreve a existência de uma pluralidade de círculos territoriais -, todas elas, quando aplicadas à eleição dos 230 deputados da AR, iriam reduzir excessivamente o limiar eleitoral e aumentar exponencialmente o grau de proporcionalidade do sistema, provocando uma fragmentação adicional da representação parlamentar e inviabilizando vitórias parlamentares robustas do partido mais votado, eliminado o atual "prémio de vitória", ou seja, a "majoração" de deputados do partido vencedor. 

Por isso, nenhuma delas me parece politicamente aceitável pelos partidos de governo (PS e PSD), de cujo voto depende qualquer mudança da lei eleitoral.

3. Como já tenho defendido várias vezes, entendo que se justificam as seguintes obras no sistema eleitoral, quanto aos círculos eleitorais (deixando de lado outros aspetos):

    - reduzir a atual assimetria dos círculos (2 deputados em Portalegre e 48 em Lisboa!), não apenas agregando os círculos mais pequenos, mas também dividindo os maiores, de modo a atenuar substancialmente as desigualdades acima referidas, sem, porém, reduzir o atual limiar médio de eleição parlamentar, nem aumentar o grau de proporcionalidade global do sistema;

   - criar um círculo eleitoral nacional sobreposto de tamanho razoável, mas não excessivamente grande (elegendo à volta de 1/10 dos deputados), em que contariam todos os votos entrados nos nos círculos territoriais (e não somente os votos desperdiçados), assim valorizando tendencialmente os votos de todos os cidadãos em partidos de dimensão minimamente relevante, sem, todavia, aumentar o grau de proporcionalidade. 

Não vale a pena congeminar propostas de alteração do sistema eleitoral que aumentem a fragmentação parlamentar e afetem a governabilidade, pois estão votadas ao fracasso - e a meu ver, bem.

[Alterada a rubrica do post]

Adenda
Um leitor objeta, com toda a razão, que haverá sempre votos desperdiçados, que não contam para nada, nos partidos de reduzida expressão eleitoral. Todavia, pode e deve (i) reduzir-se a dimesão do desperdício de votos e (ii) dar-se relevância aos votos em partidos de dimensão eleitoral minimamente relevante a nivel nacional, onde quer que sejam emitidos. É uma questão de igualdade política.

Adenda 2
Torna-se evidente, nas minhas propostas acima, que não sou partidário da importação do sistema eleitoral alemão - segundo o qual cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominais (por maioria relativa), os quais, porém, entram depois na repartição proporcional dos deputados ao nível do círculos plurinominais "regionais" de que aqueles são parte -, que considero inaplicável entre nós. Felizmente, o PS deixou de se comprometer com ele no seu último programa eleitoral.

Adenda 3
Um leitor objeta que as minhas propostas de alteração ao sistema eleitoral «estão exatamente tão votadas ao fracasso como todas as outras, dado que os partidos dominantes (PS e PSD) têm fortes sistemas de poderes locais - concelhias e distritais - que não aceitarão diluir-se». Não sou dessa opinião: penso que os dois partidos não podem continuar a assistir ao aumento do número de deputados em Lisboa e no Porto, que ajuda a fragmentar a representação parlamentar, e não podem dividir os círculos grandes, sem ao mesmo tempo concentrar os mais pequenos, para terem uma justificação. Em todo o caso, as minhas propostas, exequíveis ou não, parecem-me mais razoáveis do que as outras, porque não subvertem o atual sistema eleitoral.

sábado, 2 de abril de 2022

Não vale tudo (9): E porque não uma estrela amarela?!

1. Na sua coluna de hoje no Público (acesso eletrónico exclusiva para assinantes), J. M. Tavares critica o facto de Augusto Santos Silva e Edite Estrela terem sido eleitos respetivamente presidente e vice-presidente da AR, apesar de, no seu entender, serem «duas das pessoas que mais ativamente colaboraram com o homem que liderou o regime mais corrupto desde o 25 de Abril».

Esta acusação gratuita é politicamente indefensável. Primeiro, mesmo que Sócrates venha a ser condenado pelos crimes por que está acusado (onde consta um crime de corrupção), isso não transforma em corruptos nem o PS, nem os governos daquele, nem muito menos o seu "regime" (o que quer que isso seja); a parte não contamina o todo! Em segundo lugar, é inadmissível corresponsabilizar pelos referidos crimes quem tenha colaborado com Sócrates no PS, no Governo ou no Parlamento, desde logo porque os factos que lhe são imputados só vieram a ser conhecidos posteriormente e porque nada têm a ver com eles; eventualmente a responsabilidade política pode "objetiva" (sem culpa), mas não pode ser superveniente. Por último, mesmo que, por absurdo, fosse de imputar responsabilidade coletiva ao PS ou aos colaboradores de Sócrates, os eleitores já a teriam "amnistiado" nas eleições em 2019 e 2022, em que, aliás, aqueles dois dirigentes do PS (e outros colaboradores chegados de Sócrates) foram candidatos em lugares destacados.

Só falta mesmo culpabilizar também os presidentes da República que com ele coabitaram e cooperaram politicamente, devendo ter-se dado conta das malfeitorias secretas do chefe do Governo.

2. Não sei se a sanha persecutória de alguns "antissocratistas" profissionais os vai impedir de irem até ao fim e exigirem a ostracização política perpétua de todos os colaboradores do antigo Primeiro-Ministro, obrigando-os a usar um sinal identificador para escarmentação pública.

É óbvio que não lhes ocorre considerar que os antigos colaboradores e apoiantes de Sócrates o foram em nome do seu programa de resgate da autoridade do Estado e do bom desempenho das instituições (depois da deriva de Santana Lopes), de reforma e modernização do País (economia, segurança social, saúde, ensino superior, etc.), de combate aos privilégios de corporações de interesses de toda a ordem à custa do orçamento (incluindo os jornalistas...), que nunca lhe perdoaram a desfeita.

A provável condenação do antigo PM por crimes no exercício de funções mancha obviamente a sua obra, mas não condena nem desautoriza politicamente também aqueles que de boa fé colaboraram na sua realização, ao serviço da República.

Bicentenário da Revolução Liberal (36): Celebrando um dos "pais intelectuais" da Revolução

Na sua terra natal (Montessão, São Martinho do Bispo, Coimbra), e comemorando os 250 anos do seu nascimento (1772), foi há dias inaugurado o busto de José Liberato Freire de Carvalho - que ficou conhecido simplesmente como José Liberato (apelido aliás autoadotado em 1813) -, que foi um dos primeiros e um dos mais eminentes doutrinadores do liberalismo e do constitucionalismo, antes, durante e depois da Revolução de 1820.

Erigido pela autarquia, sob proposta da "Comissão Liberato", que há vários anos evoca a vida e obra do grande pensador e deputado às Cortes liberais, o busto fica a perpetuar a memória de um dos grandes autores e construtores da modernidade política em Portugal, desde o combate contra a monarquia absoluta do Campeão Português, no exílio em Londres, passando pelo efémero parlamento vintista (1822-1823) e pela luta contra a usurpação miguelista (1828-34), voltando a ser deputado depois do triunfo liberal nas Cortes cartistas de 1834-36 e, após a Revolução de Setembro, nas Cortes Constituintes de 1836-38. Morreu em 1855, deixando uma vasta obra publicada.

É de esperar que a celebração dos 250 anos de um dos "pais intelectuais" da Revolução venha proporcionar um melhor e mais amplo conhecimento da sua vida, obra e pensamento político, como bem o merece. Devemos-lhe muito, nós, os herdeiros do constitucionalismo liberal!

sexta-feira, 1 de abril de 2022

O que o Presidente não deve fazer (31): Não é Presidente que define o programa do Governo

1. A jornalista Ângela Silva, do Expresso, não tem razão, quando escreve que «nem [Jorge] Sampaio, que detestava Santana primeiro-ministro, o condicionou tanto na posse», como agora Marcelo Rebelo de Sousa condiciona António Costa.

Na verdade, em 2002, ao dar posse a Santana Lopes, depois da saída de Durão Barroso para Bruxelas,  Sampaio ultrapassou todas as marcas - como na altura me encarreguei de denunciar de forma vigorosa -, ao estabelecer publicamente um grande conjunto de interdições e obrigações à ação política do Governo, comprimindo abusivamente a liberdade do Primeiro-ministro para a definição e execução do seu programa de governo. 

Mas é verdade que, também desta vez, o Presidente da República não se eximiu a condicionar a orientação, o programa do Governo e as suas políticas, estabelecendo um verdadeiro "caderno de encargos", onde se contam coisas tão concretas como a «vacinação contra a gripe» (!), a «proteção dos custos dos bens essenciais», «reformar depressa e bem o SNS», «apostar muito mais no crescimento sólido e duradouro do país», ter uma «estratégia global para combater as desigualdades» e «uma melhor Justiça, a exigir passos mais vigorosos».

Todos esses objetivos políticos podem ser muito meritórios - mas não compete ao PR estabelecê-los antecipadamente.

2.  No nosso sistema de Governo, o Presidente não cogoverna nem superintende na ação governativa. É o Governo, sob direção do PM que, tendo em conta o programa eleitoral do(s) partido(s) governante(s), define livremente o seu programa e conduz livremente a sua ação, sob controlo político da AR, perante quem é politicamente responsável. 

Os poderes de controlo presidencial sobre o Governo são essencialmente negativos, através do veto legislativo, da recusa de nomeações propostas por aquele, etc. Ao definir um "menu" político para a ação governativa, o PR entrou em terrenos sobre que não tem jurisdição. 

Ora, no nosso sistema de governo de base parlamentar, mas em que o Presidente é titular um forte "poder moderador" (poder de veto legislativo, poder de dissolução parlamentar, etc.), é essencial observar estritamente a separação constitucional de funções entre um e outro, sob pena de perniciosos litígios institucionais.

quinta-feira, 31 de março de 2022

Não concordo (31): Contra o boicote institucional

1. Os deputados da nova AR só conseguiram eleger dois dos quatro vice-presidentes constitucionalmente previstos - os candidatos dos dois maiores partidos (PS e PSD) -, tendo falhado a eleição os candidatos dos dois partidos mais à direita, da IL e do Chega (este em segunda tentativa). 

Sendo a rejeição inatacável sob o ponto de vista constitucional e regimental - pois, segundo a Constituição, os vice-presidentes precisam de uma maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções -, já sob o ponto de visto político e institucional a questão é menos evidente. Se, quando o 3ª e 4ª maiores partidos parlamentares eram o BE e o PCP, não foi posto em causa o seu direito a assumirem as correspondentes vice-presidências, pode não ser fácil explicar porque é que as coisas mudam quando eles são substituídos por partidos de direita.

A verdade é que a mesa da AR só fica constitucionalmente completa com os quatro vice-presidentes, pelo que os dois referidos partidos têm um direito constitucional a apresentar sucessivas candidaturas, com os mesmos ou outros candidatos, enquanto os seus lugares continuarem vagos. O arrastamento do processo, mantendo uma composição politicamente desequilibrada e constitucionalmente incompleta da mesa, não prestigiaria a AR.

2. É certo que em relação ao Chega, há manifestamente uma posição concertada à esquerda para boicotar o seu acesso ao governo da AR.

No entanto, se pode compreender-se um boicote político, dadas as posições ultra desse partido, já outro tanto não sucede com a ideia do boicote institucional, o qual, além de proporcionar ao Chega um fácil argumento de perseguição e de vitimização política, lhe retira o direito constitucional de participar no autogoverno parlamentar, incluindo o direito de integração qualificada na Comissão Permanente da AR, onde os vice-presidentes têm lugar por inerência (o que pode inclusivamente suscitar dúvidas sobre a regularidade do seu funcionamento). 

Uma coisa é a rejeição de qualquer negociação ou acordo político com o partido de extrema-direita populista; outra coisa é a sua exclusão institucional. Mesmo os partidos que não respeitam a democracia liberal têm direito a invocá-la em seu favor...

Adenda
É um dislate o deputado Mithá Ribeiro insinuar que foi por "questões raciais" que foi rejeitado, sabendo bem que só o foi por ser candidato do Chega. De resto, até teve mais votos do que o primeiro candidato rejeitado do mesmo partido, que é um genuíno-branco-europeu-de-autêntica-cepa-"caucasiana"! Inventar "questões raciais" em benefício próprio não dignifica ninguém, muito menos um deputado...

Adenda 2
Um leitor pergunta se a questão pode acabar no Tribunal Constitucional. Poder, pode, mas duvido que haja solução judicial para esta questão. A Constituição prevê recurso dos atos eleitorais realizados na AR, mas não há nenhuma ilicitude nas votações realizadas - os deputados são livres de votar como querem e o voto é secreto. Por outro lado, as decisões políticas, como o boicote ao Chega, não são suscetíveis de escrutínio pelo TC. Por isso, a solução do impasse só pode ser política, por exemplo através de recomendação dos grupos parlamentares aos seus deputados.

Praça da República (65): O Primeiro-ministro não é infungível

1. Mesmo que o não diga explicitamente, a frase "assassina" do PR no discurso de tomada de posse de PM sobre a "pessoalidade" da vitória eleitoral de António Costa e consequente impossibilidade de deixar o lugar a meio do mandato e ser substituído por outro (como os comentadores se apressaram a ler) vai ser naturalmente aproveitada pelos poucos adeptos da qualificação do sistema de governo português como "primo-ministerial", baseado na legitimidade eleitoral pessoal própria do PM.

Mas não é assim. Por mais pessoalizadas que sejam as eleições, hoje em dia, em todos os sistemas de governo parlamentar, António Costa é primeiro-ministro por ser (i) líder do partido que ganhou as eleições e que (ii) detém uma maioria de deputados na AR, pelo que (iii) goza da indispensável confiança parlamentar para governar.

Lamento informar, mas, por mais poderes que tenha, o Presidente da República não tem seguramente o poder de mudar a Constituição e decretar a substituição do sistema de governo.

2. Em caso de interrupção do mandato do primeiro-ministro em funções (por morte, renúncia ou candidatura a outro outro cargo político), nem a Constituição nem a lógica do sistema de governo impedem a sua substituição por outro candidato do partido de governo, como, aliás, sucedeu em 2004 (Santana Lopes). Todos os anos há casos de substituição tranquila do primeiro-ministro em sistemas de tipo parlamentar como o nosso.

É claro que no nosso sistema político, o PR pode preferir usar o seu poder politicamente discricionário de dissolução parlamentar, interrompendo a legislatura e o mandato governamental. Mas se o fizer, fá-lo por sua conta e responsabilidade política, não podendo invocar nenhuma caducidade "automática" do mandato supostamente pessoal do PM que deixa funções. 

Ao contrário do mandato presidencial - esse, sim, de natureza incontornavelmente pessoal -, o mandato do primeiro-ministro é, por definição, fungível (ou seja, substituível). 

3. Por conseguinte de duas, uma: ou o próprio Costa já decidiu levar o mandato até ao fim, como parece resultar de declarações próprias (incluindo uma passagem do seu discurso de posse, sobre a «estabilidade politica até outubro de 2026»), renunciando antecipadamente a um cargo europeu que pode vir a estar ao seu alcance, ou pode ver-se constrangido a fazê-lo, por receio de o PR preferir interromper a legislatura e a estabilidade governativa, à custa da continuidade do governo do PS.

Em qualquer caso, por vontade própria ou alheia, parece ficar fora de causa a hipótese de presidente do Conselho Europeu, para o qual o prestígio e a autoridade política em Bruxelas o credenciam. Uma perda para a União e para Portugal!

[Revisto: mudança na rubrica do post]

Adenda 
De um leitor "provocador": «Ao querer limitar o futuro europeu de AC, o PR conferiu-lhe uma legitimidade [de] que até agora só o próprio PR dispunha, a de eleito pessoal e diretamente pelos portugueses. Agora PR e PM têm politicamente a mesma legitimidade, só se distinguindo nas competências. A maldade presidencial fez notícia, mas a parificação das legitimidades confere ao atual PM um poder a que nenhum dos seus antecessores foi conferido. Ou seja, a maldade pela culatra!». Bem congeminado: com a vantagem adicional de Costa ter as rédeas do poder...

Adenda 2
Acrescente-se que os únicos cargos políticos executivos que entre nós gozam de legitimidade eleitoral pessoal direta, podendo inclusivamente não ser candidatos de partidos políticos - ou seja, os presidentes de câmara municipal -, são automaticamente substituídos, em caso de vagatura, pelos candidatos seguintes na lista de candidatura, que obviamente não gozam, nem de perto nem de longe, da sua legitimidade eleitoral.

Adenda 3
Um professor de Direito Constitucional lembra que nos próprios regimes presidencialistas - em que o Presidente é cumulativamente chefe do Estado e chefe do governo e goza de legitimidade eleitoral direta (ou semidireta, como nos Estados Unidos) fortemente personalizada -, a vagatura do cargo (por morte, renúncia ou destituição) não acarreta novas eleições, sendo o período restante do mandato desempenhado pelo vice-presidente e, no caso de falta deste, por outros titulares de cargos políticos (como o presidente do parlamento), que não gozam obviamente da legitimidade eleitoral pessoal do Presidente.

Adenda 4
Entre nós, a prova de que o PM não é infungível não está somente na legislatura de 2002-04 (em que o PM inicial, Durão Barroso, do PSD, foi substituído por um PM do mesmo partido, Santana Lopes), mas também na legislatura de 2015-19, em que houve dois governos de diferentes partidos, pois o PM inicial, Passos Coelho, líder do partido vencedor das eleições (PSD), foi rejeitado na AR e substituído pelo líder do segundo partido mais votado (PS), António Costa. Nenhum deles tinha sido supostamente "eleito" para o cargo...

Adenda 5
De resto, se a saída do PM (voluntária ou não) se der nos primeiros seis meses da legislatura ou nos últimos seis meses do mandato presidencial, o PR está constitucionalmente impedido de dissolver o Parlamento, sendo, portanto, obrigado a aceitar a substuição do chefe do Governo, sem novas eleições.

Guerra na Ucrânia (27): Economia europeia sofre

Vão-se acumulando os fatores de preocupação sobre o impacto da guerra na economia europeia, quer quanto ao disparo da inflação, batendo records de várias décadas (mais de 7% na Alemanha, quase 10% em Espanha) - reduzindo o rendimento real de trabalhadores e pensionistas -, quer quanto à degradação do "sentimento económico" entre consumidores e investidores, o que intensifica a travagem do crescimento económico, colocando a União numa "fase difícil», como acaba de alertar a presidente do BCE.

Apesar disso, enquanto as negociações entre os beligerantes continuam longe de uma solução política do conflito, sem que a União assuma uma postura ativa a apoiar essa via, os Estados Unidos e os falcões da Nato insistem em novas medidas sancionatórias sobre a Rússia (como esta decidida unilateralmente pela Polónia), as quais, além de provarem ser tão pouco dissuasoras como as anteriores, só podem agravar o impacto recessivo na Europa, pelo seu "efeito de ricochete".

Adenda
Um dos efeitos positivos das sanções financeiras contra a Rússia, designadamente o congelamento das suas reservas em divisas depositadas na Europa (grande parte em dólares), pode ser a erosão do império do dólar como moeda de reserva e de pagamento internacional. Ao transformar o dólar em arma de guerra económica, Washington abalou a confiança internacional na moeda, levando à opção por outras moedas como meio de pagamento internacional e como divisa de reserva. A desconcentração do sistema monetário internacional é positiva.

quarta-feira, 30 de março de 2022

O que o Presidente da República não deve fazer (30): Uma linha vermelha

1. Não é aceitável que, em flagrante violação da natureza laica do Estado consagrada na Constituição, o Presidente da República participe, nessa qualidade, em cerimónias religiosas (missa e procissão) em homenagem à Senhora da Conceição como "padroeira de Portugal", como decorre desta página do site oficial da Presidência.

Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente da República de um Estado não confessional, baseado na liberdade e pluralismo religioso e na separação entre as igrejas e o Estado, pelo que os titulares do poder político não podem, enquanto tais, promover ou participar em cerimónias religiosas. Um Estado laico não tem religião, nem pode ter uma padroeira oficial

A Igreja Católica tem toda a liberdade de prestar tributo a uma "padroeira" do País, mas o Estado não pode ser tido nem achado nessa matéria. Como cidadão católico, MRS tem todo o direito de participar em cerimónias religiosas, a título particular, mas não pode introduzir cerimónias religiosas no exercício da sua função oficial como Presidente da República, em que representa institucionalmente todos os portugueses, independentemente da sua religião, sem discriminações nem favoritismos.

2. Quando se aproximam os 50 anos do regime democrático - que recuperou a separação entre o Estado e a religião e superou pacificamente a "questão religiosa" da I República -,  é incompreensível retomar práticas mais próprias da furtiva confessionalidade do anterior regime

A não ter sido um lapso a publicação da notícia no site oficial da Presidência, é de esperar, pelo menos, que este lamentável episódio seja um acidente e não a expressão de uma deriva de Belém à margem da Constituição, num tema historicamente tão sensível como este, desprezando uma verdadeira "linha vermelha" republicana.

Adenda
Não se trata da primeiro atentado grave de um PR à separação entre o Estado e a religião, participando oficialmente em cerimónias religiosas. O próprio Jorge Sampaio aceitou o convite para assistir a uma missa em Fátima, no ano 2000, aquando da visita do Papa João Paulo II; embora sendo público apoiante de JS, a cuja comissão de candidatura tinha pertencido, não deixei de censurar asperamente a sua atitude. Felizmente, trata-se de situações ocasionais de imprudência ou oportunismo presidencial.

Adenda 2
Um leitor observa, com toda a razão, que, mesmo que não houvesse o impedimento constitucional, sempre o PR deveria abster-se de participar, nessa qualidade, em cerimónias religiosas, por uma simples questão de respeito pelos seus eleitores e demais cidadãos que ele oficialmente representa e que não são crentes ou que são fieis de outras religiões.

Praça da República (64): "Upgrade" governativo dos assuntos europeus

Eis o meu artigo de hoje no Público (acesso eletrónico exclusivo dos assinantes), aplaudindo a separação do pelouro governamental dos Assuntos Europeus do MNE, passando à superintendência direta do Primeiro-ministro. Trata-se de aprofundamento da posição desde há muito defendo, por exemplo aqui e, por último, aqui
Vencendo a provável resistência dos beneficiários do statu quo institucional, trata-se de uma inovação politicamente lógica e coerente, que eleva o ranking governativo da política nacional sobre assuntos europeus, como se impunha, e que só peca por tardia!

terça-feira, 29 de março de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (35): Um tentativa falhada de abortar a Revolução

1. Mais um livro da minha parceria com o Professor José Domingues para a história da Revolução Liberal de 1820, desta vez sobre a falhada tentativa - até agora mal conhecida - da Regência de Lisboa de convocar apressadamente as Cortes à moda antiga (clero, nobreza e "povo") sob a égide do rei, para fazer abortar a revolução iniciada no Porto. Uma edição da Universidade Lusíada.

Da contracapa: 
«Ao tempo da Revolução Liberal (1820), as Cortes portuguesas já não reuniam há mais de um século e a ideia de as convocar de novo suscitou uma acesa disputa por parte das duas forças em conflito – a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino (sediada no Porto) e a Regência do Reino (sediada em Lisboa). Do lado revolucionário, a convocação das Cortes destinava-se a dotar o país de uma Constituição e resgatá-lo do despotismo da monarquia absoluta. No entanto, a Regência do Reino decidiu contra-atacar e convocar as Cortes tradicionais para frear o avanço do movimento revolucionário. Este livro analisa esta tentativa falhada de ressuscitar as antigas Cortes e a subsequente querela político-doutrinária sobre a legitimidade para as convocar, que tem passado praticamente despercebida na historiografia da Revolução Liberal, apesar de dela ter resultado a primeira lei eleitoral portuguesa.»

 O livro tira partido de um conjunto de documentos inéditos, entre eles as instruções da Regência para a eleição dos procuradores municipais às ditas Cortes -, ou seja, a primeira lei eleitoral portuguesa (ainda que sem aplicação efetiva)!

2. A derrota desta operação da Regência, em desespero de causa, "forçou" a junta do Porto a assumir explicitamente a rutura com a constituição tradicional do Antigo Regime e a invocar a legitimidade revolucionária para convocar, à margem do rei, um novo tipo de Cortes, com poderes constituintes, baseadas na soberania da Nação, investida na coletividade dos cidadãos, agora libertos da submissão à monarquia absoluta.

Um momento-chave para o triunfo da Revolução!

segunda-feira, 28 de março de 2022

Razões para inquietação (2): Ainda é reformável o SNS?

1. Importa refletir sobre esta lista de «reformas [no SNS] que façam reduzir os tempos de espera no acesso, o excesso de urgências ou o desperdício crónico de recursos (de pessoas mas, sobretudo, de instalações e equipamentos subutilizados)», da autoria de um conhecido administrador hospitalar com um longo currículo (além de ter sido secretário de Estado da Saúde no 1º Governo de António Costa), endereçada à ministra da Saúde neste novo mandato governativo, agora num Governo com maioria absoluta.

Mesmo sem ser surpreendente, o elenco das causas apontadas de ineficiência e desperdício no SNS não deixa de impressionar, desde o constrangimento no acesso aos cuidados primários e o congestionamento das urgências até às carências na saúde mental, passando pela escandalosa insuficiência dos sistemas de informação e pela utilização a meio tempo de instalações e equipamentos. Um retrato preocupante!

2. Entre as soluções aventadas pelo autor (que, porém, não deixou grande registo reformista quando foi governante...) não constam naturalmente algumas que terá considerado fora da equação política dominante - herdeira dos acordos no seio da "Geringonça" -, nomeadamente a reabertura  da gestão de hospitais do SNS a "parcerias público-privadas" (que a Lei de Bases do SNS praticamente baniu) e um sistema credível de avaliação de desempenho de gestores e profissionais (desde a assiduidade ao output), com consequências na remuneração e na carreira.

Mas não se vê como é que é possível velar pela eficiência de qualquer organização, sem uma séria avaliação de desempenho.

3. Em contrapartida, o autor insiste na proposta de envolver as ordens profissionais do setor na reforma do SNS, o que vai no sentido contrário ao que deve ser seguido, que é de reconduzi-las estritamente à sua missão legal de regulação, disciplina e deontologia profissional, qualquer que seja o enquadramento profissional dos seus membros (SNS ou clínica privada), sem qualquer intervenção nas relações laborais ou na organização dos serviços em que estes exercem a sua profissão. 

Como expressão do mais retinto corporativismo profissional ("malthusianismo" profissional, defesa de interesses de grupo à margem do interesse público, etc.), as ordens são naturalmente inimigas de qualquer reforma tendente a conferir maior eficiência ou equidade ao SNS. Contar com elas é um contrassenso.

Guerra na Ucrânia (26): "Vade retro", putinistas!

1. Cumpre alertar contra esta nefanda "carta aberta" sobre a guerra da Ucrânia, que nada menos de 20-vinte-20 assumidos putinistas portugueses, onde pontificam alguns notórios expoentes da "esquerda iliberal", ousaram publicar e fazer circular entre nós, pondo em causa a bem-aventurada cruzada ocidental contra a autocrática Rússia e o seu ditador Putin (um "carniceiro", como diz, com toda a justeza, o Presidente Biden, inquestionado líder da coligação da civilização liberal-democrática ocidental contra a barbárie do novo despotismo oriental).

É manifesto que, apesar de os autores começarem hipocritamente por condenar a invasão da Ucrânia, em nome do direito internacional (como se pudéssemos acreditar na sua sinceridade!), o que os move é o óbvio propósito de enfraquecer o heroico esforço de resistência ucraniana às hordas do Kremlin, começando por questionar -  atrevendo-se mesmo a invocar em vão a CRP - as justíssimas medidas de legítima defesa ocidental contra a circulação dos meios de propaganda russa e contra os artistas e desportistas russos, que, por definição, não podem deixar de ser agentes ou, pelo menos cúmplices, de Putin. 

Em tempo de guerra, nenhum deles é confiável. Todos reenviados para a Moscóvia, já!

2. Particularmente repugnante é o paralelismo que procuram sub-repticiamente estabelecer entre o sofrimento dos ucranianos sob a criminosa agressão imperialista russa e o dos iraquianos e outros alvos de justa intervenção civilizadora ocidental, como se houvesse alguma semelhança entre mortos e refugiados de um país europeu e cristão e os de países bárbaros e muçulmanos! 

Abaixo as falsas equivalências!

3. Se lamentavelmente, por justa precaução, a Nato não pode entrar diretamente em guerra contra o agressor russo, pelo menos podemos declarar uma "guerra nuclear" em todos os outros planos: não somente económica, financeira e comercial, mas também mediática, internética, cultural, desportiva. Boicote geral a tudo o que é russo! Uma guerra total, até à rendição de Putin! 

É certo que quem sofre os desastres da guerra real, em destruição e morte, é a Ucrânia. Prestemos-lhe a nossa sentida homenagem pelo seu supremo sacrifício pela causa e estimulemo-los a resistir até ao último homem. A "paz negociada" ou a "solução política" em que insistem os putinistas não passa de uma armadilha sonsa para dar vantagens "na secretaria" a Moscovo. Negociação seria rendição!

Esta carta aberta não passa, portanto, de um provocatório panfleto filoputinesco, que só pode merecer repúdio, com os seus autores (e seguidores!) lançados à execração pública e interditados académica e profissionalmente, como medida de segurança!

Adenda
Dizendo-se «incomodado com a minha satírica caricatura» do fundamentalismo antirrusso, um leitor pergunta porque não me juntei ao referido abaixo-assinado, subscrito por vários intelectuais e universitários, se as minhas posições convergem essencialmente com as deles. A resposta é esta: mesmo que concordasse inteiramente com as formulações da "carta aberta", o que não é o caso, desde há muitos anos que decidi não alinhar em posições políticas coletivas, sempre seletivas e compromissórias, por descrença na sua efetividade, numa atitude de irredutível responsabilidade política individual. É por isso que tenho o Causa Nossa!

Adenda 2
Um leitor pergunta-me se concordo com a anexação ou separação pela força de territórios de outros países, como a Crimeia e o Dombass. Claro que não concordo, embora pense que uma solução federal para a Ucrânia poderia ter prevenido o problema. Mas não reconheço nenhuma legitimidade para condenar aos Estados Unidos e outros países que massacraram a Sérvia à bomba para separar o Kosovo ou que reconhecem a contínua anexação dos territórios palestinos por Israel ou a integração do Sahara por Marrocos. O direito internacional também vale, por maioria de razão, para as democracias liberais.

Guerra na Ucrânia (25): A UE paga pesada fatura

1. É já evidente que a guerra da Ucrânia vai traduzir-se numa pesada fatura para a UE, mesmo não sendo beligerante direta: aumento do custo da energia (dada a sua dependência das importações da Rússia, como mostra o quadro acima, colhido AQUI), impacto das sanções económicas (incluindo sobre as muitas empresas europeias que deixam de fazer negócio na/com a Rússia) e das contrassanções russas (incluindo a obrigação de pagamento das importações de energia em rublos), apoio aos milhões de deslocados ucranianos. Se acrescentarmos a necessária ajuda posterior à reconstrução da Ucrânia, não são precisas grandes estimativas para imaginar o gigantesco custo económico e financeiro da guerra para a União.

Ora, é fácil ver a enorme assimetria entre a União e os Estados Unidos quanto a este ponto, por causa da proximidade europeia com o conflito e da maior integração económica (trocas comerciais e investimento) com a Rússia. Ou seja, a UE é a principal vítima colateral de um conflito que é essencialmente uma guerra indireta entre a Rússia e os Estados Unidos no palco ucraniano.

2. Como é bom de ver, os encargos europeus com a guerra serão tanto maiores, quanto mais esta se prolongar: mais destruição na Ucrânia, mais refugiados, mais impacto das sanções (e contrassanções) económicas na economia da União.

Por isso, em vez de alinhar servilmente com Washington, como até aqui, na escalada do conflito  (incluindo a irresponsável escalada verbal do Presidente Biden há dias em visita à Europa) - que só alimenta a escalada russa na guerra -, é tempo de a União assumir institucionalmente uma inequívoca postura de pressão sobre os beligerantes para um cessar-fogo e uma solução política negociada do conflito, 

Os esforços políticos da União contra a guerra não podem nem devem limitar-se a uns telefonemas avulsos entre Macron e Putin. É através das suas instituições que a União tem de se exprimir e assumir as suas responsabilidades. 

Eis uma mudança que perde pela demora. Quanto mais durar a guerra, mais árduo e mais moroso será conseguir a paz.

Adenda
Um leitor entende que devemos preparar-nos para a possibilidade de o próprio PRR poder ser reprogramado pela União para poder suportar os custos da guerra. Entendo ser pouco provável, mas se a guerra se prolongar, nada é de descartar.

sábado, 26 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (24): Informação e propaganda

Gostaria de ter escrito isto: «Acontece que em nenhuma outra circunstância, como na guerra, o choque entre a informação e a propaganda é tão frontal». Cumpre ler o resto.

Adenda
Vale a pena ler também esta lúcida análise de um observador independente, sobre o que está em causa na guerra e sobre o seu provável resultado: «Creio que se há um claro vencedor, seja qual for o desfecho, é a China.(...) Dentro da NATO, os ganhos são assimétricos, com os EUA a saírem claramente beneficiados, seja pelo redesenhar da geopolítica energética, seja pelo compromisso dos membros em aumentarem os seus gastos de defesa (desde há muito uma exigência dos EUA), seja pela potencial adesão da Suécia e da Finlândia». Como aqui defendi, aliás.